As Fundações e o Novo Código Civil
Cibele Cristina Freitas de Resende
Promotora de Justiça
Através de questionamento trazido individualmente ao crivo deste Centro de Apoio
Operacional das Promotorias da Cidadania, com atribuições em matéria fundacional,
apresenta-se extremamente oportuno fazer algumas reflexões sobre o atualíssimo tema
das finalidades para as quais uma fundação pode ser instituída, sobretudo frente às
inovações trazidas pelo novo Código Civil, sob o prisma das particularidades que essas
pessoas jurídicas de direito privado apresentam.
Aproveitando a abordagem do caso concreto — não identificado propositalmente1 —
nota-se da leitura dos dispositivos destacados do projeto de estatuto submetido à
aprovação do Ministério Público, que, a par do ponto central da reforma estatutária
pretendida no capítulo das “finalidades”, justificada pela entrada em vigor do novo
Código, identifica-se outro tema, de igual ou até superior importância no contexto atual,
representado pela inserção na proposta de alteração estatutária da expressa
possibilidade de que a entidade fundacional se utilize de seu patrimônio no
desenvolvimento de atividades econômicas, ora como meio de atingir suas finalidades
assistenciais, ora sendo estas atividades econômicas coincidentes com as mesmas
finalidades (econômicas).
No caso em espécie, trata-se de verificar a possibilidade, frente ao aparato legal, de se
instituir uma fundação com as finalidades a seguir transcritas:
Artigo 2° . A Fundação CANAL LARANJA2 tem por finalidade específica:
prestar
assistência
genérica,
com
os
objetivos
em
frente
delineados.
Parágrafo primeiro - na forma prevista no Parágrafo único, do artigo 62 da
Lei 10406/2002, respeitando as suas finalidades primitivas, conforme
1
Em atenção ao princípio do Promotor Natural.
2
Nome fictício.
preceitua o inciso II do artigo 67, da mesma Lei, a FUNDAÇÃO CANAL
LARANJA concentrará suas atividades em finalidades de Assistência
Social, mais precisamente as ações conforme descritos no artigo 203
incisos I a V, da Constituição Federal do Brasil de 1988.
Parágrafo segundo – Para atingir os seus objetivos, a FUNDAÇÃO CANAL
LARANJA poderá colocar o seu Patrimônio a trabalhar em atividades
econômicas, conforme lhe assegura o artigo 170, parágrafo único, da
Constituição Federal de 1988, sendo os seus resultados canalizados para
suas finalidades de Assistência Social, podendo concomitantemente as
atividades econômicas serem coincidentes com as mesmas
finalidades. (GRIFOS MEUS)
Pois bem, a par das diversas imprecisões de natureza formal apresentadas nas
disposições citadas — que serão abordadas em parecer dirigido à situação
particularizada — , podemos destacar, nesta análise, três aspectos de interesse geral
para o estudo da matéria fundacional, que passarão a ser objeto de reflexão na
seguinte ordem: 1) a aplicação do parágrafo único do artigo 62 do Código Civil; 2) o
exercício de atividade econômica por fundações visto sob a ótica das modificações
trazidas pelo novo Código Civil às pessoas jurídicas de direito privado; 3) a previsão de
adequação das entidades fundacionais já existentes à disciplina do novo Código Civil
(artigos 2.031 a 2.033).
I. A APLICAÇÃO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 62
DO NOVO CÓDIGO CIVIL
Inicialmente é preciso registrar as premissas normativas que serão objeto de
interpretação neste trabalho:
Estabelecia o artigo 24 do Código Civil de 1916:
“Para criar uma fundação, far-lhe-á o seu instituidor, por escritura pública ou
testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que destina e
declarando, se quiser, a maneira de administrá-lo.”
Através da disposição correspondente, no artigo 62 do novo Código Civil (Lei n° 10.406
de 10.01.2002), o legislador prevê, adotando redação semelhante, que:
“Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento,
dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se
quiser, a maneira de administrá-la.”
Todavia, acrescenta a essa disposição um parágrafo único, no qual delimita os fins para
os quais poderão ser instituídas as pessoas jurídicas fundacionais:
“A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de
assistência.”
Sobre a inovação mencionada, importa observar, desde logo, que tramita no Congresso
Nacional um projeto de lei do próprio Deputado Ricardo Fiúza, propondo a supressão
deste parágrafo único, justificada pela inconveniência da limitação dos fins das
entidades fundacionais (PL n° 7.160, de 27.08.02).34
Não é sem razão que esta disposição tem sido objeto de atenção, — e porque não dizer
de preocupação — dos diversos agentes envolvidos na identificação da posição jurídica
e do papel social das fundações privadas, dadas as limitações que a sua incidência
concreta poderá ensejar quando da criação de novas entidades fundacionais.
Dentre as opiniões já editadas sobre a matéria, ressaltamos o abalizado posicionamento
de José Eduardo Sabo Paes, em sua obra “Fundações e Entidades de Interesse Social”5,
o qual adverte que: “A limitação da fundação é totalmente contrária ao interesse público
e inconveniente ao interesse da sociedade.”
Este entendimento coincide, na íntegra, com aquele defendido pela “Associação
Nacional dos Procuradores e Promotores de Justiça de Fundações e Entidades de
Interesse Social –PROFIS”6, cujos membros, na recente reunião ordinária ocorrida em
28 de abril de 2003, em Brasília, por ocasião do “IV Simpósio Ministério Público e o
Terceiro Setor em Convergência com o Interesse Social”, ratificaram o entendimento já
3
O Projeto de lei, segundo consulta via Internet, encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça
5
Brasília Jurídica, 4ª edição, p. 259.
6
Da qual esta autora é recém-associada.
anteriormente manifestado, contrário à referida restrição, diante da notícia da
resistência, por parte de alguns parlamentares, acerca do projeto que propõe a
supressão desta norma, ao argumento de que a limitação imposta evitaria o
desvirtuamento das finalidades para as quais foram previstas ditas entidades em sua
origem, e o mau uso que vem sendo feito das receitas auferidas com a renúncia e os
incentivos fiscais para fomentar-lhes as atividades de cunho social.
