Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Jonathan Luís Hack O PROPÓSITO DO SER HUMANO São Paulo 2010 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 1 Encontrando o Propósito Divino ................................................................................................. 1 Entendendo o Propósito Divino .................................................................................................. 2 Reconhecendo Estágios de Reflexão .......................................................................................... 4 CAPÍTULO 1: IMAGEM CRIADA ............................................................................................... 6 Imagem ou Semelhança? ............................................................................................................. 6 Atributos ou Ações? .................................................................................................................... 8 Representando o Rei do Universo ............................................................................................... 9 Refletindo como Espelhos......................................................................................................... 11 Nele Vivemos ............................................................................................................................ 13 CAPÍTULO 2: IMAGEM CAÍDA ................................................................................................ 15 A Distorção da Imagem ............................................................................................................ 15 Propagação da Distorção ........................................................................................................... 16 Distorção Total .......................................................................................................................... 16 Deformação da Imagem ............................................................................................................ 18 CAPÍTULO 3: IMAGEM RESTAURADA ................................................................................. 23 Um Processo Contínuo .............................................................................................................. 23 Cooperando com o Espírito Santo............................................................................................. 24 Contemplando o Deus Triúno ................................................................................................... 25 Transformação pelo Refletir ..................................................................................................... 26 Contemplando sem Véu ............................................................................................................ 27 Reflexão Contínua ..................................................................................................................... 27 Multiplicando a Imagem de Deus ............................................................................................. 28 Manifestando a Imagem de Deus .............................................................................................. 28 CAPÍTULO 4: IMAGEM GLORIFICADA ................................................................................. 30 Aperfeiçoando o Espelho .......................................................................................................... 30 Espelhos Gloriosos .................................................................................................................... 31 Diversidade de Reflexões .......................................................................................................... 32 Contemplando Reflexos ............................................................................................................ 33 CONCLUSÃO .............................................................................................................................. 36 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................... 38 1 INTRODUÇÃO Há séculos estudiosos se debatem com três questões cruciais ao ser humano: De onde viemos? Para onde vamos? Para quê existimos? Não seria possível discutir nesta monografia as diferentes posições e implicações envolvidas em cada uma destas perguntas. Vamos nos limitar a investigar qual é a resposta da Bíblia e da teologia cristã à última pergunta enumerada. Sendo assim, assumimos a priori a criação do mundo e dos seres humanos por um Deus pessoal e todopoderoso. Esta pesquisa, portanto, se concentrará em discernir o objetivo divino em nos criar como seres humanos. Neste sentido, percebe-se que vivemos uma época de incertezas e relativismo neste novo milênio, onde a questão do propósito de nossa existência se torna cada vez mais crucial para dar sentido às nossas vidas pós-modernas. Por outro lado, como já bem pontuou o sociólogo Peter Berger, o mundo está recheado de “sinais da transcendência” que indicam que há mais na vida do que pregava nossa vã filosofia moderna.1 Que respostas nós podemos encontrar na Bíblia e nos símbolos de fé adotados pela Igreja Presbiteriana do Brasil para responder a este questionamento existencial? Encontrando o Propósito Divino Como mencionamos acima, nossa intenção não é analisar porque Deus criou o universo, nem mesmo o restante de sua obra; investigaremos apenas porque ele resolveu criar o homem.2 Nosso foco está em determinar porque o Deus Criador nos fez do jeito que somos, com estas características que nos distinguem de outros seres vivos. Qual o seu propósito para nossas vidas? Certamente o Senhor não nos criou por precisar de nós. Quanto a isto, a Confissão de Fé de Westminster diz que Deus tem em si mesmo, e de si mesmo, toda a vida, glória, bondade e bemaventurança. Ele é todo suficiente em si e para si, pois não precisa das criaturas que trouxe à existência, não deriva delas glória alguma, mas somente manifesta a sua glória nelas, por elas, para elas e sobre elas. Ele é a única origem de todo o ser; dele, por ele e para ele são todas as coisas e sobre elas tem ele soberano domínio para fazer com elas, para elas e sobre elas tudo quanto quiser. Todas as coisas estão patentes e manifestas diante dele; o seu saber é infinito, infalível e independente da criatura, de sorte que para ele nada é contingente ou incerto. Ele é santíssimo em todos os seus conselhos, em todas as suas obras e em todos os seus preceitos. Da parte dos anjos e dos homens e de qualquer outra criatura lhe são devidos todo o culto, todo o serviço e obediência, que ele há por bem requerer deles.3 Por ser Deus “a única origem de todo o ser”, todas as criaturas lhe devem “todo o culto, todo o serviço e obediência”. Isto acontece porque o Deus Triúno criou o universo “para a manifestação 1 BERGER, Peter L. A rumor of angels. Garden City: Doubleday, 1969. p.65. Veja-se também o interessante desenvolvimento deste assunto dos “sinais da transcendência” em YANCEY, Philip. Rumors of another world. Grand Rapids: Zondervan, 2003. 2 O teólogo sistemático reformado Herman Bavinck explica que “para a questão de por que as coisas existem e são como elas são, não há outra ou mais profunda resposta do que a de que Deus assim o quis”. BAVINCK, Herman. Reformed dogmatics. Grand Rapids: Baker Academic, 2004. 4 vols. v.2, p.564. 3 A CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. 4 ed. §2.2. 2 da glória do seu eterno poder, sabedoria e bondade”.4 Portanto, deduz-se que o culto, serviço e obediência devidos pelas criaturas devem manifestar a glória divina. De fato, o próprio Senhor afirma em Is 43:7 que formou um povo para sua glória (“a todos os que são chamados pelo meu nome, e os que criei para minha glória, e que formei, e fiz.”). E Paulo reforça em 1Co 10:31 que tudo o que fazemos deve glorificar ao Senhor (“Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus.”), ou seja, nós também fomos criados para manifestar a glória divina. Por outro lado, a Bíblia afirma também que o Senhor criou os seres humanos segundo sua imagem e semelhança, como afirma o livro de Gênesis: Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (Gn 1:26-27) Este fato é explicado de forma mais elaborada pela mesma Confissão de Fé de Westminster deste modo: Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-as de inteligência, retidão e perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus corações, e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade da sua própria vontade, que era mutável.5 De modo diferente do restante da criação, apenas o ser humano foi formado à imagem e semelhança do Criador. Mais adiante discutiremos as características inerentes a termos sido criados “segundo a sua própria imagem”. Juntando-se estas duas premissas, conclui-se que os seres humanos foram criados à própria imagem de Deus com uma missão e capacitação especial para manifestar a glória de Deus. Esta manifestação gloriosa de quem Deus é constitui o alvo principal de nossa existência. Os Catecismos de Westminster (tanto o Breve quanto o Maior) afirmam isto claramente em outras palavras na sua primeira questão e correspondente resposta: 1. Qual é o fim supremo e principal do homem? R: O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo plena e eternamente.6 O objetivo deste trabalho é investigar este fim supremo e principal do homem, este propósito de glorificar a Deus, de manifestar a sua glória. De que maneira nosso Deus Criador planejou que isto aconteceria? Argumentaremos que é sendo a imagem de Deus que o homem cumpre o propósito para o qual foi criado, pois ao refletir ao Senhor Deus como sua imagem o ser humano manifesta a glória divina em sua vida. Por conseguinte, ao manifestar a glória do Senhor em sua vida, o homem glorifica a Deus, seu Criador, e ao mesmo tempo goza da sua gloriosa presença plena e eternamente. Entendendo o Propósito Divino Após identificarmos qual é o propósito divino para o ser humano, precisamos compre4 CONFISSÃO, §4.1. 5 CONFISSÃO, §4.2. 6 CATECISMO MAIOR DE WESTMINSTER. São Paulo: Cultura Cristã, 2002. §1. Conforme também O BREVE CATECISMO DE WESTMINSTER. São Paulo: Cultura Cristã, 1995. §1. 3 ender melhor como podemos manifestar a glória do Criador do universo. Vamos construir passo a passo o argumento apresentado no parágrafo anterior. É em sua carta aos romanos que Paulo nos dá o caminho para entendermos este maravilhoso propósito ao qual Deus nos destinou: Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, e dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. (Rm 8:2829, NVI).7 Sem entrar no mérito da eleição específica de alguns, ao que também se refere o texto, percebemos que o apóstolo Paulo está reafirmando o controle soberano de Deus sobre todas as coisas, mesmo em meio aos “sofrimentos do tempo presente” (Rm 8:18). Deus age para o bem dos eleitos, que “foram chamados de acordo com o seu propósito” (v.28). E para que foram eleitos e chamados? “Para serem conformes à imagem de seu Filho” (v.29). Infere-se claramente deste texto que o Criador nos escolheu para sermos conformados à imagem e semelhança de Jesus, seu Filho. Ora, sabemos que “o Filho é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as coisas por sua palavra poderosa” (Hb 1:3). De fato, “este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação” (Cl 1:15; conforme também 2Co 4:4). Portanto, Jesus Cristo é a perfeita imagem e a expressão exata do ser de Deus. Consequentemente, se devemos nos conformar à imagem de Jesus e este é expressão exata de Deus, pode-se afirmar sem erro que fomos escolhidos e chamados a sermos conformados à imagem e semelhança de Deus. O teólogo sistemático reformado Anthony Hoekema conclui de forma semelhante seu exame do texto de Rm 8:29: Conformidade à imagem do Filho – e portanto, à imagem de Deus – é descrita aqui como o propósito ou alvo para o qual Deus predestinou seu povo escolhido.8 De modo semelhante, o reformador João Calvino já defendia este ponto, afirmando: E, de fato, que Cristo já então foi a imagem de Deus, à uma confessam-no todos. E, por isso, tudo quanto de excelência foi impresso no próprio Adão emanou daí: que chegasse à glória de seu Criador através do Filho Unigênito.9 E ainda, em outro trecho: o propósito da regeneração é este: para que Cristo nos remolde à imagem de Deus.10 Conclui-se, portanto, que o Senhor Deus não apenas criou o ser humano à sua imagem e semelhança, mas também para ser sua imagem. Este é o propósito inicial divino para a humanidade estabelecido na criação. Continua sendo seu propósito final para o homem, mesmo após a Queda e a obra de redenção do Filho.11 Mas o que é ser imagem de Deus? Nesta monografia argumentaremos que a criação do homem à imagem divina é primari7 A sigla NVI representa a tradução “Nova Versão Internacional”. 8 HOEKEMA, Anthony A. Created in God’s image. Grand Rapids: Eerdmans, 1994. p.23. (grifos meus). 9 CALVINO, João. As institutas ou tratado da religião cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. 4 vols. §2.12.6. 10 11 CALVINO, Institutas, §1.15.4. Mais sobre a questão da criação à imagem de Deus no capítulo seguinte, e sobre os efeitos da queda e da redenção nesta imagem em capítulos posteriores. 4 amente um chamado a um relacionamento íntimo com o Deus Criador. No processo contínuo deste relacionamento, aprendemos a ser como Deus é e a fazer o que Deus faz, e deste modo passamos a refletir sua glória em nossas vidas. Quanto a esta reflexão da glória divina, Calvino atesta que: Portanto, “o homem foi criado à imagem de Deus” [Gn 1.27], em quem o próprio Criador quis que se contemplasse nele a glória como que num espelho.12 E ainda, em outro trecho: [o homem deve] ser julgado espelho da glória de Deus.13 Podemos dizer então, usando a metáfora de Calvino,14 que fomos criados para sermos espelhos de Deus, a refletir sua imagem e sua glória de forma perfeita. O teólogo contemporâneo R. C. Sproul expande assim esta explicação: Cada indivíduo tem a capacidade de espelhar Deus como um ser espiritual e a responsabilidade de refletir Deus em pensamentos e ações. Jesus Cristo, como o segundo Adão, foi em seu ser essencial a absoluta reflexão de Deus. [...] Do mesmo modo, ao sermos renovados para conformidade à imagem de Deus, somos chamados para refletir fielmente Deus em tudo que fazemos.15 Assim, o propósito de Deus para os seres humanos é um convite à reflexão! Não uma reflexão mental, mas reflexão da sua gloriosa presença em nossas vidas. Por conseguinte, abordaremos neste trabalho aspectos e implicações desta nossa capacidade de refletir Deus. Reconhecendo Estágios de Reflexão Antes de analisar as implicações deste processo de manifestação da glória divina em nossas vidas, precisamos levar em consideração as transformações históricas da capacidade humana de ser imago Dei.16 Cabe aqui salientar que assumimos nesta monografia que o Deus Criador do universo planejou um caminho linear e não-cíclico para a história da humanidade. Contra isto, certas filosofias e religiões atuais e passadas afirmam que o universo tem uma história cíclica, retornando ao seu estado inicial após certo tempo e recomeçando uma narrativa semelhante. Para estas, não há progressão rumo a um fim. Discordando destas teorias filosóficas e religiosas, este trabalho assume a doutrina bíblica da finalidade última da história da humanidade – uma história que tem começo, meio, e fim. Quais foram as transformações sofridas durante esta história linear, então? O estudo sistemático das Escrituras nos apresenta diferentes capacidades de refletir Deus em momentos diferentes da nossa caminhada neste planeta. Calvino resume bem tais transformações da imagem de Deus na natureza humana: Portanto, uma vez que a imagem de Deus é a perfeita excelência da natureza humana que refulgiu em Adão antes da queda, mas que depois foi de tal modo corrompida e quase obliterada, que nada sobra da ruína senão o que é confuso, 12 CALVINO, Institutas, §2.12.6 (grifos meus). 