FICHA DE IDENTIFICAÇÃO Ana Georgina Peixoto Rocha CPF: 477873685-00 Pesquisadora/bolsista SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Economista / Mestra em Administração pela Escola de Administração – UFBA. E-mail: [email protected] Ana Mônica Hughes de Paula CPF: 628569955-00 Pesquisadora/bolsista SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Economista / Mestra em Economia pela Faculdade de Ciências Econômicas – UFBA. E-mail: [email protected] Endereço para correspondência Av. Luiz Viana Filho, 435 – 4ª avenida, 2º andar – CAB Salvador / BA. 41.750-300 Tel. comercial (71) 3115-4709 / 3115-4823 Grupo de pesquisa: Instituições e Organizações na Agricultura Forma de apresentação: apresentação com o presidente da sessão sem debatedor Participação social e políticas de desenvolvimento rural Resumo A participação social é um dos temas centrais nas atuais políticas de desenvolvimento rural. Desde a década de 1990, a importância econômica e social da agricultura familiar tem sido crescentemente reconhecida, haja vista a implementação de políticas públicas destinadas ao seu desenvolvimento. Essas políticas têm criado mecanismos institucionais que incentivam a participação dos agricultores. Esse trabalho apresenta algumas reflexões sobre o processo de participação social nas políticas públicas de desenvolvimento rural, buscando discutir a concepção de participação dos programas e as limitações para a efetiva participação dos agricultores. O Produzir, programa de combate à pobreza no meio rural do estado da Bahia, é utilizado como referência para discutir a construção do processo organizativo nas comunidades. Palavras-chave: Políticas Públicas. Desenvolvimento Rural. Participação Social. Introdução É inegável que o meio rural tem uma importância significativa para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro. A extensão de terras e o potencial dos recursos naturais, a vitalidade do agronegócio, o número de agricultores familiares e os conflitos de terra constatam que políticas voltadas para a agricultura e o desenvolvimento rural podem ser cruciais na busca de crescimento econômico e sustentabilidade social. Um dos temas centrais nas políticas de desenvolvimento rural é a participação social. Desde a última década do século XX, as políticas públicas voltadas para o meio rural têm criado mecanismos institucionais que incentivam a participação dos agricultores, como, por exemplo, os conselhos municipais, parte de um contexto em que ganham importância crescente questões como descentralização e novas relações entre Estado e sociedade. Esse artigo tem como objetivo analisar a participação social nas políticas de desenvolvimento rural, trazendo reflexões sobre a concepção de participação das políticas públicas, os seus avanços e recuos, bem como as principais limitações para uma efetiva participação dos agricultores. Um dos principais programas do estado da Bahia no setor rural – o Programa Produzir, coordenado pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR) – é utilizado como referência para discutir a construção do processo organizativo nas comunidades. Diversas pesquisas têm buscado investigar a participação dos agricultores nos conselhos municipais de desenvolvimento rural e, particularmente, na implementação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Nessa linha, um trabalho realizado pela SEI para a Oficina Regional da FAO para a América Latina e o Caribe sobre “As reformas de descentralização e o desempenho dos serviços públicos agropecuários: o caso da região Nordeste” apresentou resultados interessantes sobre a importância das instituições locais e da implementação de novas formas de participação para um melhor desempenho dos serviços públicos agropecuários. Considera-se que o conhecimento dessa nova realidade é um elemento essencial para a melhoria dos resultados das políticas públicas. Agricultura familiar como unidade de análise Fazendo uma análise da agricultura no Brasil até a década de 1980, essa era concentrada na grande propriedade, com produção em larga escala e destinada ao mercado interno e externo. A partir dos anos de 1990, a agricultura familiar começa a ganhar importância, visto que a produção baseada em forte aporte tecnológico e no uso de grandes extensões de terra ameaça o emprego agrícola. Dessa forma, várias definições buscam abranger o significado da agricultura de base familiar para o desenvolvimento socioeconômico do mundo rural brasileiro. Tal importância está relacionada à geração de emprego (agrícola e não-agrícola), produção de alimentos, renda e ao desenvolvimento local, sendo que estes constituem os principais elementos do equilíbrio no meio rural, tornando-o dinâmico e capaz de manter a sua população. A prova da importância que a agricultura vem adquirindo no país comprova-se nos estudos que abordam o tema. Os trabalhos realizados sobre a agricultura familiar ainda divergem conceitualmente. Os agricultores familiares já foram denominados de colonos, camponeses, pequenos produtores, dentre inúmeras definições. Muitos dos conceitos ou classificações diferem entre si em virtude do objetivo para o qual foram criados ou pelos dados disponíveis existentes para delimitá-los. A dificuldade teórica na construção de conceitos e categorias que representem a diversidade existente no campo brasileiro, na verdade, não é recente. O caminho percorrido pelos estudos reflete as transformações existentes na própria sociedade, e particularmente no meio rural. O debate nos anos de 1950/60 focalizava as especificidades do desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira e encontrava na noção de campesinato um conceito