É preciso deixar assente, entretanto, que ao mesmo tempo em que é encampado o
posicionamento de que a limitação das finalidades fundacionais não atende ao interesse
da sociedade, assume-se, em contrapartida, o crescimento da responsabilidade do
velamento pelo Ministério Público, no intuito de impedir que algumas entidades, “sob o
manto do formato fundacional”, atuem como verdadeiras “bancas de negócios”,
privilegiando e enriquecendo ilicitamente alguns apaziguados, utilizando-se da via da
concorrência comercial desigual e desleal, propiciada pelo tratamento tributário
diferenciado das fundações (imunidades e isenções a entidades de interesse público),
ou através da burla — hoje bastante comum — da legislação trabalhista
(“voluntariado”),
previdenciária
(“pilantropia”)
e
administrativa,
sobretudo
na
contratação com o Poder Público (fraude à lei de licitações e à exigência de concursos).
Oportuno consignar a respeito, que este Centro de Apoio Operacional das Promotorias
da Cidadania-Núcleo das Fundações, vem expandindo a sua atuação neste campo de
grande interesse social, anotando que, no Paraná, na maioria dos casos, o exercício da
função de velamento vem sendo realizado há vários anos mediante a verificação “in
loco”, por auditores do Ministério Público, da documentação referente às contas
apresentadas. Além disso, encontra-se em fase de progressiva implantação, o controle
finalístico de aplicação de recursos dessas entidades, medidas essas que têm permitido
aos Promotores de Justiça a adoção de medidas tendentes a coibir abusos e
ilegalidades, não obstante as dificuldades práticas que envolvam esta árdua tarefa.
Isto posto, e voltando ao enfrentamento da temática proposta — da interpretação da
regra do parágrafo único do artigo 62, hoje em vigor —, para abrir o debate da questão,
iniciamos com o registro do entendimento do ilustre Procurador de Justiça, Coordenador
do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Tutela de Fundações de Minas
Gerais, doutor Tomáz de Aquino Resende7, apresentada em atualíssimo artigo sobre a
matéria, no qual pontifica:
Ao acrescentar o parágrafo único ao artigo 62 do Código Civil, buscou o legislador,
pensamos, tornar mais claro ainda que no direito pátrio, como tradição secular,
não se admite a figura de pessoa patrimonial a administrar interesses
exclusivamente privados, como acontece em outros países, onde são criadas
fundações para administrar fortunas em favor de alguns poucos herdeiros.
Como já tivemos oportunidade de asseverar em outros trabalhos, este desejo da
sociedade, expressado através dos legisladores, em não admitir o nascimento de
fundação para administrar interesses particulares, vem muito claro no artigo 11 do
Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código
Civil) que nos leva, aí sim, numa interpretação literal, à conclusão irrefutável de
que, obrigatoriamente, só poderão existir sociedades sem fins lucrativos (hoje
associações) e fundações, se objetivarem as mesmas, em seus especificados fins, a
questões de interesse coletivo, como se vê:
“ As organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as
sociedades e as fundações...”.
Assim, além de desnecessária, a inovação posta através do parágrafo único acima
mencionado, com o claro intuito de repetir a restrição já existente, é de uma
redação deveras confusa e imprópria, vez que se não ambíguos, os termos nela
contidos demandariam complementação, vez que totalmente desnecessários e
indevidos, tanto que proposta do Deputado Ricardo Fiúza sugere a supressão total
do mencionado parágrafo8.
O ilustre Procurador de Justiça discorre, ainda, em seu artigo, sobre interpretação das
finalidades elencadas na precitada disposição, tais como: os “fins religiosos” e os “fins
culturais”, que, a seu ver, prescindem de maiores comentários; os “fins morais”,
lembrando que já não são permitidas entidades imorais em nosso ordenamento ou que
7 Texto integral do artigo disponibilizado, na íntegra, em nosso site: (www.mp.pr.gov.br/cidadania/fundações
8 Proposta Ricardo Fiúza “Art. 62: Propõe-se a supressão do parágrafo único. Em vista da forma de sua constituição e
das limitações e rigorosa fiscalização a que estão sujeitas as fundações, não parece conveniente a limitação a seus
fins”.
tenham objeto ilícito; e os “fins de assistência”, que representam, na verdade, a
intenção do legislador em deixar claro que “as entidades sem fins lucrativos continuam
obrigadas a prestar assistência às questões de interesse coletivo”, para, ao final de sua
exposição, concluir:
“Portanto, ainda que desconsiderando o trocadilho, embora o mesmo tenha mais
sentido do que o dispositivo legal em comento, não sendo imorais (entendam-se
por ilícitos) os fins, nem tendo como objetivo a administração de interesses
particulares, dessume-se da legislação brasileira a possibilidade de instituição de
fundação para qualquer das inúmeras finalidades demandadas pelo interesse
coletivo, como até então vem se fazendo. Ou seja, nenhuma contribuição houve,
com o acréscimo de parágrafo ao artigo 62 do Código Civil, o qual deverá ser
excluído da lei, ou, mesmo se mantido, não gera qualquer efeito de ordem prática
com relação ao já estabelecido para a instituição de fundações em nosso País”.
Com todo o respeito aos valorosos fins defendidos pela visão transcrita, impõe-se
reconhecer que diante do absoluto silêncio que pairava na legislação anterior, a simples
inserção desta norma, citando expressamente os fins para os quais pode uma fundação
ser instituída, leva, objetivamente, ao reconhecimento do seu caráter restritivo, ainda
que a sua redação possa ensejar a pesquisa do significado e do alcance da terminologia
utilizada.
Nesse contexto, não vemos outro caminho senão a de procurar identificar, sob a
perspectiva legal, quais seriam essas finalidades “morais”, “religiosas”, “culturais” e “de
assistência”, que possam traduzir o alcance social para os quais essas entidades de
interesse coletivo, sem fins econômicos ou lucrativos, podem ser instituídas, valendo
destacar, nesta tarefa, o seu aspecto mais polêmico, qual seja, as ditas finalidades “de
assistência”.
