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Biocombustíveis e busca do desenvolvimento em meio rural: as ações e expectativas da
COOPERBIO no noroeste riograndense
Hoyêdo Nunes Lins1
Rinald Boassi2
Resumo: A produção de biocombustíveis pode representar novas possibilidades para a agricultura
familiar no Brasil. O artigo explora essa questão em estudo sobre a Cooperativa Mista de Produção,
Industrialização e Comercialização de Biocombustíveis do Brasil Ltda. (COOPERBIO), criada em
2005 no noroeste do Rio Grande do Sul por movimentos sociais rurais. Após caracterização geral da
produção de biocombustíveis e descrição da região implicada, o texto apresenta, com base em
pesquisa direta, as ações voltadas à obtenção de álcool e óleo combustível mediante a organização
de grupos familiares e a produção consorciada de alimentos e combustíveis sob princípios
agroecológicos. Depois são discutidas as perspectivas dessa iniciativa para a agricultura familiar e o
desenvolvimento local, salientando temas chaves do discurso da COOPERBIO como a autonomia
dos pequenos agricultores.
Palavras-chave: Biocombustíveis, COOPERBIO, agricultura familiar, desenvolvimento
Abstract: Biofuels production might represent a new opportunity to Brazilian small family farmers.
This article explores this issue in a study about the Cooperativa Mista de Produção, Industrialização
e Comercialização de Biocombustíveis do Brasil Ltda. (COOPERBIO), created in 2005 in the
Northwestern region of Rio Grande do Sul by rural social movements. After indicating the general
features of biofuels production and describing the region, the article presents, based upon field
work, the actions towards ethanol and oil production, by groups of families, coupled with food
production according to principles of agroecology. The possibilities represented by such initiative to
small family farmers and to local development are discussed, stressing key topics of
COOPERBIO’s claims such as the autonomy of producers.
Key-words: Biofuels, COOPERBIO, small family farming, development
Classificação JEL: Q13, Q42
1. Introdução
A agricultura familiar padece de grandes dificuldades no Brasil, em que pese a sua
reconhecida importância na produção de alimentos. A recente investida nacional em
biocombustíveis – quer dizer, combustíveis produzidos a partir de fontes renováveis –, estimulada
pelas atuais condições de produção e oferta de combustíveis fósseis e suas implicações (A
brighter..., 2001), estaria a acenar positivamente para esse segmento do mundo rural. As
possibilidades para a agricultura familiar exibem amparo institucional, conforme indicado por
instrumentos como o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), em particular o
Selo Combustível Social, atribuído aos produtores de biodiesel – outorgando-lhes vantagens – que
adquirem matéria-prima desses agricultores.
Embora o presente realce dos biocombustíveis pareça promissor para a agricultura familiar,
a percepção dos movimentos sociais rurais, em especial do Movimento dos Pequenos Agricultores
(MPA), é que benefícios efetivos só haverão de se materializar no bojo de iniciativas concebidas e
implementadas pelas suas próprias organizações, em nível local. Essa questão é o objeto central
deste artigo, que apresenta e discute uma experiência de organização cooperativa cuja meta é a
participação de numerosas famílias de agricultores na economia dos biocombustíveis. A experiência
refere-se à Cooperativa Mista de Produção, Industrialização e Comercialização de Biocombustíveis
1
Professor do PPGE da Universidade Federal de Santa Catarina
2
Mestrando no PPGE da Universidade Federal de Santa Catarina
2
do Brasil Ltda. (COOPERBIO), criada em 2005 por pequenos agricultores ligados ao MPA e que
abrange 61 municípios da mesorregião noroeste do Rio Grande do Sul, área com cerca de 467 mil
habitantes no Censo de 2000, pouco menos da metade no meio rural. Embora nos seus primeiros
passos e, portanto, representando ainda uma promessa de envolvimento conseqüente de pequenos
agricultores e de resultados positivos para estes, o que está em curso pode ser ilustrativo de como
contingentes rurais organizados enxergam as suas possibilidades e agem de acordo com suas
percepções.
Começa-se o texto caracterizando a produção de biocombustíveis, com foco nas perspectivas
de participação de pequenos agricultores, de um modo geral. Em seguida, após descrever a área de
atuação da COOPERBIO, apresentam-se as iniciativas protagonizadas no âmbito dessa cooperativa,
uma abordagem escorada em pesquisa direta: um dos autores conviveu por vários dias com
integrantes da cooperativa, em abril de 2007, percorrendo parte do território onde incidem as suas
atividades; as numerosas horas de entrevistas gravadas representam importante fonte para se
apreender o que está em curso naquela experiência. Posteriormente efetua-se uma discussão sobre o
sentido e as possibilidades dessa iniciativa, levando em conta o debate atual sobre a problemática da
agricultura familiar e sobre o desenvolvimento em nível local.
2. Produção de biocombustíveis: o espaço da agricultura familiar
O Brasil se destaca internacionalmente pela elevada participação de fontes renováveis na sua
oferta interna de energia. Em 2004, essas fontes não superavam 13,2% e 6,1%, respectivamente, da
oferta de energia no mundo como um todo e nos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico, mas no Brasil a percentagem alcançava 44,5% em 2005 (Brasil,
2007). Essa forte presença é marcada por uma composição relativamente equilibrada de três
modalidades de geração: energia hidráulica e eletricidade (14,8%), lenha e carvão vegetal (13%) e
produtos da cana-de-açúcar (13,8%), a terceira com expansão considerável nos últimos anos (Op
cit.).
Portanto, este é o quadro energético em que se insere o esforço atualmente observado no
país visando à produção de biocombustíveis (sobretudo o biodiesel e o álcool combustível, ou
etanol): um uso de fontes renováveis já comparativamente alto, mas com grande margem para
ampliação. Isso é merecedor de todas as atenções em face das ameaças de alterações climáticas
incrustadas no modelo energético prevalecente em termos mundiais, amplamente agressivo ao meio
ambiente. Mas também por questões de natureza socioeconômica o acento hoje colocado nos
biocombustíveis há de ser destacado. As cadeias produtivas das várias modalidades desses
combustíveis admitem um tipo de envolvimento de contingentes rurais, em diversas regiões do país,
que sinaliza com resultados promissores na geração de postos de trabalho e renda. É difícil recusar
o apelo de que se reveste tal possibilidade, sobretudo em face das dificuldades estruturalmente
amargadas pela pequena agricultura. Assim, compreendem-se as esperanças depositadas no
engajamento de agricultores familiares nas atividades vinculadas, principalmente na produção de
insumos (Lima, 2004).
Como se apresentam as cadeias produtivas do biodiesel e do álcool, e qual o espaço possível
para os pequenos agricultores?
A Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) caracteriza o
biodiesel como “combustível para motores a combustão interna com ignição por compressão,
renovável e biodegradável, derivado de óleos vegetais ou de gorduras animais, que possa substituir
parcial ou totalmente o óleo diesel de origem fóssil” (Medida..., 2004). Sua participação em
misturas com o último, prevista na Resolução nº 42, de 24/11/2004, do Ministério de Minas e
Energia (Resolução..., 2004), é indicada pela notação Bx (por exemplo, B100 significaria biodiesel
puro). Já o álcool apresenta-se como álcool hidratado, de uso direto, e como álcool anidro,
incorporado como aditivo à gasolina. A diferença refere-se à concentração, mostrada pelo grau GL
(Gay-Lussac): é hidratado o álcool com 96 GL (quer dizer, 96% de álcool e 4% de água); é anidro o
álcool com 99,5 GL.
3
Os óleos que dão origem ao biodiesel podem ter origem vegetal, animal ou residual. Os
primeiros provêm de diferentes fontes oleaginosas (entre outras, mamona, dendê, babaçu, girassol,
algodão, canola e amendoim); os segundos associam-se, por exemplo, à gordura de suínos e
bovinos e ao óleo de peixe; e os terceiros são obtidos de diferentes resíduos humanos e industriais.
A possibilidade mais clara de participação da agricultura familiar está ligada à produção de matériaprima vegetal, cabendo assinalar que as culturas das quais derivam os vinculados óleos e gorduras
apresentam-se como perenes e temporárias, com rendimento na produção de matéria-prima
consideravelmente diferenciado conforme o tipo de oleaginosa e a região de cultivo.
No tocante ao álcool a matéria-prima básica, no Brasil, é a cana-de-açúcar, embora outros
vegetais, como beterraba, milho e mandioca, possam também ser utilizados. Nesse país, a
predominância absoluta da cana-de-açúcar permite vantagens consideráveis perante outras nações
produtoras, como indicam Andreoli e Souza (2006) em análise das propriedades dessa fonte. Isso é
particularmente verdadeiro, por exemplo, quando se compara, em termos de rendimento e também
em outros aspectos, a cana-de-açúcar ao milho, matéria-prima utilizada nos Estados Unidos, o
segundo maior produtor mundial de álcool combustível.
Mas não é só na produção de matéria-prima que o envolvimento da agricultura familiar se
mostra possível. Sob certas condições, o próprio processo de produção do combustível admite a
participação.
