XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ- ALAS BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI. GT08: Patrimônio Cultural, comunidades tradicionais e sustentabilidade Título: “Cultura” e Quilombo Jaqueline de Oliveira e Silva - [email protected] Universidade Federal de Pernambuco 1. Introdução: O objetivo deste artigo é compreender os caminhos através dos quais a comunidade quilombola de Castainho, interior de Pernambuco, define o que seria do domínio da cultura, e o modo através do qual esta é mobilizada como direito, diante desta lógica específica dos projetos e das políticas culturais, mediada pelas associações e demais instâncias de participação política. Objetiva-se explicitar as relações entre a “cultura” e cultura, segundo a proposta Cunha (2009), com a dimensão política - uma forma de acesso a direitos e a cidadania. O objetivo principal deste trabalho, que se encontra na sua fase inicial de elaboração em virtude da pesquisa para dissertação de Mestrado em Antropologia na Universidade Federal de Pernambuco, é pensar a questão das manifestações culturais de Pernambuco no contexto quilombola, com relação aos incentivos externos para sua permanência e promoção, uma vez que o estado é reconhecido nacionalmente pela riqueza, expressividade e vivacidade de sua cultura popular. Objetiva-se compreender como se dá o incentivo cultural no contexto quilombola, e suas interlocuções com a periodicidade de projetos e políticas no nível municipal, estadual e nacional, quais seriam as instâncias envolvidas, e suas possíveis relações com aspectos da etinicidade, como identidade e território. Objetiva-se questionar também quais e o que são essas ações em nome da cultura e suas implicações para a comunidade. Além disso, problematizar a própria noção de política cultural (ou de políticas para a cultura) no contexto dos quilombos, suas possíveis lacunas e desafios. Neste contexto surge o quilombo de Castainho, localizado próximo a cidade de Garanhuns, no agreste pernambucano. O quilombo, juntamente com Conceição das Crioulas, é um dos dois únicos de Pernambuco que possui titulação do território e encontra-se atualmente no processo de desintrusão (INCRA, 2012). Castainho é também um dos locais onde acontecem atrações 2 do Festival de Inverno de Garanhuns, que no ano de 2012 estará na sua 23º edição, sendo a 12º edição no local. Durante o Festival acontecem diversas apresentações culturais e oficinas, que devem ser propostas segundo o edital, exclusivamente para o contexto quilombola. Outra grande festa que acontece na região é a “Festa da Mãe Preta”, que encontra-se na sua 25º edição. Castainho mostra-se um campo profícuo para pensar os incentivos externos à cultura no contexto quilombola, no qual são marcantes as questões de etinicidade e identidade cultural. 3 2. Situando a discussão: direitos quilombolas para além do direito a terra Os então chamados “remanescentes das comunidades dos quilombos”, tiveram seus direitos estabelecidos pela primeira vez no Brasil com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) estabelece que: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”. Segundo Chasin(2009), o alcance do direito territorial garantido pelo artigo 68 do ADCT esteve mais diretamente atrelado às disposições normativas que vêm, desde a sua promulgação, regulamentando os procedimentos para a titulação de terras. Atualmente, a legislação federal que regulamenta o “procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras das comunidades quilombola” é o Decreto 4.887/03 e sua execução fica a cargo do Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (INCRA), órgão ligado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário. Reconhece-se que a questão do território é de extrema relevância, podendo ser considerada com uma das maiores causas da situação de vulnerabilidade e insegurança na qual vive grande parte dos quilombos do Brasil. A dificuldade de aplicação da legislação de regularização fundiária, é atribuída pelo próprio INCRA à: “um processo intrinsecamente complexo e moroso, baseado em normativo elaborado por um grupo interministerial com vistas a dar maior lisura à regularização de terras quilombolas. Acrescenta-se ainda que a demora na execução destas etapas está diretamente relacionada à reduzida estrutura operacional e disponibilidade orçamentária e financeira para atingir todo o universo de processos abertos”(INCRA, 2012)a. 4 Questões territoriais e fundiárias tornaram-se pauta freqüente na bandeira dos movimentos sociais quilombolas, e