MARINHA E IMPÉRIO NO BRASIL: O ENSINO NAVAL Simone Vieira de Mesquitai O presente estudo tem como foco o ensino militar naval no Brasil do século XIX, que teve grande importância na formação do ensino superior, bem como relevância política, científica e técnica, a exemplo de sua atuação no que se refere à construção de navios que participaram, por exemplo, da Guerra do Paraguai. Parte de referências cronológicas e analíticas da historiografia consultada, junto a Liberato Barroso (1897), Fernando de Azevedo (1958), Gilberto Freire (1959), João Batista Magalhães (1998) e Dermeval Saviani (2007), onde o ensino naval é visto com notoriedade, desde 1808, com a criação da Academia Real da Marinha, como instituição de nível superior, quando o Rio de Janeiro se torna a capital do Reino de Portugal, Brasil e Algarve, em face da transferência da Corte de Portugal para o Brasil, em função da invasão francesa, o que explica porque era destacada a preocupação daquela Academia com a construção naval. Nas décadas seguintes, em diferentes períodos, demarcados por rupturas e rearranjos políticos, que caracterizam a construção do Brasil independente e imperial, o ensino naval terá apoio governamental e até simpatia de alguns segmentos sociais, como está detalhado mais abaixo. Evidencia que: 1) nesse período, o ensino naval contou com a colaboração de oficiais estrangeiros, especialmente dos ingleses, que ajudaram na organização da armada brasileira; 2) o ensino militar foi um dos caminhos de acesso ao ensino superior, especialmente, para os estratos médios da sociedade, uma vez que os alunos que se formavam nessas escolas, estavam capacitados, não apenas em assuntos tecnicamente militares, como da esfera política, social e econômica, levando-os a um preparo profissional que lhes permitia exercer cargos, no âmbito do poder público; 3) além da preocupação de formar seus oficiais, o ensino militar naval cuidava de capacitar um corpo docente, para fazer parte do quadro de professores da Academia da Marinha, o que para muitas famílias abria a perspectiva de seus filhos ascenderem, intelectual e socialmente. Esta descrição analítica integra a nossa tese de Doutorado, que se encontra em fase de cotejo de fontes para mapeamento cronológico e exame da disseminação territorial das escolas de ensino militar naval no País. Os resultados aqui apresentados evidenciam a importância desse campo de ensino para o entendimento histórico da formação da elite militar e civil, no período aqui assinalado, que, além disso, se mostrou uma oportunidade de inserção e ascensão profissional, intelectual e social para os moços de origem familiar socialmente bem situada e remediada, para depois compor as forças armadas do Brasil, à medida que este se organizava como nação independente e imperial. Palavras-Chave: Império – Educação - Ensino Naval. Introdução O ensino militar naval, no Brasil, teve grande importância na formação do ensino superior, bem como relevância política, científica e técnica, a exemplo de sua atuação no que se refere à construção de navios que participaram, por exemplo, da Guerra do Paraguai. Contudo, o ensino militar do Exército e da Armada apresenta indícios de formação não sistematizada, com aulas avulsas e pontuais, desde o período colonial. É o que afirma Azevedo: Nessa paisagem escolar, uniforme e sem relevo, não se encontravam fora do domínio espiritual dos jesuítas senão a escola de arte e edificações militares, criada na Bahia em 1699, - talvez a primeira instituição leiga de ensino no Brasil, [...]