A produção de biodiesel implica converter o óleo vegetal por meio da separação da
glicerina. Isso ocorre seja por um processo químico chamado transesterificação, que é uma reação
de óleos e gorduras (triglicerídeos) com álcoois (metanol ou etanol), envolvendo um catalisador,
seja pelo que se designa craqueamento catalítico ou térmico, em que há quebra de moléculas por
meio de intenso aquecimento. No Brasil, o processo mais utilizado é a transesterificação, tendo em
vista o menor custo representado pelo uso de etanol. Quanto ao álcool, sua produção a partir da
cana-de-açúcar implica a fermentação do caldo, obtido através de moagem, e depois a destilação.
Ao lado do produto final, o processo gera co-produtos na forma de torta, bagaço e vinhoto, os quais
encontram utilização no âmbito da propriedade agrícola, como se falará posteriormente com base na
pesquisa de campo.
O maior ou menor envolvimento de pequenos agricultores no processo de produção de
biocombustíveis depende dos “modelos de produção” utilizados. Sobre o biodiesel, um primeiro
aspecto a observar é que a produção de óleo combustível representa parte do processo que
proporciona o primeiro, cuja obtenção implica a conversão deste, como assinalado. São dois os
modelos de produção desse combustível.
Um modelo se caracteriza pela pequena escala, destinando-se à “produção independente de
combustível, de forma auto-sustentável, para uso em máquinas agrícolas ou em motores diesel para
a geração de energia”. (UnB, s/d). Embora sem envolver transesterificação, e sim craqueamento
através de micro-usinas de bio-óleo, esse modelo autoriza uma pulverização de pequenos
estabelecimentos, voltados à comercialização local. O outro modelo possui escala industrial,
chegando a atingir capacidade de produção, via transesterificação, de 60 mil litros diários,
equivalentes a 20 milhões de litros anuais. Note-se que, tendo em vista os custos envolvidos, sequer
os mini-sistemas (para não falar do modelo industrial) podem ser implantados em pequenas
propriedades individuais, sendo sempre necessário um envolvimento cooperativo e numeroso de
agricultores. Frise-se igualmente que, via de regra, a participação dos pequenos agricultores vai só
até a obtenção do óleo vegetal bruto, sendo este depois transportado para uma usina central de
refino.
Também na produção de álcool coexistem modelos de diferentes escalas, observando-se
usinas, com grande escala de produção, e microdestilarias, com pequena escala. O primeiro modelo
é a base do abastecimento nacional, e suas necessidades de área e investimento são elevadas. Por
exemplo, segundo estimativa efetuada no âmbito do BNDES (Ampliação..., 2003), uma usina capaz
de produzir 450 mil litros de álcool anidro por dia exigiria, considerando-se um rendimento de 80
litros por tonelada de cana e uma produtividade média de 76 toneladas de cana por hectare, cerca de
13 mil hectares de área de corte anualmente. A operação de uma tal usina necessitaria um
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investimento industrial de R$ 80 a R$ 110 milhões e investimentos agrícolas na faixa de R$ 40
milhões (Op cit.).
O modelo de produção de álcool que admite um efetivo envolvimento de pequenos
agricultores é o de microdestilarias. Sua concepção e seu aperfeiçoamento mostram-se intimamente
vinculados ao trabalho do geólogo Marcelo Guimarães, que se dedicou à tarefa de evidenciar que é
possível produzir álcool em pequenas propriedades rurais. Como é fácil notar, isso representou a
abertura de uma nova possibilidade para a agricultura familiar.
3. O contexto regional da COOPERBIO: algumas notas
Conforme assinalado na introdução, a Cooperativa Mista de Produção, Industrialização e
Comercialização de Biocombustíveis do Brasil Ltda. (COOPERBIO) atua em área que abrange 61
municípios da mesorregião noroeste do Rio Grande do Sul. Esses municípios se distribuem, na
esmagadora maioria, nas microrregiões de Frederico Westphalen (26 municípios), Três Passos (15)
e Carazinho (13), pertencendo os restantes às microrregiões de Ijui (4), Passo Fundo (2) e Erechim
(1).
Na divisão do Rio Grande do Sul em Conselhos Regionais de Desenvolvimento Econômico
e Social (COREDE) – criados em 1991 e legalmente regulamentados em 1994 –, esses municípios
correspondem, quase todos, ao COREDE Médio Alto Uruguai (cujo município mais populoso é
Frederico Westphalen), ao COREDE Produção (onde se destaca, em termos populacionais, Passo
Fundo, seguido de Carazinho) e ao COREDE Noroeste Colonial (sobressaindo Ijui e depois
Panambi). Esses Conselhos formam área de considerável heterogeneidade interna em termos
socioeconômicos. Por exemplo, enquanto o COREDE Produção exibe uma forte presença do setor
industrial na estrutura do seu Valor Adicionado Bruto (VAB), o COREDE Médio Alto Uruguai tem
na agricultura mais da metade desse valor. De outra parte, a participação nos totais gaúchos
relativamente a Produto Interno Bruto (PIB) e população é bastante distinta: o COREDE Produção
exibe representatividade não muito inferior ao dobro da relativa ao COREDE Noroeste Colonial e
correspondente ao triplo ou mais da que se refere ao COREDE Médio Alto Uruguai (Tabela 1).
Tabela 1 – População, PIB e Valor Adicionado Bruto (VAB) nos COREDES que concentram
os municípios da COOPERBIO – 2004
População
PIB
Estrutura do VAB (%)
Nº
COREDES
muniMil
%
R$
%
Agri- IndúsSercípios
Habit.
Bilhões
cultura
tria
viços
Produção
34
443,4
4,1
6,0
4,2
27,0
31,3
41,7
Noroeste Colonial
32
306,1
2,8
3,5
2,4
34,1
23,2
42,7
Médio Alto Uruguai
30
176,4
1,6
1,6
1,1
52,5
10,8
36,7
Rio Grande do Sul
467
10.726,1 100
142,9
100
16,3
42,7
41,0
Fonte: Fundação de Economia e Estatística/Núcleo de Contabilidade Social. Obtido em:
<www.fee.tche.br/sitefee/pt/content/estatisticas/pg_pib_municipal_destaques_texto.php>
Acesso
em: ago. 2007
Essa área faz parte da grande região norte do estado gaúcho, na regionalização tripartite
utilizada por Bandeira (2003), um território marcado pelo “predomínio da pequena e média
propriedade; região heterogênea, onde uma produção inicialmente muito diversificada cedeu
espaço, nas últimas décadas, em muitas áreas, para as lavouras mecanizadas do trigo e da soja.” (p.
521). A soja, em particular, penetrou avassaladoramente, primeiro nas proximidades do Rio
Uruguai, depois (e com maior intensidade) mais ao sul (onde se destacam Carazinho e Passo Fundo,
por exemplo), ao ritmo dos impulsos representados pelos convidativos preços internacionais, pelo
próprio aumento do mercado e pelos incentivos governamentais às exportações.
O dinamismo da soja foi especialmente forte nos anos 70, em escala estadual (Alves, 2006),
tendo depois arrefecido em função, talvez em primeiro lugar, do término do financiamento de baixo
custo e da crise do cooperativismo no Rio Grande do Sul (Bandeira, 1995). Mas até recentemente o
5
cultivo dessa oleaginosa exibe resultados que chamam a atenção: Lazzari (2005) sublinha que, no
início da década em curso, as microrregiões de Passo Fundo, Ijui e Carazinho figuravam entre as
que assistiam, em todo o estado, ao crescimento da área plantada de soja, com franco recuo de
outras atividades, notadamente a cultura de milho. Historicamente, a conseqüência desse turbilhão
sojicultor foi uma grande modificação no meio rural gaúcho em termos tanto produtivos como
sociais. Isso ganhou tradução, entre outros aspectos, no surgimento do que Schneider (1995)
chamou de “agricultores profissionais”, integrados ao padrão agroindustrial que se enraizou e se
tornou prevalecente.
Assinale-se que o referido processo foi acompanhado, no noroeste gaúcho, por notável
expansão do setor de máquinas e implementos agrícolas, irrecusavelmente estimulado pelo
desempenho dessa agricultura de perfil empresarial. Mostram envolvimento nessa expansão
industrial principalmente as sedes de municípios como Panambi e Passo Fundo (Castilhos, 2007).
Todavia o processo de modernização-tecnificação da agricultura não incorporou a totalidade
dos agricultores. Como salienta Mertz (2004), muitos não conseguiram trilhar esse caminho, a sua
marginalização-exclusão certamente figurando com destaque entre as causas dos altos níveis de
pobreza atualmente observados na área, sobretudo em vários bolsões no meio rural. De fato, dados
do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (Atlas..., 2003) mostram que, em 2000, não havia
um só município, entre todos os que formam o espaço de atuação da COOPERBIO, exibindo renda
per capita ao menos próxima da renda per capita média do Rio Grande do Sul como um todo.