13 CALVINO, Institutas, §1.15.4 (em sua discussão das faculdades humanas que manifestam esta imagem). 14 Ao abrir seu capítulo sobre a natureza humana, Bavinck estende esta metáfora afirmando: “O mundo inteiro é uma revelação de Deus, um espelho de seus atributos e perfeições. Cada criatura de seu próprio modo e grau é a encarnação de um pensamento divino.” (Reformed dogmatics, v.2, pp.530-531). 15 SPROUL, R. C. Before the face of God. Vol. 3: A daily guide for living from the Old Testament. Grand Rapids: Baker, 2000. §1.19. 16 Expressa “imagem de Deus” em latim. 5 mutilado e infestado de mácula, agora ela se percebe nos eleitos, em certa medida, na extensão em que foram regenerados pelo Espírito. Entretanto, pleno fulgor ela haverá de fluir somente no céu.17 Podemos dizer, usando a metáfora anterior, que o espelho do ser humano reflete diferentes tipos de imagens na totalidade de sua existência. É possível resumir tais capacidades em quatro estágios, conforme mostra a Figura 1 abaixo. Estes estágios se sucedem num processo de sentido único de transformação. Imagem Criada Imagem Deformada Imagem Restaurada Imagem Glorificada Figura 1 – Processo de Transformação do Homem como Imagem de Deus Desta forma, após delimitarmos nesta introdução o escopo e o conteúdo do nosso argumento, nossa pesquisa se desenvolverá nesta monografia seguindo estes quatro estágios acima. No próximo capítulo, analisaremos primeiramente o que significou a criação do homem à imagem e semelhança de Deus. No segundo capítulo, discutiremos alguns efeitos da entrada do pecado no mundo sobre esta imagem. O capítulo 3 apresentará aspectos do processo de restauração desta imagem, que se inicia na redenção provida por Jesus e é continuado pelo Espírito Santo. O quarto e último capítulo demonstrará o alvo final da restauração desta imagem, que é a capacidade de refletir plenamente a glória de Deus sendo finalmente colocada em prática na vida dos seres humanos. Possíveis implicações e aplicações deste estudo doutrinário para a vida cristã cotidiana serão apresentadas já inseridas no decorrer destes quatro capítulos. A conclusão desta monografia, enfim, revisará as principais descobertas e deduções da pesquisa apresentada. 17 CALVINO, Institutas, §1.15.4. 6 CAPÍTULO 1: IMAGEM CRIADA Conforme já pontuamos na introdução deste trabalho, o relato da criação em Gênesis é bastante claro ao afirmar que Deus, nosso Criador, após dar origem a todos os demais seres vivos, determinou criar uma espécie em particular conforme a sua imagem e semelhança. Diz a narrativa do livro de Gênesis: Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra. (Gn 1:26-28, ARA).18 Estes versículos tem sido objeto de intenso e prolongado estudo na história da igreja, por causa da inerente dificuldade de estabelecer em que exatamente consiste esta imagem de Deus. Assim, discutiremos neste capítulo alguns pontos quanto à definição da imagem de Deus: Os termos “imagem” e “semelhança” se referem a coisas distintas? A imagem é uma qualidade inerente à natureza humana ou um tipo de ação? Qual a relação da imagem de Deus com o domínio da criação? O que está envolvido no viver como imagem de Deus? Finalizaremos o capítulo com algumas considerações sobre a posição do homem na criação. Duas outras questões correlatas também se impõem: de que modo a Queda afetou esta imagem e que efeitos a Redenção tem sobre a imagem do homem pós-Queda.19 Nos próximos capítulos trataremos destas questões. Imagem ou Semelhança? Poucos versos bíblicos fazem uso desta terminologia de imagem e semelhança. Além do texto de Gn 1:26-27 citado acima, os termos “imagem” e “semelhança” aparecem também em Gn 5:1, 3; 9:6; 1Co 11:7; 2Co 4:4; Cl 1:15; 3:10; e Tg 3:9. O uso de dois termos diferentes no relato da criação gerou entre os Pais da Igreja o entendimento de que estes se referiam a dois aspectos diferentes da relação do homem com Deus. Alguns defendiam que “imagem” se refere à essência imutável do ser humano, enquanto que “semelhança” se refere ao que é mutável e, consequentemente, ao que podia ser perdido. Outros atrelaram “imagem” a aspectos corporais como beleza e postura ereta, enquanto “semelhança” representaria a natureza moral e intelectual do homem. Já Agostinho relacionou “imagem” às faculdades intelectuais humanas, e “semelhança” às faculdades morais; esta divisão gerou a doutrina escolástica de que a imagem de Deus inclui os atributos naturais da alma e a semelhança inclui a conformidade moral com Deus. Outros foram além e afirmaram que “imagem” consistia no que era básico e natural ao ser humano, enquanto que “semelhança” indicava algo adicionado posteriormente – o dom da comunhão sobrenatural com Deus.20 Toda esta discussão pode ser evitada por meio de um exame acurado dos termos envolvidos no texto. O termo hebraico no texto original para “imagem” ( )צֶ לֶ םindica primariamente uma estátua ou ídolo que representa um deus, um rei ou um general e apresenta grande seme18 A sigla ARA representa a tradução “Almeida Revista e Atualizada, 2ª ed”. 19 Cf. BERKOUWER, Gerrit C. Man: the image of God. Grand Rapids: Eerdmans, 1962. p.66. 20 Cf. HODGE, Charles. Systematic theology. 2 vols. Oak Harbor: Logos, 1997. Ed. eletrônica. v.2, p.96. 7 lhança com o original.21 Já o termo para “semelhança” ()דמּות ְּ indica “modelo, forma, similaridade”, indicando também, embora de uma forma mais genérica, uma associação entre coisas semelhantes. De forma análoga, apresentam significados próximos as palavras gregas εἰκών (eikṓn) e ὁμοίωσις (homoíōsis), correspondentes a estes termos hebraicos e usadas nos textos correspondentes na Septuaginta [LXX]. Todavia, o estudo lexicográfico revela uma distinção sutil entre estes termos: Eikṓn é algumas vezes usado como sinônimo de homoíōma, e ambos podem se referir a cópias terrestres e analogias das coisas arquetípicas nos céus. Entretanto, há uma distinção em que uma imagem sempre assume um protótipo, ao qual ela não apenas se assemelha mas a partir de onde é concebida. [...] Assim, o reflexo do sol na água é eikṓn. [...] Contudo, embora em homoíōma e em homoíōsis haja semelhança, não se segue que isto derive daquilo a que se assemelha. Pode haver uma semelhança entre dois homens que de modo algum são aparentados um com o outro. A eikṓn, imagem, inclui e envolve a semelhança ou similitude (homoíōsis), mas esta não envolve a imagem.22 Assim, de forma similar aos termos hebraicos, os termos em grego também podem ser usados como sinônimos e representam um vocábulo com sentido mais abrangente (“semelhança”) e outro em sentido mais restrito (“imagem”). Adicionalmente, percebe-se que outros textos que fazem uso destes termos (seja na Bíblia hebraica ou na LXX) os apresentam sozinhos ou em outra ordem (Gn 5:1,3; 9:6), fortalecendo o argumento pelo seu fácil intercâmbio. Neste sentido, alguns autores se opõem veementemente ao uso do conectivo “e” entre os termos, pois entendem que isto dificulta a compreensão de serem usados aqui como sinônimos.23 Também colabora com este ponto a marcante característica do paralelismo hebraico, pelo qual a segunda expressão em geral repete, explica e expande a primeira. A expressão “conforme nossa semelhança” em Gn 1:26 indica, portanto, apenas uma explicação adicional, explicitando um conceito já subentendido no termo “imagem” e enfatizando a acurada similaridade ao original. Deste modo, embora alguns pais da igreja e teólogos medievais tenham proposto e longamente debatido uma diferenciação entre imagem e semelhança, a posição geral dos eruditos desde a Reforma Protestante têm sido considerar tais termos como sinônimos complementares.24 É o que já pontuava Calvino em sua obra: Discussão bem acirrada há também a respeito de imagem e semelhança, enquanto entre estes dois termos buscam os intérpretes uma diferença que não existe, salvo que semelhança foi adicionada à guisa de explicação. Em primeiro lugar, sabemos que entre os hebreus as repetições eram triviais, através das quais exprimem duas vezes uma só coisa; em segundo lugar, nenhuma ambigüidade há na própria matéria, a saber, que o homem seja designado de imagem de Deus, porquanto é ele semelhante a Deus. Do quê se evidencia serem ridículos aqueles que acerca desses vocábulos filosofam com sutileza maior, quer atribuam tselem, isto é, a imagem, à substância da alma, e demuth, isto é, a semelhança, às suas qualidades, quer tragam a lume algo diverso. Quando, pois, Deus decretou criar o homem à sua imagem, porque não era tão claro, explicativamente o reitera nesta breve locução: à semelhança, como se estivesse a dizer 21 KOEHLER, Ludwig et al. The hebrew and aramaic lexicon of the Old Testament. Leiden: Brill, 1999. Ed. eletrônica. p.1029. Desenvolveremos mais abaixo as implicações deste conceito. 22 ZODHIATES, Spiros. The complete word study dictionary: New Testament. Chattanooga: AMG Publishers, 2000. Ed. eletrônica. §1504. 23 Por exemplo, SALUM, Oadi. O homem, imagem de Deus: uma interpretação bíblica do ser humano, sua natureza e seu destino. Santa Bárbara d’Oeste: SOCEP, 2009. pp.43-45. 24 Cf. BAVINCK, Reformed dogmatics, v.2, p.532. Veja-se também o clássico BERKHOF, Louis. Teologia sistemática. São Paulo: Luz para o Caminho, 1990. p.203. 8 que iria fazer um homem no qual, mediante marcas impressas de semelhança, haveria de representar-se a si próprio como numa imagem.25 Conclui-se, em vista disso, que estes termos apresentam significado bastante próximo no texto bíblico e assim os usaremos também neste estudo. Atributos ou Ações? Além da discussão dos termos em si, levantou-se outro debate na história da igreja com relação ao significado desta criação à imagem divina. O erudito Douglas Hall esclarece as duas principais diferentes compreensões sobre a imagem de Deus,26 as quais apresentamos de forma bem resumida a seguir. A primeira proposta, conhecida como substancialista, entende imago Dei como um estado; ou seja, afirma que ser imagem de Deus implica em possuir certas características e/ou qualidades similares a Deus, as quais na criação se tornaram intrínsecas à natureza humana.27 Como Deus é espírito, dificilmente alguém defende que a semelhança esteja contida na aparência corporal;28 em geral estas qualidades são identificadas como sendo da personalidade, do raciocínio, e/ou da vontade. Irineu, por exemplo, localizou a imago Dei nas habilidades humanas de raciocínio e liberdade. Já Tomás de Aquino favoreceu apenas a razão. Teólogos desta linha em geral pensam em imagem como um selo aplicado de forma indelével sobre o ser humano, algo que portanto não pode ser perdido. Esta linha de compreensão procede usualmente da comparação do homem com os demais animais, buscando identificar atributos que nos diferenciam deles e nos tornam mais semelhantes a Deus. Na verdade, o melhor modo de entender como o ser humano é imagem de Deus não é comparando-o com outros animais ou mesmo outros seres vivos do planeta, e sim com o homem perfeito Jesus, o qual também é a imagem perfeita do Pai. Aprendemos pelos Evangelhos que sua qualidade mais marcante era o amor a Deus e ao próximo29 e que sua vida era devotada à glorificação do Pai e ao cumprimento de sua vontade.30 O segundo conceito, conhecido como relacional, entende a imagem como uma ação (um verbo) decorrente do relacionamento entre criatura e Criador. Neste sentido, “ser imago Dei não significa ter algo mas ser e fazer algo: refletir Deus.”31 Além disso, esta reflexão ocorre enquanto o homem “está voltado para” Deus. Teólogos que defendem esta posição mais dinâmica apresentam a imagem do Criador no homem como um modo de viver perante Deus, ou ainda, uma qualidade de nosso relacionamento com Deus. Deste modo, ser imagem é ser uma espécie de espelho; se virarmos o espelho para longe do que devia refletir, a imagem deixa de ser completa ou pode até mesmo sumir totalmente. Na prática, vários pensadores argumentaram por uma posição que mistura o conceito da necessária conexão com Deus com os atributos que definem nossa capacidade de fazê-lo. Agos25 CALVINO, Institutas, §1.15.3. 26 HALL, Douglas J. Imaging God: dominion as stewardship. Grand Rapids: Eerdmans, 1986. Veja especialmente o capítulo 3: “Dois conceitos históricos de Imago Dei”. 27 Ibidem, p.89. 28 Contudo, veja-se a argumentação de Calvino contra a proposta de Osiandro neste sentido (Institutas, §1.15.3). 29 O que também Jesus expressou como sendo o resumo daquilo que Deus mais deseja para o ser humano; consequentemente, é também um resumo da Torá (Mt 22:34-40)! 30 Confira-se, por exemplo, quanto a glorificar o Pai, os textos em Jo 5:41; 7:18; 8:50, 54; 12:28; 13:31-32; 15:8; 17:4; Mt 5:16; 9:8; Lc 5:25-26; 7:16; e 15:31. Quanto a fazer a vontade do Pai, confira-se os textos em Mt 7:21; 12:50; 21:31; 26:42; Lc 12:47-48; Jo 4:34; 5:30; 6:38-40; e 9:31. 31 HALL, Imaging God, p.98. 