. (grifamos) (1958, p.47). Durante a formação do Império, a educação brasileira passou por reformas na tentativa de atender às mudanças do novo contexto político e social que se estabelecia. O ensino, dividido em ensino elementar, secundário, superior, profissionalizante, especiais e oficiais, fomentou a busca de uma unidade nacional, especialmente, depois do hiato havido no ordenamento da educação, após a expulsão dos Jesuítas em 1759, pelo Marques de Pombal, e a criação das chamadas aulas régias. Nesse contexto, o ensino militar, do Exército e da Marinha, estava caracterizado como ensino especial como enfatizou Barroso (1867) e Azevedo (1959). Durante sua instalação no Brasil, D. João VI teve a preocupação de reorganizar os arsenais de Guerra e da Marinha, além dos hospitais militares, investindo na formação dos oficiais, na construção da biblioteca da Academia Naval do Rio de Janeiro, na construção de navios, bem como na criação, em 1808, da Academia Real da Marinha. Essa ganharia notoriedade, como instituição de nível superior, quando o Rio de Janeiro se tornou a capital do Reino de Portugal, Brasil e Algarve, em face da invasão francesa e da transferência da Corte de Portugal para o Brasil, o que explica porque era destacada a preocupação daquela Academia com a construção naval. Como enfatiza Magalhãesii [...] a vinda de Dom João VI, transplantaram-se para aqui os órgãos principais constitutivos da Marinha portuguesa, com os quais se lançaram os fundamentos de nossa força naval própria. Sendo criadas “a Academia de Marinha de Guarda-Marinha e uma Brigada Real”, voltada para guarnição de navios [...] (1998, p.238), A Academia de Marinha foi instalada nas proximidades do Convento de São Bento e, para ingressar, os pretendentes deveriam ter domínio das quatro operações matemáticas, saber latim, grego, línguas vivas, como inglês e francês, e ter idade igual ou superior a 18 anos. Nesse novo cenário político, o ensino naval lança suas bases no ensino superior. Almeida ressalta que a “Academia de Ensino da Marinha” era equipada com “instrumentos, livros, modelos, máquinas, mapas e plantas.” no modelo da “Academia de Lisboa”. (1989, p.46), trazendo em sua base a formação acadêmica européia para os trópicos. Nas décadas seguintes, em diferentes períodos, demarcados por rupturas e rearranjos políticos, que caracterizam a construção do Brasil independente e imperial, o ensino militar foi se estruturando em um sistema de ensino específico que permitia uma formação profissional e acadêmica de seus integrantes. Primórdios do ensino naval Magalhães traz relatos da existência de escolas navais antes da Corte portuguesa chegar ao Brasil. No Pará, segundo o citado autor, foi instalada em “4 de fevereiro de 1803, uma escola de pilotos práticos”, composta por “[...] 1 diretor, 1 ajudante, 12 discípulos e dispunha de 2 embarcações armadas à escuna.” (1998, p. 207), mostrando que a escola poderia cumprir dois papeis específicos: formar seus alunos e atender as necessidades da instituição de vistoriar a costa brasileira. Além disso, a Marinha investiu na construção de navios. Ainda de acordo com Magalhães, o grande centro de construção naval estava na Bahia. Entre 1810 a 1822, na Bahia e no Rio de Janeiro, foram construídos sete navios de guerra: “fragatas Dom Pedro I, Real Leopoldina, União, corveta Dez de fevereiro e lugre Maria Teresa” (1998, p.245). Esses barcos estiveram envolvidos em diversos acontecimentos históricos, entre eles, a defesa do Recôncavo e da Cisplatina, a Independência do Brasil, a revolta dos “Cabanos” no Pará e a Guerra do Paraguai. Com o processo de Independência, as instituições militares foram reformadas e a Marinha recebeu um aumento considerável de oficiais e marinheiros ingleses que vieram substituir os oficiais portugueses. A nova organização da Marinha e a formação dos oficiais sofreram influencia de ingleses, estadunidenses, franceses, holandeses, que estavam radicados e serviam no Brasil. De acordo com a Marinha, a primeira esquadra nacionaliii, composta por alguns desses navios, recebeu influencia do inglês Lord Cocharne, e dos oficiais Grenfell e Taylor. José Bonifácio, então Conselheiro do Império, convidou Thomas Cochrane para administrar e organizar a frota brasileira. Segundo Lopez & Mota, Cochrane inspecionou e constatou que os navios estavam em péssimo estado e que “a tripulação era formada por portugueses da “pior espécie”, descartados do serviço mercante[...] e por brasileiros que tinham [...]horror aos tripulantes portugueses” (2008, p.339). Nos levando a refletir sobre a formação do corpo de marinheiros e dos oficiais na instituição. Além da dificuldade com o corpo de marinheiros, o Almirante Cochrane teria também problemas com os capitães de navios, que, apresentavam