Como norte desta empreitada, lembramos, primeiramente, o que dispôs o constituinte
originário para a concretização das políticas públicas decorrentes dos princípios
fundamentais da dignidade humana, da cidadania, da justiça social, dentre outros,
estabelecendo no artigo 6º da Constituição Federal, os Direitos Sociais:
“São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma dessa Constituição.”
Expressam ainda as políticas públicas voltadas ao apoiamento dos direitos sociais, entre
outras, o disposto no artigo 203 da Constituição Federal, o qual indica como objetivos
da assistência social, regulamentados pela LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social
(Lei n° 8.742/93): a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à
velhice; o amparo a crianças e adolescentes carentes; à promoção da integração ao
mercado de trabalho; à habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência
e a promoção de sua integração à vida comunitária.
Outrossim, o Decreto n° 2.536/98, que dispõe sobre a concessão do CEBA - Certificado
de Entidade Beneficente de Assistência Social (antigo certificado de filantropia),
considera como entidade beneficente de assistência social, sem fins lucrativos, além das
entidades que atuem nas áreas acima, aquelas que promovam, gratuitamente,
assistência educacional ou de saúde.
Ao lado dessas fontes primárias de interpretação, extraídas do direito positivo, mas não
fora da sua abrangência, retornaremos então ao estudo apresentado pelo Procurador de
Justiça mineiro, Tomás Aquino Resende9, acerca da interpretação do novel regramento:
“(...) Quanto a “fins de assistência” melhor sorte não merece, vez que além
dos argumentos acima alinhavados, aqui também plenamente cabíveis, devemos
entender que a intenção do legislador foi a de deixar ainda mais claro que as
entidades sem fins lucrativos continuam obrigadas a prestar assistência às
questões de interesse coletivo.
Se, como dizem alguns, os fins fossem os de prestar serviço gratuito ao
atendimento das necessidades de pessoas desprovidas de recurso, imprescindível
seria o acréscimo da expressão social. Assim, se não se trata de assistência social,
o foco do legislador ao mandar acrescentar o termo à lei, evidentemente foi o de
estabelecer que só se admitem fundações com o fim de, nos mais diversos campos
9
Transcrição do texto da citado anteriormente.
do interesse coletivo, colaborar, apoiar, proteger e amparar, pois esta a
interpretação léxica da expressão assistência, considerando, inclusive, o contexto
onde a mesma está inserida.
E, colaborar, apoiar, proteger, amparar, enfim, prestar assistência (muito diferente
da assistência social, repita-se com ênfase) pode ser realizado em qualquer das
áreas de interesse coletivo: Meio ambiente, pesquisa, esportes, saúde, educação,
etc.,etc.”
De forma plenamente compatível com esta linha de raciocínio, registramos, ainda, o
ponto de vista de Maria Helena Diniz10, a qual, se reportando às conclusões do Centro
de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal11, refere-se às fundações privadas
e suas finalidades da seguinte forma:
“É, portanto, um acervo de bens livres, que recebe da lei a capacidade jurídica
para realizar as finalidades pretendidas pelo seu instituidor, em atenção aos seus
estatutos, desde que religiosos, morais, culturais ou assistenciais (CC, art. 62,
parágrafo único). Não tem fins econômicos, nem fúteis. Logo, “a constituição de
fundação para fins científicos, educacionais ou de promoção do meio ambiente
está compreendida no Código Civil, art. 62, parágrafo único” (Enunciado nº 8 do
Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal), por ser meramente
enunciativa e por indicar a exclusão de fins lucrativos. E, além disso, cultura em
sentido amplo pode abranger a educação, inclusive a ambiental, a pesquisa
científica, a preservação do patrimônio cultural, a valorização e a difusão de
manifestações culturais, o desenvolvimento intelectual etc. “O art. 62, parágrafo
único, deve ser interpretado de modo a excluir apenas as fundações de fins
lucrativos”.
Além dos argumentos visitados, outro aspecto que enseja a máxima atenção do
aplicador da lei, é o contexto e a oportunidade em que a previsão surgiu, justamente,
quando também ocorreram mudanças afetas às demais pessoas jurídicas de direito
privado interno.
10
“Curso de Direito Civil”, Teoria geral do Direito Civil, 1º Volume, Editora Saraiva, 20ª edição, p. 211.
11
Enunciado nº 9 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal
Significativamente, no Código Civil atual, as sociedades civis sem fins lucrativos
desaparecem, subsistindo apenas como sociedades civis as que possuem fins lucrativos,
simples ou empresárias.
Atualmente, sem fins lucrativos serão apenas as associações e as fundações.
Sob este prisma encontra-se realçada a idéia de que as fundações, tal como as
associações, não se coadunam com objetivos econômicos ou lucrativos, razão pela qual
as finalidades para as quais podem ser instituídas deverão atender, puramente, a
objetivos de interesse coletivo. Nesses moldes, mostra-se justificável a limitação
pensada pelo legislador, quanto às finalidades religiosas, morais, culturais e de
assistência.
Assim sendo, e levando em conta as idéias acima expostas, relacionamos as seguintes
conclusões:
1. O legislador inseriu uma norma de caráter restritivo às finalidades para as
quais podem ser constituídas as fundações, cuja forma de exposição permite, e
reclama, o exercício de interpretação, sobretudo teleológica, sobre o conteúdo da
disposição comentada;
2. A restrição surgiu simultaneamente às modificações introduzidas quanto às
demais pessoas jurídicas de direito privado, significativamente,
quando
desaparece a figura das sociedades sem fins lucrativos, as quais, ao lado das
fundações e das associações, compreendiam as entidades de interesse social,
reforçando a noção de fundações como organizações destinadas a fins
coletivos; a impossibilidade de sua utilização para fins econômicos ou
lucrativos; a vedação para a administração de interesses particulares.
3. Segundo
as
fontes
positivas
de
interpretação,
os
fins
assistenciais
compreendem: a assistência à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao
lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade, à infância e à
adolescência; a assistência aos desamparados, à promoção da integração ao
mercado de trabalho; à habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de
deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária.
4. Como fins culturais, além do apoio, valorização e a difusão de manifestações
culturais, propriamente ditas, podem inserir-se a educação ambiental para a
preservação do meio ambiente.