ganhou grande destaque nas produções acadêmicas. Todavia, ainda como marco normativo da questão dos direitos quilombolas, os artigos 215 e 216 da CF/1988, que tratam do patrimônio cultural brasileiro, estabeleceram a proteção às manifestações afro-brasileiras e o tombamento de documentos e sítios detentores de “reminiscências históricas dos antigos quilombos”. A noção de patrimônio cultural, é portanto mobilizada como um direito num projeto político dos grupos quilombolas, uma vez que a territorialidade, como afirma Ilka Boaventura (2008) deve ser considerada na sua dimensão simbólica e as terras dos quilombos, como patrimônio cultural destes povos devem ser alvo de proteção por parte do Estado” (LEITE, 2008). “Povos e Comunidades Tradicionais”, categoria ampla na qual estão incluídas as comunidades quilombolas são definidos pelo Decreto 6.040/07 como: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”(BRASIL, 2012). O uso do conceito de povos tradicionais procura oferecer um mecanismo capaz de unir fatores como a existência de regimes de propriedade comum, o sentido de pertencimento a um lugar, a procura de autonomia cultural e práticas sustentáveis com relação ao ambiente que os variados grupos sociais mostram na atualidade. A relação com o território é, portanto, fundamental para o reconhecimento dessas comunidades como tradicionais. 5 Neste sentido, acredito não ser possível desvencilhar a discussão sobre quilombos da questão do território, mas acredito também que ela não pode se restringir a isso. Leite (2001) afirma que, em Pernambuco, são poucos os registros históricos e sociais das comunidades quilombolas do Agreste e do Sertão. Enquanto que, os estudos aprofundados de sua organização política, formas de vida, bem como de suas manifestações culturais, são quase inexistentes. Medeiros e Albuquerque (1997), citados por Leite (2001), acrescentam que: (...) é vasta a bibliografia sobre o negro em quadros urbanos brasileiros que tem se preocupado em analisar fenômenos como mobilidade, detenção de status, competição, reconstituição histórica, entre outros aspectos. No entanto, a etnografia sobre o negro em condições de vida rural tem se ampliado, mas, ainda são poucos os estudos comparativos da organização social do negro neste meio (Medeiros e Albuquerque, in: LEITE, 2001). Portanto, compreender a noção de cultura e a relação que ela apresenta com direitos políticos, parte do princípio de que cada comunidade é única em sua formação, modo de vida, sentidos e aspirações. Não é possível, portanto falarmos de “quilombos brasileiros” ou “quilombos pernambucanos” como um conjunto homogêneo. Pretende-se neste sentido, tratar das particularidades e especificidades que tornam Castainho uma comunidade única e distinta das demais, na sua relação entre si e com o Estado. 6 3. Sobre o quilombo de Castainho: origens do território, reconhecimento e titulação O objetivo deste tópico é apresentar uma caracterização geral do quilombo com base em dados documentais, tendo como ênfase aspectos relacionados à questão tratada neste artigo, que é a noção local de cultura e sua relação com políticas culturais. . Não há um consenso nas explicações sobre as origens do território de Castainho. Uma delas, afirma que um grupo de negros e negras que fugiram da guerra contra o Quilombo dos Palmares, através do Rio Mundaú, esconderam-se nas matas onde hoje se localiza a comunidade, no município de Garanhuns Segundo relato de Cavalcanti citado por Monteiro: “ O Zumbi- rei de negros(...) mandou atacar e destruir as fazendas e sítios já existentes para o norte e nordeste (do quilombo dos Palmares), em cujas terras foram os negros organizando mocambos e construindo outros quilombos, como o de Magano, nas cabeceiras do riacho São Vicente, subúrbio da atual cidade de Garanhus” (MONTEIRO, p14, 1985) Diversos relatos de quilombolas citados pelo Relatório Antropológico de Castainho elaborado em 1997, apontam para a relação deste, como de outros quilombos próximos ao local onde hoje é Garanhuns, com a fuga de negros durante a Guerra de Palmares. Mas esta não é a única hipótese. Há outra versão que afirma que a terras de Castainho foram herdadas por um exescravo do seu antigo senhor. Os relatos que tratam da relação com o Quilombo dos Palmares vão de encontro a fontes documentais apontadas pelo Relatório Antropológico, como um levantamento realizado pelo Fundo de Terras de Pernambuco (FUNTEPE), datado de 12/04/1994, que se refere à Castainho como comunidade 7 remanescente do Quilombo dos Palmares, cuja história