Alguns municípios exibem números extremamente baixos, destacando-se Redentora, na
Microrregião de Três Passos, e Cristal do Sul, na Microrregião de Frederico Westphalen, com
defasagem perante a média estadual de 73% e 69%, pela ordem. O quadro de dificuldades locais
não muda quando se considera o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), também
disponibilizado pelo Atlas, pois apenas 5 municípios ostentam IDHM superior (em dois casos, só
ligeiramente superior) à média estadual (Tabela 2).
Essa situação espelha as dificuldades sofridas pelo noroeste riograndense nas décadas de 80
e 90, fruto de combinação entre os reflexos da política econômica (implicando corte de subsídios,
diminuição do financiamento, alterações nas medidas voltadas à comercialização, aumento nos
juros) e a deterioração da conjuntura internacional, principalmente no que concerne ao
encolhimento dos preços de produtos essenciais da região, como a soja. Ora, o “desempenho da
agropecuária regional nesse período propaga-se para os demais setores, resultando em uma queda
na economia da região no contexto estadual.” (Caracterização..., 2000, p. 148). Assim, por conta
igualmente do impulso de reestruturação vinculado ao aumento da concorrência subseqüente à
abertura comercial do país, na década de 90, o emprego industrial se modifica, destacando-se uma
vertiginosa queda no segmento de máquinas e implementos agrícolas (Op cit.).
Daí não surpreender uma dinâmica populacional em que é clara a tendência ao abandono da
área. Apenas 15% dos municípios abrangidos pela COOPERBIO não registraram perda absoluta de
população entre os censos de 1991 e 2000, segundo o Atlas (2003). Crescimento populacional de
alguma expressão ocorreu só em alguns poucos municípios mais populosos, aparecendo entre os
mais importantes os aumentos registrados em Sarandi (18%), Panambi (11%) e Frederico
Westphalen (7,3%). De todo modo, o padrão de centralidade urbana em nível de mesorregião
manteve-se inalterado, logrando até fortalecimento: as aglomerações descontínuas formadas por
Ijui, Cruz Alta, Santa Rosa, Santo Ângelo, Horizontina e Panambi, num caso, e por Passo Fundo,
Carazinho, Erechim e Maraú, no outro, a primeira representando um eixo industrial e a segunda, um
importante eixo agroindustrial, seguem vertebrando a estrutura espacial da região (Caracterização...,
op cit.).
É importante acentuar que essa trajetória do setor agroindustrial mostra-se entrelaçada com a
história do cooperativismo na área. Tal história registra um forte avanço – provavelmente o mais
intenso em escala de Rio Grande do Sul – do cooperativismo empresarial, fruto da transformação de
estruturas cooperativas que, na primeira metade do século XX, haviam sido criadas para permitir
aos produtores enfrentar dificuldades de crédito e também de cunho produtivo. Essas cooperativas
tradicionais apresentavam-se fortemente ligadas à ação pública e exibiam perfil sobretudo
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comunitário, configurando organizações de pequeno porte que aglutinavam grupos restritos de
agricultores (Duarte, 1986).
As grandes mudanças experimentadas na economia brasileira a partir dos anos 50, com
realce para o desenvolvimento industrial, repercutiram no cooperativismo, já que as estruturas
anteriores mostraram-se incapazes de responder, em termos econômicos ou organizacionais, às
exigências de um complexo agroindustrial calcado no cultivo de grãos e mirando o mercado
internacional. Assim, à modernização da agricultura articulou-se a modernização das cooperativas,
o resultante cooperativismo empresarial acabando por agregar também pequenos agricultores às
voltas com dificuldades de financiamento: estes tiveram que procurar as cooperativas “quando
surgiu a necessidade de trabalhar com o trigo e, posteriormente, com o soja, em função do crédito e
subsídios abertos para estes produtos e do mercado promissor para os mesmos.” (Op cit., p. 48).
Tabela 2 – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) na área de abrangência da
COOPERBIO – 2000
MicrorMicrorRegião Município
IDHM Região
Município
IDHM
0,714
Barra Funda
0,813
Alpestre
0,754
Boa Vista das Missões 0,767
Ametista do Sul
0,794
Cerro Grande
0,725
Caiçara
0,796
Chapada
Constantina
0,816
0,704
Jaboticaba
Cristal do Sul
0,734
Lajeado do Bugre
0,711
Dois Irmãos das Missões 0,731
0,732
CaraNova Boa Vista
Engenho Velho
0,815
0,740
Zinho
Novo Barreiro
0,767
Erval Seco
0,834
Palmeira das Missões 0,784
Frederico Westphalen
0,714
Sagrada Família
0,735
Gramado dos Loureiros
0,778
Sarandi
Irai
0,791
0,720
São José das Missões 0,753
FredeLiberato Salzano
0,728
S. Pedro das Missões
0,784* rico
Nonoai
0,739
WestNovo Tiradentes
Erechim Entre Rios do Sul
0,757
0,767
phalen
Palmitinho
Passo
Pontão
0,761
0,747
Pinheirinho do Vale
Fundo
Ronda Alta
0,780
0,741
Planalto
Barra do Guarita
0,765
0,706
Rio dos Índios
Bom Progresso
0,754
0,809
Rodeio Bonito
Braga
0,703
0,813
Rondinha
Campo Novo
0,736
0,761
Seberi
Crissiumal
0,786
0,769
Taquaruçu
do
Sul
Derrubadas
0,759
0,767
Três Palmeiras
Três
Esperança do Sul
0,708
0,744
Trindade
do
Sul
Passos
Humaitá
0,802
0,724
Vicente Dutra
Miraguaí
0,726
0,764
Vista Alegre
Redentora
0,669
Condor
0,793
Sede Nova
0,793
Coronel Bicaco
0,768
Tenente Portela
0,769
Ijui
Panambi
0,820
Tiradentes do Sul
0,746
Santo Augusto
0,766
Três Passos
0,822
Rio Grande do Sul
0,814
Vista Gaúcha
0,784
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (2003)
* O Município de São Pedro das Missões não consta do Atlas. Como esse município foi
desmembrado, em abril de 1996, do Município de Palmeira das Missões, optou-se por completar a
tabela estendendo para o primeiro o IDHM do segundo, admitindo a hipótese de que suas estruturas
sejam muito semelhantes.
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Na medida em que as cooperativas tradicionais foram incorporadas por essas estruturas de
perfil empresarial, o pequeno produtor não só teve aprofundada a sua dependência em relação a
estas – inclusive pela troca da sua produção costumeira pelo cultivo de grãos (trigo, soja), cujas
demandas em insumos e equipamentos são elevadas –, como tendeu a amargar uma piora na sua
condição associativa. Motivo: o cooperativismo empresarial “relega o papel do cooperativado
(principalmente os pequenos produtores) à sua função de usuário, eliminando o seu papel de dono
(...)” (Op cit., p. 48-49). Essa vinculação estreita mostrou implicações particularmente adversas
quando, decorrente das interações entre o modelo de cooperativismo empresarial e o capital
financeiro, origem e nutriente de um forte processo de endividamento causado pelas necessidades
de financiamento no auge da soja, as cooperativas entraram em crise financeira no início dos anos
80.
O endividamento despontou, de fato, entre os fatores da crise que se abateu sobre o
cooperativismo do Rio Grande do Sul e se aprofundou na década de 90, segundo sistematização de
literatura realizada por Ew (2001). A escassa capitalização lograda no período anterior, a forte
incidência de créditos de curto prazo, a elevação dos juros internacionais e a desvalorização da
moeda brasileira (grande parte dos empréstimos fora feita em dólares) perfilaram-se entre os vetores
da crise. Posteriormente, a já mencionada degradação da conjuntura internacional no que respeita à
soja, somando-se a fatores mais estruturais e referentes às próprias organizações cooperativas,
agravou a situação, impondo o descortinamento de medidas para recompor as condições de atuação
do cooperativismo agropecuário. Vincula-se a esse processo a associação anteriormente
mencionada entre o declínio da soja, após o boom dos anos 70, e a crise do sistema de cooperativas
no Rio Grande do Sul, uma mistura com repercussões especialmente fortes no noroeste gaúcho.
É esse o cenário da experiência cooperativista ligada aos biocombustíveis que figura no
centro deste artigo: o noroeste gaúcho, não obstante uma intensa e histórica participação na escalada
agroindustrial que fez a Região Sul despontar em nível de país, exibe numerosos bolsões de pobreza
na zona rural e configura área onde a crise do cooperativismo empresarial afetou profundamente os
pequenos agricultores. Vale considerar que, diante disso, a criação de uma cooperativa voltada aos
biocombustíveis poderia se revelar iniciativa, por assim dizer, temerária. Todavia, como se verá, a
estrutura contemplada não guarda relação, no seu princípio ou na sua organização, com o modelo de
cooperativismo empresarial que imperou nas últimas décadas. E, de mais a mais, em que pese a
crise geral do cooperativismo, esse tipo de estrutura parece ainda merecer a confiança dos
produtores rurais, como sugere a pesquisa efetuada por Fröhlich et al. (1996).
