C O R RE N T E S D O D I RE I T O
Manual de Capacitação e Guia de Facilitadores de legislação sobre a
água e reforma legislativa, baseada na gestão integrada dos recursos
hídricos – GIRH
Bacias hidrográficas
compartilhadas
Direitos
consuetudinários
Água para o
alimento
Fornecimento de
água e
saneamento
Água e meio
ambiente
Incorporação da
perspectiva de
gênero
Água para o
povo
Mudanças climáticas
e água
Água e
energia
Correntes do Direito
i
Índice
ÍNDICE ..................................................................................................................I
PREFÁCIO .........................................................................................................III
AGRADECIMENTOS ......................................................................................... IV
INTRODUÇÃO .................................................................................................... V
CAPÍTULO 1 ........................................................................................................1
INTRODUÇÃO À GIRH .......................................................................................1
1.1 Introdução..............................................................................................1
1.2 Princípios da GIRH ................................................................................2
1.3 GIRH: Um processo de gestão para a governança da água ..................5
1.4 Por que a legislação sobre a água é fundamental no processo de
GIRH? .........................................................................................................5
1.5 Uma visão mais apurada da legislação sobre a água ............................6
1.6 O que a legislação sobre a água normalmente contém .........................7
1.7 Implementando a GIRH .........................................................................8
1.8 Leituras sugeridas .................................................................................8
CAPÍTULO 2 ........................................................................................................9
CONCEITOS PARA UMA ESTRUTURA LEGAL DE GIRH ................................9
2.1 Introdução..............................................................................................9
2.2 Gestão Holística ....................................................................................9
2.3 Sustentabilidade ..................................................................................10
2.4 Equidade .............................................................................................11
2.5 Equilíbrio de gênero.............................................................................12
2.6 Valor econômico da água ....................................................................13
2.7 Governança .........................................................................................13
2.8 Leituras sugeridas ...............................................................................15
CAPÍTULO 3 ......................................................................................................16
LEGISLAÇÃO NACIONAL SOBRE A ÁGUA....................................................16
3.1 Introdução............................................................................................16
3.2 A política da água traduzida em normas legais ....................................17
3.3 Componentes de uma legislação nacional sobre a água .....................18
3.4 Conclusão............................................................................................21
CAPÍTULO 4 ......................................................................................................23
DISPOSIÇÕES SOBRE A ÁGUA BASEADAS NO COSTUME ........................23
4.1 Introdução............................................................................................23
4.2 Pluralismo social: uma estrutura teórica ..............................................24
4.3 Gerindo recursos hídricos sob o pluralismo social ...............................25
4.4 Estudo de casos: gestão de recursos hídricos disposições baseadas no
costume .....................................................................................................27
4.5 Prós e contras de reconhecer disposições baseadas no costume .......31
4.6 Leituras sugeridas ...............................................................................32
CAPÍTULO 5 ......................................................................................................35
ASPECTOS
LEGAIS
DA
GESTÃO
DE
RECURSOS
HÍDRICOS
COMPARTILHADOS .........................................................................................35
Correntes do Direito
i
5.1 Introdução............................................................................................35
5.2 O direito internacional em contexto ......................................................35
5.3 Direito Internacional dos cursos d’água ...............................................38
5.4 A Convenção de 1997 das Nações Unidas ..........................................41
5.5. Principais características da lei internacional de curso d’água
internacional (Utilização Equitativa e Regra de Não Prejuízo) ...................45
5.6 Obrigações internacionais e implementação nacional / regional ..........45
5.7 Conclusão............................................................................................48
5.8 Leituras sugeridas ...............................................................................48
CAPÍTULO 6 ......................................................................................................51
RESOLUÇÃO DE CONFLITOS .........................................................................51
6.1 Introdução............................................................................................51
6.2 Acordos implícitos e explícitos, pressupostos e problemas no âmbito da
gestão das águas ......................................................................................52
6.3 A GIRH e a Gestão de Conflitos ..........................................................52
6.4 Resolução de conflitos: mapa da situação, papéis & responsabilidades53
6.5 Resolução Alternativa de Conflito (RAC) .............................................55
6.6 As habilidades de comunicação como elementos facilitadores nos
conflitos .....................................................................................................57
6.7 Exigências para uma resolução de conflitos bem sucedida .................58
6.8 Conclusão............................................................................................58
6.9 Leituras sugeridas ...............................................................................59
CAPÍTULO 7 ......................................................................................................60
GOVERNANÇA DA ÁGUA E INSTITUIÇÕES ...................................................60
7.1 Introdução............................................................................................60
7.2 A gestão da água nas bases: as dimensões da governança da água ..61
7.3 Princípios de uma governança efetiva da água ...................................61
7.4 O Papel da Governança na implementação da GIRH ..........................66
7.5 Conclusão............................................................................................68
7.6 Leituras sugeridas ...............................................................................69
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................71
ii
Correntes do Direito
Prefácio
As mudanças nas políticas e práticas da gestão integrada de recursos hídricos
nas últimas duas décadas tiveram consequências de longo alcance quanto ao
modo como o uso da água está sendo regulado. Reconhece-se que os sistemas
de alocação de água e controles da poluição devem ser implementados e se
mostrar efetivos, de preferência usando os princípios do “ou usuário ou poluidor
pagador”. Também é reconhecido que os grupos de interesse devem
desempenhar um papel significativo nas decisões referentes à gestão da água,
uma vez que, com frequência, na medida em que frequentemente são
impactadas pela gestão das águas não adequadas. Para tornar eficaz essa
melhor gestão integrada de recursos hídricos, as instituições de gestão também
estão sendo reformadas.