resistência em receber ordens de oficiais que não fossem seus superiores compatriotas, dificultando a organização e o comando da frota. Lopez & Mota (2008) afirmam que para garantir a operacionalidade e a disciplina desejada, o Almirante Cochrane precisou investir em um quadro de marinheiros e militares contratados entre ingleses e norte-americanos. Estrangeiros que trabalharam também como instrutores e professores em suas áreas de domínio, nos próprios navios onde estavam em serviço. Além dos conflitos acima citados, Cochrane também enfrentou problemas com os militares e os marinheiros mais velhos, para isso ele propôs a contratação de “meninos de 14 a 20 anos para aprender o ofício”. Jovens que seriam formadas pela própria instituição, dando abertura a um novo campo de ensino e formação. De acordo com Lopez & Mota, minimizados os problemas práticos, Chochrane teve como missão inicial, “recapturar a Bahia”, expulsando os ingleses e restaurando o monopólio comercial. Em sua empreitada, ele comandou a nau capitã, fragata Pedro I, única embarcação apta para o combate, conquistando a retirada de “13 navios de guerra e mais de 60 navios mercantes do porto de Salvador.” Cochrane interveio também no Maranhão, libertando seus portos, o que lhe valeu o título de Marquês do Maranhão (idem, p.p 338-342) e o reconhecimento pela organização da frota naval da época, bem como levou os oficiais a repensarem a formação do corpo de oficiais da Marinha. Com a Independência, a Constituição do Império de 1824 lançou os fundamentos das forças militares brasileiras, cuja finalidade, estava “[...] definida pelo art. 145: “sustentar a independência e integridade do Império” [...]”(MAGALHÃES, 1998, p.249). Durante a afirmação do Brasil como Nação, as instituições militares tiveram que se reorganizar e reestruturar, ao ver seus oficiais regressarem a Lisboa. Assim, a Marinha buscou, na formação de seus oficiais, o caminho para reestruturar a instituição, tendo como preocupação a nomeação de “lentes” para a Academia da Marinha. Após a renúncia de D. Pedro I, em 1831, houve uma nova organização nas forças militares. Elas diminuíram o número de estrangeiros em suas fileiras, dando início ao caráter nacionalista das forças armadas – Exército e Marinha. Em 1932, as Academias Militar e de Marinha se fundiram e passaram a ser denominadas Academia Militar e de Marinha da Corte do Império do Brasil, com ensino voltado para atender os assuntos militares, a construção de pontes e calçadas e a construção de navios. Essa fusão, segundo Magalhães, não durou: [...] evidentemente adotada por medida de economia orçamentária e por causa talvez da dificuldade de reunir um corpo docente suficiente para servir as duas academias. Havia, aliás, a vantagem de dar uma formação mental homogênea aos quadros das Forças Armadas. Não obstante, em 1838, foram novamente separados os cursos para a formação de oficiais de terra e mar, dando surto à Escola Naval [...](1998, p.271) Embora as duas instituições estivessem ligadas pela unidade militar, cada uma apresentava sua especificidade, uma voltada para domínio da terra e outra do mar, a partir de 1838 conquistaram sua identidade, autonomia e espaço no novo cenário nacional. O ensino militar naval no Império Ao longo do Império, o ensino militar constituiu-se em oportunidade de ascensão intelectual e social, principalmente, para a população situada entre a classe superior e a inferior. Gilberto Freire enfatizou, nesse sentido, que o ensino militar foi: [...] para os brasileiros de origem modesta e de condições étnica tida, em certos meios, por inferior, de se instruírem em escolas militares e a expensas do Estado; e se instruírem nessas escolas não apenas em assuntos tecnicamente militares como os políticos, sociológicos, econômicos, tornando-se rivais dos bacharéis em Direito, dos médicos, dos engenheiros, dos sacerdotes, em aptidões para o exercício de cargos públicos. [...] uma rivalidade entre esses subgrupos – os formados nas escolas militares, por um lado, e o educando nas escolas de Direito, de Medicina, de Engenharia e nos Seminários de Teologia, por outro – que veio se esboçando desde a ascendência