XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e
PRÉ- ALAS BRASIL.
04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.
GT08: Patrimônio Cultural, comunidades tradicionais e sustentabilidade
Título: “Cultura” e Quilombo
Jaqueline de Oliveira e Silva - [email protected]
Universidade Federal de Pernambuco
1. Introdução:
O objetivo deste artigo é compreender os caminhos através dos quais a
comunidade quilombola de Castainho, interior de Pernambuco, define o que
seria do domínio da cultura, e o modo através do qual esta é mobilizada como
direito, diante desta lógica específica dos projetos e das políticas culturais,
mediada pelas associações e demais instâncias de participação política.
Objetiva-se explicitar as relações entre a “cultura” e cultura, segundo a
proposta Cunha (2009), com a dimensão política - uma forma de acesso a
direitos e a cidadania.
O objetivo principal deste trabalho, que se encontra na sua fase inicial de
elaboração em virtude da pesquisa para dissertação de Mestrado em
Antropologia na Universidade Federal de Pernambuco, é pensar a questão das
manifestações culturais de Pernambuco no contexto quilombola, com relação
aos incentivos externos para sua permanência e promoção, uma vez que o
estado é reconhecido nacionalmente pela riqueza, expressividade e vivacidade
de sua cultura popular. Objetiva-se compreender como se dá o incentivo
cultural no contexto quilombola, e suas interlocuções com a periodicidade de
projetos e políticas no nível municipal, estadual e nacional, quais seriam as
instâncias envolvidas, e suas possíveis relações com aspectos da etinicidade,
como identidade e território.
Objetiva-se questionar também quais e o que são essas ações em nome da
cultura e suas implicações para a comunidade. Além disso, problematizar a
própria noção de política cultural (ou de políticas para a cultura) no contexto
dos quilombos, suas possíveis lacunas e desafios.
Neste contexto surge o quilombo de Castainho, localizado próximo a cidade de
Garanhuns, no agreste pernambucano. O quilombo, juntamente com
Conceição das Crioulas, é um dos dois únicos de Pernambuco que possui
titulação do território e encontra-se atualmente no processo de desintrusão
(INCRA, 2012). Castainho é também um dos locais onde acontecem atrações
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do Festival de Inverno de Garanhuns, que no ano de 2012 estará na sua 23º
edição, sendo a 12º edição no local. Durante o Festival acontecem diversas
apresentações culturais e oficinas, que devem ser propostas segundo o edital,
exclusivamente para o contexto quilombola. Outra grande festa que acontece
na região é a “Festa da Mãe Preta”, que encontra-se na sua 25º edição.
Castainho mostra-se um campo profícuo para pensar os incentivos externos à
cultura no contexto quilombola, no qual são marcantes as questões de
etinicidade e identidade cultural.
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2. Situando a discussão: direitos quilombolas para além do direito a
terra
Os então chamados “remanescentes das comunidades dos quilombos”, tiveram
seus direitos estabelecidos pela primeira vez no Brasil com a promulgação da
Constituição Federal de 1988. O artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) estabelece que: “aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida
a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.
Segundo Chasin(2009), o alcance do direito territorial garantido pelo artigo 68
do ADCT esteve mais diretamente atrelado às disposições normativas que
vêm, desde a sua promulgação, regulamentando os procedimentos para a
titulação de terras. Atualmente, a legislação federal que regulamenta o
“procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação,
desintrusão, titulação e registro das terras das comunidades quilombola” é o
Decreto 4.887/03 e sua execução fica a cargo do Instituto Nacional da
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), órgão ligado ao Ministério do
Desenvolvimento Agrário.
Reconhece-se que a questão do território é de extrema relevância, podendo
ser considerada com uma das maiores causas da situação de vulnerabilidade e
insegurança na qual vive grande parte dos quilombos do Brasil. A dificuldade
de aplicação da legislação de regularização fundiária, é atribuída pelo próprio
INCRA à:
“um processo intrinsecamente complexo e moroso, baseado em normativo
elaborado por um grupo interministerial com vistas a dar maior lisura à
regularização de terras quilombolas. Acrescenta-se ainda que a demora na
execução destas etapas está diretamente relacionada à reduzida estrutura
operacional e disponibilidade orçamentária e financeira para atingir todo o
universo de processos abertos”(INCRA, 2012)a.
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Questões territoriais e fundiárias tornaram-se pauta freqüente na bandeira dos
movimentos sociais quilombolas, e ganhou grande destaque nas produções
acadêmicas.
