® BuscaLegis.ccj.ufsc.br Da validade jurídica das portarias nºs 948 e 949, de 17 de outubro de 1989, do excelentíssimo senhor ministro do exército. João Rodrigues Arruda * Trata-se da validade jurídica das portarias ministeriais nºs 948 e 949, ambas de 17 Out 89, baixadas pelo Exmo. Sr. Ministro do Exército. A discussão se restringe à limitação do tempo de permanência dos militares denominados "temporários" no serviço ativo do Exército. A Port. Min, nº 948, que trata dos Oficiais Temporários, segundo seu item 1, altera a redação do art. 79 das Instruções Gerais da Convocação, Estágios e Promoção dos Oficiais da Reserva, que passaria a ter a seguinte redação: “Art. 79 - O Oficial Temporário não poderá atingir o prazo de 05 (cinco) anos de efetivo serviço, contínuos ou interrompidos, computados, para esse efeito, todos os tempos de serviço militar (inicial, de estágios, prorrogações e outros).” A situação dos Sargentos Temporários é disciplinada pela Port. Min, nº 949, que em seu item 1, altera a redação do nº 1, da letra d, do item 3, das Instruções Gerais para Prorrogação de Tempo de Serviço Militar, in verbis : “1) 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de efetivo serviço para o Sargentos Temporários;” Tem-se, resumindo, que segundo as portarias acima mencionadas, os Oficiais Temporários não poderão ultrapassar 5 (cinco) anos de efetivo serviço, enquanto os Sargentos Temporários têm a limitação nos 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL Além das portarias 948 e 949, temos, a serem analisados, os seguintes diplomas: - Lei nº 4375, de 17 Ago 64 (Lei do Serviço Militar) - Lei nº 6391, de 09 Dez 76 (Dispõe sobre o Pessoal Militar do Exército) - Lei nº 6880, de 09 Dez 80 (Estatuto dos Militares) - Lei nº 7963, de 21 Dez 89 (Institui indenização pecuniária) - Dec. nº 90.600, de 30 Nov 84 (Regulamento para o Corpo de Oficiais da Reserva do Exército - RCORE) DA CARREIRA MILITAR Inicialmente cabe abordar a dicotomia militares de carreira - militares temporários, contida no art. 3º, da Lei nº 6391/76, onde se lê: “Art. 3º. O Pessoal Militar da Ativa pode ser de Carreira ou Temporário. I - O Militar de Carreira é aquele que no desempenho voluntário e permanente do serviço militar, tem estabilidade assegurada. II - O Militar Temporário é aquele que presta o serviço militar por prazo determinado e destina-se a completar as Armas e os Quadros de Oficiais e as diversas Qualificações Militares de praças, conforme for regulamentado pelo Poder Executivo.” Segundo o entendimento predominante na Administração Militar, os Oficiais formados na Academia Militar das Agulhas Negras, os formados na Escola de Saúde do Exército e os do Quadro Auxiliar de Oficiais (oriundos dos quadros de sargentos de carreira), seriam oficiais de carreira, enquanto os formados nos Centros e Núcleos de Preparação de Oficiais da Reserva, apenas temporariamente seriam oficiais do Exército. É sabido, no entanto, que os cargos públicos, aí incluídos os militares, se dividem em cargos de carreira e cargos isolados, sendo que os cargos de carreira "pressupõem, desde logo, uma possibilidade de marcha, de caminho continuado, de acesso ou promoção." (Cretella Junior, in Direito Administrativo Brasileiro, Vol I, p. 505/506). Pontes de Miranda, em seus Comentários à Constituição de 1967 (com a EC nº l/69), é incisivo a respeito: "A lei, se há promovibilidade, não pode estatuir que não é de carreira o cargo" (Tomo III, p. 480) e resume didaticamente a questão: “Na técnica legislativa de direito público, há cargos de carreira e cargos isolados. Os cargos de carreira supõem graus, que se atinjam por promoção, ou, excepcionalmente, por ingresso em graus intercalares, ou em grau superior. Os cargos isolados ou são singulares ou plúrimos. Para ser posto o assunto no plano exclusivamente constitucional, convém partir-se de exemplos:.......................