4. COOPERBIO: uma experiência em construção
Esta seção baseia-se em convivência de vários dias com integrantes da COOPERBIO, em
abril de 2007. Desse convívio resultaram numerosas horas de gravação, tanto de entrevistas com
quadros técnicos da cooperativa quanto de manifestações e depoimentos emitidos em reuniões.
4.1 O sentido da COOPERBIO
A concepção e a iniciativa de criação da COOPERBIO refletem o estágio dos debates,
travados no âmbito do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), sobre o quanto o
cooperativismo genuinamente organizado em bases comunitárias, com a voluntária associação de
pequenos produtores, pode representar na superação das dificuldades enfrentadas pela agricultura
familiar. Especialmente promissora, na ótica privilegiada, é a agregação de práticas produtivas
agroecológicas, que contribuem para quebrar a dependência em relação a insumos fabricados a
montante da cadeia produtiva (adubos químicos, ração). “A COOPERBIO surge desse processo. [A
idéia é produzir] alimentos e também energia, com capacidade de garantir renda, pois não basta
produzir o alimento consumido no dia-a-dia se não se obtém renda.” (Técnico agrícola entrevistado)
Segundo frisado pelo presidente da cooperativa, a aproximação do MPA ao físico Bautista
Vidal, idealizador do Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL), e ao geólogo Marcelo
Guimarães, o já referido criador das microdestilarias de álcool, lubrificou a incorporação da
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problemática energética aos interesses do movimento. Essa aproximação representou difusão da
idéia de que é possível produzir energia em pequena escala e estimulou a reflexão sobre a
organização das respectivas atividades em consórcio com a produção de alimentos.
Esse é o contexto em que se deu a criação da COOPERBIO em 2005, na confluência das
ações de diferentes movimentos sociais, mas sob a direção do MPA. Seu objetivo, no que tange
especificamente aos biocombustíveis, é organizar a produção e a comercialização de álcool
hidratado e de óleo vegetal in natura (OVN). Para tanto, a cooperativa dispõe de quadro com 15
técnicos agrícolas, 6 engenheiros agrônomos, 1 arquiteto, 1 químico industrial tecnológico, 1
engenheiro químico de alimentos e 1 engenheiro mecânico, distribuídos nas sedes regionais de
Palmeira das Missões, Sarandi, Frederico Westphalen e Três Passos. Todos são militantes de alguns
dos movimentos da Via Campesina – uma organização internacional fundada em 1992 que se
dedica à defesa dos interesses dos camponeses – e desempenham papel que, conforme as
entrevistas, não se resume aos biocombustíveis, mesmo que estes sejam o foco principal: “os nossos
técnicos (...) trabalham com toda a propriedade: eles vêem os grãos, as arbóreas, o pasto, a casa”
(Engenheiro agrônomo entrevistado).
Sobre os cooperados, deve-se assinalar que, devido ao pouco tempo de funcionamento, no
período da pesquisa muitos estavam em fase de capitalização, isto é, de adesão à cooperativa.
Assim, embora a expectativa seja atingir 12 mil famílias envolvidas, naquele momento contava-se
só com algumas dezenas. As famílias formam grupos de produtores com número entre 8 e 10, e seu
envolvimento é regido por contratos entre as famílias que compõem cada grupo e entre estes e a
cooperativa. O segundo tipo de contrato versa sobre a compra do combustível e a disponibilização
de equipamentos, algo essencial tendo em vista que só a COOPERBIO pode negociar o combustível
com a PETROBRAS, estando os grupos familiares impossibilitados de fazê-lo. Merece também
realce que a COOPERBIO tenha parcerias com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(EMBRAPA), a Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão
Rural (EMATER-RS), a Fundação Centro de Experimentação e Pesquisa (FUNDACEP), a
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e a Universidade Regional Integrada (URI), além de
convênios com a ELETROSUL e a PETROBRAS. A parceria com a UFSM, cabe frisar, recobre
ações referentes a “toda a logística do projeto: localização de estradas, armazenadores, secadores.”
(Técnico agrícola entrevistado).
É também importante aludir ao realce freqüentemente dado por membros da cooperativa ao
fato de que a produção de biocombustíveis é considerada instrumento para alcançar os resultados
verdadeiramente estratégicos do MPA: melhorar as condições de vida dos pequenos agricultores,
usar a terra e os demais recursos de forma sustentável e organizar coletivamente as famílias, entre
outros objetivos. Isso foi sublinhado para indicar que a produção de álcool e óleo combustível não é
um fim em si mesmo, no sentido de que o resultado econômico seja o principal balizador das ações,
mesmo que esse fator não possa ser ignorado. A pretensão é que tal aspecto figure como parte de
um projeto mais amplo, diferente (e alternativo) do que se tornou hegemônico no cooperativismo da
região nas últimas décadas. Nas palavras de um agricultor, “o central e o importante é a organização
do MPA; a COOPERBIO tem mais a função de juntar os agricultores para produzir
biocombustível”.
4.2 Iniciativas para produção de álcool
A produção de álcool, no projeto da COOPERBIO, tem na cana-de-açúcar a sua matériaprima básica. Contudo também se cogita a utilização de mandioca, o interesse pela qual se estende à
importância dos co-produtos, fruto do aproveitamento tanto das raízes quanto das folhas. A opção
pela cana-de-açúcar se refletia no fato de que agricultores que plantavam esse vegetal já tinham se
associado até o período da pesquisa de campo. E como o cultivo deve ocorrer sob o signo da
produção consorciada – “o sistema que a gente defende é nem pensar em monocultura”, no
veemente esclarecimento de um técnico agrícola entrevistado –, a idéia é disseminar a prática de
plantio com 1,5 metro de distância entre as fileiras de cana, intercalando, por exemplo, com feijãode-porco.
9
Uma única microdestilaria encontrava-se em funcionamento quando da visita à área. Instalada
no Município de Redentora (Microrregião de Três Passos) e operando havia alguns meses, tratavase, na verdade, de um protótipo, representando tecnologia alternativa e instalado em decorrência de
parceria com a PETROBRAS. A condição era experimental, pois se objetivava detectar a
viabilidade técnica desse tipo de produção, o que envolvia observar a qualidade do produto, isto é, o
grau GL do álcool obtido (a ANP estabelece em 96 GL o patamar mínimo aceitável). No momento
da pesquisa já se havia constatado a viabilidade, pois os resultados das primeiras experiências foram
satisfatórios: em que pese o caráter temporário da estrutura, já que a microdestilaria tinha sido feita
em uma metalúrgica (cooperativa de metalúrgicos) de Porto Alegre, com uma parte adaptada por
engenheiros e outros integrantes da cooperativa, obtivera-se álcool com 98 GL.
O projeto contempla, de um lado, a criação de 9 microdestilarias capazes de produzir 500
litros/dia cada uma, representando tipo de instalação também apto a proporcionar cachaça, melado
e açúcar mascavo, e, de outro lado, uma usina de retificação para processar 5.000 litros/dia
(localizada no Município de Frederico Westphalen). Apresentando-se como estruturas de fácil
utilização, pelo que se depreendeu das entrevistas, essas microdestilarias deverão ser operadas e
geridas por grupos de 8 a 10 famílias, definidos segundo critérios de afinidade, de proximidade
entre as respectivas propriedades e de quantidade de hectares disponíveis para o cultivo de cana-deaçúcar. Informação prestada por uma bióloga da COOPERBIO indicou um grande interesse de
famílias de agricultores de toda a região na produção de álcool, por conta do estímulo dos primeiros
resultados, autorizando prever que a área abrigará bem mais do que as 9 microdestilarias do projeto.
A tabela 3, construída com base em estimativas da própria cooperativa, oferece uma idéia
sobre as necessidades de uma tal microdestilaria, considerando-se a operação por grupo de 10
famílias. Os técnicos calculam que, com produtividade média de 70 toneladas de cana-de-açúcar
por hectare plantado, é possível suprir a demanda por matéria-prima cultivando área de 2,5 hectares
por família, a somatória do grupo perfazendo 25 hectares. Assinale-se que, quando se fez a pesquisa
de campo, a COOPERBIO testava 50 mudas de variedades de cana disponibilizadas pela Empresa
de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI). Esperava-se desenvolver
variedade que permita uma média de 150 toneladas por hectare, mais que o dobro da produtividade
atual, representando uma menor exigência de área por grupo de famílias.
Tabela 3 – Estimativa sobre as condições de operação de uma microdestilaria de álcool
considerando grupos de 10 famílias
Itens
Quantificação
Produtividade do cultivo da cana-de-açúcar 70 toneladas/hectare
Área total disponível para cultivo
25 hectares
Produção esperada de cana-de-açúcar
1.750 toneladas
Rendimento (álcool) por tonelada (de cana) 70 litros de álcool/tonelada
Rendimento (álcool) por hectare plantado
4.900 litros de álcool/hectare
Produção de álcool
122.500 litros/ano
Período de trabalho de 365 dias
335,6 litros/dia
Período de trabalho de 210 dias
583,3 litros/dia
Fonte: Elaboração própria com base em informações obtidas na COOPERBIO
A idéia é que uma das famílias de cada grupo ofereça parte do seu terreno para a
implantação da microdestilaria, baseando-se a escolha no tamanho da área disponível, nas
condições de acesso, nos custos de transporte e na possibilidade de consenso em escala de grupo,
entre outros fatores. A propriedade deve dispor de área para armazenamento do vinhoto (resíduo a
ser usado como insumo agroecológico, em adubação e alimentação do gado), de fonte de água,
necessária ao funcionamento da caldeira, de eletricidade, de capacidade para produção florestal
destinada à obtenção de lenha, assim como para a guarda desta, de local para depositar a garapa e de
cobertura para a proteção da microdestilaria. Os estudos sobre esses atributos são de
10
responsabilidade dos técnicos da COOPERBIO, que devem mapear a propriedade, levantar os
custos e se encarregar da montagem da infra-estrutura.