5. A viabilidade, sob a ótica da essência do instituto fundacional, da interpretação
extensiva da norma, admitindo-se como fins de assistência: a colaboração, o
apoio, o amparo, a prestação de assistência direta a questões coletivas em
qualquer das áreas de interesse coletivo: como o meio ambiente, a pesquisa
científica, a preservação do patrimônio cultural, a valorização e a difusão de
manifestações culturais, o desenvolvimento intelectual, os esportes, etc., desde
quem sem fins econômicos.
6. O reconhecimento de que, mesmo antes da mudança em questão, já havia para
o Ministério Público, ao aprovar os estatutos de uma fundação, a obrigação de
verificar se esta, a despeito das expressões formais que utiliza no texto
estatutário, se coaduna com a noção de entidade de interesse social, sem fins
econômicos ou lucrativos.
Em arremate, frisamos que, dentro dos parâmetros legais e doutrinários expostos, e sob
o prisma de que uma fundação nasce sempre para beneficiar uma coletividade, por
meio da dotação de bens livres destinados a uma finalidade eminentemente social,
deverá o intérprete perquirir12, em cada caso concreto, a possibilidade jurídica da
instituição de determinada fundação, independentemente de conter em seu estatuto
expressões “formais” pinçadas do texto legislativo atual.
12
Como já lhe cabia fazer, de forma até mais ampla, sem os parâmetros dados pela legislação atual.
II. A PREVISÃO DE FINALIDADES ECONÔMICAS E O
EXERCÍCIO DE ATIVIDADE ECONÔMICA POR FUNDAÇÕES
VISTO SOB A ÓTICA DAS MODIFICAÇÕES TRAZIDAS PELO
NOVO CÓDIGO CIVIL ÀS PESSOAS JURÍDICAS DE
DIREITO PRIVADO
Não chega a ser incomum surgirem interessados em defender a possibilidade de se
instituir fundações com fins econômicos, sob a justificativa de que o resultado desta
seria inteiramente aplicado em finalidades de caráter social, invocando, em regra, dois
argumentos principais: a ausência de vedação legal expressa e o princípio geral de
atividade econômica insculpido no artigo 170, parágrafo único, da Constituição Federal,
o qual estabelece: é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade
econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos salvo nos casos
previstos em lei.
Iniciando o exame desta questão, é preciso deixar claro, desde logo, que combatemos
intransponivelmente tal entendimento, senão por sucumbir a uma análise mais
profunda, à luz das mesmas fontes jurídicas invocadas para lhe dar sustentação, mas
sobretudo porque, na prática, tem dado concretude a péssimos exemplos de fraudes à
ordem jurídica (econômica, tributária, trabalhista, previdenciária,administrativa,etc.),
viabilizando importações com isenção fraudulenta de impostos para o uso dos
equipamentos em fins comerciais comuns; contratação mascarada de trabalhadores
como “voluntários” ou “estagiários” em detrimento da abertura de vagas de trabalho
regular e registro em carteira; desvio de receitas públicas e emprego de verbas de
cunho social, obtidas com os incentivos fiscais e parafiscais usadas para o pagamento
de despesas particulares de diretores e seus familiares; concorrência desleal frente ao
comércio formal, etc, etc, etc....
Todas essas atividades acima mencionadas — verificadas por esta Promotoria de Justiça
em casos práticos — têm gerado nenhum ou insignificante retorno social frente aos
benefícios obtidos com as renúncias e incentivos fiscais concedidos a essas entidades,
razão pela qual vêm as mesmas sendo alvo de inquéritos civis e ações de intervenção e
extinção de fundações, não raro quando o mal já se encontra irremediavelmente
consumado, perdendo-se preciosos recursos que deveriam ser aplicados pelo governo
na carente realidade social brasileira.
Mas, afinal, o que são fundações? A resposta a essa singela questão, que pode nos
parecer, a princípio, óbvia, assume grande importância para a solução da temática
proposta, conforme restará evidenciado.
O artigo 62 do Código Civil não oferece um conceito direto, mas a delineia da
seguinte forma: Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou
testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e
declarando, se quiser, a maneira de administrá-la.
Segundo Pontes de Miranda, fundação é “uma universalidade de bens personalizada
em atenção ao fim que lhe dá unidade”.
Para Clóvis Bevilaqüa: “uma universalidade de bens personalizada, em atenção ao
fim, que lhe dá unidade ou um patrimônio transfigurado pela idéia, que o põe ao serviço
de um fim determinado.”
Ao lado das clássicas definições, Carvalho de Mendonça, também:
“o patrimônio que compõe a fundação pertence à sociedade ou a uma parcela
desta, pois quando a pessoa jurídica fundacional (patrimônio destinado a um fim
social) adquire personalidade (no momento em que ocorrer o registro no cartório
de registro civil das pessoas jurídicas) aqueles bens que passaram a constituir a
fundação se desvincularam totalmente do instituidor — surge uma pessoa nova,
um novo sujeito de direitos e obrigações, o qual não detém, por si, capacidade
para exercitar direitos ou cumprir tais obrigações, de vez que o próprio patrimônio
é também a pessoa (não pertencendo ao instituidor, ou aos membros de sua
administração, nem ao Estado, tampouco ao seus usuários), necessitando, assim,
de uma assistência diferenciada por parte do Estado, uma vez que é público
objetivo e indeterminado o “dono” do patrimônio.”13
13
‘‘Contractos no Direito Civil Brasileiro, Tomo II, 1938, 2ª ed., P. 218”.
Maria Helena Diniz14, modernamente, conceitua fundações particulares como
“universalidades de bens, personalizadas pela ordem jurídica, em consideração a um fim
estipulado pelo fundador, sendo este objetivo imutável e seus órgãos servientes, pois
todas as resoluções estão delimitadas pelo instituidor.”
José Eduardo Sabo Paes15 anota que as fundações, historicamente, procuram
beneficiar a coletividade por meio de finalidades eminentemente sociais. A
vontade dos instituidores deverá sempre estar ligada a um interesse geral, uma vez
que os destinatários dos benefícios que uma fundação pode prestar são, de uma
maneira geral, a própria sociedade ou comunidade em que ela se inserir.