9 tinho já defendia imagem de Deus como a qualidade do estar em correto relacionamento com Deus; contudo, ainda assim defendeu que a imagem consistia em memória, compreensão e vontade. Lutero, por sua vez, a identificou com o atributo da retidão, que ele entendia significar uma vida coram Deo – isto é, vivida na presença de Deus e voltada para Deus. Opondo-se à subdivisão proposta por Agostinho – pois neste caso até Satanás poderia ser imagem de Deus – Lutero enfatizou imagem como a resposta de amor e glorificação do homem para com Deus.32 Calvino concorda com Lutero neste aspecto, defendendo a imagem como nossa orientação em direção a Deus; entretanto, ainda atrelado à noção de imagem como atributos e, localizando a sede da imagem na alma, afirmou que o homem só podia refletir Deus nos atributos espirituais e racionais.33 A tradição reformada em geral tem adotado a posição de que a imagem de Deus no homem se revela no conhecimento (de Deus), retidão e santidade.34 Sem se aprofundar mais neste debate histórico,35 esta monografia se insere dentro da segunda proposta, entendendo a criação do homem à imagem divina como primeiramente um chamado a um relacionamento íntimo, no qual devemos permanecer “voltados” para o Deus Criador. No processo contínuo deste relacionamento, aprendemos a ser como Deus é e a fazer o que Deus faz, e deste modo passamos a refletir sua glória em nossas vidas. Entendemos que atributos e capacidades que são necessários a este processo de refletir Deus são consequência, e não condição, de nossa posição como espelhos do Altíssimo. Neste sentido, decorrem também da graça abundante do Criador que nos capacita para esta tarefa. Representando o Rei do Universo Tendo concluído que a imagem de Deus implica em um processo de refletir a Deus, é preciso agora elucidar algumas implicações práticas deste conceito discerníveis no relato da criação. A análise do texto original de Gn 1:26 nos permite associar logicamente à imagem divina o domínio sobre a criação. A sequência de verbos neste versículo leva a esta conclusão, pois após o coortativo “( ַנעֲשֶ הfaçamos”) segue-se o verbo weYQTL “( וְּ יִ ְּרדּוtenham domínio”) e esta sequência de verbos normalmente implica em propósito e/ou resultado, algo infelizmente não deixado claro na maioria das versões bíblicas.36 Assim, Deus nos fez como seus espelhos para que, como consequência, partilhemos do seu governo sobre o mundo criado.37 É por isso que, após a descrição da nossa criação à imagem e semelhança de Deus, segue-se a ordem divina em Gn 1:28 para que nos multipliquemos e sujeitemos a terra. Juntos fomos chamados a dominar e subjugar a natureza e as demais criaturas. Mas de que forma ocorre este domínio? Por um lado, a Confissão Belga professa em seu 12º artigo que as demais criaturas existem para nosso serviço: 32 Cf. BERKOUWER, Man, p.57. 33 Cf. BERKOUWER, Man, p.76. 34 Cf. BERKHOF, Teologia sistemática, p.206. Apresentaremos esta posição com um pouco mais de detalhes em outra parte desta monografia. 35 Veja-se um bom resumo e interessante aplicação em HERZFELD, Noreen. “Creating in our own image: artificial intelligence and the image of God”. Zygon v.37 n.2, 2002, pp.303-316. 36 37 Para outros exemplos, veja-se Gn 19:20; 34:23; 2 Sm 3:21. Em seu comentário sobre esta passagem, o erudito Derek Kidner afirma categoricamente: “O domínio sobre todas as criaturas não é o conteúdo, mas uma consequência da imagem divina”. KIDNER, Derek. Genesis: an introduction and commentary. Downers Grove: IVP, 1967. p.52. De igual modo, o teólogo Gerhard von Rad declara em seu comentário sobre este trecho: “Essa elevada comissão de governar não é considerada parte da definição da imagem de Deus, mas é sua consequência, isto é, aquilo de que o homem é capaz por causa dela.” VON RAD, Gerhard. Genesis. Londres: SCM, 1956. p.57. 10 Cremos que o Pai, pela Palavra – isto é, pelo seu Filho – criou do nada os céus, a terra, e todas as criaturas, como lhe pareceu bem, dando a cada criatura seu ser, aspecto, forma, e diversos ofícios para servir seu Criador; que também ele ainda os preserva e governa pela sua eterna providência e infinito poder para o serviço da humanidade, com o fim de que o homem possa servir a seu Deus.38 Contudo, não há aqui permissão para usufruto indiscriminado, irresponsável ou abusivo, mas enfatiza-se o auxílio aos homens em sua finalidade de servir a Deus. Por outro lado, é importante ressaltar que os verbos agressivos encontrados em Gn 1:26-28 (“subjugar” e “dominar”; ainda mais agressivos no original hebraico) são contrabalançados pelos verbos “cultivar” (no original “servir”, )עָ ַבדe “guardar, preservar” ( )שָ מַ רem Gn 2:15. É o paradigma da liderança servil, posteriormente explicitado por Jesus. Assim, somos responsáveis diante de Deus por gerenciar corretamente e com sabedoria os recursos deste planeta, e por refletir a natureza de Deus e sua vontade a toda a criação. Tais preocupações devem ser ainda mais agudas dentro do povo de Deus, no qual a imagem de Deus está sendo restaurada.39 Entende-se implicitamente aqui o propósito de que os seres humanos desenvolvam uma cultura que glorifique ao nome do Criador, o que se convencionou chamar de mandado40 cultural – um exercício de poder responsável e sob a direção divina. Assim, somos feitos à imagem de Deus para que possamos governar a ordem criada como representantes do Criador. Somos nomeados embaixadores do rei celestial. É o que explica o reformado Christoph Barth: “À imagem de Deus” significa a criação, dotação, e nomeação dos homens para serem mandatários de Deus, comissários ou vice-gerentes com autoridade estendida sobre os animais e também sobre os poderes e riquezas da terra. É uma curadoria.41 Nesta representação diplomática, somos chamados a fazer o que o rei do universo faz e a ser como o rei é, representando-o da melhor forma possível no ambiente onde estamos inseridos. Como toda incumbência diplomática, deve ficar bem claro, tanto ao embaixador quanto aos destinatários de sua missão representativa, que todo o poder e a autoridade do presente encargo não pertencem à pessoa exercendo a missão, mas àquele que o comissionou. O teólogo Hans Wolff salienta bem esta questão: No Oriente antigo, o erigir uma estátua do rei significava a manifestação do seu domínio no âmbito da região em que a estátua era posta. ... De modo correspondente, o ser humano é estabelecido como estátua de Deus na criação. Ele documenta que Deus é o Senhor da criação; mas ele também pratica o domínio de Deus como seu administrador. ... Seu direito de domínio e sua obrigação de dominar não são autônomos, mas têm caráter de reflexo.42 Portanto, como parte do processo de refletir Deus, refletimos também seu sábio governo, seu soberano domínio e seu cuidado amoroso para com o mundo criado. 38 Confissão Belga §12. Em: SCHAFF, Philip. Creeds of Christendom with a history and critical notes. 3 vols. 4 ed. Grand Rapids: Baker, 1977. v.3, p.395. 39 Cf. MCKIM, Donald K. Introducing the reformed faith: biblical revelation, christian tradition, contemporary significance. Louisville: Westminster John Knox, 2001. p.64. Veja-se também BRYANT, David J. “Imago Dei, imagination and ecological responsibility”. Theology Today, v.57, no. 1, abril de 2000, pp.35-50. 40 Embora na língua inglesa haja apenas a expressão “cultural mandate”, ela se traduz melhor no português como “mandado cultural” (foco na ordem, incumbência), e não “mandato” como é o uso comum (foco no prazo, delegação temporária). 41 BARTH, Christoph. God with us: a theological introduction to the Old Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1991. p.28. 42 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008. p.247. 11 É interessante que esta representação ou reflexo também transparece em nossas vidas familiares. Nossos filhos, conscientemente ou não, nos imitam em nossos acertos e erros, em nossos trejeitos e escolhas. Seja via herança genética ou comportamento aprendido, os filhos menores são pequenas imagens de seus pais,43 até que aos poucos vão fazendo suas próprias escolhas e formando uma identidade pessoal própria e única. Neste sentido, é bom quando eles espelham nossas qualidades, virtudes e áreas de sucesso. Todavia, a reflexão deles não se limita a isto e também inclui nossas falhas, pecados e derrotas. É como se víssemos nossos defeitos “andando em duas perninhas”... Que consolador é saber que somos chamados em Cristo a sermos imagem de um Pai celestial que é perfeito e sem falhas!44 Esta comparação com os filhos ilustra ainda outro aspecto do sermos a imagem de Deus. Assim como cada filho se parece conosco de modos diferentes, também nós refletimos o nosso Criador de variadas formas. Portanto, não há duas reflexões iguais ou dois espelhos produzidos em série. Cada um destes espelhos – nós, os seres humanos – é manufaturado com extrema dedicação e cuidado. Paulo usa uma metáfora diferente para significar a mesma coisa em Ef 2:10, quando diz que “somos feitura dele”, pois a palavra grega usada neste verso (ποίημα)45 subentende algo particularmente construído pelas mãos do autor. De forma semelhante, este conceito transparece no Saltério na expressão “obras das tuas mãos”.46 A representação diplomática, embora tenha princípios gerais comuns a todos, se traduz na realidade de modo singular a cada ocupante do cargo. Refletindo como Espelhos Aos poucos vamos percebendo que este processo de reflexão do Criador é complexo e envolve diferentes aspectos. Vamos ponderar sobre alguns destes aspectos da reflexão. A metáfora da representação diplomática que acabamos de discutir complementa bem a metáfora do espelho apresentada anteriormente. Ao analisarmos em que consiste refletir a Deus, devemos considerar tanto o objeto espelho quanto a posição de embaixador. Percebe-se facilmente que um espelho consegue apenas refletir a aparência externa do que está à sua frente. Ele “imita” as ações e movimentos de uma pessoa, e até mostra seu aspecto exterior, mas nada revela sobre sua disposição interior. Nada nos diz sobre suas qualidades e virtudes no presente, nem nos informa sobre quem ela foi no passado ou será no futuro. Por outro lado, uma pessoa na posição de embaixador melhor desempenha sua função quando procura agir, pensar e ser como aquele a quem representa. Certamente, uma perfeita reflexão do seu governante fica impossível, pois é limitada por suas características pessoais e pensamento próprio. Se o espelho é muito fiel mas extremamente raso na reflexão, o embaixador traz mais profundidade ao processo, mas insere distorções.47 Neste sentido, para aproximarmos a metáfora do simples espelho da metáfora do embaixador, precisamos nos entender como “espelhos-3D”, isto é, espelhos que refletem mais do que a superfície plana e externa do objeto original, espelhos que possuem profundidade E fidelidade. Prosseguindo adiante com esta metáfora, percebemos que para ganhar profundidade em nossa reflexão não podemos ser espelhos estáticos. Fomos na verdade criados como espelhos 43 É o que afirma claramente Gn 5:3, do que trataremos no próximo capítulo. 44 Observe a discussão no capítulo seguinte sobre a herança da imagem caída. Embora gerados à imagem de nossos pais e conforme sua semelhança, somos chamados para espelhar Deus e não nossos pais. 45 Este vocábulo deu origem à palavra “poema” em latim e português. 46 Veja-se, por exemplo: Sl 19:1; 92:4; 111:7; 138:8 (aqui particularmente se referindo aos seres humanos) e 143:5. 47 Hoekema faz uma análise útil e interessante sobre o paradoxo entre nossa completa dependência de Deus enquanto criaturas e nossa limitada independência enquanto pessoas. Veja-se o capítulo 2 do seu livro, Created in God’s Image. 12 dinâmicos e vivos, para podermos dentro de nossas limitações refletir tudo aquilo que Deus é e aquilo que ele faz.48 Como bem define o teólogo reformado Gerard van Groningen: Ao criar a humanidade à sua própria imagem, Deus estabeleceu uma relação na qual a humanidade poderia refletir, de modo finito, certos aspectos do infinito Rei-Criador. A humanidade deveria refletir as qualidades éticas de Deus, tais como sua “retidão e verdadeira santidade” (Ef 4.24, NVI) e seu “conhecimento” (Cl 3.10). A humanidade deveria dar expressão às funções divinas em relação ao cosmos em atividades tais como encher a terra, cultivá-la e governar sobre o mundo criado. A humanidade, em sua forma física, também refletiria as próprias capacidades do Criador: apreender, conhecer, exercer amor, produzir, controlar e interagir.49 Tal como um espelhinho de mão que precisa ser virado para cá e para lá, precisamos nos posicionar constantemente para a cada instante refletir um pouco da imensidão de Deus de forma apropriada e relevante ao contexto em que estamos inseridos. Consequentemente, precisamos ser também espelhos auto-orientados, que podem decidir a cada momento o que e o quanto irão refletir desta infinitude divina. Afinal, como disse o teólogo Emil Brunner, Deus deseja de nós uma resposta ativa e espontânea em nossa “reflexão”. Aquele que cria pela Palavra, que com o Espírito cria em liberdade, quer ter um “reflexo” que seja mais que um “reflexo”, que seja uma resposta à sua Palavra, um ato espiritual livre.50 Fica logo evidente que esta dinamicidade e auto-orientação implicam também em uma responsabilidade ainda maior neste processo de refletir Deus. Por último, mas não de menor importância, deve-se considerar como fator importante para este processo reflexivo a amplitude do espelho. Em outras palavras, o processo de refletir Deus inclui todas as áreas de nossa vida. Portanto, devemos aprender concretamente a perceber o comer e beber como um modo de expressar nosso amor por Deus, não por meio de uma oração de agradecimento, mas pelo próprio ato de comer e beber; a conhecer como uma carreira comercial pode ser uma experiência tão rica em servir a Deus como uma carreira em teologia; a experimentar uma visita ao banheiro como um ato tão santo quanto a oração.51 Indo mais além, podemos afirmar que nossa humanidade se define em sermos imagem de Deus. Precisamos ser espelhos integrais que refletem Deus com todas as suas partes, incluindo aí aspectos materiais e imateriais.52 O teólogo Bavinck insiste neste ponto: a pessoa humana inteira é a imagem da divindade toda. [...] Nada na humanidade é excluído da imagem de Deus; ela se estende tanto quanto nossa humanida- 48 Obviamente, como bem o explicam nossas teologias sistemáticas, só podemos refletir os atributos comunicáveis de Deus, uma vez que os incomunicáveis são, por definição, exclusivos de Deus. Veja-se, por exemplo, CAMPOS, Heber Carlos de. O ser de Deus e os seus atributos. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. p.165. 49 VAN GRONINGEN, Gerard. Revelação messiânica no Antigo Testamento: a origem divina do conceito messiânico e o seu desdobramento progressivo. Campinas: Luz para o Caminho, 2003. 2 ed. p.97. 50 BRUNNER, Emil. A doutrina cristã da criação e redenção. São Paulo: Fonte, 2006. v.2, p.85. 51 FOWLER, Stuart. On being human. Blackburn: Foundation for Christian Scholarship, 1980. p.7. 52 Foge do escopo deste trabalho discutir as posições dicotomista e tricotomista. Assumimos que a ênfase bíblica está no ser humano integral e não nas divisões didáticas de alma e espírito usadas em alguns textos. Como afirma Walter F. Taylor Jr.: “no NT os termos são, entretanto, usados de um modo manifestamente hebraico (AT); ou seja, não como meios de falar de diferentes partes do indivíduo mas como diferentes meios de falar da pessoa inteira, unificada e integral”. FREEDMAN, David Noel. The Anchor Yale Bible dictionary. Nova Iorque: Doubleday, 1996. v.3, p.321. 