dos militares, favorecidos pela campanha paraguaia, [...] (1959, p.318) Podemos perceber que o ensino militar foi assumindo espaço na sociedade, equiparando-se ao ensino oficial, bem como criando oportunidade de ascensão profissional, política, social e intelectual, especialmente, nos cargos públicos, levando as organizações militares a desenvolverem um sistema de ensino próprio, que foi sendo ampliados ao longo dos anos. O Ensino Militar – do Exército e da Armada – constituiu-se em uma formação especifica, que permitiu acesso aos títulos de doutores, como ressaltou Gilberto Freire: [...] que das escolas militares de ensino gratuito e até remuneração, no sentido de se dar acesso ao ensino superior e, através do ensino superior, aos cargos políticos de importância, a numerosos brasileiros cujas famílias não podiam custear, para seus filhos, estudos caros. Não os podendo manter nos cursos jurídicos, médicos, politécnicos, nem por isto deixaram de vê-los doutores sob outro aspecto: como capitães-doutôres, majores-doutôres, coronéis-doutôres. Duplamente prestigiosos, portanto, numa época, como foi, no Brasil, a que se seguiu à campanha Paraguai,[...] (1959, p.318) Durante o Império, a formação superior e seus títulos constituíam-se em objeto de desejo não somente da elite. Embora a beca e a batina não tenham vingado, no Brasil, o traje de doutores, como “sobrecasaca, cartola, botinas caras e bengala, de preferencia de castão de ouro, definido entre outros aspectos o ensino superior como aristocrático ou altamente burguês” (Freire, 1959, p. 325) era motivo de cobiça, para afirmação social, intelectual e política, especialmente, de pessoas oriundas dos setores médios, dentre eles, os militares que vinha ganhando espaço desde a Guerra do Paraguai. Gilberto Freire ressaltou também que para os militares existia “a farda”, que eles consideravam como “equivalente da batina universitária: trajo igualitário ou democrático de escolares, fosse qual fosse sua origem social ou sua situação econômica.” (1959, p.325) O ensino militar ganhou respaldo perante a sociedade, igualando ou se equiparando à formação oficial, permitindo aos estudantes militares acesso a um patamar de elite, como ressaltou Fernando Azevedo, ao colocar que: [...] os engenheiros militares [...], adquiriam no país de doutores o melhor direito de incluir-se na elite da cultura oficial. A turquesa de seus anéis simbólicos valia bem ou mais do que o rubi, a esmeralda e a safira dos juristas, dos médicos e dos engenheiros. (1958, p. 122) Nesse sentido, as escolas militares, tornaram-se caminho para ascensão ao ensino superior pelos estratos médios, que vinham se constituindo e buscando espaço nos cenários político e social, assim como no âmbito intelectual, como ressaltou Gilberto Freire: [...] era de numerosos jovens brasileiros de origem modesta e alguns mestiços, a quem as escolas – ou colégios – militares facilitaram a formação intelectual, secundária e superior. E com essa formação, oportunidade de ascensão social, completada pelo desejo de direção política do País. (1959, p. 325) Durante o Segundo Reinado, o ensino militar despontou no cenário nacional com a criação do ensino secundário militar com o Colégio Naval, em 1871. Assim é que, pelo Decreto nº 4679, de 17 de janeiro de 1871, foi estabelecido no Arsenal de Marinha da Corte, no Rio de Janeiro, um Externato, que consistia de um curso de um ano, para o ensino das matérias preparatórias do curso da Escola de Marinha. Em seguida, pela Lei nº 2670, de 20 de outubro, foi autorizado à criação do Colégio Naval, efetivada pelo Decreto nº 6440, de 28 de dezembro de 1876, assinado pela Princesa Isabel, então ocupando a Regência do Trono. (<http://www.mar.mil.br/cn/colegio/historico.htm> consultado em 07/09/2012, 15:30) E com Colégio Militar, em 1889. Artigo 1° (...) sob a denominação de Imperial Collegio Militar, um instituto de instrução e educação militar, destinado a receber gratuitamente, os filhos dos officieas effectivos, reformados e honorários do Exército e da Armada; e, mediante contribuição pecuniária, alumnos procedentes de outras classes sociaes. (grifo nosso) (DECRETO N° 10.202, 