que viabilizava um conjunto de análises, com dimensões e níveis de abstração variados (PORTO; SIQUEIRA, 1997). Nos anos de 1970, no contexto do processo de modernização, a idéia de pequena produção procurava abranger as diversas categorias empíricas que reproduziam a natureza heterogênea do modelo agrícola. O tamanho do estabelecimento era o elemento comum, inserido nas discussões sobre a funcionalidade da pequena produção. A consolidação dos complexos agroindustriais fortalece a idéia de subordinação da pequena produção ao capital, nos anos de 1980. Segundo Porto e Siqueira (1997), ocorre uma crescente polarização no debate no decorrer desse período, definida pela pequena produção integrada (tipo agricultura familiar moderna, farmer, agricultura familiar integrada ao mercado) versus pequena produção excluída (assentados, barrageiros, sem-terra etc.). A modernização da agricultura brasileira gerou um crescente processo de diferenciação social e de tecnificação dos agricultores. O que se observa é a sua variedade e complexidade, exigindo uma classificação das formas possíveis da produção familiar. Além das definições utilizadas por instituições públicas, existem outras que vêm sendo adotadas por estudiosos do assunto, como Graziano da Silva e Ângela Kageyama, entre outros. Contudo, é possível identificar um ponto comum que diferencia a agricultura familiar das demais formas de exploração da terra: a participação da mão-de-obra familiar no processo produtivo dentro da propriedade. Para Abramovay (1997), a agricultura familiar é assim denominada quando a gestão, a propriedade e a maior parte do trabalho vêm de indivíduos que mantêm laços de sangue ou de casamento entre si. Para Wanderley (1996), a agricultura familiar representa a estrutura que é, ao mesmo tempo, proprietária dos meios de produção e assume os trabalhos no estabelecimento produtivo. Moraes (1999) identifica como familiares os estabelecimentos em que sejam predominantes as interações entre gestão e trabalho; a direção da estrutura produtiva pelos proprietários; ênfase na diversificação dos recursos; e, o trabalho familiar complementado pelo assalariado. É essa estrutura de produção familiar que tem sido alvo crescente de políticas públicas, por ser atualmente entendida como um elemento essencial no processo de desenvolvimento rural. De acordo com o estudo FAO/INCRA (2000), os agricultores familiares representam 85,2% do total de estabelecimentos rurais brasileiros, ocupam 30,5% da área total e são responsáveis por 37,9% do Valor Bruto da Produção Agropecuária Nacional. São 4.139.369 estabelecimentos familiares, ocupando uma área de 107,8 milhões de hectares. A região Nordeste apresenta o maior percentual de agricultores familiares, sendo responsável por 49,7% de todos os estabelecimentos familiares brasileiros. É também no Nordeste que se encontra o maior número de minifúndios: 58,8% dos estabelecimentos familiares têm menos de 5 hectares. Na Bahia, 89,1% do total de estabelecimentos rurais são caracterizados como familiares, ocupando 37,9% da área total e sendo responsável por 39,8% do Valor Bruto da Produção. A agricultura familiar é a principal geradora de postos de trabalho no meio rural brasileiro, sendo responsável por 76,9% do pessoal ocupado. Dos 17,3 milhões de pessoal ocupado na agricultura, 13.780.201 estão empregados na agricultura familiar. Esses números revelam a importante participação da produção familiar, apesar do alto grau de concentração agrária. Essa estrutura perversa é agravada pelas adversidades climáticas, que, em regiões como o semi-árido baiano, tornam a produção agrícola insustentável. O processo de descentralização 1 Mudanças econômicas, sociais e políticas que caracterizam as últimas décadas do século XX colocaram no centro das discussões o debate sobre a crise e reforma do Estado e sobre novas articulações entre o Estado e a sociedade, provocando uma redefinição do papel de diferentes instituições no desenvolvimento econômico e social. É nesse contexto que se insere o debate, em muitos países, sobre o processo de descentralização e os seus efeitos na eficiência da ação estatal e na distribuição dos bens e serviços públicos. Como colocam Silva e Costa (1996), processos de descentralização têm caracterizado, em grande número de países, o esforço de reforma administrativa do aparato estatal. Tais esforços são, em sua maioria, determinados por novas condições econômicas, 1 Esse item é baseado em Rocha et al (2004). políticas e sociais experimentadas pelo capitalismo internacional em sua atual etapa de desenvolvimento. Trata-se de transformações no sentido de redefinir o papel do Estado, sua natureza, alcance e limites de intervenção, em contraponto à forma de intervenção predominante entre os anos 1950 e 1970. O próprio significado e o conteúdo desses processos podem ser diferenciados. Os autores consideram que a descentralização significa um processo de redistribuição de recursos, espaços de decisão, competências, atribuições e responsabilidades; enfim, poder político-econômico, em cada formação social específica. Nesse sentido, a forma efetiva em que se configura o processo de descentralização é variada, conforme as condições específicas de cada Estado, já que a descentralização ocorre em um espaço de conflitos de interesses econômicos, políticos e sociais. A crise do Estado é entendida como uma crise que, de forma diferenciada, determina uma série de transformações, que podem ser nas bases produtivas e de financiamento das economias nacionais, bem como da articulação entre elas, tanto no plano produtivo quanto financeiro; nas formas e nos mecanismos de organização e representação de