Todavia, ainda como marco normativo da questão dos direitos quilombolas, os
artigos 215 e 216 da CF/1988, que tratam do patrimônio cultural brasileiro,
estabeleceram a proteção às manifestações afro-brasileiras e o tombamento de
documentos e sítios detentores de “reminiscências históricas dos antigos
quilombos”.
A noção de patrimônio cultural, é portanto mobilizada como um direito num
projeto político dos grupos quilombolas, uma vez que a territorialidade, como
afirma Ilka Boaventura (2008) deve ser considerada na sua dimensão simbólica
e as terras dos quilombos, como patrimônio cultural destes povos devem ser
alvo de proteção por parte do Estado” (LEITE, 2008).
“Povos e Comunidades Tradicionais”, categoria ampla na qual estão incluídas
as comunidades quilombolas são definidos pelo Decreto 6.040/07 como:
“grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que
possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios
e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e
práticas gerados e transmitidos pela tradição”(BRASIL, 2012).
O uso do conceito de povos tradicionais procura oferecer um mecanismo capaz
de unir fatores como a existência de regimes de propriedade comum, o sentido
de pertencimento a um lugar, a procura de autonomia cultural e práticas
sustentáveis com relação ao ambiente que os variados grupos sociais mostram
na atualidade. A relação com o território é, portanto, fundamental para o
reconhecimento dessas comunidades como tradicionais.
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Neste sentido, acredito não ser possível desvencilhar a discussão sobre
quilombos da questão do território, mas acredito também que ela não pode se
restringir a isso. Leite (2001) afirma que, em Pernambuco, são poucos os
registros históricos e sociais das comunidades quilombolas do Agreste e do
Sertão. Enquanto que, os estudos aprofundados de sua organização política,
formas de vida, bem como de suas manifestações culturais, são quase
inexistentes.
Medeiros e Albuquerque (1997), citados por Leite (2001), acrescentam que:
(...) é vasta a bibliografia sobre o negro em quadros urbanos brasileiros que
tem se preocupado em analisar fenômenos como mobilidade, detenção de
status, competição, reconstituição histórica, entre outros aspectos. No entanto,
a etnografia sobre o negro em condições de vida rural tem se ampliado, mas,
ainda são poucos os estudos comparativos da organização social do negro
neste meio (Medeiros e Albuquerque, in: LEITE, 2001).
Portanto, compreender a noção de cultura e a relação que ela apresenta com
direitos políticos, parte do princípio de que cada comunidade é única em sua
formação, modo de vida, sentidos e aspirações. Não é possível, portanto
falarmos de “quilombos brasileiros” ou “quilombos pernambucanos” como um
conjunto homogêneo. Pretende-se neste sentido, tratar das particularidades e
especificidades que tornam Castainho uma comunidade única e distinta das
demais, na sua relação entre si e com o Estado.
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3. Sobre
o
quilombo
de
Castainho:
origens
do
território,
reconhecimento e titulação
O objetivo deste tópico é apresentar uma caracterização geral do quilombo
com base em dados documentais, tendo como ênfase aspectos relacionados à
questão tratada neste artigo, que é a noção local de cultura e sua relação com
políticas culturais.
.
Não há um consenso nas explicações sobre as origens do território de
Castainho. Uma delas, afirma que um grupo de negros e negras que fugiram
da guerra contra o Quilombo dos Palmares, através do Rio Mundaú,
esconderam-se nas matas onde hoje se localiza a comunidade, no município
de Garanhuns
Segundo relato de Cavalcanti citado por Monteiro:
“ O Zumbi- rei de negros(...) mandou atacar e destruir as fazendas e sítios já
existentes para o norte e nordeste (do quilombo dos Palmares), em cujas terras
foram os negros organizando mocambos e construindo outros quilombos, como
o de Magano, nas cabeceiras do riacho São Vicente, subúrbio da atual cidade
de Garanhus” (MONTEIRO, p14, 1985)
Diversos relatos de quilombolas citados pelo Relatório Antropológico de
Castainho elaborado em 1997, apontam para a relação deste, como de outros
quilombos próximos ao local onde hoje é Garanhuns, com a fuga de negros
durante a Guerra de Palmares. Mas esta não é a única hipótese. Há outra
versão que afirma que a terras de Castainho foram herdadas por um exescravo do seu antigo senhor.