À carreira objetivamente considerada pertencem quaisquer pessoas que hajam ingressado no grau objetivamente inicial, ou em grau objetivamente intercalar, ou no superior, com todas as conseqüências. À carreira subjetivamente considerada pertence quem ascendeu dentro dela; portanto, sem vir de fora. O membro do Ministério Público ou o advogado que foi feito Desembargador pertence à carreira objetivamente considerada, posto que, subjetivamente, não tenha ele feito a carreira.” (Tomo III, p. 436, mantidos os grifos). No art. 35, do Dec. 90.600/84, encontramos a norma que sepulta quaisquer dúvidas ou tentativas de negar aos Oficiais oriundos dos CPOR ou NPOR, quando convocados para o serviço ativo e após exercício continuado, inclusive com promoções até o posto de capitão, a condição de Oficiais de Carreira, objetivamente considerados: “Art. 35 - Os Oficiais R/2, poderão, em tempo de paz ter acesso gradual e sucessivo nas respectivas Armas, Quadros e Serviços, até o posto de Capitão...........” O Art. 5º da Lei nº 6880/80, Estatuto dos Militares, que "regula a situação, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas dos membros das Forças Armadas" (Art. lº), também milita em favor dessa tese: “Art. 1º. A carreira militar é caracterizada por atividade continuada e inteiramente devotada às finalidades precípuas das Forças Armadas, denominada atividade militar.” No que respeita às promoções, às quais também os Oficiais denominados "temporários" têm direito, conforme já dito acima, o Estatuto dos Militares preconiza em seu art. 59: “Art. 59. O acesso na hierarquia militar, fundamentado principalmente no valor moral e profissional, é seletivo, gradual e sucessivo e será feito mediante promoções, de conformidade com a legislação e regulamentação de promoções de oficiais e praças, de modo a obter-se um fluxo regular e equilibrado de carreira para os militares.” Vê-se, deste modo, que a dicotomia militares de carreira - militares temporários, contida no art. 3º da Lei nº 6391/76, apresenta flagrante imperfeição técnico-legislativa, que pode levar a interpretações completamente divorciadas da doutrina e da realidade factual. Há que se buscar exegese própria para o referido texto legislativo, de modo a tornálo harmônico no caso de permanência prolongada de militares "temporários" no serviço ativo do Exército. O fato de o legislador lançar a classificação no texto legal não implica em sua aceitação indiscriminada, sem perquirir sobre a legitimidade da norma escrita. Dissesse a lei, formalmente perfeita, que o preto é branco ou que o quadrado é redondo, e nem assim tais afirmações teriam validade. Como diz Diogo de Figueiredo, "mesmo uma Assembléia Constituinte, por mais independente que seja, por mais inovadora que pretenda ser, por mais distante ou antagônica da sociedade à qual se proponha organizar e regrar, embora não esteja juridicamente vinculada, não pode ignorar por completo as vigências sociais emergentes como interesse público - está, portanto, jungida à legitimidade." (in Legitimidade e Discricionariedade, Forense, 1989, p.9). Aliás, o tratamento que vem sendo dispensado aos militares temporários lembra a figura do "interino" nos quadros do funcionalismo civil. A esse respeito assim se manifestou, com muita propriedade, o constituinte Pedro Vergara, representante gaúcho na Assembléia Constituinte de 1934: “E nós sabemos Sr. Presidente, qual é o sentido da expressão funcionário interino; ela significa para a praxe administrativa do nosso conhecimento, que o funcionário não tem garantia alguma de estabilidade, seja qual for a natureza da função e o tempo de serviço; pelo uso e abuso da interinidade e sobretudo pela sua persistência sine die, os governos têm obviado os óbices da vitaliciedade e por esse sistema, o poder de nomear e de demitir dos presidentes só tem prosperado; pode-se dizer, mesmo, que as interinidades têm sido um dos fatores da hipertrofia do Executivo. É preciso, pois, delimitar, juridicamente, o sentido da expressão.” (Anais, Vol. 12, p. 28, mantidos os destaques). A rigor, os militares "temporários" vêm sendo tratados como se fossem servidores ocupantes de cargos de confiança, demissíveis ad nutum, quando em verdade os cargos que ocupam não são de tal natureza. DOS VÍCIOS Quanto à competência O primeiro ponto a ser abordado diz respeito à competência para