interesses políticos; no formato da estrutura social e dos níveis de desigualdade e heterogeneidade prevalecentes, dentre outras. Dessa forma, políticas e ações descentralizadoras visam, nessa perspectiva, desencadear um movimento de mudança ao longo de um eixo ‘centralizaçãodescentralização’ que caracteriza a intervenção estatal. O resultado desse movimento de mudança será sempre e tão-somente a conformação de uma nova posição nesse eixo, o que isoladamente não indica, a priori, a melhoria ou a piora da qualidade ou da quantidade da ação estatal considerada (SILVA; COSTA, 1996, p. 263). Os efeitos do processo de descentralização – sejam negativos ou positivos – estão condicionados a uma série de fatores vinculados à própria natureza desse processo e às características específicas do Estado nacional. Nesse aspecto, as reformas de descentralização não podem deixar de considerar o conteúdo político e social em que são implementadas. A descentralização brasileira está fortemente associada ao processo de democratização do país e ao esgotamento das condições de financiamento do Estado. A discussão sobre a descentralização confunde-se com a luta pela democracia, já que o Estado autoritário – e centralizador – é visto como um grande responsável pelas desigualdades sociais existentes. O Estado desenvolvimentista, responsável pelas transformações estruturais da economia brasileira desde a década de 1950, vai gradativamente perdendo a sua capacidade de intervenção, principalmente em função da crise fiscal e financeira que impõe mudanças na sua forma de atuação. O debate sobre os processos de descentralização envolve questões como a redefinição do papel de cada uma das esferas de poder, a democracia e a maior participação popular, o desenvolvimento local e a eficiência e a eqüidade da ação estatal. Neste último aspecto, Affonso (1996) destaca que o avanço para uma maior eqüidade e eficiência do gasto público exige mudanças institucionais mais profundas nas estruturas dos poderes das esferas subnacionais de governo, bem como na sua interrelação. Elementos como a hipertrofia do Executivo dos estados e municípios, a incapacidade técnica na execução das novas funções e a falta de continuidade das políticas devem ser considerados para a garantia de eficiência e eqüidade no gasto público. As políticas de descentralização têm como principais orientações a definição das competências entre as esferas de governo na prestação de serviços, a distribuição de recursos financeiros, essencial para uma maior autonomia dos governos subnacionais, e a participação dos diferentes níveis de governo nos processos decisórios. As disparidades intra e inter regionais verificadas no país acarretam grande complexidade nas relações intergovernamentais no federalismo brasileiro, com diferentes implicações no processo de formulação e implementação de políticas públicas descentralizadoras. Destaca-se também o papel do estado-membro na implementação da descentralização em direção aos municípios, podendo funcionar como um obstáculo para o processo já que ocorre aí uma disputa de poder. Os estados acabam dificultando a implementação de políticas públicas descentralizantes, que passam a ocorrer conforme as conveniências políticas de cada governo estadual (GUIMARÃES, 2000). A discussão sobre a descentralização no país abrange a questão do papel que os municípios desempenham (ou devem desempenhar) no federalismo brasileiro. A Constituição de 1988 reconhece a autonomia político-administrativa dos municípios, amplia suas competências no planejamento e na execução de serviços, além de possibilitar a ampliação da arrecadação de impostos no âmbito local e a participação na repartição das receitas tributárias. Dessa forma, a década de 1980 marca um período de destaque da participação dos municípios na federação brasileira. As sucessivas crises econômicas, o avanço do processo de descentralização e o aumento das demandas sociais, em função da redemocratização do país, incentivam mudanças no papel dos municípios brasileiros no pacto federativo. As esferas subnacionais de governo, no entanto, assumiram novos encargos o que gerou uma situação contraditória de autonomia político-administrativa, de um lado, e dependência financeira das transferências dos estados e da União, de outro. Isso é particularmente relevante no caso de pequenos municípios rurais, cuja base econômica é bastante precária e insuficiente para a prestação dos serviços básicos para a população. A base de tributação municipal depende do grau de urbanização e da situação econômica dos municípios. Os municípios menores, e principalmente aqueles com atividades predominantemente agrícolas, dependem geralmente das transferências constitucionais. A descentralização política, proporcionada pela Constituição de 1988, estimulou a criação de novos municípios. Como conseqüência, houve um processo de fragmentação, fazendo com que o número de municípios atingisse os atuais 5.560, tendo tido um crescimento anual médio de 2,4% entre 1988 e 2001. Tal processo reflete a conjuntura política favorável à descentralização federativa, evidenciando a marca da autonomia dos entes federados na criação de novas unidades político-administrativas. Também territorialmente, as diferenças regionais são marcantes: em algumas regiões, tem-se uma grande fragmentação do território, com numerosos pequenos municípios; em outras, enormes territórios pertencentes a apenas um município. No Nordeste, encontram-se 1.792 municípios, representando 30,3% do total de municípios brasileiros (IBGE, 2003). Estudo do IBAM (BREMAEKER, 2003) chama a atenção para o elevado grau de endividamento dos municípios brasileiros. Em 