Os relatos que tratam da relação com o Quilombo dos Palmares vão de
encontro a fontes documentais apontadas pelo Relatório Antropológico, como
um levantamento realizado pelo Fundo de Terras de Pernambuco (FUNTEPE),
datado de 12/04/1994, que se refere à Castainho como comunidade
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remanescente do Quilombo dos Palmares, cuja história é anterior a própria
história de Garanhuns. Fontes históricas apontam também apontam para o sul
de Pernambuco e o estado de Alagoas como palco de resistência e diáspora
dos negros “aquilombados”. (INCRA, 1997).
Segundo Vânia Fialho, autora do citado relatório antropológico de Castainho:
“A história da comunidade de Castainho na região em que se encontra pode ter
se dado das mais diversas formas, porém incontestável é a sua relação com a
Guerra de Palmares, em torno do qual a identidade de Castainho se
constrói”(op. cit)
A comunidade apresenta forte grau de mobilização. Sua associação foi criada
em 1982, sendo oficializada em 1993, como Associação de Moradores de
Castainho e Adjacências. Castainho também é Ponto de Cultura, programa do
Governo Federal mediado pelo Governo do Estado, e está integrado nas ações
da Comissão Estadual dos Quilombos.
O processo de reconhecimento iniciou-se em 1995, com ajuda de diversas
organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Federação de
Trabalhadores de Agricultura de Pernambuco (FETAPE), o Movimento Negro
Unificado (MNU) e a Universidade Federal de Pernambuco. Em 17/07/2000,
Castainho teve seu título emitido pela Fundação Palmares (órgão responsável
pela titulação de comunidades nesta época), abarcando 206 famílias,
183,6000ha. Atualmente, está se delineando o processo de desintrusão, última
etapa antes da titulação e do registro do título emitido pelo INCRA.
Uma situação importante de ser destacada é a presença do MNU neste
contexto de reconhecimento, momento em que estão emergindo situações
sociais antes encobertas pelo estigma do preconceito, e o grupo reelabora sua
identidade a partir desta nova relação com o Estado, como sujeitos de direito
culturalmente diferenciados.
Para além do inegável papel das mobilizações e reivindicações do movimento
negro que garantiram a inclusão da demanda quilombola no texto
constitucional, como aponta Arruti (2006), é relevante o fato da agenda deste
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movimento ter como foco principal questões relacionadas valorização da
negritude, africanidade e identidade negra, que permeiam questões mais
específicas, como o direito à terra, educação e saúde, e acima de tudo, direito
á cidadania e contra a discriminação racial.
Ainda não é possível chegar a qualquer conclusão neste sentido, mas é um
aspecto importante de ser explorado o fato de que a presença do movimento
negro pode fortalecer a emergência de uma identidade “afro”, e a suas
referências diacríticas, como músicas, danças, comidas, religiosidades e certos
padrões estéticos.
No próximo tópico, irei abordar como aspectos da identidade “afro” estão
presentes, e se relacionam com políticas públicas em andamento na
comunidade.
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4. Ações políticas culturais em Castainho: O Festival de Inverno de
Garanhuns e a Festa da Mãe Preta
A princípio, é importante ressaltar que considero como políticas culturais neste
contexto ações políticas do estado, quer seja no nível federal, municipal ou
estatal, feitas em nome da cultura. Um aspecto a ser discutido é quais destas
manifestações são consideradas como culturais, e por quem, pensando no que
é tido como necessário de ser divulgado, incentivado e preservado.
Em Garanhuns acontece há 23 anos no mês de julho um Festival de Inverno
organizado pela Fundação de Arte de Pernambuco, (Fundarpe). Castainho é
um dos pólos do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) , que no ano de 2012
está na sua 23º edição, sendo a 12º edição no local. Durante os festivais
acontecem diversas apresentações culturais e oficinas, que devem ser
propostas, segundo o edital, exclusivamente para o contexto quilombola
Segundo Almeida(2010), a ação do FIG possibilitou, pela localização de ações
diretas em Castainho, algumas modificações em termos da produção cultural
da comunidade, a partir da expressão artística.
Segundo o jornal produzido pela Fundarpe, o “Pernambuco Nação Cultural”,
Castainho consolida-se no ano de 2011 como pólo cultural do FIG. Diversas
oficinas acontecem na comunidade, que concentra o “Palco Afro Castainho”.
No ano de 2011 aconteceram 13 oficinas sendo 10 da área artística, e 3 da
área de formação político cultural - Formação em Políticas para Quilombos,
Mediação de Conflitos e Elaboração de Projetos. As oficinas artísticas, além de
trazerem novas linguagens, como a de vídeo denominada “Reportagem
Comunitária”, têm como objetivo “potencializar os grupos de dança, teatro,
percussão, canto-coral e as bandas de pífano que existem na região”.