Segundo apurado, a COOPERBIO estima em cerca de R$ 100 mil o custo de implantação
de uma microdestilaria. Esse valor refere-se só à instalação, sem abranger o terreno e os custos
agrícolas. As 9 microdestilarias previstas, e também a usina de retificação, seriam instaladas a partir
de investimentos da PETROBRAS, sem qualquer ônus para as famílias. Posteriormente, na medida
em que o projeto se fortaleça, cogita-se a implantação de microdestilarias em todas as localidades
onde surja interesse, utilizando-se para tanto as linhas de crédito disponíveis para os agricultores
familiares.
No que concerne à operacionalização, considera-se que basta um único trabalhador para
garantir o funcionamento da microdestilaria, ficando para cada grupo de famílias as tarefas de
produção e moagem da cana-de-açúcar. Para a última é prevista a compra de moendas móveis, de
tal modo que não se tenha de “levar a cana [para moer em outro lugar, distante da lavoura]; já fica o
bagaço como adubo e a ponta da cana como alimento, para o gado ir comendo; e já vai estercando e
urinando na lavoura” (Presidente da COOPERBIO em reunião sobre a formação de um grupo
familiar para produzir álcool). De fato, a moenda – o tipo previsto custa cerca de R$ 30 mil, pelas
informações levantadas – economiza o trabalho de transportar a cana para ser moída e, depois, o
relativo ao carregamento do bagaço de volta para a lavoura.
Quanto ao uso do álcool, a COOPERBIO pretende que uma parte seja consumida pelas
próprias famílias e o excedente seja vendido à PETROBRAS através da cooperativa. Em caso de
não cumprimento das determinações técnicas da ANP, o álcool saído das microdestilarias vai para a
usina retificadora, onde se dá a correção do grau GL, após o que tem lugar a comercialização. O
envolvimento da PETROBRAS é essencial, pois representa o canal de escoamento do álcool: as
atividades da cooperativa não podem incluir “a venda para o posto de gasolina; tem que vender para
a distribuidora; temos um contrato pelo qual a PETROBRAS vai comprar toda a nossa produção”
(Presidente da COOPERBIO em reunião sobre a formação de um grupo familiar para produzir
álcool). O encadeamento exibe, assim, produção de cana-de-açúcar e de álcool ao nível do grupo de
famílias – organizado e articulado, por exemplo, com base em contrato de parceria –; compra do
combustível pela COOPERBIO, que, por contrato com cada um dos grupos, fornece-lhes
equipamentos; venda do álcool pela cooperativa à PETROBRAS. Essa estrutura tem implicações.
“O papel da cooperativa é garantir a comercialização e a assistência técnica (...). Então, vamos ter
que tirar daí a taxa de assistência técnica e a taxa de comercialização. Da sobra de vocês a gente tem
que tirar uma parte para ajudar na capacitação, na formação” (Presidente da COOPERBIO na
reunião indicada). Quer dizer, o vínculo dos agricultores é só com a COOPERBIO, sem alcançar a
PETROBRAS. Em caso de desistência dos primeiros, a cooperativa retira os equipamentos, pois o
regime é de comodato.
4.3 Iniciativas para produção de óleo vegetal
Como sublinhado anteriormente, estruturas como a da COOPERBIO logram participação
apenas parcial na cadeia do biodiesel. Com a tecnologia disponível, há possibilidade de produzir
tão-somente o insumo principal, isto é, os óleos vegetais in natura (OVN), ficando-se ausente do
produto final. Assim, no projeto da COOPERBIO, o processo de transesterificação ficará a cargo da
PETROBRAS.
“Diferente do álcool, (...) a última parte da cadeia do biodiesel é muito pesada [em termos
de investimento]. Só a parte final iria concentrar R$ 40 milhões de investimento, enquanto
todo o resto da cadeia produtiva concentra R$ 60 milhões. Então nós precisaríamos de uma
parceria estratégica, que tivesse gestão, poder e mercado, e que nos garantisse o
escoamento.” (Engenheiro agrônomo entrevistado)
Em que pese o caráter parcial do envolvimento, as perspectivas de produção são boas, pois é
relativamente fácil obter o óleo. Este não implica processo de transformação muito complexo, como
ocorre com o álcool, e seu custo de oportunidade é baixo, já que sua matéria-prima também pode
ser produzida de forma consorciada com outras culturas. Essa matéria-prima, como observado
11
anteriormente, relaciona-se a culturas temporárias ou perenes, prevendo-se, no projeto da
COOPERBIO, a utilização de 160 mil hectares para cultivos de ambos os tipos, em sistema de
consórcio. A expectativa é que essa área forneça 120 milhões de litros/ano, representando
produtividade de 750 litros de óleo/ha/ano em média.
A maior aposta da cooperativa, no entanto, é produzir óleo a partir de culturas perenes, não
obstante a necessidade de “trabalhar no início com 80% de soja, porque é o que mais temos hoje;
mas a previsão é ir diminuindo esse percentual e aumentar a participação das culturas perenes”
(Técnico agrícola entrevistado). A razão da ênfase nas culturas perenes é que o tungue (arbórea que
no sul do Brasil produz óleo utilizado na fabricação de tinta, e que está sendo incluída pela
COOPERBIO na produção de biocombustível) e o pinhão-manso (já usado para biocombustíveis
em diferentes experiências no Brasil), as duas principais fontes contempladas, não acarretam custos
anuais de manutenção e plantio. Sua capacidade de produzir óleo vegetal e gerar renda para o
pequeno produtor se desdobra sobre vários anos, e em ambos os casos é elevada a produtividade de
óleo por hectare/ano, atingindo até 1.500 litros no caso do tungue e pelo menos 2.000 litros no do
pinhão-manso. Assim, com apenas 16 mil hectares, seria possível obter 48,8 milhões de litros de
óleo. Quer dizer, com 10% da área planejada, se atenderia 40% da necessidade anual estabelecida,
podendo os 90% de área restantes ser utilizados na produção de oleaginosas em consórcio com
alimentos – por exemplo, “o cultivo da mamona em consórcio com feijão, amendoim, batata-doce e
abóbora garante o uso eficiente dos recursos naturais” (Leal, s/d, p. 12) – sem caracterizar
concorrência, portanto, entre os dois tipos de cultivo. Para a mamona, assinale-se, as condições do
Rio Grande do Sul são especialmente favoráveis devido à incidência de sol. Com manejo
agroecológico e plantio consorciado (com feijão, entre outros), pode-se obter anualmente cerca de
mil litros de óleo por hectare plantado, na avaliação dos técnicos da cooperativa. Destaque-se que,
entre os quadros da COOPERBIO, a idéia é canalizar para a produção de biodiesel e de tintas as
culturas que não fornecem óleo comestível, e para a indústria de alimentos, o óleo extraído de
matérias-primas como girassol e amendoim, “para não haver concorrência”, nas palavras de um
técnico agrícola.
Cabe ressaltar que a COOPERBIO mantém viveiro de mudas e tem disponíveis cerca de 40
mil mudas de tungue, além de outras oleaginosas. Segundo o responsável pelo viveiro, pretende-se
que os cooperados comprem as mudas através do PRONAF Florestal – com pagamento em dez
anos, seis de carência e quatro para quitação – e, futuramente, que estes incorporem o próprio
cultivo das suas mudas. É prevista, assim, a extinção desse viveiro central no médio prazo (há a
possibilidade de transferi-lo para a Universidade Federal de Santa Maria), com a descentralização
do processo de obtenção das mudas (inclusive mediante convênios com viveristas). Contempla-se
efetuar reflorestamento plantando 8 mil hectares com tungue e outro tanto com pinhão-manso,
visando suprir em quatro anos 50% das necessidades com o óleo extraído dessas duas fontes.