2001, 31,5% dos municípios apresentavam déficit fiscal. Um dos mais elevados percentuais estava na faixa de municípios entre 10 mil e 20 mil habitantes, em que 36,4% apresentaram uma situação de déficit fiscal no ano de 2001. Em 2002, 44% dos municípios brasileiros apresentaram déficit fiscal. Nas faixas de municípios até 20 mil habitantes, o mais elevado percentual foi encontrado entre o grupo de municípios entre 5 mil e 10 mil habitantes (45,8%). O levantamento realizado pelo IBAM também revela a magnitude dos gastos municipais com atividades que são de competência da União e dos estados. As despesas realizadas pelos municípios com as atividades de competência da União e dos estados atingiram, em 2002, 4,5% das receitas municipais. A participação dos gastos com serviços da União e dos estados sobre a receita total é maior nas regiões mais “abandonadas” e nos municípios de menor porte demográfico, ou seja, onde é necessária uma atuação mais intensa por parte dos municípios para garantir o fornecimento dos serviços para a população. Na faixa de municípios até 10 mil habitantes, esses gastos alcançam 10,85% da receita total e, entre 10 e 20 mil habitantes, representam 7,13% da receita total. Participação social e desenvolvimento Participação parece ser um daqueles conceitos que se revestem de um caráter fortemente abstrato. Afinal, o que é participação? Como avaliar se um programa é realmente participativo ou não? Em situação de pobreza e baixo nível educacional, quais as condições que pequenos agricultores têm de participar efetivamente na definição e implementação de políticas públicas? Até que ponto ocorre uma inversão das políticas públicas, abandonando o tradicional modelo de “cima para baixo”? Para Teixeira, participação cidadã é um processo complexo e contraditório entre sociedade civil, Estado e mercado, em que os papéis se redefinem pelo fortalecimento dessa sociedade civil mediante a atuação organizada dos indivíduos, grupos e associações. Esse fortalecimento dá-se, por um lado, com a assunção de deveres e responsabilidades políticas específicas e, por outro, com a criação e exercício de direitos. Implica também o controle social do Estado e do mercado, segundo parâmetros definidos e negociados nos espaços públicos pelos diversos atores sociais e políticos (TEIXEIRA, 2001, p. 30). Buscando entender o que é esse processo, Teixeira destaca que a participação cidadã é diferente da chamada “participação comunitária”, já que não objetiva a mera prestação de serviços à comunidade ou à sua organização isolada; também não se trata de simples participação em grupos ou associações para defesa de interesses específicos ou expressão de identidades. Não se confunde com a expressão “participação popular”, muito utilizada para designar a ação desenvolvida pelos movimentos – em grande parte de caráter reivindicativo – visando ao atendimento de carências ou à realização de protestos. A participação cidadã teria objetivos muito mais amplos. Ao referir a “participação cidadã” tenta-se, portanto, contemplar dois elementos contraditórios presentes na atual dinâmica política. Primeiro, o “fazer ou tomar parte”, no processo político-social, por indivíduos, grupos, organizações que expressam interesses, identidades, valores que poderiam se situar no campo do “particular”, mas atuando num espaço de heterogeneidade, diversidade, pluralidade. O segundo, o elemento “cidadania”, no sentido “cívico”, enfatizando as dimensões de universalidade, generalidade, igualdade de direitos, responsabilidades e deveres. A dimensão cívica articula-se à idéia de deveres e responsabilidades, à propensão ao comportamento solidário, inclusive relativamente àqueles que, pelas condições econômico-sociais, encontram-se excluídos do exercício dos direitos, do “direito a ter direitos” (Teixeira, 2001). 2 Tratando sobre os diversos tipos de participação, Teixeira (2001) destaca o seu caráter contraditório, envolvendo uma relação multifacetada de poder entre atores com identidades, interesses e valores distintos. A idéia de participação, na sua concepção, significa “fazer parte”, “tomar parte”, “ser parte” de um ato ou processo, de uma atividade pública, de ações coletivas. Referir ‘a parte’ implica pensar o todo, a sociedade, o Estado, a relação das partes entre si e destas com o todo e, como este não é homogêneo, diferenciam-se os interesses, aspirações, valores e recursos de poder. Apresenta-se assim o problema de como responder aos interesses gerais em face do particularismo e do corporativismo dos atores, exigindo-se condições objetivas e subjetivas e espaços públicos onde possam ocorrer negociações e compromissos para que as argumentações, livremente expostas, permitam chegar-se a um consenso traduzível em decisões no sistema político (TEIXEIRA, 2001, p. 27). A participação é também um instrumento de controle do Estado pela sociedade, portanto, de controle social e político: possibilidade de os cidadãos definirem critérios e parâmetros para orientar a ação pública. O entendimento do controle social tem duas dimensões básicas. A primeira corresponde à accountability, a prestação de contas conforme parâmetros estabelecidos socialmente em espaços públicos próprios. A segunda, decorrente da primeira, consiste na responsabilização dos agentes políticos pelos atos praticados em nome da sociedade, conforme os procedimentos estabelecidos nas leis e padrões éticos vigentes. Villas Boas (1994) destaca ainda que é nos canais institucionais plurais, na disputa de interesses entre os diferentes setores sociais, que pode ser construída uma leitura da realidade global do município, estabelecendo parâmetros para o que é de interesse