Já se passaram dez anos: sair da perplexidade e unificar as lutas1 Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida2 O PT mudou sua inserção de classe Nas eleições de 1989, o presidente da poderosa FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) declarou que a vitória de Lula provocaria a saída de 800 mil empresários, o que alguns entenderam como a senha para um golpe de Estado. Na de 1998, o megaempresário Antônio Ermírio de Moraes advertiu que uma vitória do exoperário sobre Fernando Henrique Cardoso seria o equivalente a uma bomba de hidrogênio explodir no Brasil. Quatro anos depois, Luís Inácio Lula da Silva se elegeu e, em seguida, governou o Brasil por dois mandatos (2003-2010). Nenhuma bomba caiu, nenhum empresário saiu. O que mais reclamou foi José de Alencar Gomes da Silva, o vicepresidente da República. Concluído o duplo mandato, a Microsoft gostou e levou Lula para participar, na capital dos EUA, do Fórum de Líderes do Setor Público da América Latina e Caribe. A grande imprensa brasileira detesta, mas o New York Times acaba de convidar o ex-presidente para escrever uma coluna mensal sobre assuntos que vão de política internacional a combate à pobreza. Lula tem origem operária, a qual também esteve presente, embora não sozinha, no processo de criação do PT. Mas este partido e seu principal líder chegaram ao governo fundamentalmente comprometidos com a reprodução da dominação burguesa. Diferentemente do Manifesto do Partido Comunista, onde burgueses e proletários vão às turras, durante os governos Lula se implementou uma política que recebeu o progressivo apoio, claro que diferenciado, de um extraordinário leque de classes e frações de classe – desde o semiproletariado à grande burguesia bancária; de trabalhadores sindicalizados a dirigentes com um pé nos sindicatos e o outro pé e as mãos à testa de fundos de pensão; de lideranças agronegocistas a movimentos de semterra. 1 A primeira versão deste ensaio foi recebida pelo blog em maio de 2013. Posteriormente, o texto foi reenviado com apenas correções de redação. 2 Professor do Departamento de Política da PUC-SP. Ao final duplo mandato, dois anos depois da eclosão de uma crise capitalista mundial, este país se parecia com o autorretrato da ditadura militar nos anos de chumbo: uma ilha de tranquilidade em meio a um mar revolto. Só que agora no período de mais ampla democracia burguesa (embora limitadíssima) da história pátria. Em diversos países de outros continentes, a democracia burguesa não foi incompatível com um extraordinário processo de acumulação capitalista e políticas sociais avançadas. Neste dez anos, a acumulação foi inegável, inclusive para os segmentos mais especulativos do grande capital. Quanto ao segundo aspecto, o que houve de avanço neste reformismo quase sem reformas (a expressão é de Valério Arcary) deve-se, no tocante a iniciativas de governo, à ousadia e arte de mexer na extrema situação de miséria, pobreza e discriminação social em que vivem cerca de 50 milhões de brasileiros e brasileiras. Este é o sentido do “nunca antes na história...”. Mas mexeu dentro da ordem, contribuindo, inclusive por meio do exercício direto da violência, para neutralizar a capacidade de ação coletiva antissistêmica destes milhões de proletários e subproletários. Mas é claro que, se entre os dominados não houvesse disposições profundas para se aterem ao reformismo lulista, nenhum governo teria o sucesso que teve. Da mesma forma, caso tal política se confrontasse com os interesses de fortes frações burguesas, tampouco se viabilizariam. Parte fundamental deste sucesso foi a profunda perplexidade, divisão e – este é o ponto – perda de iniciativa em que se encontram as forças que se pretendem antineoliberais e anticapitalistas. Recuperar esta iniciativa requer se diferenciar abertamente da crítica moralista que grassa em amplos setores da classe média (especialmente, mas não só, de sua camada superior) e segmentos da burocracia estatal e que voltará à baila com intensidade e eficácia maiores caso se acirrem as disputas entre as frações burguesas pela redefinição da política de Estado. O mais importante, no momento, é encontrar uma perspectiva adequada para se desvencilhar do reboque ao neonacional- desenvolvimentismo. É para esta