Assim, podemos concluir, com Tomás Aquino Resende16, que uma fundação é um
patrimônio que se transforma em pessoa jurídica, patrimônio este que pertence à
sociedade desvinculando-se de seu instituidor e passando ao domínio público, em
razão de sua finalidade social; complementam ou substituem a atividade
governamental; prestam serviços de forma desinteressada, com a predominância do
interesse público, em caráter gratuito e sem fins lucrativos e o fazem dentro dos
objetivos e finalidades estabelecidas pelo instituidor; sua estrutura deve ser organizada,
de forma a tornar possível a consecução das finalidades estabelecidas, pois os fins, na
pessoa fundacional, são perenes e imutáveis na sua essência; como cooperam com a
organização estatal no atendimento à coletividade, recebem benefícios e isenções
tributárias, merecendo um especial tratamento por parte do Estado.
Nesse passo, e delineadas as noções principais da figura fundacional, como uma
universitas bonorum17 é preciso, então, situá-las no plano jurídico geral, quanto às
funções e capacidade das pessoas jurídicas:
Segundo a classificação adotada por Maria Helena Diniz:
14
“Curso de Direito civil Brasileiro”, teoria Geral do Direito Civil, 1 º Volume, Editora Saraiva, 20ª edição. p.211.
15
“Fundações e Entidades de Interesse Social”, Brasília Jurídica, 4ª edição. p. 260.
16
Ao justificar as razões do velamento pelo Ministério Público na obra: “Novo Manual de Fundações”, Editora Inédita,
1997, p.92.
17
Segundo Clóvis Bevilaqüa: o patrimônio especializado que lhe dá unidade.
As pessoas jurídicas de direito privado, instituídas por iniciativa de particulares,
conforme o art. 44, I a III, do Código Civil, dividem-se em: fundações particulares,
associações, sociedades (simples e empresárias) e, ainda, partidos políticos (Lei nº
9.096/95, art. 1º, CF, art. 17, I a IV, §§1º a 4º; Decreto n. 4.199/2002; CC, arts.
2.031 a 2.034), que, atualmente, ante o disposto na Carta Magna (art. 17, §2º),
têm a natureza de associação civil, sendo pessoa jurídica de direito privado.
O Código Civil atual, em seu artigo 53, estabelece que as associações são entidades
constituídas para fins não econômicos e coerentemente com esta disposição, o
parágrafo único do artigo 53, prevê que não existe entre os associados, direitos e
obrigações recíprocas, o que seriam características próprias das sociedades.
A sociedade simples (sociedade civil), tratada pelos artigos 997 a 1.038 do CC, segundo
Maria Helena Diniz18, “é a que visa fim econômico ou lucrativo, que deve ser
repartido entre os sócios, sendo alcançado pelo exercício de certas profissões ou pela
prestação de serviços técnicos.” (grifos meus)
Por sua vez, as sociedades empresárias (sociedades mercantis) são aquelas “que
visam lucro, mediante exercício de atividade mercantil.”
A partir da nova normatização civil, depreende-se que as sociedades passam a ter
finalidade, exclusivamente, econômica ou lucrativa, não mais se assemelhando à noção
de associações, estas como entidades destinadas ao desenvolvimento de finalidades de
interesse social, e aquelas, visando, sempre, objetivos econômicos ou lucrativos.
Nesse passo, à luz dos dispositivos expostos, posicionamo-nos no sentido de que as
fundações, ao lado das associações, ocupam a posição legal de pessoas jurídicas de
direito privado sem fins econômicos ou lucrativos, configurando-se como entidades
de interesse social.
Pois bem, delimitado-se que as fundações não possuem fins econômicos, a primeira
observação a ser feita é a de que embora as fundações também não visem a aferição
de lucro, já que o seu patrimônio é especialmente vinculado à consecução dos objetivos
de caráter social propostos pelo instituidor, tem-se que não há vedação alguma quanto
18
Op citada, p. 227.
à obtenção de superávit a ser reaplicado nas próprias finalidades fundacionais e no
fortalecimento da estrutura patrimonial.
A respeito, vale anotar:
“Tanto o lucro como o superávit podem ser definidos como o resultado econômicofinanceiro positivo de uma atividade, apurado em um determinado período. A
distinção entre um e outro não reside na forma de apuração, que em termos
simples é a diferença entre as receitas e as despesas, mas na natureza e finalidade
do ente que auferiu o resultado positivo. O superávit é típico das entidades que
têm por objetivo gerir recursos para a consecução suas atividades finalísticas, de
interesse social. É a diferença entre a captação de recursos, quer por meio de
doações ou prestação de serviços, quer por quaisquer outros meios lícitos, e a
despesa realizada em prol de seus fins. Não é objetivo da entidade de interesse
social o atingimento do superávit em si, mas este é conseqüência, uma sobra a ser
utilizada no desenvolvimento de suas atividades em benefício da sociedade”.19
Todavia, ressalta-se que os fins econômicos são a ela estranhos, quer porque o
legislador civil delimitou, ainda mais, as formas jurídicas próprias para a consecução das
finalidades econômicas (sociedades simples e empresárias), quer porque a finalidade
econômica se afasta inteiramente do espírito do instituto, voltado à consecução de fins
de caráter geral e de interesse social e, sobretudo, dos objetivos buscados pelo
constituinte ao conceder a essas entidades um tratamento fiscal diferenciado para
fomentar as atividades sociais para as quais estão essencialmente vocacionadas.
Em suma, a essência diferenciada da fundação — reconhecida e levada em conta pela
própria Constituição Federal ao abrigá-la do poder tributário do Fisco — não permite
que, de forma conflitante com a posição adotada pelo constituinte, venha a entidade a
atuar, competitivamente, no mesmo campo destinado a outras figuras jurídicas de
direito privado, conquanto estas não gozem do mesmo tratamento que lhe é
proporcionado.
Trata-se da simples aplicação do princípio constitucional da isonomia.