é anterior a própria história de Garanhuns. Fontes históricas apontam também apontam para o sul de Pernambuco e o estado de Alagoas como palco de resistência e diáspora dos negros “aquilombados”. (INCRA, 1997). Segundo Vânia Fialho, autora do citado relatório antropológico de Castainho: “A história da comunidade de Castainho na região em que se encontra pode ter se dado das mais diversas formas, porém incontestável é a sua relação com a Guerra de Palmares, em torno do qual a identidade de Castainho se constrói”(op. cit) A comunidade apresenta forte grau de mobilização. Sua associação foi criada em 1982, sendo oficializada em 1993, como Associação de Moradores de Castainho e Adjacências. Castainho também é Ponto de Cultura, programa do Governo Federal mediado pelo Governo do Estado, e está integrado nas ações da Comissão Estadual dos Quilombos. O processo de reconhecimento iniciou-se em 1995, com ajuda de diversas organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Federação de Trabalhadores de Agricultura de Pernambuco (FETAPE), o Movimento Negro Unificado (MNU) e a Universidade Federal de Pernambuco. Em 17/07/2000, Castainho teve seu título emitido pela Fundação Palmares (órgão responsável pela titulação de comunidades nesta época), abarcando 206 famílias, 183,6000ha. Atualmente, está se delineando o processo de desintrusão, última etapa antes da titulação e do registro do título emitido pelo INCRA. Uma situação importante de ser destacada é a presença do MNU neste contexto de reconhecimento, momento em que estão emergindo situações sociais antes encobertas pelo estigma do preconceito, e o grupo reelabora sua identidade a partir desta nova relação com o Estado, como sujeitos de direito culturalmente diferenciados. Para além do inegável papel das mobilizações e reivindicações do movimento negro que garantiram a inclusão da demanda quilombola no texto constitucional, como aponta Arruti (2006), é relevante o fato da agenda deste 8 movimento ter como foco principal questões relacionadas valorização da negritude, africanidade e identidade negra, que permeiam questões mais específicas, como o direito à terra, educação e saúde, e acima de tudo, direito á cidadania e contra a discriminação racial. Ainda não é possível chegar a qualquer conclusão neste sentido, mas é um aspecto importante de ser explorado o fato de que a presença do movimento negro pode fortalecer a emergência de uma identidade “afro”, e a suas referências diacríticas, como músicas, danças, comidas, religiosidades e certos padrões estéticos. No próximo tópico, irei abordar como aspectos da identidade “afro” estão presentes, e se relacionam com políticas públicas em andamento na comunidade. 9 4. Ações políticas culturais em Castainho: O Festival de Inverno de Garanhuns e a Festa da Mãe Preta A princípio, é importante ressaltar que considero como políticas culturais neste contexto ações políticas do estado, quer seja no nível federal, municipal ou estatal, feitas em nome da cultura. Um aspecto a ser discutido é quais destas manifestações são consideradas como culturais, e por quem, pensando no que é tido como necessário de ser divulgado, incentivado e preservado. Em Garanhuns acontece há 23 anos no mês de julho um Festival de Inverno organizado pela Fundação de Arte de Pernambuco, (Fundarpe). Castainho é um dos pólos do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) , que no ano de 2012 está na sua 23º edição, sendo a 12º edição no local. Durante os festivais acontecem diversas apresentações culturais e oficinas, que devem ser propostas, segundo o edital, exclusivamente para o contexto quilombola Segundo Almeida(2010), a ação do FIG possibilitou, pela localização de ações diretas em Castainho, algumas modificações em termos da produção cultural da comunidade, a partir da expressão artística. Segundo o jornal produzido pela Fundarpe, o “Pernambuco Nação Cultural”, Castainho consolida-se no ano de 2011 como pólo cultural do FIG. Diversas oficinas acontecem na comunidade, que concentra o “Palco Afro Castainho”. No ano de 2011 aconteceram 13 oficinas sendo 10 da área artística, e 3 da área de formação político cultural - Formação em Políticas para Quilombos, Mediação de Conflitos e Elaboração de Projetos. As oficinas artísticas, além de trazerem novas linguagens, como a de vídeo denominada “Reportagem Comunitária”, têm como objetivo “potencializar os grupos de dança, teatro, percussão, canto-coral e as bandas de pífano que existem na região”. 