9 de março de 1889.) (<http://www2.camara.gov.br/atividadelegislativa/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao8.html> consultado em 07/09/2012, 16:00h) Percebemos a expansão do ensino militar, ampliado que fora ao nível secundário, com os colégios preparatórios, passando a integrar o sistema de ensino militar do Exército e Marinha, bem como permitindo o ingresso de jovens que teriam as escolas preparatórias, como mais uma opção de formação. Na tabelaiv abaixo verificamos a expansão do ensino naval de forma sistemática durante os anos de 1840 a 1875. Uma expansão que perpassou por todas as regiões do Brasil, permitindo que as escolas navais ganhassem espaço e notoriedade. Por elas, passaram inúmeros estudantes que, segundo Gilberto Freire, foram “bons administradores, homens de governo e parlamentares que pela sua formação militar [...] prestaram ao País serviços notáveis, [...]” (1959, p. 316). Liberato Barroso, Conselheiro do Império, na pasta de Instrução Pública, identificou o ensino naval como um campo de ensino voltado para a formação profissional de uma elite, com estudos pautados nas ciências matemáticas e na filosofia positivista. Em 1867, segundo Liberato Barroso, o ensino naval contava com: [...] Eschola de Marinha e eschola pratica de artilharia da marinha, estabelecimentos subordinados ao Ministerio da Marinha. ESCHOLA DE MARINHA. – A Eschola de marinha comprehende em um mesmo estabelecimento composto de internato e externato um curso theorico e pratico das materiais náuticas e accessorias, cujo conhecimento é indispensável aos que se dedução á vida marítima. (BARROSO, 1867, p.20) Mas de acordo com Barroso, as escolas navais nesse período não eram acessíveis a toda a população, somente os “aspirantes ao posto de guarda-marinha” e os que conseguissem “licença especial do governo” (Idem, idem, p. 21). Os professores, por sua vez, prestavam concurso e tinha formação “cathedratica”, nas diversas áreas de conhecimento náutico militar. As escolas, acima citadas, tinham como objetivo específico aperfeiçoar a profissão militar da Marinha, que vinha se defrontando com a modernização da indústria náutica e sua aparelhagem de guerra. Saviani ressalta que, no final do Império, quando Liberato Barroso ocupou a pasta de Ministro da Instrução Pública, a educação era vista como “elemento de conservação do status quo e fator de integridade nacional”. (2007, p.135) Havia, portanto, a preocupação em disseminar a educação em todo o território nacional, momento em que o ensino militar percebeu e aproveitou a oportunidade para criar várias escolas e melhorar o quadro de oficiais de suas instituições. Nos depoimentos colhidos por Gilberto Freire, o ensino militar, dava ênfase ao esforço particular de cada aluno. Nesse depoimento, o ex-aluno da Escola Militar do Ceará, Raimundo, afirma que: Aos dezesseis anos, matriculou-se, a conselho de outro parente, na Escola Militar do Ceará. Por êsse parente, Tenente do Exército, soube que “a Escola Militar era um instituto nacional de ensino onde os moços pobres, por esforço, se fazer na vida, [...]” Raimundo foi beneficiado, na Escola do Ceará, pela “disciplina militar” que lhe pareceu “positiva e real”. E que corrigiu nêle o suposto “menino incorrigível”. Explica-se assim ter envelhecido considerando admirável esse tipo de ensino e dignos do máximo respeito seus principais orientadores [...](1959, p.172) O que parecia não ocorrer nas Escolas e Colégios oficiais, uma vez que o princípio da meritocracia não era respeitado, como cita um aluno em depoimento colhido por Gilberto Freire, No Ginásio, Claúdio ele próprio se tornou entusiasta de Martins Júnior de quem recorda que “prestava concurso para a Academia de Direito, classificado em 1° lugar e não era nomeado”. Daí Claúdio não gostar de Pedro II: o Imperador não respeitava a classificação dos concursos. (1959, p. 173) Não somente o Imperador, mas seus Ministros também não respeitavam os critérios de aprovação nos colégios, como citou outro aluno do Colégio Pedro II, em depoimento colhido por Gilberto Freire [...] Carlos Luís guardou a lembrança até a velhice, sem nunca o ter divulgado: “Tinha