público, para superar o corporativismo e para romper com o caráter pessoal que tradicionalmente marcou as relações com o poder municipal. Os canais de participação propiciam, em um primeiro momento, a socialização das informações, permitindo que os diferentes setores sociais tenham conhecimento e se apropriem do funcionamento da máquina administrativa, dos seus limites e possibilidades. Dessa forma, a informação é apenas um instrumento para viabilizar a participação, e é preciso dar um salto para que os canais se tornem espaços de formulação e deliberação de políticas. Isso significa dizer que a institucionalização dos canais de participação passa pela própria participação e mobilização dos diferentes movimentos sociais na construção desses instrumentos. No Brasil, a relação entre organizações da sociedade civil e governos locais é bastante deficiente, sendo influenciada por diversos fatores: desde o longo período de regime autoritário até a falta de um nível mínimo de instrução de parcela significativa da população. O processo de descentralização é considerado, no entanto, como um fator que tem contribuído para transformações nessa relação. Novas organizações e novos tipos de ações têm configurado um cenário de mudanças importantes, especialmente na 2 Embora o conceito de participação utilizado nesse trabalho esteja relacionado ao termo “participação cidadã”, de Teixeira (2001), optou-se pelo uso da expressão “participação social” ou apenas “participação”. esfera local, apesar do peso das tradicionais – e autoritárias – relações de poder existentes. Surgem novos arranjos institucionais, criando espaços de interlocução e de decisão entre sociedade civil e poder público. É o caso dos conselhos de gestão, que funcionam como instâncias de interlocução e de proposição, com a participação de representantes da sociedade civil; ou dos fóruns, espaços de discussão de temas de interesse geral, abertos à participação de qualquer cidadão ou entidade. Falar em participação também implica discutir a idéia de desenvolvimento, não mais o desenvolvimento estritamente econômico. Vale aqui considerar que a visão mais ampla do desenvolvimento foi uma das bandeiras principais do trabalho desenvolvido pelas organizações não-governamentais (ONGs) nos anos de 1990. Muitas das práticas participativas dessas instituições foram incorporadas nas políticas públicas (ROCHA, 2001). Pode-se considerar que foram essas instituições as primeiras a trabalharem a idéia de desenvolvimento rural sustentável, buscando práticas e tecnologias chamadas alternativas em busca de um desenvolvimento socioeconômico e ecologicamente equilibrados. Partindo de uma crítica aos programas governamentais de desenvolvimento rural, as ONGs foram construindo metodologias participativas, objetivando uma outra forma de intervenção na realidade socioeconômica, particularmente no meio rural. As críticas consideravam que as políticas públicas eram baseadas no modelo convencional de desenvolvimento agrícola, sem considerar os aspectos socioeconômicos e ambientais de cada comunidade, concentrando-se na simples transferência de tecnologias. Não se levava em consideração a participação da comunidade local. De modo geral, os projetos não eram originados na própria comunidade pelos seus membros. Na realidade, a comunidade aderia a um determinado programa sem que, muitas vezes, este correspondesse às suas reais necessidades (ROCHA, 2001). Para Sen (2000), “...o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam (p. 17). Falar em liberdades implica considerar outros determinantes que não os estritamente econômicos e tecnológicos, como o acesso aos serviços de educação e saúde e os direitos civis, tal como a liberdade de participar de discussões públicas. Ou seja, Sen considera que o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. Uma visão ampla e integrada do desenvolvimento reconhece que as liberdades não são apenas os fins primordiais do desenvolvimento, mas também os meios principais. O processo de desenvolvimento, como coloca Sen (2000), deve ser analisado considerando aspectos econômicos, sociais e políticos, como um processo integrado de liberdades substantivas interligadas. Liberdades diferentes influenciam-se mutuamente. Liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão e eleições livres) ajudam a promover a segurança econômica. Oportunidades sociais (na forma de serviços de educação e saúde) facilitam a participação econômica. Facilidades econômicas (na forma de oportunidades de participação no comércio e na produção) podem ajudar a gerar a abundância individual, além de recursos públicos para os serviços sociais. Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras (SEN, 2000, p. 25-26). Nesse sentido, o processo de desenvolvimento local depende de uma série de fatores e implica na atuação conjunta de diferentes instituições e organizações, particularmente no estabelecimento de parcerias entre o Estado e a sociedade civil. O desenvolvimento local é impulsionado quando o poder público procura fazer parceria com a população local que, por seu turno, dispõe-se a assumir “responsabilidades e dividir; existe um trabalho de promover a “concertação” dos diferentes atores sociais no esforço para o desenvolvimento; há uma intenção de mobilizar as comunidades para o exercício da cidadania municipal” (SANTOS, 1998, p. 34). A discussão sobre a participação está também associada ao processo de revalorização da esfera local, enquanto instância de representação de poder. É no âmbito dos governos municipais que diversos mecanismos inovadores de gestão pública, baseados em uma maior participação popular, vêm sendo implementados – fóruns, conselhos, comissões, impulsionados pelo próprio processo de descentralização, de um lado, e, de outro, pelas mudanças na relação entre o Estado e a sociedade. Nunes (1996), ao levantar discussões sobre a valorização do poder local e o processo de descentralização, questiona duas imagens difundidas. A primeira imagem sustenta que o poder local é mais factível de ser democratizado e de proporcionar maior participação, dada a sua proximidade com o cidadão. Para o autor, “a proximidade do poder é no mínimo ambígua, pois é também o lugar da reprodução do poder discricionário das oligarquias” (NUNES, 1996, p. 34). A segunda imagem está vinculada ao argumento que o município é a realidade onde o povo vive, enquanto o poder central é mera abstração. Ele considera que o município não é nem mais nem menos abstrato que os demais níveis de governo, apenas suas pautas, em geral administrativas, seriam mais concretas, por serem compreendidas de uma forma mais fácil pela maioria da população, através da vivência cotidiana. Segundo Bava (1994), as prefeituras têm grande capacidade de intervenção na economia dos municípios, sendo capazes de potencializar as vocações econômicas locais e eliminar obstáculos para a socialização da riqueza gerada. De um lado, isso exige mais transparência das ações dos governos locais e estímulo das administrações na criação de espaços públicos para formulação, negociação e decisão das políticas municipais, garantindo a participação. De outro lado, a efetiva participação implica a capacidade das entidades, associações e movimentos populares interferirem, de forma constante, nas definições e decisões de políticas públicas, com autonomia em relação ao poder local. O problema é que essas condições, muitas vezes, não estão colocadas no âmbito municipal: não há interesse nas administrações locais de estimular a participação popular e não há organizações populares capazes de dialogar com os governos locais. Na prática, a participação tem sido impulsionada de “cima para baixo”, pela necessidade colocada por requisitos legais para a participação das organizações em projetos e a inclusão dos municípios em determinados programas. Além disso, há falhas nos processos participativos das populações rurais através de suas associações que foram constituídas, em grande parte, com a finalidade de obter recursos financeiros. Conforme Nunes et al (2004), uma política pública descentralizada, voltada para articular as iniciativas da sociedade civil, deve contribuir para a publicização, sendo capaz de levar seus objetivos e ações a todos os atores sociais, além de criar condições para que possa ser exercida a fiscalização sobre as decisões tomadas e o uso dos recursos públicos. Em um contexto de descentralização, a existência de espaços de concertação entre os atores, ou seja, entre a sociedade civil organizada e o governo local contribui para a transferência de informações. São esses espaços (e o seu funcionamento efetivo) que impulsionam a prestação de serviços públicos de melhor qualidade e que atendam às demandas locais. Como resultado da Constituição de 1988 e do próprio processo de descentralização, a maioria dos municípios tem conselhos bipartite, em que estão representados, de forma igualitária, o governo e a sociedade civil. São conselhos nas áreas de saúde, direito infantil, serviço social, merenda escolar, ensino, desenvolvimento rural, mulheres, desenvolvimento urbano, meio ambiente, cultura, esporte, transporte, emprego e orçamento. Os conselhos foram amplamente reconhecidos como novos espaços institucionais de “democracia participativa”. Em uma pesquisa realizada nos municípios rurais do Nordeste (SEI, 2003), as organizações de produtores foram questionadas sobre o significado do CMDRS (Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável). Para 32%, os conselhos são vistos como um espaço de comunicação e informação; 42% disseram ser um espaço de representação e participação; 25% disseram ser um espaço de decisão e partilha de poder. No, entanto, 46% ainda vêem os conselhos como um “órgão vinculado ao poder público”. O surgimento dos conselhos é uma necessidade para o acesso aos recursos públicos, não sendo resultado das iniciativas e ações das organizações de base e do poder local. A implantação dos conselhos é fortemente vinculada à exigência do governo central ou estadual para a operacionalização de algum programa, em especial do PRONAF. De qualquer forma, essa imposição tem se revestido em um processo de aprendizagem, gerando, muitas vezes, uma nova dinâmica de participação no âmbito local, vencendo as barreiras do clientelismo. Como colocam Campanhola e Silva (2000, p. 64), o local torna-se “uma arena”, um espaço onde aparecem os conflitos, as diferenças e as disputas que existem entre os grupos sociais. Mas, são também espaços que permitem “a construção de novas relações sociais que assumem como premissa que os interesses comuns sejam respeitados, discutidos e compartilhados”. Para esses autores, as políticas públicas deveriam proporcionar condições mínimas de sobrevivência e qualidade de vida às populações pobres. Para isso, procurariam viabilizar nos municípios pobres a infra-estrutura necessária como os serviços de educação, saúde, saneamento básico, moradia, segurança, renda mínima etc. O desenvolvimento rural deve ser um processo que deve partir do local com a efetiva participação da comunidade, privilegiando as necessidades sociais e culturais da população e voltado para a conquista da cidadania, mas que esteja de acordo com a realidade local. Carminda Cavaco (1996) ressalta que o desenvolvimento rural não acontece por determinações governamentais, leis