10 A edição de 2011 apresenta um salto com relação ao FIG de 2009, onde a comunidade de Castainho recebeu apenas três oficinas: Costurando os Retalhos do Tecido Social, título da oficina de moda, oficina de música Coral Infantil e de Técnicas Circenses. Segundo o “Pernambuco Nação Cultural”, o tema das oficinas deste ano, “reafirmação da identidade afro” foi escolhido entre as sete comunidades do entorno de Garanhuns, assim como a demanda pelas oficinas de formação. A oficina de “patrimônio imaterial e identidade afro”, segundo o informativo, foi um pedido dos líderes quilombolas para conscientizar a juventude da sua ancestralidade e para dar a esses jovens o sentimento de pertencimento a cultura afro. Uma das frases mais expressivas publicadas pelo jornal é atribuída à liderança comunitária José Carlos Lopes da Silva, dita durante a apresentação de encerramento das atividades: “A África está aqui no meio de nós”, ressaltando a importância da África como referencial mítico do quilombo. Outra edição do mesmo periódico “Pernambuco Nação Cultural” da Fundarpe, publicado no mesmo ano, afirma que: “parte das oficinas de formação aplicadas em Castainho, atendendo 240 pessoas, é programada a partir das necessidades dos quilombolas. A idéia é potencializar os grupos culturais já existentes e fomentar as atividades que eles desenvolvem durante o decorrer do ano”. (FUNDARPE, 2012) Outra fala emblemática da liderança José Carlos da Silva é publicada: “ ‘As oficinas qualificam tecnicamente o nosso povo. E também conscientizam o pertencimento e a identidade afro-descendente. A partir daí, já ficamos seguros e caminhamos sozinhos’, coloca José Carlos e emenda: ‘Hoje não temos vergonha de dizer que aqui é um quilombo. Temos orgulho do que somos’.”(FUNDARPE, 2012) 11 Além do Festival de Inverno, outra grande festa da comunidade é a “Festa da Mãe Preta”, comemorada no dia 13 de maio, oficialmente dia da “Abolição da Escravatura”. Neste dia também se comemora em algumas religiões de matriz africana como a umbanda o “Dia dos Preto Velhos”. Sobre a “Festa da Mãe Preta”, encontramos referência no relatório antropológico de 1997: “Mas era uma festa intitulada pelo nome de Mãe Preta porque na época eles escolheram a mulher mais velha e mais preta para fazer parte dessa festa. Era como se fosse uma rainha, eles consideravam ela como se fosse uma rainha” (INCRA, 1997) No ano de 2012, a festa aconteceu durante três dias do mês de maio, sendo encerrada no dia 13. Apresentaram-se catorze grupos musicais, entre grupos de dança-afro de Castainho, grupos musicais de outras comunidades quilombolas da região, e também de Olinda e Recife. A organização desta Festa é feita pela comunidade com apoio de vereadores de Garanhuns, da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo da mesma cidade e de comerciantes locais. Nas falas sobre os dois eventos citados neste tópico, é notável a presença do elemento “afro” como centralizador das atividades, desde o nome do palco existente em Castainho e o tema escolhido para as oficinas. E a questão da negritude também é central na definição da programação da Festa da Mãe Preta. Na próxima parte deste artigo, irei problematizar a noção de quilombo e cultura, tendo como base as falas acima. Objetiva-se apontar quais são as possíveis relações entre a identidade quilombola, com uma noção de negritude e africanidade, com a noção de cultura, e quais os possíveis desdobramentos na elaboração de políticas culturais. 12 5. “Cultura” e quilombo: problematizando conceitos e suas possíveis implicações para a elaboração de políticas culturais O termo “quilombo”, facilmente associado à figura do negro “escravo”, nasce de uma relação controversa com o Estado, ora de submissão, como mercadorias, ora como subversivos, ao se unirem em grupos, fugindo do trabalho escravo. Os quilombos surgem ao mesmo tempo em relação e em oposição ao Estado. Esta noção é resignificada como ressalta Alfredo Wagner, adquirindo significados diversos. Segundo o autor: “É necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição histórica strict sensu e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam como uma camisa de força. [...]