19
José Eduardo Sabo Paes, nora 279, p. 265,
Ora, buscando os próprios princípios gerais que informam a atividade econômica,
inseridos no artigo 170 da Constituição Federal, constata-se que um dos pilares da
organização econômica do país reside na livre concorrência, o que pressupõe, para o
Estado, a vedação da intervir na atividade econômica em favor de entes particulares em
detrimento de outros.
Pois bem, o Estado, objetivando fortalecer essas entidades de interesse social e
garantir-lhes condições de estabilidade e transparência, diante da alta função social que
desempenham, concede-lhes favores ou concessões especiais20, em reconhecimento aos
serviços prestados em fins humanitários e sociais a que se dedicam.
Como precisamente colocado pelo Promotor de Justiça paranaense Divonzir José
Borges, em seu artigo “Fiscalizando as Fundações e Entidades Sem Fins Lucrativos”·:
“Para o fomento das políticas públicas de enfrentamento da pobreza, utiliza-se
também o Estado do instituto da renúncia de receita. A renúncia de receita,
também nominada doutrinariamente de renúncia fiscal ou gasto tributário21,
corresponde a uma abdicação, integral ou parcial, de tributos incidentes sobre
produtos, serviços e rendas. Desta forma, os valores não recolhidos aos cofres
públicos
equivalem
a
uma
transferência
desses
recursos
às
instituições
assistenciais. Em contrapartida, as entidades beneficiadas com o incentivo fiscal22
devem aplicar integralmente ditos recursos23, mediante a prestação de serviços
20 Como exemplo desse especial tratamento, lembramos: as imunidades tributárias das instituições de educação ou
assistência social (artigo 150, VI, “c”, da CF), de acordo com os requisitos do artigo 14 do CTN; as isenções do
imposto de renda ( Lei 9.532/97) – às entidades de caráter filantrópico (CEBA), recreativo, cultural e científico; a
isenção da cota patronal devida à previdência social através dos certificado de fins filantrópicos pelo CNAS (Lei
8.742/93); as isenções legais – quanto ao COFINs, sobre as atividades próprias das fundações, o PIS/PASEP, o CSSL.
21 “Gastos tributários ou renúncias de receita são mecanismos financeiros empregados na vertente da receita pública
(isenção fiscal, redução de base de cálculo ou de alíquota de imposto, depreciações para efeito de imposto de renda
etc.) que produzem os mesmos resultados econômicos da despesa pública (subvenções, subsídios, restituições de
imposto etc).” – Ricardo Lobo Torres, Curso de direito financeiro e tributário, 6ª ed., Rio de Janeiro, 1999, pág. 165.
22 Para Paulo Sandoni, incentivo fiscal é o “subsídio concedido pelo governo, na forma de renúncia de parte de sua
receita com impostos, em troca do investimento em operações ou atividades por ele estimuladas.”– Apud Carlos
Valder do Nascimento in Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal – pág. 95.
23 Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000
Da Execução Orçamentária e do Cumprimento das Metas
Art. 8º.
assistenciais, baseados na ética, transparência e responsabilidade à comunidade
que deles necessitam. O Estado deixa de receber o valor da arrecadação
renunciada, porém não abre mão da contrapartida social que a receita deve
proporcionar à população24. A renúncia fiscal vem sempre acompanhada de algum
objetivo a atingir.”
Nesse prisma, ainda que reconheçamos que o direito é em si lacunoso, especialmente
no que se refere à matéria fundacional, temos que, se a fundação se lança na prática de
atividades econômicas — ainda que não distribua lucros —haverá que fazê-lo par e
passo, em igualdade de condições com as demais pessoas jurídicas de direito
privado que exercem atividades econômicas, sob pena de ferir o princípio da
isonomia e especialmente o da livre concorrência, este último erigido na mesma seara
constitucional com a qual os interessados, no caso “sub judice”, pretendem defender a
existência de fundações com fins econômicos.
De outro vértice, no que tange ao exercício de atividades econômicas, conforme
precisamente colocado por José Eduardo Sabo Paes, nos parece bastante pertinente
a seguinte ilação:
Admite-se, no entanto, a realização de atividades econômicas por parte das
fundações. Primeiro, quando elas sejam necessárias para o melhor cumprimento
dos seus fins estatutários e estejam a eles (fins) diretamente ligadas;
segundo, quando a fundação seja acionista ou cotista de uma sociedade comercial.
25
(grifos meus)
De qualquer modo, a realização de atividade econômica ou de caráter industrial por
uma fundação, mesmo quando ligadas diretamente às finalidades essenciais da
fundação (fins sociais), é de ser vista com a máxima cautela e em caráter
Parágrafo único. Os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para
atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso.
24 Lei nº 9.995, de 25 de julho de 2000 - Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração da lei orçamentária de 2001 e
dá outras providências.
Art. 87. As entidades privadas beneficiadas com recursos públicos a qualquer título submeter-se-ão à fiscalização do
Poder concedente com a finalidade de verificar o cumprimento de metas e objetivos para os quais receberam os
recursos.
25 Op. Citada, p. 265.
extremamente excepcional, em cada caso concreto, na medida em que tem sido fonte
de desvirtuamento do instituto e de fraudes à ordem jurídica, lembrando que a questão
tem sido encontrada na jurisprudência, justamente, quando há discussão inerente ao
alcance das imunidades constitucionais e isenções tributárias de que gozam estes entes
jurídicos, não raro por representarem o completo desvirtuamento do instituto
fundacional.
No caso em mesa, verifica-se que a interessada dispõe em seu estatuto que “para
atingir os seus objetivos, a FUNDAÇÃO CANAL LARANJA poderá colocar o seu
Patrimônio a trabalhar em atividades econômicas, sendo os seus resultados canalizados
para suas finalidades de Assistência Social, podendo concomitantemente as atividades
econômicas serem coincidentes com as mesmas finalidades.”
O que primeiro chama à atenção neste caso, é o fato de consignar, expressa e
genericamente, no próprio texto estatutário, que a fundação poderá colocar o seu
patrimônio para trabalhar em atividades econômicas.