perspectiva que se volta este artigo ao abordar algumas vertentes de análise dos dez anos de governo petista no Brasil. Babel ideológica Uma importante vertente do desenvolvimentismo é abertamente apologética em relação ao governo Lula – e, mais ainda, à figura do ex-presidente, apresentado como um grande ícone do pós-neoliberalismo. No fundamental, esta abordagem apresenta dois tipos de problema. Em primeiro lugar, ignora os diferentes tipos de antineoliberalismo, situando-os no amplo e pouco definido campo do (neo)desenvolvimentismo. Isto possibilita, inclusive, paralelos anacrônicos, como os que, com base exclusivamente naquele critério, associam Vargas, Perón e Lula aos interesses operários, nacionais e populares e, portanto, vítimas das oligarquiasi. Por incrível que pareça, seja lá o que aqui se entende por oligarquia, o governo Lula foi o mais acarinhado por elas, na medida em que obteve o referido apoio (claro que diferenciado) do conjunto das frações burguesas. O segundo problema desta abordagem mais indulgente consiste em ignorar a forte presença de frações rentistas no bloco no poder, com imensa capacidade de fazer valer seus interesses na definição da política de Estado e igualmente forte capacidade de articulação das demais frações burguesas, inclusive as voltadas para o mercado interno ou mesmo as produtivas voltadas para o mercado externo. Em aparente paradoxo, uma variante desta primeira vertente possui maior consistência teórica e menor veleidade antissistêmica. Sua principal expressão é a Rede Desenvolvimentistaii, que insiste em que a política do governo Lula (e do atual) merece maior aprofundamento e congruência, assentando-se em bases mais sólidas. Isto implica, segundo a RD, melhor inserção internacional, o que passa por maior integração com os demais países latino-americanos. Embora atenta ao risco de impactos negativos do privilégio conferido ao par rentismo – exportação de produtos primários sobre a produção industrial, esta vertente não incorpora a tese de que ocorre um processo de desindustrialização, pois, também neste aspecto, enfatiza a importância do mercado interno, destino da maior parte da produção brasileira, inclusive das mercadorias que compõem o leque das exportações. Avaliando que “o regime capitalista com dominância financeira, em suas dimensões doméstica e internacional, não voltará a exibir o dinamismo dos últimos vinte anos” (p. 4), e que o mundo caminha para uma “progressiva restrição à mobilidade de capitais e aumento do protecionismo” (p. 5), defende uma política de Estado mais decidida no combate a um neoliberalismo desabrido, como o que se implementou até o final dos anos FHC. Neste manifesto da Rede Desenvolvimentista, inexiste qualquer referência a alguns temas candentes para as forças operárias e populares. Nas quarenta páginas do texto, não se faz uma única menção às lutas de classes ou ao imperialismo. “Dependência” aparece duas vezes, mas sem a conotação de inserção subordinada da formação social brasileira no sistema internacional. Tampouco aparecem “reforma agrária” ou “democracia”. Nenhum antineoliberalismo tem a obrigação de ser popular ou antiimperialista. Mas, na medida em que importantes contingentes das forças populares e mesmo operárias apoiam o neodesenvolvimentismo, é importante notar que sequer este manifesto de intelectuais que se estrutura em torno da defesa desta política expressa compromisso com mudanças sociopolíticas cruciais para aquelas forças. No extremo oposto, uma segunda vertente de abordagem, muito bem calçada em sofisticadas análises econômicas de inspiração crítica, tem negado a existência de desenvolvimentismo. Insistiu numa espécie de catastrofismo cotidiano, aguardando, no curto prazo, um colapso do capitalismo brasileiro, o que, até o momento, não ocorreu. Embora esta vertente superestime as continuidades das políticas estatais durante os governos FHC e Lula, acerta no que analisa e suas teses são confirmadas pelos visíveis sinais de uma profunda crise econômica também no Brasil. Porém, talvez não tenham levado devidamente em conta as dimensões propriamente políticas da formação social brasileira na primeira década do século, a começar pelas possibilidades objetivas de reestruturação do bloco no poder, composição de amplas