Essa escala de mudanças invariavelmente exige alterações nas leis que regem
os recursos hídricos. Os países promovem a reforma legal ou desenvolvem uma
nova Lei Nacional da Água para assegurar a criação de uma estrutura legal que
permita que se realizem as políticas e os objetivos previstos. Assim, os impactos
são de longo alcance e a reforma legal deve receber cuidadosa atenção.
Este manual de treinamento introduz diversos aspectos da lei das águas e é
adequado para gestores de nível médio e sênior. Será de grande ajuda
compreender como é elaborada a legislação sobre águas e como diversos
princípios podem ser incorporados ao texto legal. O manual é adequado para
cursos de pequena duração ou como material para programas educacionais
sobre gestão da água. O manual fornece links para valiosos materiais e um guia
para os facilitadores, que podem utilizar o material no desenvolvimento de
programas de capacitação.
Paul Taylor,
Diretor, Cap-Net
Correntes do Direito
iii
Agradecimentos
Este material para capacitação foi preparado por uma equipe de autores das
redes de parcerias e das organizações da Cap-Net. Sob a orientação do Sr.
Damián Indij, da LA-WETnet, os autores Sr. Tarek Majzoub, da Universidade
Árabe de Beirute, Sra. Maria del Pilar Garcia Páchon, da Universidade
Externado da Colômbia, Sra. Palesa Selloane Mokorosi, do African Centre for
Water Research - ACWR, Sr. Kees Leendertse, da Cap-Net contribuíram em
diferentes seções do material.
Gostaríamos de agradecer a valorosa contribuição do Departamento de Direito
das Águas da Universidade de Dundee, em particular ao Sr. Michael HantkeDomas pela revisão e pelos comentários ao texto, num espírito de parceria que
levou ao manual aqui apresentado. A equipe também é grata ao Sr. Daniel
Malzbender do ACWR pela revisão. Finalmente, os comentários recebidos dos
participantes nos diversos cursos de capacitação nos ajudaram a melhorar o
material de modo significativo.
iv
Correntes do Direito
Introdução
O manual de treinamento e o guia do facilitador visam auxiliar aos facilitadores a
realizar cursos breves de capacitação a respeito da legislação da água e a
reforma legislativa, visando à adoção da gestão integrada dos recursos hídricos GIRH. Os cursos de pequena duração sobre o assunto são dirigidos a gestores
que estão no processo de reforma legislativa para adotar os princípios da GIRH,
bem como preparando ambiente propício para sua implementação. O manual
contém informações sobre os fundamentos de GIRH e orientação nesse
processo.
A estrutura do manual e do guia do facilitador torna o material ferramenta prática
para conduzir curso, de duração de uma semana. Entretanto, também é
adequado para ser utilizado em programas educacionais e ações de tomada de
consciência, tendo como público-alvo atores sociais participantes de processo
decisório. O manual e as apresentações que o acompanham podem ser
adaptados para diferentes públicos.
O presente documento tem duas seções principais: o manual e o guia do
facilitador. O manual apresenta conceitos e princípios referentes à reforma legal
e à legislação de água, abordando assuntos como acordos internacionais e
alternativas para soluções de conflito. Para esse fim, oferece ferramentas e
instrumentos úteis. Cada capítulo se inicia com os objetivos e as metas de
aprendizado para aquela seção, enquanto exemplos práticos e questões de
orientação são fornecidos ao longo do documento. O manual está estruturado
em sete capítulos:







Introdução à Gestão Integrada de Recursos Hídricos
Conceitos para uma Estrutura Legal de GIRH
Legislação Nacional sobre a Água
Disposições Baseadas no Costume
Aspectos Legais da Gestão de Recursos Hídricos Compartilhados
Resolução de Conflitos
Governança da Água e Instituições
A parte 2 do documento é um guia para facilitadores. Fornece ao facilitador do
curso um guia prático para a organização e a condução de cursos sobre a
reforma legal referente à GIRH. O guia fornece um exemplo de programa de
capacitação, que visa ajudar a estruturar o curso. Trazem diretrizes para cada
capítulo, além de dicas para a organização do curso, inclusive para facilitação e
aprendizado de adultos. Também dá sugestões para os materiais a serem
usados nas sessões, exercícios e sessões interativas, além de atividades para
estimular a interação dos participantes. São recomendados diversos recursos
úteis, além de sítios da Internet.