Com base na definição das áreas de plantio, a cooperativa projeta a seguinte estrutura para
extração de óleo vegetal: “uma unidade de 600 toneladas/dia, quatro de 60 toneladas/dia e dez de
500 a 1.000 kg por hora. Trazemos o óleo para a unidade principal e fazemos a retificação”
(Engenheiro agrônomo entrevistado), podendo os óleos de diferentes origens ser misturados durante
esta etapa. O funcionamento dessa estrutura implica a:
- instalação de pequenas unidades esmagadoras comunitárias, segundo um planejamento de
consumo de tortas (feitas com resíduos do esmagamento de tungue, pinhão manso, mamona) na
alimentação animal e na fertilização do solo ;
- instalação de unidades de médio porte (60 toneladas de grãos/dia) em sistema de co-geração de
energia elétrica (o que eleva os resultados econômicos, diminui custos de produção e aumenta os
índices positivos do balanço energético);
- instalação de unidade de grande porte no Município de Palmeira das Missões, segundo se
levantou, com avanços técnicos capazes de possibilitar tratamento e padronização com vistas à
obtenção de óleo tanto para alimentação humana como para produção de biodiesel, e que canalizará
o óleo bruto transportado em caminhões desde as pequenas e médias unidades de esmagamento; o
previsto sistema de recebimento de óleo será apto para distintas matérias-primas, e, mesmo que
12
sejam necessários mecanismos mais complexos para gerir os fluxos produtivos, as eventuais
dificuldades seriam equacionadas pelo uso de “silos pulmões de menor porte” (Leal, s/d, p.15).
Além disso, prevê-se o emprego de sistemas de secagem e armazenagem descentralizados,
com tecnologia de secagem de grãos disponibilizada pela EMATER-RS. O secador pretendido é
solar e de baixo custo, podendo resultar em ganhos expressivos para os pequenos produtores: “o
secador tradicional [com lenha] seca um saco [por custo] em torno de 38 a 40 centavos (...); com o
secador solar, sai a 18 centavos; só nisso, dá para imaginar, em mil sacos, quanto é o ganho, tendo
um fluxo de produção de todo um ano; e representa um posto de trabalho para um jovem dentro de
uma comunidade.” (Engenheiro agrônomo entrevistado)
Tudo isso acena com uma ampliação não negligenciável da renda da propriedade. A
realização do esmagamento permite, de fato, uma maior renda, mesmo com o uso de uma
oleaginosa como a soja, cujo rendimento é comparativamente menor. Note-se ainda que no período
da pesquisa de campo o estágio dos trabalhos incluía a definição das coordenadas a respeito das
áreas de implantação do projeto e também a organização dos grupos de famílias para produzir óleo.
Em cada um desses grupos define-se uma coordenação, de cujo coletivo se extrai uma coordenação
municipal, a partir do que se formam as coordenações regionais, encabeçadas pela coordenação
estadual.
4.4 A centralidade da unidade familiar e do sentido de coletividade
Como se observa, no modelo adotado o processo produtivo acontece, em sua maior parte, ao
nível da unidade familiar, no marco de uma forte interação entre os integrantes de cada grupo de
famílias. No esquema idealizado, os custos de produção apresentam-se comparativamente menores,
pois os resíduos significam insumos, a extração local do óleo e do álcool facilitando a utilização dos
co-produtos, como sistematizado na figura 1. É importante ressaltar que o sucesso do projeto
vincula-se à natureza das relações entre as famílias, algo reconhecido na manifestação de um dos
agricultores implicados, em reunião da COOPERBIO com grupo de famílias a serem contempladas
com a instalação de uma das microdestilarias programadas:
“Vai depender muito da confiança um no outro. (...) Daí a importância de a gente não ter um
grupo tão grande, e sim uma maior organização dos componentes, para se conseguir pensar
como grupo e colher primeiro a cana do amigo que está lá embaixo, correndo um risco
maior.” (Depoimento de agricultor em reunião)
Mais ainda:
“É importante a gente pensar na coletividade (...), [ter] essa visão de nosso vizinho melhorar
de vida, de melhorar de vida coletivamente.” (Ibid.)
Esse tipo de manifestação coloca em relevo a solidariedade. Tal ênfase não é fortuita pois,
na região, os vínculos entre as famílias registram um histórico de interações (algo característico
entre agricultores familiares na realização de tarefas conjuntas) e de luta coletiva pela terra.
Observe-se que esse traço acabou fortalecido a partir da criação do MPA, originado nessa
mesorregião em meados dos anos 90, um movimento do qual fazem parte praticamente todas as
famílias envolvidas no projeto da COOPERBIO e/ou a serem incorporadas. De qualquer modo,
encerrando reunião sobre a constituição de um grupo de famílias para produzir álcool, o presidente
da COOPERBIO não se furtou a advertir: “é fundamental a participação do conjunto da família
neste debate, neste processo. Não tenham dúvida que alguém vai plantar a semente da discórdia
entre vocês”.
13
Usina de
Biodiesel
COOPERBIO
Grupo Familiar
MERCADO
CONSUMIDOR
PETROBRÁS
BR Distribuidora
Usina
Retificadora COOPERBIO
Cooperativa X
Microdestilaria
de Álcool
Agroindústria
Familiar
Óleo Vegetal In
Natura
Garapa
Esmagamento
Produção de
Oleaginosas
TORTA
Esmagamento
Produção de
Cana
COOPERBIO
Viveiro de Mudas; Organização da Propriedade (Culturas Perenes; Culturas
Temporárias e Cana-de-Açúcar) e Suporte Técnico (Engenheiros
Agrônomos; Engenheiros Químicos; Biólogos)
Fonte: Elaboração própria com base em informações obtidas na COOPERBIO
Figura 1 – Papel do grupo familiar na produção de álcool e biodiesel
Reconhece-se localmente que a organização interfamiliar é estratégica até para o usufruto
das vantagens derivadas do Selo Combustível Social, já mencionado. Tal selo, recorde-se,
representa incentivo à participação da agricultura familiar na cadeia produtiva do biodiesel por
trazer vantagens aos produtores desse combustível que adquirem a matéria-prima de pequenos
agricultores. Sobre o selo, assim se colocou um engenheiro agrônomo da cooperativa:
“O ponto de vista positivo, qual é? Garante uma janela de participação, uma oportunidade,
nos locais em que os pequenos agricultores (...) estejam organizados, para fazer o que
estamos fazendo. Obriga as empresas, seja estatais, de economia mista ou de capital
privado, a (...) [recorrer à] agricultura familiar por causa dos impostos (...). Então, a
competitividade do biodiesel (...) [frente ao] diesel é garantida pelo selo social. Mas onde
não tem agricultores organizados, estes serão meramente utilizados para fornecer matériaprima. Então, aquilo que era uma oportunidade para os agricultores, passa a ser apenas uma
vantagem competitiva para as empresas (...).” (Engenheiro agrônomo entrevistado)
Os acenos de benefícios para os agricultores não significam, todavia, dispensa de esforço de
convencimento, por parte da COOPERBIO, sobre as vantagens da produção consorciada e
principalmente da organização cooperativa. Sobre o segundo aspecto, a razão é clara: “nós temos
medo de cooperativa aqui (...); tu falas de cooperativa, dá até dor de barriga”, comentou um
agricultor em reunião sobre a formação de um novo grupo familiar para produzir álcool.
Claramente, a questão remete à assinalada crise do cooperativismo amargada nas últimas décadas,
que resultou em consideráveis perdas para numerosos associados.
14
5. COOPERBIO, agricultura familiar e desenvolvimento local: uma discussão
Protagonizada em região que tem entre os traços básicos da sua estrutura rural uma grande
proporção de pequenas propriedades, com indicadores de desenvolvimento que chamam a atenção
pela precariedade, a experiência da COOPERBIO remete quase naturalmente aos debates sobre a
agricultura familiar e o desenvolvimento local. Resumir aqui assuntos tão amplos e caudatários de
tantas contribuições é tarefa que sequer se cogita. Mas referências a alguns pontos específicos
merecem ser efetuadas, objetivando balizar uma discussão sobre as possibilidades incrustadas nas
ações dessa cooperativa.
Caracterizada pelo envolvimento integral dos membros da família na administração e
condução da unidade produtiva e no fornecimento da maior parte do trabalho utilizado, assim como
pela sua condição de proprietários dos meios produtivos empregados (Guanziroli; Cardim, 2000), a
agricultura familiar padece de grandes dificuldades. Os obstáculos à negociação direta da produção,
tornando esses agricultores dependentes das ações de outros agentes – que por isso auferem os
maiores ganhos na comercialização –, e as implicações dos vínculos com a agroindústria, traduzidos
em obrigações no âmbito da produção (uso de insumos químicos, organização produtiva centrada
em intensa mecanização) e fontes de sujeição em vários níveis, formam entre os problemas
enfrentados. Observe-se que essa integração à lógica agroindustrial impõe, como referência geral,
patamares mais elevados de desempenho e tende a piorar as condições de atuação e reprodução das
unidades que não logram participar, do que costumam decorrer processos de franca exclusão
(Abramovay, 1992).
Essa problemática da agricultura familiar entrelaça-se irrevogavelmente com a do
desenvolvimento local no meio rural. De uma forma ampla, “desenvolvimento local” é expressão
evocativa de campo de reflexão e formulação de políticas sobre desenvolvimento que adquiriu vulto
em diferentes países nas últimas décadas. O contexto dessa entronização incluiu mudanças
industriais que atraíram a atenção para experiências genericamente assimiladas à “produção
flexível”, em aglomerações produtivas especializadas, e também alterações na maneira de atuar do
Estado envolvendo a descentralização de distintas funções públicas, entre outros aspectos.