alianças no plano interno e importantes parcerias no internacional. Em alguns círculos, a falta de uma análise da nova correlação política se desdobrou, numa espécie de mecanismo de retroalimentação, em formulações demasiado contundentes acerca do fim ou da irrelevância da política, especialmente em virtude de um sumiço do nexo entre esta e as relações de classesiii. Aqui ocorre o duplo problema de reduzir a política à sua dimensão institucional, exatamente o que possibilita desvincular esta última dimensão das contradições (reais ou potenciais) de classes. Estas posições, quando assumidas por importantes intelectuais da esquerda, correram o risco de estimular uma subestimação da política justamente quando entraram em movimento, mesmo sem grande capacidade de iniciativa autônoma, amplos contingentes dos dominados, o que, aliás, despertou a ira dos grandes meios de comunicação de massa. Aspecto importante a ser ressaltado: muitos dos que elaboraram estas formulações engajaram-se intensamente na atividade política, dentro e fora dos meios acadêmicos, contribuindo para uma importante resistência à polarização lulismo (e petismo) – antilulismo que ainda engessa boa parte das forças dotadas de potencial antissistêmico no Brasil. Enfim, uma terceira vertente se volta para os complexos vínculos entre as dimensões política, econômica e ideológica na formação social brasileira durante o governo Lula. Como em toda ousadia, aqui também se correm riscos. Neste caso, o mais importante é o de se confundir justamente no que se procura realizar: a análise das forças em presença. Seria o caso, por exemplo, de atribuir ao PT pelo menos mais uma “missão civilizatória”: a de politizar pela esquerda os imensos contingentes de subproletários contemplados material e simbolicamente pela política de Estado durante o governo Lula? Resta saber quem – e como – politizará estes politizadores, pois uma das marcas dos governos Lula e Dilma (e do Partido dos Trabalhadores) é, no bojo de um profundo processo de reinserção social, atuar no sentido oposto. Menciono, no que se refere à dimensão simbólica, a mais recente comemoração de 1° de Maio. E, no tocante às alianças políticas, o caso dramático do Maranhão, onde o governador, Jackson Lago, tradicionalmente apoiado, na capital, pelas classes e camadas mais pauperizadas do povo, foi deposto pela aliança do governo federal com a “oligarquia” Sarney, a qual consolidou de maneira incontestável sua posição na chamada “Ilha Rebelde”. Assim como na própria socialdemocracia alemã, a transformação em partido da ordem iniciou-se décadas antes que se retirasse do programa quaisquer menções ao marxismo, o PT aderiu ao capitalismo neoliberal sem que isso se manifestasse claramente em seus textos impressos. Constituiu-se como um partido burguês de tipo particular, mas não raro: partido de estreitos vínculos com frações burguesas e forte base operária e popular, inclusive enraizada em sindicatos fortes. Deu uma forte guinada à direita (e outras podem ocorrer), mas não é um partido de direita. No período 2003-2010 não ocorreu qualquer concessão direta de qualquer fração burguesa às classes populares. Ao contrário, mesmo nadando em lucros, o conjunto da classe dominante, sob a direção da presidência da FIESP, extinguiu a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), que possibilitava algum controle sobre o movimento de capitais; e, com o precioso auxílio da CUT, conquistou a vitória de reformar para pior a Previdência Social (novas reformas se anunciam). A ação dos agronegocistas, das mineradoras, das empreiteiras e outros segmentos das frações burguesas mais enraizadas na formação social brasileira é profundamente antipopular, inclusive quando em estreita relação com empreendimentos dos quais o Estado participa diretamente. No momento em que escrevo este texto, acontece um circo de horrores socioambiental na construção da hidrelétrica de Belo Monte. O risco de as classes populares se colocarem a reboque do atual desenvolvimentismo sem que se enfatize o caráter extremamente predatório do capitalismo brasileiro pode desarmá-las ideológica e politicamente, inclusive seus contingentes mais combativos. Sinais de mudança Este risco se amplia na hipótese de ocorrer o mais provável: em um contexto