13 de e constitui nossa natureza humana. [...] O ser inteiro, portanto, – não algo no homem mas o homem em si – é a imagem de Deus.53 Este é um conceito paradoxal. Quanto mais nos tornamos completamente humanos, mais nos tornamos a imagem de Deus. E quanto mais nos tornamos semelhantes a Deus, mais nos tornamos seres humanos completos. São descrições complementares da mesma realidade, e indicam que a imago Dei engloba todo o nosso ser em todas as suas variadas funções. Em que consiste, então, o processo de refletir Deus? Nossa reflexão de Deus deve apresentar, pelo menos, fidelidade e profundidade, dinamicidade e auto-orientação, e ainda, amplitude e integralidade. Nele Vivemos Para concluirmos esta discussão sobre a imagem criada, cabe ressaltar um corolário importante. Fica evidente em todos os argumentos acima que o homem não é a razão da criação. Em toda a descrição bíblica acerca do homem e daquilo que acontece em sua vida, percebemos que Deus é sempre o personagem principal da história. Como bem o descreve o teólogo reformado holandês Gerrit Berkouwer: Podemos dizer sem muito medo de contradição que a coisa mais importante na descrição bíblica do homem é que ela nunca chama atenção para o homem em si mesmo, mas exige nossa completa atenção para o homem em seu relacionamento com Deus.54 Assim como o ser humano tem sua origem em Deus, ele também tem seu destino final e propósito unicamente no seu Criador. Em sua análise do perfeito homem Jesus, o teólogo reformado Karl Barth conclui que “a base da vida humana é idêntica com seu telos. Originando-se de Deus, o homem está em Deus, e portanto existe para Deus”.55 Assim, “não há possibilidade de entender o homem no qual a ideia de Deus foi excluída”,56 pois nossa existência como seres humanos é teocêntrica. Em outras palavras, só conseguiremos entender a natureza humana investigando o seu relacionamento com o Criador. Como disse Calvino: Por outro lado, é notório que o homem jamais chega ao puro conhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus, e da visão dele desça a examinar-se a si próprio.57 E ainda: No processo de conhecer a Deus cada um de nós também conhece a si mesmo.58 53 BAVINCK, Reformed dogmatics, v.2, pp. 533, 554, 561. Ele se opõe aos que situam a imagem de Deus em apenas algumas características ou partes humanas. E, talvez corrigindo a ênfase de Calvino em situar a imagem de Deus na alma humana, afirma que ela inclui também seu corpo (cf. sua discussão nas p.559-561). De igual modo, Hoekema afirma que “o homem é um ser cuja inteira constituição é imagem de Deus e o reflete” (Created, p.66) e, portanto, “devemos também incluir o corpo como parte da imagem” (idem, p.68). 54 BERKOUWER, Man, p.195. 55 BARTH, Karl. Church Dogmatics. Edinburgh: T. & T. Clark, 2004. v.3/2, p.71. Veja-se também BAVINCK, Reformed dogmatics, v.2, p.433. Neste mesmo trecho, Bavinck afirma que “a teologia cristã ensina quase unanimemente que a glória de Deus é o objetivo final de todas as obras de Deus” e refuta duas possíveis objeções a este entendimento. 56 BARTH, Church Dogmatics, v.3/2, p.82. 57 CALVINO, Institutas, §1.1.2. 58 CALVINO, João. Institutes of the christian religion. Louisville: Westminster John Knox, 2003. Traduzido por Ford Lewis Battles. Editado por John T. McNeill. 2 vols. §1.1.1 nota 1. Texto da versão francesa de 1560. 14 Nisto Calvino reflete o pensamento bem anterior de Clemente de Alexandria, que disse: É, de fato, a maior de todas as lições alguém conhecer a si mesmo. Pois, se alguém conhece a si mesmo, então conhece a Deus; e conhecendo a Deus, será feito como Deus...59 Contudo, Calvino deixa claro o objetivo desta busca pelo auto-conhecimento: Isto, pois, é o que a verdade de Deus requer que busquemos em nosso autoexame: requer o tipo de conhecimento que nos dispa de toda confiança em nossas próprias habilidades, nos prive de toda ocasião para vanglória, e nos leve à submissão.60 Portanto, este conhecimento de Deus não é um conhecimento intelectual, tal como prezamos tanto em nossa sociedade ocidental. Antes, é um reconhecimento de que o Senhor Deus é o nosso Criador, e que a ele devemos submissão e adoração sempre como suas criaturas. Este conhecimento experimental da majestade do Senhor leva inevitavelmente à transformação de nossas vidas e à ortopraxia. Ortodoxia que não gera vida íntima com Deus é na prática mero ateísmo disfarçado! Infelizmente, os homens preferiram fugir desta busca pelo conhecimento de Deus e a imagem divina se tornou distorcida no ser humano devido à entrada do pecado no mundo. Disto trataremos no próximo capítulo. 59 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Paedagogus §3.1. Em: ROBERTS, Alexander et al. The ante-nicene fathers. Oak Harbor: Logos, 1997. Ed. eletrônica. v.2, p.271. 60 CALVINO, Institutes, §2.1.2 (tradução minha). 15 CAPÍTULO 2: IMAGEM CAÍDA Vimos no capítulo anterior que fomos criados à imagem e semelhança de Deus, para glorificá-lo por meio da reflexão de sua glória em nossas vidas. Entretanto, tendo a liberdade de escolher a obediência ou a desobediência ao Senhor, nossos pais deram ouvidos à sugestão do inimigo de Deus e optaram por buscar sua independência do Criador. Neste capítulo faremos uma análise sobre as consequências desta escolha. Iniciaremos com uma descrição da Queda e sua propagação geral. Em seguida, discutiremos o alcance do pecado no ser humano e de que forma a imagem divina se tornou corrompida em nossa natureza. A Distorção da Imagem Há um reconhecimento geral na humanidade de que o mundo não era para ser assim como o conhecemos hoje.61 Algo aconteceu no passado que mudou o rumo da história, deixando-nos com o sentimento nostálgico de tempos melhores neste planeta. O texto bíblico de Gênesis relata esta história da seguinte forma: Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o SENHOR Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim? Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais. Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal. Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu. Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si. Quando ouviram a voz do SENHOR Deus, que andava no jardim pela viração do dia, esconderam-se da presença do SENHOR Deus, o homem e sua mulher, por entre as árvores do jardim. (Gn 3:1-8, ARA). Tendo sido criados para um relacionamento onde certamente cresceriam no conhecimento de Deus, os seres humanos preferiram adotar um atalho para conhecer o bem e o mal como Deus (Gn 3:5-6). Embora pudessem se tornar cada dia mais semelhantes a Deus pelo processo contínuo de refletir sua imagem gloriosa, eles ambicionaram o impossível e quiseram se tornar autossuficientes e iguais a Deus instantaneamente. Assim, ao terem seus olhos abertos (Gn 3:7), perceberam também que agora a imagem de Deus refletida em suas vidas era uma imagem imperfeita e distorcida. O espelho ficou, portanto, manchado pelo pecado. Ou, como descreve o teólogo sistemático reformado Michael Wittmer: A imagem de Deus na humanidade caída se assemelha a um espelho partido. Se olharmos de perto, ainda podemos ver o reflexo de Deus em nós mesmos, mas ele agora está distorcido pelas arestas salientes do pecado.62 Deste modo, como Adão e Eva não podiam mais refletir perfeitamente a justiça e a santidade 61 Um excelente livro que trabalha o significado e o alcance do pecado é PLANTINGA Jr, Cornelius. Não era para ser assim: um resumo da dinâmica e natureza do pecado. São Paulo: Cultura Cristã, 1998. Veja-se especialmente o primeiro capítulo, que trata do pecado como vandalismo do shalom. 62 WITTMER, Michael E. Heaven is a place on earth: why everything you do matters to God. Grand Rapids: Zondervan, 2004. p.80. 16 divinas, “esconderam-se da presença do Senhor” (Gn 3:8). Contudo, nosso gracioso Deus foi atrás dos seres criados e os tirou de trás da moita, e conversou com eles sem atirar pedras para quebrar ainda mais o espelho. Ali o Senhor aponta um caminho futuro de restauração no protoevangelho de Gn 3:15. Este fatídico capítulo da história da humanidade se encerra assim: Então, disse o SENHOR Deus: Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente. O SENHOR Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora tomado. E, expulso o homem, colocou querubins ao oriente do jardim do Éden e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida. (Gn 3:22-24). Vemos que, para evitar que esta condição caída se prolongasse eternamente pela participação na árvore da vida, Deus misericordiosamente os expulsou do paraíso. Propagação da Distorção Nos capítulos seguintes da narrativa de Gênesis, percebemos que o problema acabou se propagando. Adão e Eva geraram seus primeiros filhos, Caim e Abel, mas o primogênito matou o irmão por inveja e fugiu também da presença do Senhor. Na medida em que a humanidade se propagava pelo planeta, os homens viviam cada vez mais distanciados da presença divina, e cresciam as manchas no espelho de cada um. Em outras palavras, a capacidade coletiva da humanidade de refletir Deus e assim glorificar o nome do Criador se tornava cada vez menor. Como isto se sucedeu? Temos uma boa pista no texto bíblico: Viveu Adão cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e lhe chamou Sete (Gn 5:3, ARA). Contrariamente ao que se podia esperar, Adão não gerou um filho à imagem e semelhança de Deus, mas à sua própria imagem e semelhança! Ao gerar filhos não podemos reproduzir a imagem perfeita de Deus, pois não mais conseguimos refleti-la como devíamos. Só podemos reproduzir aquilo que somos. Assim, quando o pequeno Sete nasceu já tinha seu espelhinho manchado, e a imagem de Deus que refletia já estava deformada. É esta herança genética que tem sido passada de pais para filhos até os nossos dias. Tal como a fotocópia de uma fotocópia, o passar das gerações só faz piorar a qualidade da cópia e a distancia cada vez mais do texto ou figura original. Seria mais sensato discutir sobre a involução do ser humano do que sobre sua possível evolução!63 A cada geração nosso pecado acrescenta outras manchas no espelho e representamos cada vez de maneira pior ao Rei celestial. É certo, pois, que o mal se propaga rapidamente, como bem o demonstram os capítulos iniciais de Gênesis. Não fora a graciosa providência do Senhor em conter esta nossa vertiginosa inclinação para o mal, certamente já teríamos nos destruído mutuamente e a todo o mundo criado. Distorção Total Como afirmamos acima, é somente pela operação da graciosa providência divina que as distorções provocadas pelo pecado não se expressam de forma radical o tempo todo nem em todos os lugares. Embora a corrupção humana geralmente não chegue ao seu pior grau, é preciso afirmar que todas as coisas criadas foram fortemente afetadas pela entrada do pecado no mundo e aguardam a redenção final do universo proporcionada em Cristo. 63 Estudos científicos têm demonstrado que as mutações genéticas perceptíveis hoje são degenerativas e assim se propagam à posteridade. Esta degeneração intergeracional não se resume a aspectos físicos, mas abrange também habilidades emocionais e espirituais. 17 Sim, a vida se corrompeu em toda a sua extensão e em todas as suas partes. A tradição reformada sintetiza isto em sua doutrina da total depravação da humanidade. Por exemplo, o Catecismo de Heidelberg ensina assim: 6. Mas Deus criou o homem tão mau e perverso? R. Não, Deus criou o homem bom e à sua imagem, isto é, em verdadeira justiça e santidade, para conhecer corretamente a Deus seu Criador, amá-lo de todo o coração e viver com ele em eterna felicidade, para louvá-lo e glorificá-lo. 7. De onde vem, então, esta natureza corrompida do homem? R. Da queda e desobediência de nossos primeiros pais, Adão e Eva, no paraíso. Ali, nossa natureza tornou-se tão envenenada, que todos nós somos concebidos e nascidos em pecado. 8. Mas nós somos tão corrompidos que não podemos fazer bem algum e que somos inclinados a todo mal? R. Somos sim, se não nascermos de novo pelo Espírito de Deus.64 De forma similar, a Confissão de Fé de Westminster expõe: Por este pecado eles decaíram da sua retidão original e da comunhão com Deus, e assim se tornaram mortos em pecado e inteiramente corrompidos em todas as suas faculdades e partes do corpo e da alma. Desta corrupção original pela qual ficamos totalmente indispostos, adversos a todo o bem e inteiramente inclinados a todo o mal, é que procedem todas as transgressões atuais.65 Contudo, não se afirma com isto que cada ser humano tenha se corrompido totalmente no aspecto da profundidade, ou seja, não é que cada um tenha se tornado tão perverso quanto podia (e pode) ficar. O aspecto da totalidade se refere à amplitude do pecado, que impregna cada área e função de nossas vidas em maior ou menor grau. Ou seja, a depravação total não se expressa no ser humano por uma forte intensidade e grande frequência de ações perversas, mas pela presença certa e constante do pecado em cada ação realizada neste estado caído. Como afirma Calvino: ... o homem inteiro, da cabeça aos pés, foi, como por um dilúvio, de tal modo assolado, que nenhuma parte ficou isenta de pecado, e em consequência tudo quanto dele procede deve ser imputado ao pecado. Como Paulo diz [Rm 8.6, 7]: todos os afetos ou cogitações da carne são inimizades contra Deus; e por isso, morte.66 Ou seja, não há ação que o homem caído possa realizar que ainda seja segundo a plena vontade de Deus; toda ação decorrente da natureza não regenerada constitui pecado, pois em maior ou menor grau se desvia do propósito de Deus para o ser humano. Retornando à metáfora do espelho, pode-se indicar esta situação como uma escolha permitida ao primeiro homem de redirecionar seu espelho para longe de Deus. Após este redirecionamento, contudo, o homem perdeu a habilidade de reposicionar seu espelho, e não pode mais colocá-lo na direção correta. Se, por um lado, o homem pôde usufruir desta liberdade inicial de intencionalmente mover-se para longe da perfeita reflexão de Deus, é importante fazer a ressalva, por outro lado, de que nunca houve a possibilidade de que o ser humano virasse completamente as costas para Deus. Tal como o adolescente que esbraveja e se rebela contra a autoridade paterna, mas ainda depende de seus pais para seu sustento e direção na vida, também o ser hu64 CATECISMO DE HEIDELBERG. Bellingham: Logos, 2000. Ed. eletrônica. §§6 a 8. 65 CONFISSÃO, §§6.2 e 6.4. 66 CALVINO, Institutas, §2.1.9. 