fixação do limite temporal de permanência dos militares temporários em serviço ativo, através de portaria ministerial. Conforme já comentado, os oficiais tiveram o tempo de permanência limitado, a partir de 17 Out 89, pela Port. Min. nº 948, em 5 (cinco) anos. Para os sargentos o limite de permanência passou a ser de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses, segundo a Port. Min., nº 949. Veja-se inicialmente a questão dos oficiais, que apresenta ligeira diferença em relação a dos sargentos. Até a publicação da Port. Min. nº 948, o tempo máximo de permanência dos oficiais temporários em serviço ativo era de 10 (dez) anos, segundo os termos do art. 34, do Dec. 90.600/84 - Regulamento para o Corpo de Oficiais da Reserva do Exército (RCORE). Deste modo, temos evidenciado que o tempo máximo estabelecido em decreto foi reduzido através de uma portaria. A ilegalidade é flagrante. Quanto aos sargentos, o tempo anteriormente fixado em portaria, foi reduzido por ato do mesmo nível, sem aparente vício de competência. Em ambos os casos, no entanto, é de se lembrar a existência de leis ordinárias tratando da matéria. A Lei do Serviço Militar - nº 4375/64, em seu art. 33, trata das prorrogações de tempo de serviço dos militares nos seguintes termos: “Art. 33. Aos incorporados que concluírem o tempo de serviço a que estiverem obrigados poderá, desde que o requeiram ser concedida prorrogação desse tempo, uma ou mais vezes, como engajado ou reengajado, segundo as conveniências da Força Armada interessada. Parágrafo único - O prazos e condições de engajamento e reengajamento serão fixados em Regulamentos, Normas e Instruções especiais, baixados pelos Ministérios da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica.” Note-se que a Lei do Serviço Militar deixa aos ministérios militares a fixação dos prazos e condições, mas não o número de prorrogações, que podem ser uma ou mais vezes, como quer o legislador ordinário, que deixou em aberto o termo final. Poderia então o Executivo, através de um decreto (nº 90.600, art. 34), ou portaria (nºs. 948 e 949) inserir a norma limitadora substituindo o legislador em sua função ? Obviamente que não. O professor Geraldo Ataliba, em excelente tese aprovada por unanimidade na VIII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, assim se refere: “Não tolera a nossa Constituição que o Executivo exerça nenhum tipo de competência normativa inaugural, nem mesmo em matéria administrativa. Essa seara, foi categoricamente reservada aos órgãos da representação popular. E a sistemática é cerrada, inflexível. Se a tal conclusão não foi levado o intérprete, pela leitura das disposições que delineiam a competência regulamentar, certamente esbarrará no princípio da legalidade, tal como formulado: ninguém, nenhuma pessoa, nenhum sujeito de direito será constrangido por norma que não emane do legislador.” E adiante: “Donde a impossibilidade material de o regulamento suprir a eventual omissão do legislador, ou pretender completar sua obra, onde ela tenha sido insuficiente.” (in Revista de Informação Legislativa, nº 66, a. 17, 1980, p. 45 e seguintes). Pontes de Miranda (obra citada) preleciona sobre o mesmo tema: “Se a lei fixou prazo, ou estabeleceu condição, não pode alterá-lo ou excluí-lo o regulamento. Se a lei falou de prazo razoável, deixando a apreciação ao Poder Judiciário, ainda que implicitamente ou a alguma autoridade registária, ou concebido a favor dos particulares, à verificação das autoridades administrativas, não pode o regulamento substituí-lo pelo prazo fixo. Nem transformar em prazo razoável, ou a líbito da autoridade, ou marcável em cominação, o prazo fixo.”