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A edição de 2011 apresenta um salto com relação ao FIG de 2009, onde a
comunidade de Castainho recebeu apenas três oficinas: Costurando os
Retalhos do Tecido Social, título da oficina de moda, oficina de música Coral
Infantil e de Técnicas Circenses.
Segundo o “Pernambuco Nação Cultural”, o tema das oficinas deste ano,
“reafirmação da identidade afro” foi escolhido entre as sete comunidades do
entorno de Garanhuns, assim como a demanda pelas oficinas de formação. A
oficina de “patrimônio imaterial e identidade afro”, segundo o informativo, foi um
pedido dos líderes quilombolas para conscientizar a juventude da sua
ancestralidade e para dar a esses jovens o sentimento de pertencimento a
cultura afro.
Uma das frases mais expressivas publicadas pelo jornal é atribuída à liderança
comunitária José Carlos Lopes da Silva, dita durante a apresentação de
encerramento das atividades: “A África está aqui no meio de nós”, ressaltando
a importância da África como referencial mítico do quilombo.
Outra edição do mesmo periódico “Pernambuco Nação Cultural” da Fundarpe,
publicado no mesmo ano, afirma que:
“parte das oficinas de formação aplicadas em Castainho, atendendo 240
pessoas, é programada a partir das necessidades dos quilombolas. A idéia é
potencializar os grupos culturais já existentes e fomentar as atividades que eles
desenvolvem durante o decorrer do ano”. (FUNDARPE, 2012)
Outra fala emblemática da liderança José Carlos da Silva é publicada:
“ ‘As oficinas qualificam tecnicamente o nosso povo. E também conscientizam
o pertencimento e a identidade afro-descendente. A partir daí, já ficamos
seguros e caminhamos sozinhos’, coloca José Carlos e emenda: ‘Hoje não
temos vergonha de dizer que aqui é um quilombo. Temos orgulho do que
somos’.”(FUNDARPE, 2012)
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Além do Festival de Inverno, outra grande festa da comunidade é a “Festa da
Mãe Preta”, comemorada no dia 13 de maio, oficialmente dia da “Abolição da
Escravatura”. Neste dia também se comemora em algumas religiões de matriz
africana como a umbanda o “Dia dos Preto Velhos”. Sobre a “Festa da Mãe
Preta”, encontramos referência no relatório antropológico de 1997:
“Mas era uma festa intitulada pelo nome de Mãe Preta porque na época eles
escolheram a mulher mais velha e mais preta para fazer parte dessa festa. Era
como se fosse uma rainha, eles consideravam ela como se fosse uma rainha”
(INCRA, 1997)
No ano de 2012, a festa aconteceu durante três dias do mês de maio, sendo
encerrada no dia 13. Apresentaram-se catorze grupos musicais, entre grupos
de dança-afro de Castainho, grupos musicais de outras comunidades
quilombolas da região, e também de Olinda e Recife. A organização desta
Festa é feita pela comunidade com apoio de vereadores de Garanhuns, da
Secretaria Municipal de Cultura e Turismo da mesma cidade e de comerciantes
locais.
Nas falas sobre os dois eventos citados neste tópico, é notável a presença do
elemento “afro” como centralizador das atividades, desde o nome do palco
existente em Castainho e o tema escolhido para as oficinas. E a questão da
negritude também é central na definição da programação da Festa da Mãe
Preta.
Na próxima parte deste artigo, irei problematizar a noção de quilombo e cultura,
tendo como base as falas acima. Objetiva-se apontar quais são as possíveis
relações entre a identidade quilombola, com uma noção de negritude e
africanidade, com a noção de cultura, e quais os possíveis desdobramentos na
elaboração de políticas culturais.
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5. “Cultura” e quilombo: problematizando conceitos e suas possíveis
implicações para a elaboração de políticas culturais
O termo “quilombo”, facilmente associado à figura do negro “escravo”, nasce de
uma relação controversa com o Estado, ora de submissão, como mercadorias,
ora como subversivos, ao se unirem em grupos, fugindo do trabalho escravo.
Os quilombos surgem ao mesmo tempo em relação e em oposição ao Estado.