18 mano necessita fundamentalmente da providência divina para sua subsistência básica. Não existe vida fora do Doador da vida. O redirecionamento, portanto, pode ser apenas parcial. Se este redirecionamento do espelho é parcial, infere-se que, mesmo contra sua escolha, o ser humano ainda permanece pelo menos um pouco voltado para Deus e, consequentemente, reflete Deus ainda que de forma parcial ou obscura. Em momento algum o ser humano deixa completamente de ser a imagem de Deus. Sobre isto, Bavinck testifica: ... o homem, por um lado, ainda é chamado de imagem de Deus após a queda e deve ser respeitado como tal (Gn 5:1; 9:6: At 17:28; 1Co 11:7; Tg 3:9).67 Temos, pois, que afirmar tanto a amplitude de alcance e penetração do pecado em todas as esferas da vida, quanto sua limitação de poder. Embora o pecado tenha distorcido seriamente a imagem de Deus na natureza humana, não obteve sucesso em destruí-la completamente. Em que se constitui, então, esta distorção da imagem divina? É o que debateremos a seguir. Deformação da Imagem Embora todos afirmem que há algo errado e distorcido na natureza humana, não há muito consenso entre os estudiosos sobre o que caracteriza esta deformação da imagem divina – exceto talvez quanto à perda da retidão original na imagem caída. Os teólogos da Igreja Católica Romana afirmam que esta retidão original perdida na Queda era um dom sobrenatural e adicional à natureza humana (o donum superadditum), um conceito formulado por Irineu e ampliado por teólogos medievais. Mesmo caído e despojado deste dom adicional, o ser humano mantém sua natureza completa e pode ser uma pessoa boa e verdadeira. Para poder defender tal afirmação, os católicos diferenciam os termos “imagem” e “semelhança”; a imagem de Deus corresponde à natureza humana atual; a semelhança propiciava ao ser humano os dons sobrenaturais da santidade e retidão, e foi perdida pela entrada do pecado.68 Contra esta posição, os teólogos reformados em geral entendem que a retidão original é inseparável da natureza humana e se refere ao seu estado normal de criação. Sem esta retidão o ser humano se tornou anormal, incompleto. Este é o estado da pessoa caída. Não é mais um ser humano completo, mas perdeu parte de sua natureza original. Para explicar como esta deformação da imagem de Deus original aconteceu, uma divisão da imagem de Deus em dois aspectos é usualmente proposta na tradição reformada, como explica Hoekema: A imagem de Deus envolve tanto estrutura quanto função. Vários termos têm sido usados para descrever estes dois aspectos: imagem ampla e restrita (H. Bavinck, L. Berkhof), imagem formal e material (Brunner), substância e relacionamentos (Hendrikus Berkhof), dotação e criatividade (David Cairns).69 O sentido estrutural ou amplo indica os dons e capacidades que permitem ao ser humano funcionar como deveria em seus vários relacionamentos e vocações, pois tais habilidades espelham quem Deus é e o que Deus faz. O sentido funcional ou restrito é tradicionalmente identificado como consistindo em conhecimento, retidão e santidade, a partir dos textos de Ef 4:24 e Cl 3:10. A partir desta definição, Bavinck postula que: 67 BAVINCK, Reformed dogmatics, v.2, p.550. 68 Cf. ROHLS, Jan. Reformed confessions: theology from Zurich to Barmen. Louisville: Westminster John Knox, 1998. p.78. Veja-se também BAVINCK, Reformed dogmatics, pp.551-553; e HOEKEMA, Created, pp.3342. 69 HOEKEMA, Created, pp.69-70. 19 A Queda precipitou a perda da imagem de Deus no sentido mais restrito e corrompeu a imagem de Deus no sentido mais amplo. Isto afetou profundamente a pessoa inteira.70 Ou seja, para estes teólogos reformados, a imagem divina implica em certos atributos embutidos na natureza humana original.71 Enquanto alguns destes atributos foram apenas corrompidos, outros foram totalmente perdidos – a saber, os que mais diretamente permitem o relacionamento com o Criador (conhecimento, retidão e santidade). Outros teólogos na tradição reformada argumentam que nada mudou estruturalmente na natureza humana, nem capacidade alguma foi perdida, mas tudo mudou de direção. Para o ser humano, perder a habilidade para refletir Deus se compara a ficar perdido numa floresta, sem ter um sentido para a vida e sem saber o caminho de volta para casa. Desta forma, desorientados e seguindo a direção errada, a humanidade se encontra vagando sem rumo. O teólogo reformado Gordon Spykman explica que há uma distinção desenvolvida mais tarde na tradição da Reforma – a distinção entre estrutura/função e direção. [...] Estrutural e funcionalmente nós somos o que sempre fomos; mas quanto à direção nada é o mesmo.72 Ou seja, a natureza humana permanece a mesma, mas as características e habilidades do homem não mais eram usadas para glorificar a Deus, mas para servir ídolos, dos quais o ego é o principal. Assim pondera o teólogo sistemático Jan Rohls: O pecado não tira a humanidade dos seres humanos, mas é uma corrupção da natureza humana na medida em que ele faz os seres humanos fracassarem continuamente em alcançar o objetivo natural de suas vidas. Zuínglio expressa este fracasso ou perda do alvo ao caracterizar o pecado como amor-próprio... O pecado consiste no fato de que os seres humanos, em vez de estarem direcionados para Deus, estão curvados em si mesmos e, assim, caracterizados por egoísmo e amor-próprio.73 Em vez de vivermos para refletir Deus, passamos a contemplar de forma narcisista nossa própria imagem! Tornamo-nos espelhos inúteis, que buscam refletir apenas a si mesmos. Uma terceira linha de interpretação reformada é apresentada pelo teólogo Michael Wittmer.74 Ele faz uma distinção entre os aspectos ontológico e ético da imagem divina. O aspecto ontológico envolve as capacidades e dons que refletem Deus mas permanecem na natureza humana caída (como a razão, consciência, vontade, fala). O aspecto ético consiste na forma em que usamos tais capacidades para nos relacionarmos em três esferas: com Deus, com o próximo e com a natureza. É quanto a esta direção nos relacionamentos que sofremos um brutal desvio devido à Queda. O pecado praticamente destruiu estes relacionamentos, que serão restaurados apenas em Cristo. Ele reconhece, todavia, que há dificuldades nesta simplificação: Nem tudo relacionado à nossa imagem divina se encaixa certinho nas linhas ontológica e ética. Por exemplo, embora em geral nossas capacidades ontológicas permaneçam não afetadas pelo pecado, ainda assim sabemos que certas habilidades, como a de pensar claramente, foram danificadas pelo pecado. ... Além disso, pessoas cujas mentes foram severamente danificadas pela destruição da Queda, como os que sofrem de retardo mental ou da doença de Alzheimer, per70 BAVINCK, Reformed dogmatics, p.554. 71 Veja a sucinta explanação sobre as propostas substancialista (imagem nos atributos) e relacional (imagem nas ações) no capítulo anterior deste trabalho. 72 SPYKMAN, Gordon. Reformational theology. Grand Rapids: Eerdmans, 1995. p.333. 73 ROHLS, Reformed confessions, p.81. 74 WITTMER, Heaven, pp.80-81. 20 manecem imagem de Deus mesmo em falta de certas habilidades humanas básicas. ... Além de simplificar demais o lado ontológico, eu inevitavelmente também falei muito amplamente quanto ao ético. Embora seja geralmente verdadeiro que o pecado estragou nosso relacionamento com Deus, outros e o mundo, ele não eliminou inteiramente estes relacionamentos. Graças à graça comum de Deus, mesmo pessoas não regeneradas podem ainda gozar algum conhecimento básico de Deus, intimidade profunda com outros, e até cuidado produtivo pela terra de Deus.75 Esta admissão final traz mais equilíbrio à sua proposta, indicando que nos dois aspectos houve corrupção (em maior ou menor grau), mas não devastação total. Uma admissão similar deveria ser construída para as posições apresentadas acima. Hoekema em certo ponto parece misturar as duas posições no mesmo trecho, quando afirma: Depois que o homem caiu em pecado, entretanto, ele reteve a imagem de Deus no sentido estrutural ou amplo, mas a perdeu no sentido funcional ou restrito. Isto é, seres humanos caídos ainda retêm os dons e capacidades que Deus lhes concedeu, mas agora usam estes dons de modo pecaminoso e desobediente.76 A questão que deve ser explicitada é que nem o ser humano reteve completamente a imagem de Deus no sentido estrutural, como parece afirmar a segunda posição, nem perdeu totalmente a imagem no sentido funcional, como afirma a primeira posição. A imagem divina foi deformada em ambos os aspectos, mas permanece, expressando-se de forma visível em maior ou menor grau a cada caso. Pode-se recorrer aos próprios exemplos da citação de Wittmer acima. Por causa da Queda, todos nós temos deformidades físicas, mentais e emocionais em variadas gradações, como qualquer autoanálise honesta ou exame de saúde pode demonstrar. Só Jesus foi um ser humano perfeito após a Queda. Não é, pois, mera questão de direção, mas de deformação real. De igual modo, pessoas ainda não regeneradas manifestam, pela graça comum, certas virtudes impossíveis a quem perdeu completamente o conhecimento (de Deus), a retidão e a santidade. Afirmar que estes atributos foram severamente esmagados na maioria dos homens não é o mesmo que afirmar sua total eliminação, como deixa claro o texto dos Cânones de Dort: É verdade que há no homem depois da queda um resto de luz natural. Assim ele retém ainda alguma noção sobre Deus, sobre as coisas naturais e a diferença entre honrado e desonrado e pratica um pouco de virtude e disciplina exterior. Mas o homem está tão distante de chegar ao conhecimento salvífico de Deus e à verdadeira conversão por meio desta luz natural que ele não a usa apropriadamente nem mesmo em assuntos cotidianos. Antes, qualquer que seja esta luz, o homem totalmente a polui de maneiras diversas e a detém pela injustiça. Assim ele se faz indesculpável perante Deus.77 Ou seja, se por um lado fica claro que o homem caído é incapaz de fazer o bem a partir de suas próprias intenções distorcidas, mantém-se a possibilidade de que a imagem divina nele produza fragmentos de reflexo em reação a um mover gracioso de Deus em sua direção. Como mencionamos antes, nunca houve possibilidade de o homem se afastar completamente do Criador, pois isto implicaria em sua destruição completa. A distorção é séria, mas não é total, permitindo aqui e ali vislumbres da imagem de Deus em todos os seres humanos, mesmo nos mais rebeldes e comprometidos com o pecado. Ainda outras interpretações sobre o assunto são possíveis. Por exemplo, o teólogo holandês Hendrikus Berkhof projeta nossa realidade atual cristã de volta à ordem da criação, argu75 WITTMER, Heaven, pp.226-227. 76 HOEKEMA, Created, p.72. 77 OS CÂNONES DE DORT. São Paulo: Cultura Cristã, 1998. §3-4.4. 21 mentando que não conhecemos outro tipo de ser humano além do homem atual com sua natureza corrompida. Para ele, o pecado não foi apenas um passo errado de nossos pais mais remotos, mas está enraizado profundamente no temerário ser chamado homem, em sua estrutura como criatura.78 Para ele, em sua concepção Adão era simul justus et peccator.79 Outro teólogo, Otto Weber, argumenta de forma similar que, quanto ao estado de integridade e ao estado corrupto da natureza humana, “não falamos destes dois estados como condições históricas que se seguem uma a outra.”80 Contrariando o ensino clássico do Cristianismo, estes autores sugerem que estes dois estados são e sempre foram realidades coexistentes. Esta compreensão dialética existencialista do homem propõe a simultaneidade da retidão original e da corrupção presente, sendo a retidão original uma potencialidade que não se cumpre no homem criado, mas da qual temos consciência como nossa origem e nosso destino.81 Contra isso é importante salientar que é errado dizer que ‘errar é humano’. O erro não é intrínseco à humanidade, mas pertence à humanidade pecaminosa. A vida humana não foi sempre defeituosa, e um dia será novamente sem falhas. Somos remíveis precisamente porque não somos originalmente nem inerentemente corruptos.82 O descarte de um estado de integridade original e da Queda como fato histórico e posterior à criação afeta nossa percepção de quem somos e do que fomos chamados a ser. Finalmente, cabe ressaltar aqui dois exemplos de interpretação no outro extremo. A Confissão Escocesa de 1560 afirma sucintamente que, pela transgressão original, a imagem de Deus no ser humano foi “totalmente desfigurada”,83 indicando sua completa aniquilação. Indo ainda além, o teólogo luterano Matthias Flacius Illyricus (1520-1575) afirmou na Confissão de Frankfurt que o pecado se tornou a substância dos seres humanos após a Queda. Em sua análise sobre as confissões reformadas, Jan Rohls explica a posição de Flacius: o pecado efetua não apenas uma mudança qualitativa, mas uma mudança que afeta a natureza, uma mudança substancial, no sentido de que os seres humanos são transformados de imagem de Deus para a imagem do diabo.84 Obviamente, esta posição extremada foi rejeitada por diversas outras confissões reformadas.85 O 78 BERKHOF, Hendrikus. Christian faith. Grand Rapids: Eerdmans, 1979. p.189. 79 Frase em latim criada por Martinho Lutero, que indica a condição do cristão de ser simultaneamente justo (isto é, justificado por Cristo) e pecador (ainda não totalmente liberto do pecado). 80 WEBER, Otto. Foundations of dogmatics. Grand Rapids: Eerdmans, 1981. 2 vols. v.1. p.580. 81 Uma posição similar parece ter sido defendida por Karl Barth, que em certo trecho afirma que “nunca houve uma era dourada. Não há sentido em olhar para trás procurando por uma. O primeiro homem foi imediatamente o primeiro pecador.” (BARTH, Church dogmatics, v. 4/1, p.508). Como Barth nega a Queda como um evento real, único e histórico, alguns teólogos entendem que sua posição é de que o homem sempre foi transgressor desde o começo. Contudo, ao ler o contexto de onde tais afirmações são tiradas, compreende-se que Barth não nega que o homem foi criado bom. Certamente ele destoa da tradição reformada ao negar a historicidade da Queda e defender que o relato de Gn 3 é um relato representativo da humanidade como um todo. Mas mesmo ao afirmar isto, ele declara que “é necessário dizer que o homem mal tinha sido formado do pó da terra [...] e logo já se opôs a todas as boas coisas que Deus tinha feito por ele ao se tornar desobediente a Deus.” (ibidem). Barth argumenta contra a existência de uma era paradisíaca, pois para ele o homem pecou (e peca) assim que teve oportunidade. Para ele, o relato descreve a natureza humana e não um ser real num tempo histórico. 82 SPYKMAN, Reformational theology, p.197. 83 THE SCOTTISH CONFESSION OF FAITH. Dallas: Presbyterian Heritage Foundation, 1995. §3. O texto original usa a expressão “utterly defaced”. 84 ROHLS, Reformed confessions, p.78. 22 ser humano continua sendo imagem de Deus, muito embora esta tenha sido fortemente distorcida pelo pecado. Ao concluirmos a análise das consequências da péssima escolha feita pelos nossos primeiros pais neste capítulo, ficamos com uma dupla certeza. Primeiramente, a certeza de que o ser humano não deixou de ser a imagem de Deus após a Queda nem perdeu qualquer aspecto dela. Continuamos sendo espelhos que visam refletir Deus. Em segundo lugar, a certeza de que o pecado desfigurou, corrompeu e manchou cada mínimo detalhe da existência humana, danificando de modo especial sua habilidade de se relacionar com o Criador, com outros seres humanos, e com o restante da criação. O espelho foi quebrado e manchado, e agora pode apenas apresentar uma imagem de Deus com grande distorção. 