...................Determinar o dies a quo ou o dies ad quem de regra jurídica é legislar.” (p. 316 e 319) E arremata às fls. 615: “Porque regulamentar além do que se pode segundo o conceito da Constituição, é infringir a Constituição: quando o Poder Executivo, regulamentando, vai além da lei, ou diminui o campo de incidência da lei, não comete, apenas, ilegalidade, usurpa função de outro poder, o Poder Legislativo.” A competência do Poder Executivo está assim restrita à regulamentação. Plácido e Silva, em seu Vocabulário Jurídico, assim se manifesta sobre regulamento: “Por ele, instituem-se regras de execução, não de legislação.....” (destaques do original). Não há que se confundir, portanto, com regular termo que o mesmo Plácido e Silva assim registra: “REGULAR - Do latim regulare, de regula (regra), em sentido jurídico quer exprimir legislar ou estabelecer nova ordem jurídica, mediante instituição de regras ou princípios disciplinadores dos fatos ou das coisas.” (mantidos os destaques). Vimos, anteriormente, a Lei do Serviço Militar em seu art. 33, parágrafo único, permite aos ministérios militares fixar os prazos e condições das prorrogações de tempo de serviço, que poderão ser concedidas, repita-se, uma ou mais vezes. O Executivo, através do Decreto nº.90.600/84, da Port. Min, nº 948 e da Port. Min. nº 949, ambas de 17 Out 89, fixou o limite máximo, criando o termo final da prestação de serviço para os temporários. Do Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, temos: “DELIMITAR: V.t.d.1. Fixar os limites de; estremar, demarcar. 2. Por limites a; circunscrever, restringir.” No campo do Direito isso é legislar. Se o decreto ( ou a portaria) delimita, institui, fixa prazo final, não regulamentou e sim regulou, ou seja, criou regra jurídica, restringiu, delimitou direito, exorbitou da competência à qual estava restrito, invadindo a esfera de competência do Poder Legislativo. É, portanto, ILEGAL. Ao mesmo tempo, é de se ter em conta que quando o legislador faz uso de expressões tais como "na forma a ser regulamentada pelo Executivo" ou "compete ao Ministro do Exército baixar instruções a respeito", e outras semelhantes, não está delegando competência ao Executivo ou ao Ministro para legislar sobre o tema, mesmo porque uma delegação de tal ordem seria inconstitucional, pelo princípio da indelegabilidade das funções, que só excepcionalmente pode ser ultrapassado mediante procedimento específico. Ao Poder Executivo cabe, nos limites constitucionais, "expedir decretos e regulamentos para a sua - da lei - fiel execução." Do mesmo modo que expressões do tipo "poderá ser concedido", quando dirigidas pelo legislador ao administrador, não se traduzem em faculdade concedida ao mesmo para conceder ou negar ao seu talante. O equívoco na interpretação do vocábulo “poder” é comum quando são transplantados precipitadamente para o Direito Público conceitos próprios do Direito Privado. “O poder-dever de agir da autoridade pública é hoje reconhecido pacificamente pela jurisprudência e pela doutrina. O poder tem para o agente público o significado do dever para com a comunidade e para com os indivíduos, no sentido de que quem o detém está sempre na obrigação de exercitá-lo.” (Hely Lopes Meirelles, in Direito Administrativo Brasileiro, 5ª Ed. p. 76, mantidos os grifos) Merece atenção, também, que "a conveniência do serviço" das Forças Armadas, de que trata a parte final do art. 33, da Lei do Serviço Militar, já reproduzido, requer que a Administração explicite os motivos que levaram o administrador a praticar o ato, sob pena de vir o mesmo cair sob a apreciação do Judiciário. Quanto à finalidade A finalidade dos chamados temporários está explícita na Lei nº 6391/76, em seu art. 3º, inciso II, antes transcrito. No mencionado inciso podemos destacar: “II - O Militar Temporário é aquele que presta o serviço militar por prazo determinado e destina-se a completar as Armas e os Quadros de Oficiais e as diversas Qualificações Militares de praças..........” Especificamente para os Oficiais, temos semelhante finalidade descrita no Art. lº do Dec. nº 90.600 de 1984, ou seja, "completar os efetivos de Oficiais nas Organizações Militares." A finalidade da criação do quadro dos militares denominados temporários é cristalina: completar as Armas e os Quadros de Oficiais e as diversas Qualificações Militares de praças (Lei nº 6391/76, Art. 3º, II). Desta forma, havendo necessidade eventual de militares para o exercício de funções para as quais não existam militares "de carreira" em número suficiente, os ministérios militares