Esta noção é resignificada como ressalta Alfredo Wagner, adquirindo
significados diversos. Segundo o autor:
“É necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição
histórica strict sensu e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam
como uma camisa de força. [...]. A relativização dessa força do inconsciente
coletivo nos conduz ao repertório de práticas e às autodefinições dos agentes
sociais que viveram e construíram essas situações hoje designadas como
quilombo” (WAGNER in O´DWER. p 63, 2002)
A breve descrição posta no tópico anterior nos mostra a força da presença de
um imaginário afro na identidade do quilombola de Castainho- uma apropriação
de valores africanos no Brasil como algo imanente á identidade coletiva do
quilombo. Todavia, essa característica pode nos levar a uma correspondência
falha entre quilombo-negro-africanidades. Essa é uma relação possível, mas
que pode ser determinante ou não na identidade de grupos quilombolas.
Barth(1988) nos lembra que os caminhos da identidade étnica podem ser
diversos, não sendo necessariamente correspondentes a um padrão cultural. A
identidade deste grupo possivelmente passa por diversos caminhos de
significação, que podem estar relacionada à parentesco, sistemas de
compadrio e afinidade, relações de território, relação com outros coletivos da
região e a população das cidades próximas, além de ter como “macro”
referência a “cultura africana” ou “cultura negra”.
Neste sentido, clarear através da pesquisa etnográfica, os aspectos que
possam vir a determinar o que é “cultura quilombola” em Castainho, é um dos
aspectos centrais para que se possa compreender realmente os caminhos da
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identidade dos sujeitos do quilombo. Uma importante ressalva, é que a
identidade de grupos ou mesmo de sujeitos, como aponta Barth (1988) possui
uma dinâmica própria de constituição permanente, o que deve se distanciar de
qualquer visão estática e reificada dessa dita “identidade cultural quilombola”.
Cabe lembrar que as falas no “Pernambuco Nação Cultural” são ditas por um
órgão público, a Fundarpe, que mesmo afirmando estar em diálogo constante
com as comunidades e as atividades desenvolvidas serem reflexos das
demandas do grupo, expressam, no entanto, a voz do estado. Somos levados
a pensar o papel desse “valor afro” na relação com o estado, e mais ainda em
termos de políticas que valorizem a cultura.
Com relação à noção de cultura, considero significativa a recente discussão
proposta por Manuela Carneiro da Cunha acerca dos diversos sentidos
atribuídos atualmente a este termo pelos grupos sociais, diferenciando aquilo
que a autora define como cultura com e sem aspas. Tal diferenciação mostrase bastante eficiente para pensar como uma determinada sociedade articula
diversas ações em prol do que ela considera como pertencente à cultura.
A autora traz a noção de cultura como uma categoria de ida e volta (CUNHA,
2009), um conceito analítico criado no centro e exportado para o resto do
mundo, que retorna hoje para assombrar aqueles que a produziram. A cultura
passou a ser adotada e renovada na periferia, tornando-se argumento central
não só nas reivindicações de terra como nas demais. Cultura, portanto, tornase um forte argumento político.
Neste sentido, a “cultura” (com aspas) pode ser considerada como um direito.
“Cultura” tem a propriedade de uma metalinguagem, é uma noção reflexiva que
de certo modo fala de si mesma. “Cultura” é aquilo que é dito acerca da cultura,
sendo um importante recurso político. Seria um “recurso interétnico” que deve
ser distinguido do registro de vida cotidiana no interior de uma sociedade. Cabe
ressaltar que “recurso interétnico” relaciona-se a noção de “fricção interétnica”,
proposta por Cardoso de Oliveira (2006), para definir situações em que “o
contato entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira, caracterizado
por seus aspectos competitivos e, no mais das vezes, conflitais”.
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As ações da vida cotidiana operam, portanto, no registro da cultura, sem aspas,
em que, dos diversos conceitos de cultura presentes na antropologia, Cunha
trabalha com a noção de “esquemas interiorizados que organizam a percepção
e a ação de pessoas e que garante certo grau de comunicação entre os grupos
sociais” (op. cit.). Este sentido clássico do termo define a cultura relacionada a
um espírito ou essência que aglutinaria pessoas em nações e separaria as
mesmas nações umas das outras, nasceria de distintas visões de mundo- tal
espírito seria a originalidade da cultura.
Com relação à situação posta no Quilombo de Castainho, nas situações em
que o termo cultura é mobilizado como um argumento político estariamos
diante de um conceito local de cultura, ou de “cultura”. Todavia, o modo como
isto é operado, as relações internas que organizam a criação e articulação
deste argumento, diriam respeito à cultura. Trabalhando sob este raciocínio,
pode ser possível perceber como termo “cultura” aparece segundo o regime
interétnico, assim como as possíveis lógicas locais da cultura, que tornaria
questionável a existência de um conceito universalmente aplicável.