ou decretos; é um processo de construção social que envolve diversos elementos objetivos e subjetivos. Para a autora, todo o processo de promover o desenvolvimento, com base local, é lento, de longo prazo e incerto para áreas que se encontram em declínio econômico, estagnadas ou abandonadas, sem recursos financeiros e sem lideranças e profissionais técnicos (CAVACO, 1996). A trajetória dos programas de combate à pobreza, o programa Produzir e a concepção de participação Os programas de redução da pobreza (PCPR) revelam as diferentes políticas e experiências de participação da sociedade civil nos seus respectivos estados. É interessante observar, no entanto, que esta situação vem mudando progressivamente durante os últimos anos, com um crescente diálogo e aproximação entre os programas estaduais, o Banco Mundial, as ONGs e os sindicatos. Pode-se considerar que três fases distintas marcam a configuração desses programas: a primeira geração, que remonta aos anos de 1980, é representada pelo PCPR que foi inicialmente chamado de PAPP (Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural). Este era um fundo social mais clássico, com uma estrutura pouco descentralizada, voltado a combater à pobreza rural. Nesta fase, estimava-se que apenas 20% dos recursos chegavam aos subprojetos, o restante sendo gasto na máquina governamental ou no âmbito das capitais estaduais. Com o passar do tempo, o PAPP foi reestruturado apresentando um modelo mais descentralizado e participativo à imagem do PCPR atual, onde 80% dos recursos são aplicados na comunidade. A segunda geração de programas (início e meados dos anos de 1990) foi marcada pela tentativa de melhorar o desempenho operacional e garantir a descentralização dos benefícios de vários projetos com dificuldades de implementação, através da criação de fundos de pequenos projetos. Nesta segunda geração, também estão ainda projetos de combate à pobreza rural baseados no PAPP, porém incorporando as lições apreendidas desse modelo. A partir de meados de 1990, refletindo as novas temáticas do desenvolvimento no final do século XX, como meio ambiente e a questão de gênero, a terceira geração dos programas já incorpora noções mais avançadas, como desenvolvimento sustentável e a necessidade de incluir a participação efetiva da sociedade civil em seus desenhos. São mais focalizados tematicamente e incorporam a participação de uma gama mais ampla da sociedade civil (principalmente de ONGs e movimentos sociais) em praticamente todas as fases de implementação. Vale dizer que essas mudanças são impulsionadas, em grande parte, pelas próprias exigências das instituições de financiamento. No estado da Bahia, um dos principais programas de desenvolvimento rural é o Produzir, em execução desde 1993 e coordenado pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), órgão da Secretaria de Planejamento do Estado. O seu principal objetivo é a redução da pobreza rural e o fortalecimento das associações, através do financiamento de projetos comunitários escolhidos pela própria comunidade. Nesse sentido, contribui para a descentralização progressiva dos processos de decisão, fazendo da participação o eixo central de sua estratégia dos investimentos. Abrangendo atualmente 407 municípios baianos, o Produzir é um dos programas mais importantes do governo estadual, tendo, inclusive, recebido destaque internacional no ano de 2004. Com financiamento do Banco Mundial (o governo estadual participa com 40% dos recursos), o programa atua na zona rural e sedes urbanas com até 7.500 habitantes. Os recursos podem ser orientados para diferentes projetos, agrupados em quatro categorias: projetos de infra-estrutura; sociais; de apoio à produção e comercialização; e produtivos. Os pequenos agricultores, formalmente constituídos através de associações, submetem os seus projetos para análise da CAR. São três linhas de atuação do programa: o Programa de Apoio Comunitário – PAC; o Fundo Municipal de Apoio Comunitário – FUMAC; e o Fundo Municipal de Apoio Comunitário Piloto – FUMAC-P. O PAC é uma ação conjunta da CAR e das associações comunitárias. A associação faz seu pedido diretamente à CAR, que analisa o projeto. É a chamada “avaliação de demanda”. No FUMAC, a ação envolve a CAR, as associações comunitárias e o conselho municipal. Esse conselho, formado por, no mínimo, 80% de representações das comunidades, coordena a execução do programa no município, em conjunto com a CAR. É também o conselho que elabora o Plano de Investimento Municipal (PIM), onde são registrados os projetos escolhidos. A seleção dos projetos é o resultado da discussão e análise dos pedidos de financiamento apresentados pelas associações, após reunião com os moradores nas diversas comunidades existentes (CAR, 2002). O FUMAC-P, que também envolve a ação conjunta da CAR, das associações comunitárias e do conselho municipal, diferencia-se do FUMAC pela maior atuação do conselho. Neste caso, a administração direta dos recursos do PIM é feita pelo próprio conselho: a CAR repassa todo o recurso para o conselho que, por sua vez, estabelece os convênios com as associações que possuem projeto analisado e aprovado pelo conselho e pela CAR (CAR, 2002). Na realidade, esses são os mecanismos de implementação do programa que, segundo Silva (2002), são também instrumentos de gestão, atribuindo ao Produzir forma e conteúdo, além de viabilizar os critérios de seleção e analisar as demandas oriundas da comunidade. A escolha de um desses mecanismos está vinculada ao próprio grau de organização das comunidades. Ao longo do tempo, o Produzir sofreu transformações, incorporando as próprias mudanças nas políticas públicas. Refletindo