convocam os "temporários" ou, caso já estejam no efetivo exercício das funções, e persistindo a falta de pessoal de carreira, prorrogam o tempo de serviço do ocupante do cargo, temporariamente, por prazo determinado, de modo a não deixar os cargos efetivos sem ocupante. Daí que o legislador ordinário, sabiamente, prescreveu, na Lei do Serviço Militar (art. 33), que as prorrogações poderão ser concedidas uma ou mais vezes e na Lei nº 6391/76, o mesmo legislador ordinário esclarece que as ditas prorrogações serão por prazo determinado, atendendo à própria destinação do Quadro dos Temporários. O prazo determinado de que trata a Lei nº 6391/76, consiste exatamente nas sucessivas prorrogações de tempo de serviço, todas por prazo determinado - 1 ano, 2 anos, etc. - a que periodicamente ficam sujeitos os militares temporários, até que os seus serviços não mais sejam necessários, em virtude da disponibilidade de militares de carreira para a ocupação dos cargos efetivos. E quantas prorrogações, por prazo determinado, cada uma delas, poderão ser concedidas aos militares temporários ? O legislador ordinário preferiu não fixar e o Executivo, como já demonstrado, não poderia fazê-lo. Poderão ser uma ou mais vezes, cada uma por prazo determinado, repita-se, prazo que será fixado pelo Executivo através de regulamentação específica. Mesmo porque, caso o legislador instituísse um prazo máximo, qualquer que fosse, poderia implicar em prejuízo para a Administração Militar. Vencido o prazo, tivesse o legislativo fixado, mesmo havendo necessidade de continuarem os temporários em serviço ativo, a Administração esbarraria na limitação temporal imposta pelo Congresso. Assim, o militar temporário poderá obter tantas prorrogações quantas sejam necessárias, todas por prazo determinado, para "completar as Armas e os Quadros de Oficiais e as diversas Qualificações Militares de Praças" (Lei nº 6391/76, art. 3º, II). Vale recurso aos ensinamentos do mestre Cretella Junior: “O fim de qualquer ato administrativo, discricionário ou não, é, sem dúvida, o interesse coletivo. Se a lei previu que o ato deveria ser praticado para atingir determinado fim, mas o agente o praticou com fim diverso houve violação da intentio legis, contrariouse o animus legis, não interessando, no caso, que a atividade tenha sido lícita ou não, porque o ato administrativo será inválido por contrariar o que prescrevera a norma de direito.” (in Do Desvio do Poder, Ed. Revista dos Tribunais, 1964, p. 35) É de se concluir, portanto, que também quanto ao elemento finalidade as portarias ministeriais - e do mesmo modo o art. 34, do Dec. nº 90.600/84 - são vulneráveis. Quanto aos motivos determinantes Em razão dos termos das portarias ministeriais nºs 948 e 949, os militares temporários quando ao final da prorrogação de tempo de serviço são licenciados do serviço ativo ex offïcio, sendo o motivo determinante do licenciamento a impossibilidade de ser concedida nova prorrogação por força da limitação temporal. Ainda que se reconheça a capacidade discricionária do administrador, através da qual o mesmo atua com maior liberdade quanto à conveniência e à oportunidade para a prática do ato administrativo, é certo que quando se trata de ato que envolva direito subjetivo a regra é a vinculação do ato, em maior ou menor intensidade. Afastado o aspecto do mérito do ato, infenso ao exame pelo Poder Judiciário em razão do princípio da independência dos poderes, resta o aspecto vinculado, este sujeito ao judicial control. No que respeita aos motivos ou fundamentos, suporte do ato administrativo, vale recorrer aos ensinamentos do prof. Francisco Campos: “Ora, quando um ato administrativo se funda em motivos ou em pressupostos de fato, sem a consideração dos quais, da sua existência, da sua procedência, da sua veracidade ou autenticidade, não seria o mesmo praticado, parece-me de boa razão que, uma vez verificada a inexistência dos fatos ou a improcedência dos motivos, deva deixar de subsistir o ato que neles se fundava.”