Outra discussão importante de ser lembrada é a proposta por Roy Wagner
(2010) denominada “invenção da cultura”. Segundo Goldman (2011), Wagner
critica a pretensa naturalidade do conceito de cultura, encarando-a como uma
invenção, num sentido similar, ao de inovação. Goldman afirma que:
“as "tradições são tão dependentes de contínua reinvenção quanto as
idiossincrasias, detalhes e cacoetes". O que significa que "invenção" e
"inovação" não são a mesma coisa que toda tradição é inventada e que,
em uma expressão como "invenção das tradições", o primeiro termo
(processo de invenção) deveria ser muito mais importante do que o
segundo (o que acabou sendo inventado)” (GOLDMAN, 2011).
A crítica de Wagner, ao questionar um conceito central da teoria antropológica
como cultura, critica a própria postura dos antropólogos como propensos a
serem “inventores” de nativos, o que deixa latente certa superioridade da
cultura do antropólogo com relação da cultura dos nativos, quer ela existam
para eles nestes termos.
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Por fim, a “cultura”, que opera no regime da etinicidade, tende-se a estender
democraticamente a todos- torna-se um patrimônio comum da sociedade. Ela
tende a cobrir situações internas, ressaltando aquilo que é considerado
interessante e encobrindo o que não seria tão bom assim. A “cultura” é um
recurso e arma para afirmar a identidade, a dignidade e o poder diante dos
Estados Nacionais e da comunidade internacional. A “cultura” tem um efeito
coletivizador- todos a possuem e, por definição, todos a compartilham,
relacionando-se com a noção contemporânea de patrimônio.
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6. No momento, a conclusão
Pode-se pensar a princípio que a relação histórica com quilombo dos
Palmares, reforça a relação da Comunidade Quilombola de Castainho com a
memória de um passado africano. Esta memória é atualizada no presente, e
tida como elemento central da identidade quilombola, que afirma o grupo
enquanto coletividade diferenciada.
Arrasados pela escravidão, os descendentes africanos reconstruíram o seu
país perdido, não só pela transmissão, mas também pelo dinamismo do
imaginário. Como apontado na conclusão do Relatório Antropológico de
Castainho, trata-se de um processo bastante complexo, em que os elementos
primordiais, originais daquela identidade, são reelaborados e ajustados à
situação atual, inclusive porque a partir da Constituição Federal de 1988 há um
espaço legítimo para sua existência.
Com relação à direitos políticos de comunidades tradicionais, Cunha(2009)
afirma que a legislação cria sujeitos legais e conseqüentemente direitos que lhe
são correspondentes. O Estado encoraja a constituição de associações civis
com estatutos aprovados e explícitos, como a forma mais conveniente de lidar
com projetos, contratos, ONG´s, bancos, etc. Neste sentido, o discurso e outros
atos políticos passam também a constituir sociedade, grupos e coletividades.
Não podemos falar, a priori, de imposição de valores, na relação de Castainho
com o poder público, mas de uma relação dialética, em que o grupo se percebe
enquanto sujeito de direito e reverte aquilo que foi fator de estigma e
preconceito em elemento distintivo de sua identidade, que deve ser valorizado
e promovido pelo Estado, pautado num direito previsto pela Constituição
Brasileira.
Por fim, acredito que a “cultura” em Castainho seria algo relacionado à noção
de cultura “afro”, emergida no nível da etinicidade, que se relaciona
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estritamente a todo histórico de luta pela legitimação de valores antes
invisibilizados, em conexão com a luta do movimento negro e a emergência da
identidade quilombola. “Cultura” é argumento mobilizado como direito, não só
nas reivindicações de terra, como nas demais.
E a cultura, sem aspas, o que caracteriza o grupo enquanto tal, sua
particularidade étnicas, de memória e significação, é algo apenas possível de
perceber através de uma profunda pesquisa etnográfica. É um complexo
unitário de pressupostos, modos de pensamento, hábitos e estilos que
interagem entre si, conectados por caminhos ora secretos, ora explícitos- são,
portanto, os arranjos práticos de uma sociedade.
Estas duas culturas são interdependentes e conectadas, agindo uma sobre a
outra de modo dinâmico e constante. Como conclui Cunha, as pessoas vivem
ao mesmo tempo na “cultura” e na cultura, apesar de analiticamente, essas
duas esferas serem distintas.
18
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