de aprofundamento da crise capitalista, as frações burguesas darem adeus aos anos Lula e se reposicionarem, cada uma ao seu modo, em torno de políticas mais explicitamente neoliberais e autoritárias. No momento, é fundamental não atribuir às forças neodesenvolvimentistas o que nem vários de seus lúcidos representantes intelectuais alardeiam. Lula e o PT não estão à direita do espectro político brasileiro e não se deve descartar a possibilidade de alianças com um ou outro, desde que se defenda rigorosamente a autonomia organizacional e político-ideológica das forças que procuram articular, aqui e agora, a luta antineoliberal a um projeto nacional, democrático e anti-imperialista. Por outro lado, o abandono do neodesenvolvimentismo por certas forças sociais, especialmente no interior do bloco no poder, não exclui, de antemão, a possibilidade de que ocorra, no Brasil, uma guinada autoritária, dentro ou fora dos marcos da democracia burguesa. Mudança dos ventos? Se Lula, em nome do desenvolvimentismo, elogiou os ditadores Médici e Geisel, o atual ministro da Educação, dias atrás contribuiu objetivamente para obscurecer os vínculos do grupo Folha – que não chega a ser um paladino do desenvolvimentismo – com a ditadura militar. Não foi um caso isolado. No seu conjunto, o governo Dilma, que prossegue no apoio à política “pacificadora” do governo Cabral, assistiu, em nome do “pacto federativo”, ao massacre sobre o povo do Pinheirinho (mais tarde, o PT ganhou as eleições municipais em São José dos Campos). E, enquanto escrevo este artigo, dispõese a fazer imensas concessões às forças mais abertamente neoliberais. Tempo de crise, conjunturas velozes Quando se trata de lutas dos dominados, a análise da conjuntura requer esforço teórico e olho dobrado na prática. Espremidos contra a parede, os lutadores e lutadoras do Assentamento Milton Santos ocuparam o INCRA e tentaram negociar. Nada. Ocuparam o Instituto Lula, mas Lula, que, segundo seus assessores, ficou extremamente contrariado, não chegou lá. Recusou conversa com um movimento social politizado que se portava com autonomia. E o governo Dilma se mostrou insensível à luta pela desapropriação da área por interesse social, o que consolidaria um assentamento aprovado durante o mandato do ex-presidente. Devemos aos lutadores e lutadoras do Milton Santos que, com audácia e argúcia, puseram a mão no fogo (e souberam tirar), uma belíssima aula de conjuntura. Nos anos 80 do século passado, o PT pareceu materializar em tempo acelerado as frases lapidares que Marx e Engels dedicaram às grandes linhas do sinuoso e contraditório processo de constituição do proletariado. Este mesmo partido, com o principal dirigente na chefia do governo, contribuiu para reafirmar a tese de que não existe melhor abrigo para o capitalismo do que a democracia (burguesa). Mesmo que burgueses torçam o nariz, nada como um capitalismo esfuziante e o chefe de Estado querido pelos dominados! O problema é que, aos primeiros sinais de tempestade, o interesse dos dominantes por abrigos mais restritos costuma aumentar. Os que querem mudar o mundo, apesar dos avanços teóricos, ainda se deparam com sérias dificuldades para interpretar e se inserir nas novas coordenadas de relações de classes constituídas nos anos Lula. Até para compreendê-las, a luta dos dominados – ciosa de sua autonomia – é imprescindível. O problema é que, em cada esforço, o aprendizado mais valioso ainda se adquire pela negativa: o da falta que faz uma unidade na luta. No cenário mais turbulento que se anuncia, tirar conclusões práticas afirmativas deste aprendizado é um objetivo tático de imensa importância estratégica. i SADER, Emir. Perón, Getúlio e Lula. Carta Maior, 05/11/2009. http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=369. ii Ver, por exemplo, CARNEIRO et al. O desenvolvimento brasileiro: temas estratégicos. <http://www.reded.net.br/index.php?option=com_jdownloads&Itemid=419&view=finish&cid=160&cati d=14&lang=pt>. iii Um levantamento de diversas abordagens que se referiram, especialmente a partir das eleições de 2006, à despolitização ou despolarização é feito, a partir de outra perspectiva teórica, por André Singer, na introdução ao instigante livro Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 28 e ss.