(in Direito Administrativo, Rio, p. 122) É pacífico, também, que mesmo em se tratando de ato discricionário, quando motivado pela autoridade administrativa deixa a mesma subordinada aos fundamentos que invocou para a prática do ato. Tal entendimento nos vem de Gaston Jèze, através de sua magnífica sistematização da Teoria dos Motivos Determinantes, da qual nos fala Hely Lopes Meirelles em sua obra Direito Administrativo Brasileiro: “A Teoria dos Motivos Determinantes funda-se na consideração de que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência entre eles e a realidade. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e sujeitando-se ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é inválido.” (ob. cit. 5ª Ed. p. 169) O legislador brasileiro, sensível à necessidade de disciplinar a atividade da Administração, incorporou esses ensinamentos. Assim, na Lei nº 4717, de 29 Jun 65, que regula a Ação Popular, temos no parágrafo único, do art. 2º, as normas a serem observadas para a caracterização de nulidades dos atos administrativos: “a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou; b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato; c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo; d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido; e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.” A jurisprudência já é tranqüila nesse sentido e temos exemplo no brilhante voto do Ministro Washington Bolívar, no Mandado de Segurança nº 115.655-DF (DJ 19.ll.87) : “A definição de ilegalidade é dada por Cretella Junior, em tais hipóteses, quando diz: “Ilegal é o ato quando o motivo não existe. Ilegal é ainda o ato se, existindo o motivo, dele extrai a autoridade ilações colidentes com a lei aplicada. Se ao Poder Judiciário fosse interdito examinar a matéria de fato, básica para a formação do ato administrativo, estaria ele transformado em mero homologador das decisões do Poder Executivo, mediante superficial exame das formalidades extrínsecas do ato editado por autoridade da esfera deste Poder.”(grifos do Acórdão) Não menos elucidativo é o voto do Ministro Carlos Velloso, no mesmo processo: “O ato administrativo, espécie de ato jurídico, compõe-se de elementos, e o Direito Administrativo brasileiro formula, hoje, uma visão orgânica de sua legalidade. O que se colocava somente na doutrina de Ranelletti ou de Gaston Jèze, e que foi exposto, no Brasil, de forma magnífica pelo mestre de nós todos, o Ministro Seabra Fagundes, no seu livro “O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário”, hoje na 5ª edição, está posto na Lei nº 4717, de 1965, que regula a ação popular, art. 2º. Competência, forma, objeto, motivo e finalidade compõem a visão orgânica da legalidade do ato administrativo. Quer dizer: se faltar um desses elementos, ou se um desses elementos foi inidôneo, o ato administrativo é ilegal, e o Poder Judiciário tem o poder-dever de anulá-lo.” Em outra segurança impetrada contra ato do titular da Pasta do Exército, aquele mesmo Tribunal Federal de Recursos decidiu conforme a ementa que se reproduz: “A discricionariedade da autoridade administrativa não tem vez quando se trata de ato vinculado, para o qual a lei e o regulamento estabelecem as normas e condições de sua realização; nessa hipótese, à Administração se impõe o dever de motivar sua decisão, para demonstrar a adequação do ato às exigências legais, pressupostos necessários da existência e validade.”( MS nº 119.272-DF, Relator Ministro Washington Bolívar, DJ, de 24.03.88) Temos plenamente demonstrado que o Executivo carecia de competência para fixar o prazo máximo de permanência dos militares temporários em serviço ativo, tendo em vista os diplomas congressuais que regulam a matéria. Não bastaria, inclusive, que o ato fosse incensurável apenas quanto à competência e demais formalidades, em suma, perfeito em. sua aparência. Uma vez desvirtuado o seu fim, afastado que esteja da finalidade específica do ato, este se desnatura tornando-se inválido, passível de apreciação pelo Poder Judiciário. Oportunos, mais uma vez, os ensinamentos do mestre Cretella Junior: “Base para anulação dos atos administrativos que nele incidem, o desvio de poder difere dos outros casos, porque não se trata aqui de apreciar objetivamente a conformidade de um ato com uma regra de direito, mas de proceder-se a uma dupla investigação de intenções subjetivas: É preciso indagar se os móveis que inspiraram o autor de um ato administrativo são aqueles que, segundo a intenção do legislador, deveriam, realmente, inspirá-lo.”