Não raramente essa expressão aparece acompanhada do adjetivo “endógeno”, como em
Vázquez Barquero (2001). Garofoli (1992) diz justificar-se o emprego desse qualificativo “quando
a maior parte dos recursos utilizados é de origem local (...). Nesse estágio, o sistema local pode
estar apto a dirigir o seu próprio processo de desenvolvimento e de transformação (...).” (p. 70). Não
é ocioso assinalar que essa idéia é controversa, pois, dado o grau de interdependência atingido pelos
processos econômicos, até mesmo em escala internacional, cabe ceticismo sobre a efetividade de
processos “endógenos”. Seja como for, essa questão marca presença também em estudos sobre o
meio rural, figurando entre os enfoques identificados por Kageyama (2004) sobre o correspondente
desenvolvimento: um salienta o caráter endógeno de acordo com a perspectiva sublinhada; um
outro privilegia vetores exógenos, enfeixados sobretudo em políticas nacionais (como de
modernização agrícola); um terceiro combina impulsos endógenos e exógenos, destacando os
vínculos locais e externos que envolvem os agentes.
A imbricação entre as problemáticas da agricultura familiar, pelo menos quanto aos aspectos
do aludido binômio subordinação-exclusão, e do desenvolvimento local, no tocante à maior ou
menor possibilidade dos “atores locais (...), através de suas respostas estratégicas, (...)
[contribuírem] para os processos de transformação (...)” (Vázquez Barquero, op cit., p. 10), ajuda a
pensar sobre o alcance da COOPERBIO e suas perspectivas. De fato, tem realce nessa experiência o
problema da busca de alternativas para agricultores familiares há muito castigados por
adversidades, inclusive pela crise de um sistema cooperativista atrelado aos interesses dos grandes
negócios de base agrícola. Explorar caminhos que favoreçam uma reprodução sustentada e menos
sujeita àqueles interesses, com florescimento de capacidade local para comandar processos de
mudança – até no marco de uma redefinição do próprio sentido de comunidade rural e de sintonia
com preocupações ambientais, como propugna Schneider (2004) –, revela-se, assim, procedimento
estratégico. O que dizer do projeto COOPERBIO por esse ângulo?
15
Ficou claro na pesquisa de campo que a iniciativa é perpassada pela intenção de criar
alternativa local que represente contra-força à integração das famílias de agricultores à lógica e à
dinâmica da agricultura de perfil empresarial. Na argumentação em torno disso, não raramente se
recorreu, entre os interlocutores da cooperativa, à idéia de agricultura camponesa.
“A unidade de produção camponesa é praticamente autônoma. Com a integração [ao
agronegócio], ela deixa de ser autônoma, [pois] quem passa a determinar as condições
técnicas é a empresa. Então, para o frango, qual é a condição técnica? É a conversão
alimentar. Do leite, é o teor de gordura. Do suíno, é a espessura do toucinho. Do fumo é a
cor e a textura da folha. Então a unidade de produção camponesa, que é autônoma, passa a
ser condicionada tecnicamente pelo sistema de integração.” (Engenheiro agrônomo
entrevistado)
A palavra de ordem entre os agentes locais é, portanto, “autonomia”, derivada, na
expectativa verbalizada, de uma produção amplamente desenvolvida em sistema de consórcio: nos
termos de uma bióloga da COOPERBIO, durante entrevista, “tudo o que a gente falou aqui sobre
álcool e biodiesel foi pensando em autonomia, pensando no cara não ficar dependente de nada”.
Guarda relação com isso a intenção de difundir, como já indicado, o plantio de cana-de-açúcar de
forma mais espaçada, intercalando as fileiras com, por exemplo, feijão, amendoim e batata. O
mesmo vale para a idéia de cultivar tungue, entre outras oleaginosas, usando para o gado as áreas
internas das superfícies plantadas: tal prática representa fomento à produção leiteira (no marco,
segundo sublinhado, de sistema coerente com os princípios da agroecologia, o Pastoreio Racional
Voisin, fonte de diversos benefícios), na expectativa da anunciada vinda de várias empresas do
ramo para a região ou da ampliação das atividades destas (Nestlé, Embaré, Coorlac). Daí a ênfase
no planejamento das atividades na sua totalidade em cada unidade familiar. A lógica é a da
chamada alternatividade, relativa ao cultivo de uso múltiplo: “da cana, por exemplo, se faz álcool,
cachaça, suco, açúcar mascavo, comida para o gado, adubo” (Engenheiro agrônomo entrevistado)
É por conta desse tipo de problema que a base do processo produtivo, na perspectiva
privilegiada pela COOPERBIO, vincula-se a técnicas agroecológicas, aludidas quando se falou do
Pastoreio Racional Voisin. Segundo o ponto de vista defendido, o uso dessas técnicas esse seria o
único modo de garantir ao agricultor a reprodução do seu sistema sem o recurso à compra de
insumos. Na outra ponta, mas também em conexão com a tentativa de “quebrar” a dependência
perante o sistema industrial, a cooperativa objetiva atuar no escoamento dos produtos, cuja
comercialização é uma das principais preocupações dos pequenos agricultores, historicamente
forçados a realizar contratos pouco rentáveis devido à necessidade de garantir a venda rapidamente.
Desse modo, se o escoamento dos biocombustíveis implica vínculos com a PETROBRAS, a
comercialização dos alimentos conta com as atividades de outra cooperativa ligada ao MPA, que
compra dos produtores e vende, segundo os depoimentos, para a Companhia Nacional de
Abastecimento. O previsto crescimento da produção leiteira consorciada à de biocombustíveis
deverá usufruir dessa estrutura.
Assim, as manifestações locais são perpassadas pela expectativa de que os impactos gerados
localmente serão consideráveis. Isso vale para a produção e para a comercialização, e também para
o plano sócio-político, tendo em vista o incremento na capacidade de reivindicar políticas públicas
resultante da associação entre famílias. O objetivo é que, além dos ganhos monetários na produção
de energia, o agricultor se beneficie com o autoconsumo desta, do que deverão resultar menores
custos na produção de alimentos, seja diretamente, pela utilização do combustível, seja
indiretamente, pelo uso dos co-produtos (torta, bagaço, vinhoto) da fabricação dos biocombustíveis,
convertidos em insumos para correção do solo e alimentação de animais. Não admira, assim, que o
discurso local se mostre impregnado de esperança.
“Graças à capacidade do movimento camponês, do movimento social organizado, nós
conseguimos dar os passos que demos nos últimos anos, e principalmente agora, nesta
questão de produzir alimentos [consorciados] com a produção de energia. E quem é o
movimento? O movimento não é a direção. São as famílias que [dele] fazem parte; cada um
de nós aqui é o movimento. (...) Faz dez anos que eu estou no MPA; até dois anos atrás a
16
posição era de resistência na roça; tinha que encaminhar o crédito, encaminhar a moradia
para o povo resistir na roça. Agora, de dois anos para cá, nós estamos dizendo o seguinte:
não é mais o momento de resistir; é o momento de avançar.” (Cooperado, militante do MPA
e dono da terra onde foi instalado o protótipo da microdestilaria, em reunião)
Também digno de realce é a pretensão de que o projeto seja “ambientalmente correto”, tanto
no próprio âmbito local – haja vista a base produtiva agroecológica e a preocupação com o manejo
sustentável dos recursos naturais – como em escala global (pelo menos no tocante ao sentido
impregnado) – pela ênfase na produção e no consumo de combustíveis renováveis. A visibilidade
relaciona-se, naturalmente, à dimensão local, pois a renúncia ao uso de agrotóxicos significa
benefícios tanto no meio-ambiente imediato (contribuindo, por exemplo, para a conservação da
qualidade do lençol freático) quanto para a saúde do produtor rural. Como salientou um
representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, em reunião para a
formação de um novo grupo de famílias produtoras de álcool, “não podemos produzir energia
renovável e usar insumo derivado do petróleo, que é o adubo químico (...). Temos que ter esse
cuidado, porque isso será cobrado pelas novas gerações.” A lógica da advertência é clara: para que
os biocombustíveis gerem efeitos realmente positivos em termos ambientais, a própria produção dos
seus insumos deve ocorrer no marco da sustentabilidade.
O feixe de iniciativas é inegavelmente sedutor, pelos acenos mais que implícitos. Todavia é
importante discutir as possibilidades da COOPERBIO, contemplando as problemáticas da
agricultura familiar e do desenvolvimento local no noroeste do Rio Grande do Sul, considerando
alguns aspectos chaves do empreendimento. Talvez o mais emblemático diga respeito à busca de
autonomia dos pequenos agricultores perante o sistema agroindustrial, razão de ser da ênfase tanto
na produção consorciada quanto no aproveitamento dos co-produtos do álcool e do óleo
combustível. Esse aspecto combina-se ao da possibilidade de comandar localmente o processo de
transformação e desenvolvimento, um assunto caro ao debate sobre desenvolvimento local, de
forma ampla.