Benjamim Constant um filho, seu homônimo, no 6° ano do Colégio Pedro II (Externato). Por êle fui procurado quase no encerramento do ano letivo de 1889, creio que a 26 de novembro, para que, como setianista, encabeçasse as assinaturas de uma petição coletiva por êle trazida de casa, na qual os alunos de todos os anos solicitavam que o [novo] Ministro da Instrução [Benjamim Constant] lhes concedesse dispensa do ato de exame. Tratando-se de rapaz folgadão tomei o pedido como pilhéria, certo de que o pai não acederia ao pedido, mas depois de pequeno diálogo fiquei sabendo que entre pai e filo tudo tinha sido prèviamente concertado [....] cheio de surprêsa do que ouvia, prometi assinar não no início, mas no meio, e assim o fiz, para minha recusa não fosse mal interpretada. Recebida a petição, foi logo deferida. Um dos beneficiados seia Benjamim Filho, com notas baixas em História Geral.” (GILBERTO FREIRE, 1959, p. 109) Embora esse fato tenha ocorrido na transição do Império para a República, podemos perceber que a prática de intervir pelo outro, especialmente pelos filhos ou filhos de amigos, fazia com que as escolas oficiais perdessem credibilidade. Na busca de atender às inclinações e vocações dos filhos, sem esquecer o prestígio intelectual, social e político, muitas famílias da elite intelectual e social desse período encaminharam seus filhos para o ensino militar, especialmente por estar se destacando no cenário educacional. Gilberto Freire ressaltou essa procura pelo ensino militar, ao afirmar “[...] haver, nas escolas militares, certo número de jovens de famílias aristocráticas com decidida vocação para a pura e crua vida de soldado; nem que freqüentassem os cursos jurídicos, médicos, politécnicos, teológicos [...]” (1959, p.318). Além disso, sabemos que a elite tinha, como nos indica Aranha, o Colégio Pedro II, que foi criado em 1837, no Rio de Janeiro, e destinava-se [...]a educar a elite intelectual e a servir de padrão de ensino para os demais liceus do país, [...] (2006, p.224). Paralelo ao ensino oficial, o ensino militar – do Exército e da Armada - foi se estruturando, constituindo um campo de educação pautado em regras e normas que atendessem suas especificidades e melhor desenvolvessem o trabalho pedagógico com seus alunos. Nas escolas navais haviam regras disciplinares muito rigorosas. Entretanto, apesar dos critérios de aprovação serem rígidos, os alunos que apresentassem dificuldades tinham oportunidade de reverterem essa situação e permanecer nas escolas, como cita o artigo abaixo: Art. 7º Os Aspirantes, que forem reprovados em qualquer das materias do curso da Escola de Marinha, e os que perderem algum dos annos do mesmo curso, em virtude do disposto no paragrapho primeiro do artigo quarenta e um do Regulamento, que baixou com o Decreto numero dous mil cento sessenta e tres, do primeiro de Maio de mil oitocentos cincoenta e oito, poderão repetir as ditas materias ou annos, como alumnos externos, e ser de novo admittidos ao internato, se obtiverem approvação plena e forem menores de dezoito annos. Art. 8º Os alumnos externos, que forem approvados dos plenamente nos tres annos do curso, os que tiverem feito os respectivos exercicios praticos, e houverem dado provas de bim comportamento, poderão ser admittidos ao serviço da Armada como Guardas Marinhas, uma vez que satisfação as condições estabelecidas para a admissão dos alumnos internos, e não tenhão de idade mais de vinte e um annos. (Presidência da Republica – Casa Civil – Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 1.250, de 8 de julho de 1865. Consultado em 20 de janeiro de 2013 ,9:00 h) <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/LIM/LIM1250.htm> Percebemos, assim, que o ensino nas escolas navais levava os alunos a se esforçarem ao máximo para permanecer e concluir sua formação, principalmente, porque depois poderiam ser admitidos no quadro de profissionais da Marinha. Considerações Parciais Durante o Império, a educação apresentou-se muito fortemente voltada para a formação de uma elite, capaz de ordenar a sociedade nacional. Os governantes acreditavam que, através dela, poderia manter e consolidar o