(in Curso de Direito Administrativo, Forense, Rio, 8ª ed. p. 325) Recentemente, quando ainda não baixada a Portaria nº 948 e a limitação de tempo era considerada a do art. 34, do Dec. 90.600/84, a Administração Militar entendeu de antecipar o licenciamento dos Oficiais Temporários que alcançassem os 9 (nove) anos e 8 (oito) meses de efetivo serviço, tendo um oficial impetrado Mandado de Segurança para garantir seu direito de permanecer em atividade até o término da prorrogação já concedida. Obteve liminar e sentença confirmatória, tendo o Tribunal Regional Federal (2ª Região) confirmado em Acórdão a decisão de primeiro grau (DJ 12.10.89). Da sentença extrai-se: “As informações são contraditórias eis que afirmam ter sido a antecipação do desligamento fundada em conveniência do serviço e, no entanto, assegura a autoridade impetrada, que por ordens superiores, todos os oficiais temporários deveriam ser desligados antes de contarem 9 anos e 8 meses de serviço. Como bem lembrado pela ilustre representante do Ministério Público Federal, a conveniência do serviço deve ser justificada, sob pena do ato administrativo não ser discricionário, mas arbitrário, e nos autos não há qualquer demonstração da necessidade de desligamento antecipado do impetrante.”(MS n 28008-0/1988, 5ª Vara Federal/RJ, Juiz André José Kozlowski) DA VULNERABILIDADE Temos bem demonstrado que as portarias ministeriais nºs. 948 e 949 são vulneráveis em três de seus elementos: competência, finalidade e motivo determinante. A Administração Militar poderia anulá-las exercendo seu dever de controle interno, como prevê a Súmula 473 (STF) . À falta de iniciativa nesse sentido cabe ao Poder Judiciário intervir para restabelecer o império do Direito. No âmbito do Judiciário tanto podem ser usados os procedimentos mais conhecidos (mandado de segurança, ação cautelar, etc.), como até mesmo a Ação Popular, esta por parte de qualquer cidadão. Sustenta-se o cabimento de ação popular uma vez que, com a Lei nº 7963, de 21 Dez 89, os Oficiais e Praças licenciados ex officio por término de prorrogação de tempo de serviço, passaram a fazer jus a uma indenização pecuniária equivalente a uma remuneração mensal por ano de efetivo serviço, excluído o período de prestação obrigatória inicial. Logo, o militar que tenha, por exemplo, cinco anos de efetivo serviço, receberá o equivalente a quatro meses de remuneração, considerada a data do efetivo pagamento. Caso persista o entendimento atual, com a ilegal aplicação das portarias nºs. 948 e 949, outro militar temporário será convocado para o preenchimento da vaga aberta com o licenciamento e durante os primeiros quatro meses o erário público arcará com o pagamento a dois militares pelo exercício efetivo de apenas um deles. Tal situação, sem dúvida, implica em prejuízo flagrante para o patrimônio público, pela falta de motivação juridicamente válida e suficiente para o licenciamento de um militar e sua substituição por outro. Acresça-se que sendo um militar com seis, sete, ou mais anos de serviço, é de se presumir que a experiência no exercício das funções é bem maior, sendo inexplicável a sua substituição por um outro recém formado e, portanto, menos experiente. Nestas circunstâncias o prejuízo para o bom desempenho do serviço é facilmente identificável, robustecendo a necessidade de intervenção do Judiciário em benefício do interesse coletivo. Possível, ao mesmo tempo, a intervenção do Poder Legislativo em defesa de suas prerrogativas, atingidas pelo abuso do poder de regulamentar, o que faria com respaldo no art. 49, inciso V, da Constituição Federal, utilizando-se, para isso, o Congresso Nacional, de um decreto legislativo. A LEI Nº 7963/89 Não pode ficar sem registro o advento da Lei nº 7963, de 21 Dez 89, pelo profundo alcance social e