85 Contudo, incrivelmente continua sendo defendida por alguns teólogos atuais, conforme recente artigo do pastor presbiteriano irlandês Angus Stewart para o British Reformed Journal. 23 CAPÍTULO 3: IMAGEM RESTAURADA Diante desta distorção introduzida pelo pecado de nossos pais, a Bíblia aponta para uma solução planejada antes da fundação do mundo pelo Deus Triúno. Em Cristo Jesus, o próprio Deus veio restaurar o nosso acesso à sua presença. Investigaremos neste capítulo esta obra de restauração de espelhos que vem da parte do Senhor Deus, enfatizando o duplo processo pelo qual ela acontece em nós: a transformação pelo contemplar e a transformação pelo refletir. Um Processo Contínuo Não é preciso detalhar aqui a maravilhosa vitória sobre o pecado por meio da vida, morte e ressurreição de Cristo Jesus, o Deus encarnado. Basta-nos lembrar por meio desta vitória Deus reconciliou consigo o mundo e rasgou o véu que nos separava de sua presença (Hb 10:1922). Mesmo sendo ainda espelhos manchados, podemos adentrar no Santo dos Santos por meio deste novo e vivo acesso (Rm 5:1-2; Ef 2:17-18) para contemplar a face do Pai. Temos esta liberdade porque o Pai, em seu trono, não olha para nossa reflexão distorcida de sua imagem, mas olha para nós através de Jesus. Jesus é um filtro imaculado que é colocado à frente de nosso espelho imperfeito. Com este filtro aplicado sobre nós, Deus não vê as manchas de nosso espelho, mas nos vê como seremos um dia glorificados. É interessante salientarmos que esta metáfora do espelho não surgiu com Calvino, mas já está presente no texto bíblico da carta de Paulo aos coríntios: E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito. (2Co 3:18, ARA). Este importantíssimo texto nos dá a chave para entendermos o processo divino de restauração de sua imagem em nós. Paulo está declarando que, na medida em que contemplamos a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na sua imagem. Em outras palavras, o apóstolo ensina que no processo contínuo de contemplarmos a glória divina, vamos assimilando esta glória em nossas vidas e isto nos leva a ficarmos cada vez mais semelhantes ao nosso Criador. Este processo de transformação, também chamado em nossas teologias de santificação, não é algo pontual em nossas vidas. O texto citado acima (2Co 3:18) nos dá base para esta afirmação, pois a forma verbal usada em “contemplando” (κατοπτριζόμενοι) – um particípio presente – enfatiza a continuidade da ação a realizar. Portanto, a santificação não ocorre instantânea e totalmente no momento de nossa rendição aos pés do Senhor Jesus. Embora passemos imediatamente a ser novas criaturas (2Co 5:17), não acordamos na manhã seguinte completamente transformados e livres de todas as nossas deficiências emocionais, mentais e físicas, como bem o sabem aqueles que já são cristãos. Calvino explica que o propósito do Evangelho é este: que a imagem de Deus, que fora ofuscada pelo pecado, possa ser aplicada novamente sobre nós, e que o avanço desta restauração possa ser contínuo em nós durante toda a nossa vida, porque Deus faz sua glória brilhar em nós pouco a pouco.86 Vemos então que este é um processo contínuo e progressivo que perdurará por toda a nossa existência neste corpo corrompido, até recebermos o prometido corpo incorruptível (1Co 15:42-44). 86 CALVINO, João. The second epistle of Paul to the Corinthians, and the epistles to Timothy, Titus and Philemon. Grand Rapids: Eerdmans, 1979. Comentário ao texto de 2Co 3:18. 24 Mas o texto nos informa mais do que isso, como veremos a seguir. Cooperando com o Espírito Santo Outro ponto que fica claro ao final deste texto em 2Co 3:18 é que esta é uma obra do “Senhor, o Espírito” Santo. É ele quem retira progressivamente as manchas de nosso espelho, as nossas deformidades congênitas e adquiridas, até alcançarmos a perfeição na semelhança ao espelho perfeito, Jesus. Embora nossa transformação esteja sendo operada pelo Espírito de Deus, diversos versos nos conclamam a sermos ativos em nossa imitação do Senhor: Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados. (Ef 5:1, ARA) Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo. (1Co 11:1, ARA) Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade. (Fp 2:12-13, ARA). Não é, pois, uma tarefa passiva. Embora seja Deus “quem efetua em vós tanto o querer como o realizar”, o imperativo é para que desenvolvamos a nossa salvação, sem sermos indolentes, mas buscando efetiva cooperação com a operação do Espírito Santo. Uma das melhores maneiras de cooperarmos com Deus em sua operação transformadora em nossas vidas é por meio de pararmos de sujar o espelho que o Espírito Santo está limpando. Temos esta pecaminosa tendência de voltar aos mesmos erros e manchar de novo o espelho em áreas que já tinham sido limpas. Precisamos tirar o nosso eu do caminho, como diz Clive Lewis, o famoso teólogo anglicano: É algo parecido com isto com Cristo e conosco. Quanto mais tiramos o que agora denominamos “nós mesmos” do caminho e deixamos que ele assuma nossas vidas, tanto mais verdadeiramente “nós mesmos” nos tornamos.87 Ou seja, nossa principal colaboração está em não sucumbir à natureza corrompida do velho homem, mas nos revestirmos continuamente pela graça de Deus da mente de Cristo. De qualquer modo, é importante lembrarmos de que é Deus quem garante o sucesso desta empreitada. Não temos forças em nós mesmos para agir como devíamos. Se nossa santificação dependesse de nossos parcos esforços, estaríamos clamando como Paulo: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm 7:24). Mas ele continua neste mesmo texto apontando a solução: Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado. (Rm 7:25, ARA). E ainda o mesmo Paulo nos assegura a perseverança de Deus em sua obra em nós: Estou plenamente certo de que aquele que começou a boa obra em voz há de completá-la até o dia de Cristo Jesus. (Fp 1:6, NVI). E para alcançar este objetivo, o Senhor usa todas as coisas e todas as circunstâncias das nossas vidas, alegres ou tristes, boas ou ruins, como já vimos em Rm 8: 87 LEWIS, Clive Staples. Mere Christianism. Em: The complete C. S. Lewis signature classics. Nova Iorque: HarperOne, 2007. p.175. 25 Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, e dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. (Rm 8:28, NVI).88 Percebe-se, então, que o Senhor Deus está no controle de tudo o que nos acontece. Embora transcendente, ele não é um Deus ausente. Muitas vezes não entendemos porque algo acontece conosco, mas o que Paulo afirma é que Deus usará tal situação para o nosso crescimento. Isto pode transformar algo em nós, em outros ao nosso redor, ou ainda em pessoas distantes que ouçam sobre o que aconteceu. É difícil entender os caminhos de Deus, mas podemos confiar na sua sabedoria, amor e perseverança em cumprir seu propósito para nós. Contemplando o Deus Triúno Para cumprirmos nosso propósito como seres humanos, precisamos viver em contemplação contínua do Senhor. É cansativo constatar o óbvio, mas o espelho só reflete aquilo que está na sua frente! Isto não quer dizer deixar de viver ou executar as atividades cotidianas para estar em uma meditação profunda, mas significa viver coram Deo, como diziam os reformadores. Significa estar sem cessar na presença do Pai, em tudo o que fazemos. Só assim conseguiremos cumprir a ordem paulina: Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus. (1Co 10:31, ARA). Precisamos ser constantemente expostos à radiante luz do Senhor para que possamos brilhar diante dos outros. Além de contemplarmos o Pai, precisamos manter o nosso olhar em Jesus (Hb 12:2), Autor e Consumador da nossa fé. Além de abrir o acesso à presença do Pai por meio de sua obra redentora, Jesus é o espelho perfeito, isto é, a expressão exata e imagem perfeita do Pai (Cl 1:15; 2Co 4:4; Hb 1:3). Por isso, para conhecermos quem Deus é e o que ele faz, basta-nos estudar quem é Jesus e sermos como ele. É o que afirma o teólogo Donald McKim: Nosso modelo para o que significa ser “imagem de Deus” é Jesus Cristo. ... Ele é quem nos mostra mais completamente o que significa viver no relacionamento que a imagem divina implica. ... Se queremos ver o que significa ser “verdadeiramente humano”, olhamos para Jesus Cristo. Ele encarnou a verdadeira humanidade e nele a “imagem de Deus” brilha mais claramente.89 Com ele concorda Hoekema: Não há melhor modo de vermos a imagem de Deus do que olhando para Jesus Cristo. O que vemos e ouvimos em Cristo é o que Deus planejou para o homem.90 Como perfeito Mediador, Jesus nos revela o Pai (Lc 10:22; Jo 12:45; 14:9) e ao mesmo tempo nos revela como nós realmente devemos ser como seres humanos. Ele nos indica de que maneira devemos funcionar como espelhos. Afinal, ele é o arquétipo da perfeita humanidade, o segundo Adão (1Co 15:45) que não falhou em sua missão (Rm 5:12ss). Por isso, Lewis declara que: Jesus veio a este mundo e se tornou um homem de modo a disseminar aos outros homens o tipo de vida que ele tem – por meio do que denomino “boa 88 Grifos meus. A NVI traduz melhor que a ARA o implícito agente divino neste verso. Embora ambas as traduções sejam possíveis a partir do texto grego, o contexto aponta mais claramente para a afirmação de que Deus está no controle de todas as coisas, e só por seu poder e vontade é que elas podem cooperar para o nosso bem. 89 MCKIM, Introducing, p.62. 90 HOEKEMA, Created, p.22. 26 infecção”. Cada cristão deve se tornar um pequeno Cristo. O propósito real de se tornar cristão simplesmente não é outro.91 Nossa tarefa, portanto, é nos tornarmos “pequenos Cristos”. Esta proposta é muito relevante hoje, porque a palavra “cristão” em nossa cultura significa não muito mais que “boa pessoa”. A isto se adicione que o brasileiro em geral se considera “cristão”, mesmo que participe de outras religiões. Não há mais relação entre ser “cristão” e seguir a Cristo. É tempo de substituirmos esta designação de “cristão” pela proposta de Lewis, qualificando-nos mutuamente de “cristinhos”, pessoas que são semelhantes a Jesus no seu refletir a imagem de Deus. É fácil notar que esta é uma obra da Trindade como um todo, pois já salientamos o papel decisivo do Espírito Santo na nossa transformação contínua de glória em glória. Como seres humanos em seu verdadeiro e completo sentido, somos chamados a estar em comunhão constante com o Deus Triúno.92 Pela contemplação do Criador, somos conformados pelo Espírito à semelhança de Jesus, imagem de Deus. Transformação pelo Refletir Aprendemos deste texto paulino (2Co 3:18) que é através do contemplar a glória do Senhor (quem Deus é e o que ele faz) que somos transformados novamente à sua imagem. Entretanto, este não é o sentido único e completo do texto, como veremos agora. O verbo utilizado por Paulo no texto de 2Co 3:18 tem um outro sentido agregado muito forte. No seu sentido original, o verbo κατοπτρίζω significa “refletir como num espelho; produzir uma reflexão; refletir-se”.93 Neste sentido, a ASV, a ESV, a RSV e a NVI94 apresentam em nota de rodapé o significado complementar de “refletir” para este verbo traduzido como “contemplando”; a NIV faz o contrário, traduzindo como “refletir” e informando no rodapé a alternativa “contemplar”; já a NTLH, a ARC, e a NJB traduzem claramente como “refletir como espelho”.95 Portanto, Paulo também está afirmando aqui que somos transformados na medida em que espelhamos a glória de Deus. Este é um mesmo processo em duas frentes, pois só podemos refletir aquilo que contemplamos. Esta também é a conclusão de Hoekema ao analisar este texto: Na medida em que continuamente refletimos a glória do Senhor, somos continuamente transformados na imagem daquele cuja glória estamos refletindo.96 Daí as traduções alternativas apresentadas ao verbo. Embora o enfoque seja, a meu ver, na contemplação da glória divina, não se pode desprezar este significado atrelado ao verbo. Na verdade, o próprio processo de contemplação ou de olhar fixamente para um objetivo já incorpora uma certa irradiação involuntária dos nossos objetivos às pessoas ao redor (veja, por exemplo, a narrativa de Lc 9:51-53). Assim, nosso espelho está virado em contemplação a Deus, mas ao mesmo tempo refle91 LEWIS, Classics, p.144. 92 Veja-se BAVINCK, Reformed dogmatics, v.2, p.559. 93 ARNDT, W. et al. A greek-english lex-icon of the New Testament and other early christian literature. 3 ed. Chicago: University of Chicago Press, 1996. Verbete “κατοπτρίζω”, p.535. O substantivo correlato κάτοπτρον é o termo mais comum nos papiros da época para “espelho”. 94 Estas siglas representam, respectivamente, as traduções “American Standard Version”, “English Standard Version”, “Revised Standard Version” e “Nova Versão Internacional”. 95 As siglas NIV, NTLH, ARC e NJB representam, respectivamente, as traduções “New International Version”, “Nova Tradução na Linguagem de Hoje”, “Almeida Revista e Corrigida” e “New Jerusalem Bible”. 96 HOEKEMA, Created, p.24. 27 te a glória do Senhor para as pessoas ao nosso redor. Neste caso, o refletir é uma consequência direta do contemplar. Contemplando sem Véu Esta é uma inferência tão importante que é preciso examiná-la com um pouco mais de detalhes. Neste texto de 2Co 3:18, quando Paulo diz que estamos “com o rosto desvendado”, ele se refere a um acontecimento na história do povo de Israel que ele tinha descrito um pouco antes (no v.13). A narrativa original se encontra em Êxodo: Quando desceu Moisés do monte Sinai, tendo nas mãos as duas tábuas do Testemunho, sim, quando desceu do monte, não sabia Moisés que a pele do seu rosto resplandecia, depois de haver Deus falado com ele. Olhando Arão e todos os filhos de Israel para Moisés, eis que resplandecia a pele do seu rosto; e temeram chegar-se a ele. Então, Moisés os chamou; Arão e todos os príncipes da congregação tornaram a ele, e Moisés lhes falou. Depois, vieram também todos os filhos de Israel, aos quais ordenou ele tudo o que o SENHOR lhe falara no monte Sinai. Tendo Moisés acabado de falar com eles, pôs um véu sobre o rosto. Porém, vindo Moisés perante o SENHOR para falar-lhe, removia o véu até sair; e, saindo, dizia aos filhos de Israel tudo o que lhe tinha sido ordenado. Assim, pois, viam os filhos de Israel o rosto de Moisés, viam que a pele do seu rosto resplandecia; porém Moisés cobria de novo o rosto com o véu até entrar a falar com ele. (Ex 34:29-35, ARA). Lemos neste trecho das Escrituras que Moisés tinha passado um tempo na presença do Senhor. Ao retornar, não sabia que seu rosto espelhava a glória divina contemplada e o povo ficou atemorizado, pois o texto original afirma que raios de luz se irradiavam do rosto de Moisés.97 Assim, Moisés precisou cobrir seu rosto com um véu, para que os israelitas pudessem conversar com ele. Assim, quando Moisés contemplava o Senhor Deus, tirava o véu; mas quando falava com o povo, colocava novamente o véu. Eles não conseguiam contemplar nem o reflexo da glória do Senhor no rosto de Moisés! Por isso, em 2Co 3:18 Paulo está acentuando a diferença da nossa posição em Cristo Jesus. Pela reconciliação provida por meio de seu sangue, hoje todos nós podemos contemplar a glória do Senhor Deus diretamente. Não precisamos mais de Moisés como intermediário e nem temos a necessidade de véus para esconder a nossa emanação da glória contemplada. É como se tivéssemos sido fabricados de um material fosforescente que brilha no escuro após ter passado um tempo exposto à radiação luminosa. Mas, assim como este material, precisamos compreender este princípio e viver nossas vidas nestas duas dimensões conjuntas: a dimensão vertical da contemplação de Deus e a dimensão horizontal da reflexão desta glória a tudo e a todos que nos circundam. Neste sentido, neste processo de contemplar e refletir Deus de modo cada vez mais integral e sem interferências, estamos nos tornando cada vez mais semelhantes ao próprio Senhor Jesus, pois ele é “o resplendor da glória” divina (Hb 1:3). Reflexão Contínua Além de um contínuo crescimento na arte de refletir, o Espírito Santo também nos chama a um processo contínuo de refletir. Ou seja, o processo de contemplar é contínuo; o processo de transformação é contínuo; e também o processo de refletir precisa ser contínuo. 