status quo, visão também perseguida pelos estratos médios, que no caso buscava ascender socialmente, numa sociedade dividida em nobres e escravos. Sendo oriundos de tais setores médios emergentes, os militares perceberam o momento de investir em seus estabelecimentos de ensino, ampliando um sistema de ensino que, na época, contava com escolas regimentais, preparatórias, militares, de marinheiros, estando sujeitos à disciplina militar, cujo objetivo maior estava centrado na formação especifica de seus profissionais. Vale ressaltar que o ensino militar, ainda em formação, recebeu influência de diversos estrangeiros que transitavam pelo País. Muitos deles exerceram o ofício de professor nas escolas militares, enquanto estavam em missão no país. O ensino militar tem como foco o ensino profissionalizante e superior, embora tenha investido no ensino secundário, que era um ensino preparatório para o ingresso nas escolas militares, mas que também viabilizava o ingresso nas demais escolas de ensino superior pertencentes ao ensino oficial do governo. Seguindo paralelo ao ensino oficial, o ensino militar manteve um caráter próprio, voltado para atender às suas especificidades, desde a Constituição de 1824, ganhando respaldo perante a sociedade brasileira. Respaldado pelo o Estado, o ensino militar investiu em um sistema próprio de ensino, de acordo com a especificidade do Exército e da Marinha. Os resultados aqui apresentados evidenciam a importância de tais instituições de ensino para o entendimento histórico da formação das elites militar e civil, no período aqui assinalado, que, além disso, abriram oportunidades de inserção e ascensão profissional, intelectual e social para os moços de origem familiar socialmente bem situada e remediada, para depois compor as forças armadas do Brasil, à medida que este se organizava como nação independente e imperial. Referências ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da instrução pública no Brasil, 1500 a 1889. São Paulo: EDUC; Brasília, DF: INEP/MEC, 1989. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação e da Pedagogia: geral e Brasil. São Paulo: Moderna, 2006. AZEVEDO, Fernando. A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil. São Paulo: Edições Melhoramento, 1958. BARROSO, José Liberato. A Instrução Pública no Brasil. Rio de Janeiro: B. L. Garnier. 1867. CASTRO, Rozenilda. Companhia de aprendizes marinheiros do Piauí (1874 a 1915: história de uma instituição educativa. Teresina: EDUFPI, 2008. FREIRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1959. LOPEZ, Adriana; MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora Senac São Paulo. 2008. MAGALHÃES, João Batista. A evolução militar do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998. SAVIANI, Dermeval. História das idéias pedagógicas no Brasil. Campinas-SP: Autores Associados, 2007. NOTAS i Graduada em Pedagogia e Mestre em Educação Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará (UFC), onde é atualmente Doutoranda, da Linha de História da Educação Comparada (LHEC), no Programa de PósGraduação em Educação Brasileira, sob a orientação da Professora Doutora Maria Juraci Maia Cavalcante. E-mail: [email protected] ii João Batista Magalhães foi Coronel do Exército, Professor da Escola de Comando do Exército e da Escola de Estado-Maior, além de sócio do Instituto de História e Geografia Brasileiro e do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil. Durante a pesquisa de mestrado, encontramos um exemplar do seu livro “Evolução Militar do Brasil”, no CMF – Colégio Militar de Fortaleza, que traz um panorama da História Militar, desde o período do Brasil Colônia, apontando marcos históricos relevantes para a pesquisa. A pesquisa encontra-se em fase de cotejo, na buscar de fontes bibliográficas, junto as bibliotecas nessas instituições, para melhor compreender a participação do ensino militar no cenário educacional brasileiro. iii História dos navios brasileiros. http://www.naviosbrasileiros.com.br/ngb/P/P088/P088.htm> consultado dia 01/09/2012, 17h e 27min. iv Foto retirado do livro Companhia de Aprendizes Marinheiro do Piauí de Rozenilda Castro, 2008, p.40.