. A relativização dessa força do inconsciente coletivo nos conduz ao repertório de práticas e às autodefinições dos agentes sociais que viveram e construíram essas situações hoje designadas como quilombo” (WAGNER in O´DWER. p 63, 2002) A breve descrição posta no tópico anterior nos mostra a força da presença de um imaginário afro na identidade do quilombola de Castainho- uma apropriação de valores africanos no Brasil como algo imanente á identidade coletiva do quilombo. Todavia, essa característica pode nos levar a uma correspondência falha entre quilombo-negro-africanidades. Essa é uma relação possível, mas que pode ser determinante ou não na identidade de grupos quilombolas. Barth(1988) nos lembra que os caminhos da identidade étnica podem ser diversos, não sendo necessariamente correspondentes a um padrão cultural. A identidade deste grupo possivelmente passa por diversos caminhos de significação, que podem estar relacionada à parentesco, sistemas de compadrio e afinidade, relações de território, relação com outros coletivos da região e a população das cidades próximas, além de ter como “macro” referência a “cultura africana” ou “cultura negra”. Neste sentido, clarear através da pesquisa etnográfica, os aspectos que possam vir a determinar o que é “cultura quilombola” em Castainho, é um dos aspectos centrais para que se possa compreender realmente os caminhos da 13 identidade dos sujeitos do quilombo. Uma importante ressalva, é que a identidade de grupos ou mesmo de sujeitos, como aponta Barth (1988) possui uma dinâmica própria de constituição permanente, o que deve se distanciar de qualquer visão estática e reificada dessa dita “identidade cultural quilombola”. Cabe lembrar que as falas no “Pernambuco Nação Cultural” são ditas por um órgão público, a Fundarpe, que mesmo afirmando estar em diálogo constante com as comunidades e as atividades desenvolvidas serem reflexos das demandas do grupo, expressam, no entanto, a voz do estado. Somos levados a pensar o papel desse “valor afro” na relação com o estado, e mais ainda em termos de políticas que valorizem a cultura. Com relação à noção de cultura, considero significativa a recente discussão proposta por Manuela Carneiro da Cunha acerca dos diversos sentidos atribuídos atualmente a este termo pelos grupos sociais, diferenciando aquilo que a autora define como cultura com e sem aspas. Tal diferenciação mostrase bastante eficiente para pensar como uma determinada sociedade articula diversas ações em prol do que ela considera como pertencente à cultura. A autora traz a noção de cultura como uma categoria de ida e volta (CUNHA, 2009), um conceito analítico criado no centro e exportado para o resto do mundo, que retorna hoje para assombrar aqueles que a produziram. A cultura passou a ser adotada e renovada na periferia, tornando-se argumento central não só nas reivindicações de terra como nas demais. Cultura, portanto, tornase um forte argumento político. Neste sentido, a “cultura” (com aspas) pode ser considerada como um direito. “Cultura” tem a propriedade de uma metalinguagem, é uma noção reflexiva que de certo modo fala de si mesma. “Cultura” é aquilo que é dito acerca da cultura, sendo um importante recurso político. Seria um “recurso interétnico” que deve ser distinguido do registro de vida cotidiana no interior de uma sociedade. Cabe ressaltar que “recurso interétnico” relaciona-se a noção de “fricção interétnica”, proposta por Cardoso de Oliveira (2006), para definir situações em que “o contato entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira, caracterizado por seus aspectos competitivos e, no mais das vezes, conflitais”. 14 As ações da vida cotidiana operam, portanto, no registro da cultura, sem aspas, em que, dos diversos conceitos de cultura presentes na antropologia, Cunha trabalha com a noção de “esquemas interiorizados que organizam a percepção e a ação de pessoas e que garante certo grau de comunicação entre os grupos sociais” (op. cit.). Este sentido clássico do termo define a cultura relacionada a um espírito ou essência que aglutinaria pessoas em nações e separaria as mesmas nações umas das outras, nasceria de distintas visões de mundo- tal espírito seria a originalidade da cultura. Com relação à situação posta no Quilombo de Castainho, nas situações em que o termo cultura é mobilizado como um argumento político estariamos diante de um conceito local de cultura, ou de “cultura”. Todavia, o modo como isto é operado, as relações internas que organizam a criação e articulação deste argumento, diriam respeito à cultura. Trabalhando sob este raciocínio, pode ser possível perceber como termo “cultura” aparece segundo o regime interétnico, assim como as possíveis lógicas locais da cultura, que tornaria questionável a existência de um conceito universalmente aplicável. Outra discussão importante de ser lembrada é a proposta por Roy Wagner (2010) denominada “invenção da cultura”. Segundo Goldman (2011), Wagner critica a pretensa naturalidade