A segunda anotação, diz respeito à previsão de que estas atividades econômicas
poderão ser, concomitantemente, coincidentes com as mesmas finalidades. Ou seja,
através de um jogo de palavras, insere-se no conteúdo da norma que a fundação
poderá ter também finalidades econômicas, as quais coincidirão com as próprias
atividades econômicas representadas.
Ora, ao se inserir no texto do estatuto que a entidade possui caráter assistencial — a
qual gozaria de imunidades sobre o patrimônio, a renda ou serviços prestados — e ao
mesmo tempo estabelecer que poderá exercer atividades econômicas (coincidentes ou
não com suas finalidades), pretende a interessada receber um salvo conduto para
empreender em sua atividade principal (canal de rádio ou televisão) a prática da
concorrência desigual e desleal.
Assim sendo, a previsão “sub examen” não se coaduna com a forma jurídica
fundacional, a qual não comporta a finalidade econômica vislumbrada no texto da
proposta de reforma estatutária.
III. PREVISÃO DE ADEQÜAÇÃO DAS ENTIDADES
FUNDACIONAIS JÁ EXISTENTES À DISCIPLINA DO NOVO
CÓDIGO CIVIL (artigos 2.031 à 2.033).
O estudo que vem sendo feito acerca da proposta de alteração estatutária apresentada
— no que diz respeito às finalidades das fundações—, enseja ainda o exame da
adequação dos estatutos estatutários das entidades fundacionais constituídas antes da
vigência do novo Código Civil, com as modificações dele advindas, à luz dos dispositivos
supracitados, inseridos nas Disposições Transitórias.
Para tanto, iniciamos por transcrever as disposições pertinentes, aonde se destacam as
particularidades relevantes para a presente análise.
O artigo 2.031 estabelece:
“As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma as leis
anteriores, terão o prazo de um ano para se adaptarem às disposições deste
Código, a partir de sua vigência; igual prazo é concedido aos empresários.”
Por sua vez, o artigo 2.032 prevê o seguinte:
“As fundações, instituídas segundo a legislação anterior, inclusive as de fins
diversos dos previstos no parágrafo único do art. 62, subordinam-se quanto
ao seu funcionamento, ao disposto neste Código”.
Dispõe o artigo 2.033:
“Salvo o disposto em lei especial, as modificações dos atos constitutivos das
pessoas jurídicas referidas no art. 44, bem como a sua transformação,
incorporação, cisão ou fusão, regem-se desde logo por este Código.”
Pois bem, na situação em comento, a entidade fundacional pretende a reforma dos seus
estatutos sob a justificativa de que necessita adequar as suas finalidades, e demais
disposições, às regras previstas na lei substantiva civil.
Especificamente, sobre a necessidade ou possibilidade de adequação dos fins de uma
fundação já constituída antes da vigência do novo Código Civil, a alguma das finalidades
elencadas no parágrafo único do artigo 62, entendemos que a modificação não é
exigível, e sequer permitida.
Com efeito, é preciso ressaltar, mais uma vez, que as fundações são entidades jurídicas
particularizadas e distintas das associações e sociedades, a primeira como “acervo de
bens livres que recebe da lei a capacidade jurídica para realizar as finalidades
pretendidas pelo seu instituidor, em atenção aos seus estatutos”
26
, enquanto que as
últimas giram em torno de um elemento pessoal, de idéias e esforços dos seus
integrantes.
Relembrando o que dispõe o artigo 62, quanto à instituição de uma fundação, para criála, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens
livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de
administrá-la.
Estão presentes no momento da criação de uma fundação, portanto: a vontade do
instituidor e os bens destinados a atendê-la.
Dessa ilação, extraída diretamente do texto legislativo, decorrem duas conseqüências já
conhecidas a respeito das fundações: a) a disposição de vontade inicial quanto às
finalidades, feita no ato de sua criação, possui caráter de permanência, não podendo
ser modificada na sua essência; b) a inalienalibilidade dos bens que compõem o
patrimônio fundacional, em atenção à sua certa e determinado destinação.
É insofismável que esta inalienabilidade, de natureza legal, sofre, nos casos concretos e
em caráter excepcional alguma relativização, como anota José Eduardo Sabo Paes27:
“Segundo os tribunais,“os bens das fundações são normalmente inalienáveis,
porque representam a concretização dos fins preestabelecido pelos respectivos
instituidores, não tendo os seus administradores qualidade para alterar o
imperativo da vontade daqueles “(RT 252/661). Note-se, porém que essa
inalienabilidade é simplesmente relativa, não tendo caráter absoluto.(...)
26
“Distinção essencial entre fundação e associação e algumas de suas conseqüências”, artigo da doutora Érika
Spalding, publicado no “Cadernos Fundata, nº -1 –CEFEIS, 2001, pela FIPE (Fundação Instituto de Pesquisa
Econômicas) .
27
“Fundações e Entidades de Interesse Social”, 3ª ed. Brasília Jurídica, p. 217.
A
orientação
jurisprudencial
nesse
campo
manifesta-se
pela
relativa
inalienabilidade dos bens fundacionais. Caso os mesmos sejam vendidos, exigem
os tribunais a aplicação do preço na aquisição de outros bens, que deverão ficar
igualmente destinados ao mesmo fim (ct RT 116/650, 138/18, 149/580, 126/127 e
242/232).”
A venda desses bens estará, portanto, sempre condicionada à necessidade, essa
decisão será submetida ao Promotor de Justiça com atribuições para velar pelas
Fundações, ao qual “caberá assegurar-se que a venda do bem é indispensável para a
existência e/ou continuidade das atividades da fundação, exigindo até a sua subrogação ou substituição por outro (s) bem(ns) destinado (s) ao mesmo fim”.28
O patrimônio de uma fundação, no entanto, estará sempre afetado às finalidades para
as quais esta é instituída.
A instituição de uma fundação, no dizer de Arnaldo Rizzardo: “Envolve a destinação
de um acervo de bens, que se reveste, por força da lei, de capacidade jurídica para
realizar finalidades pretendidas pelo instituidor.”29
Como vasos comunicantes, as finalidades e o patrimônio encontram-se vinculados
desde o momento da criação da fundação.