97 O verbo ( ָק ַרןqaran) em Ex 34:29 se deriva do substantivo ( קֶ ֶרןqeren) no sentido de “raio de luz” (cf. Hb 3:4). 28 Nosso Deus Criador não tem nos chamado para sermos imagens estáticas de sua glória. Não somos fotos de Deus, mas um live stream, uma transmissão ao vivo de Deus aos outros. Deus não quer uma representação acurada e congelada do nosso passado, como se fosse uma foto da nossa conversão ou de um encontro significativo com ele. Ele também não se contenta com sermos um vídeo tocado repetidamente que recapitula os nossos melhores momentos com ele. O que o Senhor Deus quer é que estejamos continuamente na sua presença para podermos transmitir ao vivo quem ele é e aquilo que ele faz hoje. Por isso a metáfora do espelho serve bem, pois o espelho não congela uma imagem do passado, mas reflete o presente, aquilo que está à sua frente. Só podemos ser verdadeiros espelhos se tivermos intimidade com o Senhor, se estivermos “antenados”. Ao buscar aprender das Escrituras quem Deus é e ouvir do seu Espírito onde está o seu mover nestes dias, poderemos ser imagens dinâmicas do soberano Criador em ação. Multiplicando a Imagem de Deus Finalmente, convém recordar que nosso testemunho da vida de Deus aos outros se dá tão mais facilmente quanto mais refletimos a imagem de Deus em nossas vidas. Neste sentido, a frutificação é ponto já presente na definição inicial de nossa criação à imagem de Deus. Vimos em Gn 1:26-28 a ordem para que os seres humanos se multiplicassem e enchessem a terra. Esta ordem de multiplicação depende também de nossa capacidade para refletirmos quem Deus é e repartirmos a sua vida em nós com outros. Somente porque a imagem de Deus não foi totalmente aniquilada em nós pela Queda é que podemos gerar filhos que também são seres criados para refletir Deus – ainda que reproduzamos neles apenas uma imagem completamente distorcida, como vimos no capítulo anterior. De modo semelhante recebemos ordem para nos multiplicarmos espiritualmente e reproduzir a vida de Deus que recebemos (Jo 15:8). Ser imagem de Deus, portanto, também implica em frutificar. Assim como Moisés no incidente citado acima, algo similar ocorreu com Pedro e João quando o sinédrio reconheceu que eles tinham andado com Jesus (At 4:13). Caminhar com Deus transforma nossas vidas de tal forma que leva os outros a notarem a diferença. E este precisa ser o objetivo declarado de nossa existência: representar e refletir Deus diante dos outros de tal forma que, além de glorificarem a Deus (Mt 5:16; 15:31), tenham suas vidas impactadas e sejam encorajados a buscar a restauração de suas imagens deformadas por meio de Cristo Jesus, nosso Senhor. Desta forma estaremos glorificando o Pai, ao sermos frutíferos em levar outros a buscar a vida de Deus. Manifestando a Imagem de Deus Antes de encerrar esta breve análise sobre os efeitos da obra de Jesus na imagem deformada do ser humano, devemos mencionar ao menos en passant uma posição comumente defendida na tradição reformada. Vimos no capítulo anterior como há diferentes posicionamentos a respeito dos efeitos da Queda na imagem divina comissionada ao ser humano. A partir de dois textos do Novo Testamento, os quais explicam em que consiste a imagem restaurada em Jesus, Calvino e vários teólogos reformados entendem, como já mencionamos, que a imagem de Deus abrange três áreas: conhecimento, justiça e santidade. É o que resume Bavinck em alguns pontos de sua obra: 29 A conformidade com a imagem de Deus especificamente implica em justiça e santidade. [...] A imagem de Deus se manifesta nas virtudes do conhecimento, retidão e justiça com as quais a humanidade foi criada desde o início.98 Assim, a Queda deformou a imagem de Deus em nós nestas três áreas principais, e a redenção em Cristo Jesus veio restaurá-las. O apóstolo Paulo não afirma isto de forma clara e contundente, mas permite tal inferência a partir de sua descrição do novo homem nos textos abaixo: Não mintam uns aos outros, visto que vocês já se despiram do velho homem com suas práticas e se revestiram do novo, o qual está sendo renovado em conhecimento, à imagem do seu Criador. (Cl 3:9-10, NVI). Quanto à antiga maneira de viver, vocês foram ensinados a despir-se do velho homem, que se corrompe por desejos enganosos, a serem renovados no modo de pensar e a revestir-se do novo homem, criado para ser semelhante a Deus em justiça e em santidade provenientes da verdade. (Ef 4:22-24, NVI). Paulo fala de uma renovação contínua99 no conhecimento de Deus e no modo de pensar, e associa isto com uma renovação “à imagem de seu Criador” (Cl 3:10). O apóstolo também descreve que este novo homem deve ser “semelhante a Deus em justiça e em santidade” (Ef 4:24). Unindo-se as duas declarações, é possível inferir que viver à imagem e semelhança de Deus consiste em viver em conhecimento (de Deus), santidade e justiça. De forma interessante, estes três atributos estão intrinsecamente conectados aos nossos relacionamentos básicos como seres viventes. Quanto ao nosso relacionamento com o Criador, precisamos de conhecimento íntimo e contínuo. Quanto ao nosso relacionamento com o nosso próprio ser, precisamos desenvolver santidade (pela operação do Espírito) como reflexo do nosso Deus que é santo. Quanto ao nosso relacionamento com a humanidade e todo o mundo criado, precisamos desenvolver justiça como reflexo do nosso Deus que é justo e estabelece justiça na terra. Embora apresentado de modo diferente, o conceito é o mesmo defendido neste capítulo. Ao contemplarmos continuamente o glorioso Criador passamos a conhecê-lo com intimidade. Neste processo de transformação de glória em glória, somos santificados pelo Espírito, isto é, desenvolvemos nossa santidade – a qual pode também ser definida como eu me tornando mais humano e mais semelhante a Jesus. Ademais, ao refletirmos continuamente a glória do Criador, espelhamos seu caráter justo e cooperamos com ele na implantação de seu reino e de sua justiça (Mt 6:33) – a qual também pode ser definida como meu movimento em propiciar ao outro a oportunidade de se tornar mais humano e mais semelhante a Jesus. Este processo de crescimento no conhecimento de Deus, santidade e justiça irá se completar quando adentrarmos no estado de glorificação. Sobre isto trataremos agora. 98 99 BAVINCK, Reformed dogmatics, v.2, pp.532 e 557. Continuidade indicada pelo uso do particípio presente ἀνακαινούμενον em Cl 3 e pelo uso do infinitivo presente ἀνανεοῦσθαι em Ef 4. 30 CAPÍTULO 4: IMAGEM GLORIFICADA O propósito de Deus para nós como espelhos não se completa em sua obra de restaurar nossa capacidade de refletir sua glória. Este foi um passo necessário e preparado antes da fundação do mundo devido à onisciência divina sobre nossas escolhas pecaminosas. O plano completo de Deus, contudo, vai mais além, como veremos neste capítulo. Aperfeiçoando o Espelho O propósito final de Deus para nós é o de nos aperfeiçoar ao ponto de não podermos mais manchar o espelho. Mesmo a imagem original de nossos primeiros pais ainda não era completa e precisava também ser aperfeiçoada. Eles ainda não estavam no final da estrada, mas tinham muito a crescer no conhecimento de Deus. Neste sentido, o teólogo reformado Bavinck afirma em diferentes trechos de sua obra: Adão, neste sentido, estava no começo de sua “carreira”, não no fim. Sua condição era provisional e temporária, e não poderia permanecer como estava. Ou passava a uma glória maior ou para o pecado e a morte. [...] Sua relação com Deus era tal que ele poderia gradualmente crescer na comunhão com Deus, mas também poderia ainda cair dela.100 Ainda, todos reconhecem que Adão até então não possuía a mais elevada humanidade, uma verdade implícita no mandamento probatório, na liberdade de escolha, na possibilidade de pecado e morte.101 A humanidade antes da queda, embora criada à imagem de Deus, ainda não possuía a bênção mais alta possível. [...] Para os reformados, ... o mais alto tipo de vida é a liberdade material que consiste na incapacidade de errar, pecar ou morrer. [...] A imagem de Deus, portanto, tinha que ser completamente desenvolvida – deste modo superando e anulando esta possibilidade de pecado e morte – e reluzir em glória imperecível.102 Portanto, embora Adão tenha sido criado em um estado de integridade, Deus planejou que ele crescesse até um estado de glória. Deus declarou que sua criação era muito boa (Gn 1:31), mas não afirmou que era perfeita em tudo. Havia espaço para desenvolvimento. Podemos dizer, explicando em outras palavras, que o ser humano foi criado como uma bateria recarregável que vem de fábrica com carga mínima. Adão precisava ficar “plugado” em Deus para ter sua carga aumentada até o máximo de sua capacidade. Contudo, a história relata que Adão resolveu se “desplugar” da sua fonte. Sua escolha alterou o que era uma linha de crescimento reta para uma linha com um significativo desvio que precisou ser corrigido. A redenção, portanto, nos coloca de volta na reta de crescimento transformativo; o alvo para o ser humano restaurado é atingir “um nível mais alto do que ele tinha antes da queda – um nível aonde pecado e incredulidade serão impossíveis.”103 Este processo pode ser ilustrado desta forma: 100 BAVINCK, Reformed dogmatics, v.2, pp.564-565. 101 Ibidem, p.566. 102 Ibidem, pp. 572-573. 103 HOEKEMA, Created, p.26. 31 Figura 2 – Processo de Desenvolvimento da Imagem de Deus Aurélio Agostinho, bispo de Hipona na África do século V e o mais influente pai latino da Igreja, explica esta transição entre estados nos seus escritos. Ele propôs uma clara distinção entre os diversos estados da natureza humana diante do pecado.104 Estes estados correspondem aos estágios da imagem de Deus que estamos investigando neste trabalho, como o demonstra a tabela abaixo: Estado da imagem Estágio da história Estado da natureza humana Imagem Criada Criação podia não pecar (posse non peccare) Imagem Caída Após a Queda não pode deixar de pecar (non posse non peccare) Imagem Restaurada Após a Redenção pode não pecar (posse non peccare) Imagem Glorificada Consumação não poderá pecar (non posse peccare) Esta tabela salienta que a redenção nos leva a um estado semelhante ao do homem inicialmente criado (embora não mais inocente), e de volta ao caminho rumo ao estado de glória. É importante enfatizarmos este ensino doutrinário diante da realidade evangélica brasileira. Hoje em dia, muitos grupos cristãos enfatizam apenas a necessidade da salvação em Cristo Jesus, mas não instruem as pessoas de que a reconciliação alcançada por Jesus entre nós e o Criador é apenas o começo (ou ainda melhor, o recomeço) da nossa caminhada. Deus tem nos chamado como seu povo para sermos continuamente transformados e aperfeiçoados no refletir a sua glória até alcançarmos o estado final projetado por ele. Espelhos Gloriosos Nesta caminhada com Deus, ao entrarmos no estado de glória na consumação dos séculos, seremos finalmente manifestados como semelhantes a Jesus, como nos alertam, além do texto já estudado em Rm 8:29, estes outros textos: Porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória. (Cl 3:3-4, ARA). 104 Cf. AGOSTINHO, A Cidade de Deus. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. 7 ed. 2 vols. §22.30. 32 Pois a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas. (Fp 3:20-21, ARA). Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é. (1Jo 3:2, ARA). Assim, estamos sendo conformados à imagem de Jesus e sendo transformados à sua semelhança para novamente refletirmos corretamente a imagem de Deus, como vimos antes. E quando Jesus se manifestar em sua gloriosa volta, nos tornaremos finalmente semelhantes a Jesus e imagens perfeitas do Senhor Deus. Esta transformação final à semelhança completa de Jesus acontecerá porque poderemos enfim “vê-lo como ele é” (1Jo 3:2). Como já demonstramos pelo texto de 1Co 3:18, ao contemplar sem empecilhos a glória de Deus face a face seremos inevitavelmente transformados e glorificados. É uma via de mão dupla, pois também só poderemos contemplar a Deus face a face quando tivermos sido glorificados, como bem nos lembra Calvino em seu comentário ao texto de 1Jo 3:2: Mas assim que a imagem de Deus é renovada em nós, temos olhos preparados para ver Deus. E agora, com certeza, Deus começa a renovar em nós a sua própria imagem, mas ainda em pequena medida! Somente quando formos despojados de toda a corrupção da carne seremos capacitados a contemplar Deus face a face.105 Assim sendo, nosso estado de glória nos permitirá habitarmos para sempre na presença do Senhor sem as limitações impostas pelo nosso ser corrompido. E, como nos alerta Paulo em 1Co 2:9, não fazemos ideia daquilo que Deus tem reservado para nós neste glorioso dia. Diversidade de Reflexões Outro ponto a salientar dentro do conceito de imagem glorificada é que, ainda que a fonte de glória que estamos contemplando e refletindo seja a mesma, nossas reflexões jamais serão iguais. Cada um de nós foi criado de uma maneira única e especial. Fomos manufaturados um a um, como já mencionamos antes. Assim, temos uma combinação singular de qualidades e dons, de características físicas, mentais, emocionais e espirituais. E isto nos diferencia dos demais seres humanos. É fácil perceber isto em uma família com gêmeos; embora tenham um código genético similar e se pareçam em muitas coisas, logo vão criando suas identidades pessoais e se tornando únicos aos nossos olhos. Note-se que esta questão nada tem a ver com a nossa natureza caída. Não somos diferentes uns dos outros porque o pecado entrou no mundo. Fomos criados deste modo; cada ser humano é singular. Não fomos criados para sermos ervilhas iguais num potinho, mas para sermos indivíduos que refletirão de uma maneira toda especial quem Deus é e aquilo que ele faz. Desta forma, mesmo quando formos glorificados e o Senhor nos limpar de todas as nossas impurezas e falhas, de todas as manchas dos nossos espelhos, ainda assim nós não seremos iguais uns aos outros. Por que a humanidade é assim? Esta diversidade de reflexões ocorre porque nosso Deus é muito maior do que a soma de todas as imagens parciais que possamos apresentar dele como seres humanos. Um espelho, por maior que seja, apresenta apenas uma visão parcial de quem 105 CALVINO, João. The epistles of John. Grand Rapids: Eerdmans, 1979. in loco. 33 somos a cada ângulo em que nos provê uma reflexão. Assim também nós como espelhos refletimos apenas parcialmente quem Deus é. Uns refletem mais certos aspectos de Deus; outros refletem menos estes atributos mas apresentam mais completamente outros aspectos divinos. A imagem de Deus somente pode ser vista em sua profundidade e riquezas no todo da humanidade com seus bilhões de membros. Concordando com isto, Richard Mouw, teólogo reformado, diz que não há um indivíduo ou grupo humano que possa portar ou manifestar completamente tudo o que está envolvido na imagem de Deus, de modo que há um sentido no qual esta imagem é possuída coletivamente. A imagem de Deus é, assim sendo, parcelada entre os povos da terra. Ao olhar para indivíduos e grupos diferentes, temos vislumbres de diferentes aspectos da imagem completa de Deus.106 Observe-se a inferência de que diferentes povos ou grupos de pessoas manifestam diferentes aspectos de Deus. Torna-se uma interessante análise descobrir que atributos de Deus nós manifestamos particularmente em nossa nação brasileira, ou até mesmo investigar que características divinas são refletidas apenas por nosso povo para as demais nações. Contemplando Reflexos Ao considerarmos as conclusões expostas acima sobre a diversidade de reflexões de Deus e a manifestação final da glória divina em nós, precisamos apontar algumas inferências básicas. A primeira inferência é que podemos aprender um pouco sobre Deus ao nos relacionarmos com nosso semelhante, pois cada um de nós reflete a imagem divina de certa maneira. Precisamos do outro para encontrarmos o sentido final da nossa existência. Karl Barth, numa interpretação contestada por alguns, analisa em sua obra dogmática a criação do ser humano em Gn 1:27 como dois sexos complementares. Ele conclui daí que os seres humanos são a imagem de Deus justamente em sua complementaridade e existência em confrontação relacional.107 Ao viver em relacionamento com os outros, o homem reflete a eterna comunhão da Trindade, e reflete tanto melhor quanto mais se aproxima da unidade demonstrada por Jesus (Jo 17:21). De qualquer forma, é senso comum admitir que fomos criados como seres relacionais (Gn 2:18), pois como já dizia o poeta e pastor John Donne: “nenhum homem é uma ilha”.108 Somos como peças minúsculas de um grande quebra-cabeça, e só no todo conseguiremos perceber a imagem final de Deus que se forma. Por isso precisamos do outro. A segunda inferência decorrente desta diversidade e futura glorificação dos seres humanos é que isto reforça o dever de honrarmos e amarmos aos outros, sem distinção.109 O teólogo Spykman explica o que ser imagem de Deus tem a ver com a nossa orientação de vida como cristãos: 106 MOUW, Richard J. When the kings come marching in. Grand Rapids: Eerdmans, 1983. p.47. 107 Cf. BARTH, Church Dogmatics, 3/1, p.195. 108 DONNE, John. Devotions upon emergent occasions. Texto de domínio público, publicado em 1624. Meditação 17. 109 O que, por sua vez, também implica em não os amaldiçoarmos nem feri-los. Tirar a vida de um ser humano fere ao próprio Deus, pois é sua imagem (Gn 9:6). Amaldiçoar ao outro é amaldiçoar a Deus em cuja imagem este ser humano foi criado (Tg 3:9) Veja-se HOEKEMA, Created, pp.16-20. Em seu comentário a Gn 9:6, Calvino afirma que “ninguém pode injuriar seu irmão sem ferir ao próprio Deus” (CALVINO, João. Commentary on the first book of Moses called Genesis. Grand Rapids: Eerdmans, 1948. In loco). 34 A ideia bíblica de imago Dei é um conceito relacional e referencial. Tem um sentido dinâmico, ativo e funcional. Deus nos criou em sua imagem para que possamos cumprir uma missão. Portanto, a definição da Bíblia é ad extra. Não descobrimos a significância de sermos imagem de Deus ao olhar para nosso interior, mas sim ao olhar para fora de nós mesmos. Somos chamados para ser e fazer: refletir Deus é fazer sua vontade e servir os outros.110 Assim como Deus é amor e se expressa num relacionamento de serviço e missão a outros seres criados por ele, também nós precisamos imitá-lo e refleti-lo nisto. Precisamos estar conscientizados de que nosso reflexo da glória divina faz parte desta missão do Deus Triúno à humanidade. É certo que às vezes precisamos procurar com mais dedicação onde está refletida a imagem de Deus em certas pessoas, pois são espelhos quase totalmente manchados e quebrados. Há pessoas tão deformadas pelo pecado que temos dificuldade em reconhecê-las como seres humanos. Todavia, como sugere Calvino: Que nos lembremos de que não se deve atentar para a maldade dos homens; ao contrário, deve-se ter em mira a imagem de Deus neles, a qual, cancelados e apagados seus delitos, nos alicia a amá-los e abraçá-los com sua beleza e dignidade.111 A imagem de Deus é intrínseca à nossa existência como seres humanos. Assim, ainda que distorcida, a imagem de Deus persiste em cada vida humana e seu completo desabrochar está ali latente, aguardando para manifestar de uma forma singular a glória do seu Criador. Nosso dever de honrar e amar aos outros não depende do que eles são em determinado momento da vida, nem da sua potencialidade de contribuição à sociedade, mas daquilo que podem e irão se tornar conforme o propósito divino. Neste sentido, em uma de suas obras, Lewis argumenta que É muito sério viver numa sociedade constituída por possíveis deuses e deusas, lembrar que a mais desinteressante e estúpida das pessoas com quem falamos pode, um dia, vir a ser alguém que, se a víssemos agora, nos sentiríamos fortemente impelidos a adorar; ou (quem sabe?) a personificação do horror e da corrupção só vistos em pesadelos. Passamos o dia inteiro ajudando-nos uns aos outros a, de certo modo, encontrar um desses dois destinos. É à luz dessas possibilidades esmagadoras e com o devido temor e circunspeção que devemos orientar as nossas relações com os outros; toda amizade, todo amor, toda recreação, toda política. Não existe gente comum. Você nunca falou com um simples mortal. As nações, as culturas, as artes, as civilizações – essas são mortais, e a vida delas está para a nossa como a vida de um mosquito. Mas é com criaturas imortais que brincamos, trabalhamos ou casamos, e a elas que desdenhamos, censuramos ou exploramos – horrores imortais ou esplendores perenes.112 Ao descrever a forma final dos seres humanos – glorificados ou totalmente corrompidos – Lewis sacode a nossa letargia quanto ao relacionamento com o próximo. Afinal, “passamos o dia inteiro ajudando-nos uns aos outros a, de certo modo, encontrar um desses dois destinos”. E, por isso, devemos tratar os outros da melhor forma possível e não como simples mortais. E se nos esforçarmos em identificar estas fagulhas da glória divina na vida de cada semelhante, cresceremos no conhecimento do nosso Senhor e na admiração da sua criatividade, do seu amor e da imensidão de seu poder. Ao contemplarmos os multiformes reflexos da glória divina em cada ser humano, precisamos olhar para o nosso próximo com o mesmo olhar do Deus Criador. Deus não se deixa aba110 SPYKMAN, Reformational theology, p.228. 111 CALVINO, Institutas, §3.7.6. 112 LEWIS, Clive Staples. Peso de glória. São Paulo: Vida Nova, 1993. p.18. 35 ter com a camada de sujeira por sobre nossos espelhos. Quando entramos em sua presença no tempo que se chama hoje, o Pai nos aceita por termos sido restaurados pela obra de Cristo Jesus e porque seremos completamente glorificados pela obra transformadora e contínua do Espírito Santo. Quando o Senhor terminar seu trabalho na vida dos eleitos, cada um deles será uma imagem de Deus gloriosa e radiante. 36 CONCLUSÃO Esta monografia buscou analisar o propósito principal do Criador para o ser humano, que a Palavra de Deus e os símbolos de fé reformados indicam ser “glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”. Procuramos demonstrar, através da análise de textos bíblicos e da consideração de escritos teológicos de linha reformada, que este propósito se cumpre em nossa existência como imagem de Deus. Além disso, argumentamos que nossa criação à imagem divina se assemelha às funções de um espelho, pois fomos criados para refletir Deus e manifestar a glória do Criador. Ser imagem de Deus, afirmamos, é refletir quem Deus é e o que Deus faz, irradiando sua glória diante do universo criado. Diante do relato bíblico que nos apresenta uma história linear de transformações nesta imagem divina, discutimos em diferentes capítulos este processo e seus estágios, apontando diversas implicações de ordem prática para a vida cristã. Em poucas palavras, defendemos que, como imagem de Deus, fomos criados com integridade, fomos deformados pela desobediência, estamos sendo restaurados por Deus e seremos glorificados ao final dos tempos. No capítulo inicial, investigamos como o homem era a imagem de Deus no momento da criação. Discutimos a possível diferença entre os termos “imagem” e “semelhança”, hoje não mais defendida pelos eruditos. Averiguamos outro debate, que persiste até hoje, quanto à identificação da imagem divina com atributos (proposta substancialista) ou com funções (proposta relacional) do ser humano; outras propostas mistas subsistem e foram comentadas. Examinamos como este propósito de refletir Deus se encaixa bem com a ordem para dominar e cultivar a criação. Finalmente, arguimos que nossa reflexão do Criador deve apresentar certas características, tais como fidelidade e profundidade, dinamicidade e auto-orientação, amplitude e integralidade. Concluímos o capítulo demonstrando que nossa existência é teocêntrica e que só ao conhecer experimentalmente o Criador alguém pode verdadeiramente conhecer a si mesmo. O segundo capítulo esquadrinhou as consequências da entrada do pecado na criação sobre o homem como imagem divina. Após descrevermos a distorção da imagem pela desobediência de nossos primeiros pais, descrevemos a propagação desta imagem deformada aos demais seres humanos pela multiplicação natural da espécie. A seguir, expusemos a doutrina reformada da depravação total e detalhamos suas amplas implicações. Finalizamos o capítulo analisando o debate entre os teólogos sobre o que foi deformado na imagem original de Deus. Argumentamos que a imagem divina não foi destruída, mas foi deformada na natureza humana atual tanto no sentido estrutural quanto no funcional, com diferentes graus desta corrupção manifestos em cada ser humano. O capítulo 3 expôs as consequências da obra de reconciliação de Deus com o mundo. Ao permitir livre acesso à presença do Pai, esta reconciliação gera transformação de nossas vidas pelo contemplar e pelo refletir. O exame do texto bíblico de 2Co 3:18, entre outros, permitiu a conclusão de que a nossa santificação é contínua e gradual, é efetuada pelo Espírito Santo com nossa cooperação, e acontece por meio de uma vida na presença do Deus Triúno que se reflete continuamente aos que estão ao nosso redor. Encerramos o capítulo incentivando a frutificação como parte do processo do refletir Deus e explicando a conexão entre buscar conhecimento, santidade e justiça em Deus e nossos relacionamentos restaurados com o Criador, com nós mesmos, e com a criação. O último capítulo continua a análise das transformações do homem como imagem de Deus e investigou o seu estágio final. Após termos estabelecido que o estado de glorificação implica em algo mais do que foi alcançado inicialmente no estágio da restauração, esclarecemos 37 que esta transformação final consiste em semelhança completa com Jesus, a imagem perfeita de Deus, sem perda da enorme diversidade de reflexões que nos caracterizam como imagem divina. Encerra-se o capítulo com a ponderação de duas inferências derivadas destes conceitos para nosso relacionamento para com o próximo. A título de conclusão, revisemos algumas importantes implicações para nossos relacionamentos mencionadas nestes capítulos. Termos sido criados à imagem e semelhança do Criador afeta, acima de tudo, o nosso relacionamento com o próprio Deus, pois implica em contemplá-lo e viver em sua presença para poder refletir sua glória aos outros. Sermos imagem de Deus também afeta o relacionamento de cada um de nós consigo mesmo, pois entendemos que fomos criados com um propósito de glorificar ao Criador, que deformamos a imagem original, mas que estamos sendo transformados continuamente para sermos semelhantes a Cristo Jesus, o que ocorrerá de forma completa na consumação dos tempos. Além disso, este conceito traz consequências para o nosso relacionamento com os outros seres humanos, pois nós devemos amar e honrar ao nosso semelhante que também é imagem divina, e devemos testemunhar a ele daquilo que nós contemplamos na presença de Deus como seus espelhos. Finalmente, a compreensão de sermos chamados para refletir Deus implica em agirmos sabiamente como seus justos e amorosos representantes em nosso relacionamento com o restante da criação. Ao analisarmos o propósito principal do Criador para a humanidade, explicamos neste trabalho que o propósito exposto nos símbolos de fé reformados de glorificar a Deus e gozá-lo para sempre é satisfeito por meio de refletirmos continuamente a glória divina em nossa existência como imago Dei. E ao fazermos isto, nós gozamos Deus porque nos sentimos completos ao cumprir a finalidade de nossa vida. 38 BIBLIOGRAFIA A CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. 4 ed. AGOSTINHO, A Cidade de Deus. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. 7 ed. 2 vols. ARNDT, William; GINGRICH, F. W.; DANKER, F. W.; BAUER, W. A greek-english lexicon of the New Testament and other early christian literature. 3 ed. Chicago: University of Chicago Press, 1996. BARTH, Christoph. God with us: a theological introduction to the Old Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1991. BARTH, Karl. Church Dogmatics. Edinburgh: T. & T. Clark, 2004. 14 vols. BAVINCK, Herman. Reformed dogmatics. 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