pelos antecedentes históricos daquele diploma. As origens da Lei nº 7963, remontam ao ano de 1987, quando um grupo de Oficiais Temporários resolveu questionar junto ao Judiciário o licenciamento ex officio dos militares temporários, impedidos de obterem nova prorrogação de tempo de serviço que ultrapassasse os 10 anos de que trata o art. 34 do Dec. nº 90.600/84. A atuação daqueles oficiais levou o Ministro do Exército a enviar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3.362/89, que em seu Art. 1º, previa uma indenização pecuniária, a título de pecúlio, aos que fossem licenciados ex officio com mais de 5 anos de efetivo serviço. O art. 2º fixava o valor da indenização em 5 (cinco) vencimentos brutos, valor referido à época do licenciamento do militar e pago após 30 (trinta) dias da data do licenciamento, excluindo, para efeito de pagamento, as verbas referentes ao 13º salário e férias. O texto inicial veio a sofrer inúmeras emendas na Câmara dos Deputados, inclusive uma prevendo efeito retroativo aos militares licenciados a partir de 1987, de modo a beneficiar justamente aqueles que lutaram para o reconhecimento da necessidade de indenização. Tal emenda, incorporada ao art. 4º da redação final, foi vetada pelo Presidente da República, restando àqueles oficiais a satisfação de haverem contribuído, decisivamente, para minimizarem, com a indenização, a dramática e injusta situação anterior. SÍNTESE CONCLUSIVA Com as portarias nºs. 948 e 949, de 17 Out 89, o Exmo. Sr. Ministro do Exército limitou em 5 (cinco) anos e em 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses, respectivamente, o tempo máximo de serviço a ser prestado pelos Oficiais e Sargentos denominados "Temporários". A limitação anterior, para os Oficiais, constava do art. 34, do Dec. nº 90.600/84 Regulamento para o Corpo de Oficiais da Reserva do Exército (RCORE), sendo, então, de 10 (dez) anos. Os Sargentos tinham o tempo limitado anteriormente no mesmo nível de portaria ministerial. Em ambos os casos, entretanto, afigura-se ilegal a limitação imposta pelo Executivo, uma vez que a competência para legislar sobre assuntos de pessoal da União é do Congresso Nacional, que no caso se manifestou com a Lei do Serviço Militar (nº 4375/64) e com a Lei nº 6391/76, que dispõe sobre o pessoal militar do Exército. Em conseqüência, os atos ministeriais se apresentam viciados quanto à competência, quanto à finalidade e, por via de conseqüência, os atos administrativos de licenciamento 'ex offïcio” baseados nas referidas portarias apresentam motivação inidônea. Tais vícios permitem - ressalvada a atuação da própria Administração - o recurso ao Judiciário para defesa dos direitos dos militares atingidos pelas mencionadas portarias, bem como, qualificam qualquer cidadão ao ingresso na via judicial, através de ação popular, em defesa de patrimônio público. Por derradeiro, não menos importante por isso, ressalte-se que o ataque através de ação popular não visa a própria Lei nº 7963/89, mas sim o seu uso pela Administração Militar sem a necessária motivação juridicamente válida para o licenciamento. Assim, uma vez que a Administração Militar demonstre a desnecessidade da prorrogação do tempo de serviço do militar do quadro dos temporários, quer seja pela extinção da vaga anteriormente ocupada, quer pela formação, em número satisfatório, de militares de carreira, pode o militar temporário ser licenciado por término de prorrogação anteriormente concedida, sem qualquer vício que macule o ato administrativo, percebendo então, a indenização pecuniária a que tem direito em razão da Lei nº 7963/89. Inaceitável é o afastamento ad nutum do militar temporariamente em serviço ativo, antes pelo completo abandono em que ficava, sem qualquer direito, e agora, porque a Fazenda Pública não deve arcar com o pagamento de dois servidores, sem que haja motivo determinante válido para o afastamento do ocupante do cargo. É o parecer, s.m.j. Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1990 * Coordenador Acadêmico do CESDIM Disponível em:< http://www.cesdim.org.br/temp.aspx?PaginaID=88> Acesso em.: 01 out 2007