Assim sendo, ocorre também uma espécie de preclusão temporal, ligada ao momento
consumativo do nascimento da pessoa jurídica fundacional (registro da escritura e dos
estatutos), a impedir, sobremaneira, posterior alteração das finalidades de uma
fundação.
A ilação também é válida quando estivermos diante de uma fundação instituída por
testamento, sobretudo se considerarmos que, quanto às disposições testamentárias, a
vontade do testador é absoluta, excetuada apenas a parcela referente à legítima.
28
Op. Citada, p. 219.
29
“Parte Geral do Código Civil”, Editora Forense, 2002, p. 233.
Nesse sentido, cabe lembrar, novamente, os ensinamentos de José Eduardo Sabo
Paes, tendentes a balizar os limites a que estão sujeitas as alterações estatutárias das
fundações:
“Estatuto é norma essencial e perene para a entidade. Todavia, circunstâncias
posteriores à instituição da entidade, e apenas constatadas no decorrer do seu
funcionamento, podem fazer com que seja absolutamente necessária a reforma ou
alteração de dispositivos do estatuto, tendo sempre como último escopo a
preservação do seu patrimônio e o aperfeiçoamento e mantença das suas
finalidades.”
30
E prossegue:
“Os fins ditados pelo instituidor também não podem ser desvirtuados ou entregues
ao arbítrio dos administradores, uma vez que em sede fundacional não existe a
liberalidade
de
modificações
ou
alterações
dos
próprios
fins,
mesmo
implicitamente, sob pena d caracterizar o denominado desvio de finalidade.
Não são admissíveis, portanto, alterações estatutárias dos fins da fundação
distanciadas ou contrarias aos propósitos do(s) fundador(es).”
Tais colocações são efetuadas em caráter preliminar com o escopo de embasar o
posicionamento ora adotado, de que as alterações introduzidas no parágrafo único do
artigo 62 do novo Código Civil não atingem as fundações regularmente instituídas
antes da sua vigência, no que tange às suas finalidades.
Esse entendimento é sustentado, ainda, pela própria interpretação literal do artigo
2.033, o qual especifica que a subordinação das fundações instituídas antes do novo
Código, se referem ao funcionamento dessas entidades, inclusive daquelas que
tinham fins diversos dos agora previstos no parágrafo único do art. 62.
30
Fundações e Entidades de Interesse Social, Ed. Brasília Jurídica, 3ª edição, p. 199 e 229.
Trata-se, também, de uma norma que especifica o que prevê o dispositivo anterior —
art. 2.031 — , de conteúdo mais genérico, a qual pretendeu deixar assente qual a
extensão da primeira regra quanto às fundações (interpretação sistemática).
Assim, concluímos que as fundações já instituídas — independentemente dos fins já
previstos — deverão se adequar às normas do novo Código no que diz respeito tãosomente ao seu funcionamento.
De outro vértice, essa diferenciação quanto às fundações não foi feita claramente em
face do artigo 2.033, o qual dispõe que, salvo o disposto em lei especial, as
modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referidas no art. 44
(sociedades, associações, fundações), bem como a sua transformação, incorporação,
cisão ou fusão, regem-se desde logo por este Código.
Se considerarmos como atos constitutivos a escritura pública e os estatutos da
fundação, como visto, a primeira não pode mais ser alterada, e as normas estatutárias,
serão passíveis de mudança apenas em algumas hipóteses, dentre as quais não se
insere a restrição de finalidades.31
Outrossim, há que se considerar que não se aplicam às fundações, os institutos da
transformação, da incorporação, cisão total ou fusão.
Nessa perspectiva, entendemos que as regras em relação as quais deverão as
fundações já constituídas se adequar, dizem respeito às previsões passíveis de serem
alteradas e que sejam pertinentes ao seu funcionamento, tais como, os artigos 67 e 68.
IV. CONCLUSÃO
Do exposto, concluímos que as fundações por nascerem da colocação espontânea de
um patrimônio para servir à sociedade, alcançando finalidades essencialmente sociais,
sem fins lucrativos ou econômicos, deverão buscar a sua viabilidade econômicofinanceira de forma compatível com a natureza jurídica da entidade. Ou seja, através da
31
Exceto se se tornarem ilícitas ou imorais.
própria dotação inicial de bens e das fontes de recursos previstas no estatuto que
garantam a sua sustentabilidade, tais como, rendas sobre o seu patrimônio, doações,
legados, convênios, acordos, termos de cooperação, contribuições, subvenções.
Sobretudo após as modificações introduzidas pelo novo Código Civil, as fundações, ao
lado das associações, se distanciam ainda mais das entidades que objetivam fins
econômicos, valendo registrar que, apesar da interpretação a ser dada ao parágrafo
único do artigo 62 deva focar o interesse público, não há como negar o caráter restritivo
desta norma, em face das inúmeras facetas que esses entes têm tomado nos últimos
tempos, muito distantes da concepção original da pessoa jurídica fundacional.
A análise da viabilidade de instituir-se uma fundação privada, à luz do novo Código Civil,
dependerá do exame de cada caso concreto, com vistas em toda a legislação que a
envolve, não se atendo apenas aos requisitos formais de sua constituição propriamente
dita, mas também o tratamento constitucional dado pelo Estado e o papel social que a
justifica.
Com efeito, na tendência imposta ao Estado moderno na busca de novas estruturas de
atendimento das questões sociais, a sua descentralização administrativa encontra nas
organizações privadas de interesse público (Terceiro Setor), o caminho propício para a
consecução dos mandamentos constitucionais que asseguram a dignidade humana, a
cidadania plena e a justiça social, vez que essas entidades, constituem-se sem
finalidades econômicas ou lucrativas, para prestar serviços de relevância pública,
desenvolvendo ações públicas não estatais.
Por fim, temos que as modificações introduzidas junto ao novo Código, não implicam
em alterações de finalidades das fundações já constituídas, exceto para aquelas
entidades que, porventura, tenham sido instituídas para atingir fins econômicos, as
quais encontram, nesta oportunidade, o momento adequado para a redefinição do seu
papel social, nos moldes da nova ordem jurídica.
Curitiba, 10 de junho de 2003.
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As Fundações e o Novo Código Civil