a experiência dos Programas de Combate à Pobreza no Nordeste, serve hoje de referência ao Banco Mundial para a criação de projetos semelhantes em outras regiões e em outros setores da sociedade. As várias reformulações por que passou revelam uma tendência crescente de descentralização, associada à busca de uma metodologia participativa estimulando o associativismo e a organização das comunidades rurais. Como coloca Silva (2002, p. 29), “essa nova dimensão incorporada ao processo de organização tem um significado histórico ainda não suficientemente avaliado por que o tempo de implementação ainda é insuficiente”. Falar de descentralização significa considerar a ausência de mediação entre o programa e os beneficiários. Segundo a concepção do programa, as famílias de pequenos produtores rurais organizam-se em torno de interesses comuns e participam de todo o projeto, desde a escolha do tipo de investimento até o planejamento, execução e controle das aplicações. De fato, o Produzir tem como principal característica a demanda por projetos gerados na base, transferindo recursos diretamente para as organizações locais da sociedade civil. No entanto, é importante considerar o caráter complexo desse processo organizativo. Descentralizar não significa apenas retirar do circuito da execução as diversas instâncias de mediação, com a finalidade de que os benefícios cheguem, de fato, aos beneficiários. Esta é uma das razões, todavia, a razão principal é atribuir aos beneficiários o papel de sujeitos da ação (SILVA, 2002, p. 29). Essas comunidades exerceram tradicionalmente um papel passivo no seu processo de desenvolvimento, reflexo de um histórico de políticas públicas centralizadas e de um poder local marcado pelo clientelismo. Dessa forma, um longo caminho começa a ser percorrido para a transformação desse papel. Não se pode negar os avanços atingidos pelo programa. Casos de sucesso podem ser citados, denotando que esse é um processo de aprendizagem de nova forma de gestão pública com resultados bastante positivos. Críticas também são apontadas, mostrando a fraqueza das instituições locais e o caráter complexo e contraditório da participação. Os mecanismos de implementação são passíveis de controle político, principalmente em um contexto de organizações frágeis, o que gera o desvirtuamento de suas funções. Em um quadro de extrema pobreza, as necessidades dos agricultores são muitas e não raro faltam serviços básicos. Não é por acaso que grande parte dos projetos é referente aos recursos hídricos. Ou seja, muitas associações concentram todos os seus esforços na busca da simples implementação de água, ainda que não tenham acesso à educação, à saúde e ao emprego. Essa carência limita as próprias escolhas das associações: busca-se água, mas também não se tem o que comer. Dessa forma, na prática, as ações acabam sendo pontuais e limitadas e, embora contribuam para a melhoria da qualidade de vida e para o avanço do processo organizativo, não são capazes de alterar a realidade socioeconômica característica dessas comunidades rurais, marcada pela pobreza e por um limitado grau de desenvolvimento (ou, melhor dizer, um elevado subdesenvolvimento). Considerações finais As políticas públicas de desenvolvimento rural têm assumido novas configurações, caracterizando uma gestão pública mais descentralizada e com maior participação social. As transformações na relação entre Estado e sociedade, o processo de descentralização, a revalorização do espaço local são alguns dos temas que fazem parte desse debate que, em sua essência, trata de uma nova forma de desenvolvimento, baseado em um conceito mais amplo. Para Sen (2000), a liberdade de escolha é essencial para o desenvolvimento. É nesse contexto que esse artigo buscou apontar algumas reflexões sobre a participação social nas políticas de desenvolvimento rural. Entender a concepção de participação das políticas públicas e a forma como vem se concretizando nas comunidades rurais é crucial para a melhoria da eficácia da intervenção do Estado. O âmbito municipal tem sido um cenário importante para as transformações na gestão pública, impulsionadas pelo processo de descentralização. O surgimento de novas instituições é uma das características mais evidentes na esfera do poder local, capazes de potencializar o desenvolvimento. No entanto, são também evidentes as fragilidades desse processo organizativo. E é nesse ponto que o poder público tem um papel essencial no sentido de criar mecanismos para fortalecer novos arranjos institucionais, bem como criar as condições adequadas para a efetiva participação da sociedade civil. A descentralização de recursos para o local não garante por si só a democratização da alocação e do uso de recursos. A descentralização pode eliminar a mediação entre programa e beneficiários, mas não garante a mudança no papel das instituições locais. Nem sempre agricultores e suas organizações conseguem assumir o papel de “sujeitos da ação”. O caminho é longo e o processo é marcado por avanços e recuos, por contradições e conflitos, como revelam diversas experiências de desenvolvimento rural, a exemplo do Programa Produzir, no estado da Bahia. Referências ABRAMOVAY, Ricardo. Uma nova extensão para a agricultura familiar. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL, 1997. Anais... Brasília: PNUD, 1997. 222p. AFFONSO, Rui. Os municípios e os desafios da federação no Brasil. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação SEADE, v. 10. n. 3 1996. BAVA, Silvio Caccia. Democracia e poder local. In: VILLAS-BÔAS, Renata (Org.). Participação popular nos governos locais. 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