Sobre isso é importante assinalar que o protagonismo local em relação aos biocombustíveis
estará irrevogavelmente vinculado, com laços de dependência, a uma grande estrutura externa: a
PETROBRAS. Isso quer dizer que as condições de atuação da COOPERBIO serão em grande parte
ditadas pelo funcionamento dessa empresa, sem qualquer possibilidade de interferência dos
agricultores, cujo poder de barganha em face da lógica que rege o comportamento daquele
organismo é, como não poderia deixar de ser, simplesmente nulo. Por sua vez, a PETROBRAS
opera em meio a vários condicionantes para o setor de energia determinados em escala planetária.
Assim, fazer parte da estrutura da PETROBRAS, mesmo que nos termos definidos, significa
sujeição a esses condicionantes, tendo em vista a “correia de transmissão” entre as esferas global e
local que tal envolvimento representa. Por conseguinte, a hipótese do desenvolvimento “endógeno”,
com autonomia, mostra-se, para dizer o mínimo, excessivamente otimista.
De outra parte, no que toca à matéria-prima para produzir óleo combustível, será necessário
trabalhar inicialmente com cerca de 80% de soja, conforme depoimento (já explorado) de um
técnico agrícola. Como, segundo admitido nas entrevistas, os pequenos agricultores experimentam
dificuldades para cultivar soja (por problemas de escala e exigências envolvendo maquinário, por
exemplo), a produção de óleo dependerá das colheitas das grandes propriedades da região, um
vínculo que provavelmente se estenderá no tempo. Cabe mesmo dúvida se, haja vista a tradição
sojicultora da área, essa oleaginosa perderá, de fato, espaço para as culturas perenes como fonte de
matéria-prima, a despeito da arquitetura do projeto. Note-se que soja proveniente da agricultura
empresarial significa matéria-prima conectada ao grande capital, inclusive multinacional, que atua
vigorosamente nas áreas de sementes e fertilizantes, entre outras. Ressalte-se também que o papel
da soja na modelagem da paisagem do biodiesel no Brasil, fiel à volúpia com que tal segmento
agrícola avança nesse mercado (Medina, 2006), é evidente: das 38 autorizações para produzir
biodiesel concedidas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP,
2007) até o início do segundo semestre de 2007, 25 referiam-se às regiões sudeste e centro-oeste,
figurando o Estado do Mato Grosso com o maior número (10), seguido de São Paulo (9). A Região
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Nordeste, epicentro histórico da “questão regional” brasileira, registra meros 13%. Tal fato, somado
ao envolvimento apenas marginal dessa região no atual frenesi do álcool (Lobato, 2007), permite
interrogar sobre o real alcance da presente investida nos biocombustíveis em termos de promoção
do desenvolvimento local-regional e de enfrentamento das disparidades socioespaciais, nos termos
observados no discurso oficial. Para o que interessa neste artigo, o aspecto chave é que o vínculo
com a soja certamente significa comprometimento de uma das pedras angulares do ideário da
COOPERBIO: a autonomia das famílias de agricultores.
De todo modo, o projeto dessa cooperativa tem repercutido na mesorregião riograndense. É
natural que assim seja, pois são previstos investimentos iniciais da ordem de R$ 2,3 milhões na
instalação das microdestilarias e de aproximadamente R$ 100 milhões na produção de biodiesel,
com benefícios para cerca de 30 mil famílias de pequenos agricultores. A rigor, notícias recentes
informam que 8 microdestilarias de álcool começarão a operar em meados do segundo semestre de
2007: além da unidade em funcionamento no Município de Redentora, na forma de protótipo e
objeto de considerações nas entrevistas, estarão em atividade as de Caiçara, Cristal do Sul, Erval
Seco, Irai, Pinheirinho do Vale, Seberi, Taquaruçu do Sul e Vista Alegre, cada uma com capacidade
diária para 500 litros (Microdestilarias..., 2007) e localizadas, todas, na microrregião de Frederico
Westphalen, em cuja sede ficará a destilaria central, como já indicado. Não surpreende, desse modo,
que o projeto conte com o apoio das administrações municipais, embora a questão fiscal pareça
figurar como a principal causa desse suporte. De fato, quando interrogado sobre a contribuição das
prefeituras à execução do projeto, um dos interlocutores, pertencente ao quadro técnico da
cooperativa, ponderou que estas
“estão [contribuindo, mas] muito em função da PETROBRAS e do seu [próprio] desespero,
porque a renda desses municípios (...) é o Fundo de Participação dos Municípios; as outras
rendas são muito pequenas, e caíram muito nos últimos anos. Em Palmeira [das Missões]
caíram mais de 45% (...). Os prefeitos estão desesperados, estão todos indo para o Tribunal
de Contas.” (Técnico agrícola entrevistado)
Diante desse quadro, compreende-se que as prefeituras priorizem a diversificação das suas
fontes de receita. Isso envolve impulsionar a economia local, gerando aumento de arrecadação
através de novos empreendimentos. Intervenção de representante da Prefeitura de Erval Seco, em
reunião da COOPERBIO com grupo de agricultores, exprimiu claramente essa preocupação: “[o
álcool] é um produto industrializado; como é que Erval Seco fica nessa história? (...) A comunidade
está aceitando muito bem esses programas de agroindústria, que são não apenas para melhorar a
renda da família, mas também para aumentar a própria arrecadação do municio (...)”.
(Representante da Prefeitura de Erval Seco em reunião para formar grupo familiar produtor de
álcool).
Esse assunto remete ao problema da parcela da arrecadação tributária gerada pelo projeto a
que cada município terá direito. Por exemplo, no que concerne ao biodiesel, a comercialização será
realizada a partir da usina central, localizada em Frederico Westphalen. Sendo assim, a cooperativa
deverá mediar acordo entre os municípios para que todos recebam um montante proporcional à sua
participação no processo produtivo. Segundo o presidente da cooperativa, “vai haver um acordo
tributário entre os secretários da fazenda dos municípios conveniados com a COOPERBIO; [cada
um] vai receber o rateio proporcional ao montante da produção” (Presidente da COOPERBIO em
reunião para formar grupo familiar produtor de álcool).
6. Considerações finais
A COOPERBIO representa tentativa de exploração, por movimentos sociais com presença
no noroeste gaúcho, das possibilidades de melhoria nas condições de vida dos pequenos agricultores
proporcionadas pela maré montante dos biocombustíveis no Brasil. Um histórico de adversidades
na região, com destaque para os amargos e aparentemente duráveis reflexos da crise do
cooperativismo de perfil empresarial, favoreceu e estimulou a opção pelo aproveitamento dessa
alternativa. Trata-se, contudo, de experiência singular e ainda de reduzidas dimensões, não podendo
ser tomada como representativa do que ocorre no âmbito da agricultura familiar em escala local e
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muito menos no Rio Grande do Sul como um todo, ainda que a tendência pareça ser de crescimento.
As iniciativas observadas enfeixam-se nas ações dos movimentos sociais e dizem tão-somente
respeito ao arco de abrangência destas. Como reconheceu o presidente da COOPERBIO em reunião
sobre a criação de um novo grupo familiar para produzir álcool, “a cooperativa nasceu do
movimento (...) e é uma das poucas que está nas mãos do MPA”. Assim, deve-se considerar muito
mais como expressão entusiasmada de desejo uma manifestação como esta, lançada na referida
reunião: “esse processo de produção de energia e de alimentos [de forma conjugada] é muito maior;
não é só para transformar a comunidade, mas é para mudar o Brasil”. Ou ainda esta, do presidente
da cooperativa na mesma reunião, em tom de exortação: “vocês não têm idéia do desafio que estão
assumindo; vocês são os protagonistas, e os primeiros sempre têm que abrir todos os caminhos com
maior dificuldade; mas temos que mostrar que dá certo.”
Não há nada de errado no entusiasmo e na postura de incitação, muito pelo contrário. Mas é
importante ter plena consciência sobre as dificuldades que cercam o alcance de objetivos como o da
autonomia das famílias de agricultores. Os dirigentes da COOPERBIO frisam que se trata de “um
novo modelo cooperativista (...); a idéia é que o controle esteja na mão de vocês”, como exposto
pelo presidente na mencionada reunião. Mas os vínculos em que as atividades de produção de
álcool e óleo combustível estarão necessariamente enredadas permitem escassas (se algumas)
ilusões sobre isso. Além do mais, é justo postular que a continuidade do empreendimento dependerá
amplamente do resultado econômico dos primeiros anos, sobretudo porque os participantes são, de
uma maneira geral, agricultores familiares calejados pelas frustrações do cooperativismo. Nesse
caso, por mais que os sentidos de coletividade e solidariedade se mostrem enraizados, o
arrebatamento que se julgou detectar em alguns agentes poderá desvanecer, e os agricultores
possivelmente se voltarão para outras atividades.
Seja como for, embora específica, a experiência da COOPERBIO constitui ilustração de
como contingentes organizados percebem as suas possibilidades no atual contexto brasileiro e agem
de acordo. Apesar das interrogações que a cercam, é, no mínimo, iniciativa a ser acompanhada,
avaliada e discutida.
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