do conceito de cultura, encarando-a como uma invenção, num sentido similar, ao de inovação. Goldman afirma que: “as "tradições são tão dependentes de contínua reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes". O que significa que "invenção" e "inovação" não são a mesma coisa que toda tradição é inventada e que, em uma expressão como "invenção das tradições", o primeiro termo (processo de invenção) deveria ser muito mais importante do que o segundo (o que acabou sendo inventado)” (GOLDMAN, 2011). A crítica de Wagner, ao questionar um conceito central da teoria antropológica como cultura, critica a própria postura dos antropólogos como propensos a serem “inventores” de nativos, o que deixa latente certa superioridade da cultura do antropólogo com relação da cultura dos nativos, quer ela existam para eles nestes termos. 15 Por fim, a “cultura”, que opera no regime da etinicidade, tende-se a estender democraticamente a todos- torna-se um patrimônio comum da sociedade. Ela tende a cobrir situações internas, ressaltando aquilo que é considerado interessante e encobrindo o que não seria tão bom assim. A “cultura” é um recurso e arma para afirmar a identidade, a dignidade e o poder diante dos Estados Nacionais e da comunidade internacional. A “cultura” tem um efeito coletivizador- todos a possuem e, por definição, todos a compartilham, relacionando-se com a noção contemporânea de patrimônio. 16 6. No momento, a conclusão Pode-se pensar a princípio que a relação histórica com quilombo dos Palmares, reforça a relação da Comunidade Quilombola de Castainho com a memória de um passado africano. Esta memória é atualizada no presente, e tida como elemento central da identidade quilombola, que afirma o grupo enquanto coletividade diferenciada. Arrasados pela escravidão, os descendentes africanos reconstruíram o seu país perdido, não só pela transmissão, mas também pelo dinamismo do imaginário. Como apontado na conclusão do Relatório Antropológico de Castainho, trata-se de um processo bastante complexo, em que os elementos primordiais, originais daquela identidade, são reelaborados e ajustados à situação atual, inclusive porque a partir da Constituição Federal de 1988 há um espaço legítimo para sua existência. Com relação à direitos políticos de comunidades tradicionais, Cunha(2009) afirma que a legislação cria sujeitos legais e conseqüentemente direitos que lhe são correspondentes. O Estado encoraja a constituição de associações civis com estatutos aprovados e explícitos, como a forma mais conveniente de lidar com projetos, contratos, ONG´s, bancos, etc. Neste sentido, o discurso e outros atos políticos passam também a constituir sociedade, grupos e coletividades. Não podemos falar, a priori, de imposição de valores, na relação de Castainho com o poder público, mas de uma relação dialética, em que o grupo se percebe enquanto sujeito de direito e reverte aquilo que foi fator de estigma e preconceito em elemento distintivo de sua identidade, que deve ser valorizado e promovido pelo Estado, pautado num direito previsto pela Constituição Brasileira. Por fim, acredito que a “cultura” em Castainho seria algo relacionado à noção de cultura “afro”, emergida no nível da etinicidade, que se relaciona 17 estritamente a todo histórico de luta pela legitimação de valores antes invisibilizados, em conexão com a luta do movimento negro e a emergência da identidade quilombola. “Cultura” é argumento mobilizado como direito, não só nas reivindicações de terra, como nas demais. E a cultura, sem aspas, o que caracteriza o grupo enquanto tal, sua particularidade étnicas, de memória e significação, é algo apenas possível de perceber através de uma profunda pesquisa etnográfica. É um complexo unitário de pressupostos, modos de pensamento, hábitos e estilos que interagem entre si, conectados por caminhos ora secretos, ora explícitos- são, portanto, os arranjos práticos de uma sociedade. Estas duas culturas são interdependentes e conectadas, agindo uma sobre a outra de modo dinâmico e constante. Como conclui Cunha, as pessoas vivem ao mesmo tempo na “cultura” e na cultura, apesar de analiticamente, essas duas esferas serem distintas. 18 Bibliografia ALMEIRA, M., Historia Oral baseada em reuniões. X Encontro Nacional de História Oral. UFPE. Recife. 2010 ARRUTI, J. M. MOCAMBO - História e Antropologia do Processo de Formação Quilombola. Bauru/São Paulo: EDUSC/ANPOCS. 2006 BARTH. F.(1988) Grupos étnicos e suas fronteiras. In: Poutignat, P. e Streiff, F. 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