O CD que acompanha o manual oferece material de apoio para o curso. Nele
estão apresentações facilmente adaptáveis para cada sessão, materiais
sugeridos para leitura e referências e estudos de caso. Contém também o
manual em formato digital.
Correntes do Direito
v
O manual fica incompleto sem as enriquecedoras experiências e as
contribuições dos participantes. Também pretende estimular a interação e a
discussão durante a condução da capacitação. Dessa forma, pode contribuir
para uma melhor compreensão da estrutura legal e para a necessidade de
reformar a legislação para a implementação da GIRH.
vi
Correntes do Direito
1
Capítulo 1
Introdução à GIRH
Meta
A meta deste capítulo é apresentar conceitos e princípios da Gestão Integrada
de Recursos Hídricos (GIRH); os princípios que fundamentam a GIRH, os
desafios para sua implementação e a relevância de uma legislação adequada
sobre a água.
Objetivos do Aprendizado
Após o estudo deste capítulo, os participantes:




Serão capazes de descrever o significado de GIRH e seus princípios
essenciais;
Compreenderão as principais razões para adotar uma abordagem de GIRH;
Reconhecerão o papel e a importância da legislação sobre a água como
condição necessária, embora não suficiente, para a implementação da
GIRH; e
Serão capazes de descrever os principais desafios para adotar uma
abordagem de GIRH no próprio país, e como a legislação desempenha um
papel nesse processo.
1.1 Introdução
A água é essencial à vida. Também é de vital importância para a saúde e o
desenvolvimento; é elemento-chave para a mitigação da pobreza.
Encontraremos uma relação com a água em todos os aspectos das atividades
humanas e da natureza. No entanto, água não está assegurada para todos em
um contexto global de aumento exponencial da população, com demanda
crescente e constante por alimentos e água potável, aumento de atividades
econômicas e pressão sobre os frágeis ecossistemas.
Questões como direitos sobre as águas, gestão de recursos hídricos, uso e
descarga da água, demanda e suprimento atravessam transversalmente todos
os níveis de usuários e atividades humanas.
A poluição afeta a qualidade da água (e, assim, a água potável disponível) e
espera-se que as manifestações das mudanças climáticas e a extrema
variabilidade do clima tenham impactos substanciais nos recursos hídricos e na
disponibilidade de água.
Hoje há uma crise de água. Mas a crise não é devida à escassez de água para
satisfazer nossas necessidades. É uma crise de má gestão da água, implicando
que bilhões de pessoas ─ e o meio ambiente ─ sofram terrivelmente (Conselho
Mundial da Água - World Water Council: 2000). No ano de 2025, mais de três
bilhões de pessoas enfrentarão a escassez de água. Mas não porque vá faltar
água no mundo1. A crise dos recursos hídricos é uma crise de governança
(Solanes, M.; Peña, H.: 2003; GWP: 2003).
1
Ainda é verdade que a água é escassa em algumas regiões e outras novas áreas enfrentarão o mesmo
destino em razão das mudanças climáticas.
Correntes do Direito
1
1
Ainda hoje os profissionais responsáveis pela gestão dos recursos hídricos
trabalham em base setorial, sem coordenação do planejamento e das
operações, sem contar com a colaboração estreita com a comunidade
ambiental, e dentro de fronteiras administrativas que normalmente ignoram a
divisão espacial natural em bacias hidrográficas e subterrâneas. Pior que tudo,
os grupos de interesse mais atingidos, homens e mulheres da comunidade,
cujas vidas e sobrevivência dependem de adequada gestão dos recursos
hídricos, não participam da tomada de decisões. Os governos deveriam
estabelecer mecanismos institucionais para que isso aconteça, incluindo
legislação nacional que estabeleça o planejamento e a gestão do uso da terra e
da água com participação das mulheres e de outros grupos de interesse,
representando os interesses econômicos, ambientais e sociais da comunidade e
o total compartilhamento da informação (Conselho Mundial da Água – em inglês
World Water Council: 2000).
Durante as últimas décadas, especialistas do mundo inteiro estudaram e
compartilharam conhecimentos para compreender qual a melhor forma de
gestão da água; esse processo levou à consolidação dos princípios de “Gestão
Integrada de Recursos Hídricos”.
A GIRH pode ser entendida como a interpretação da gestão dos recursos
hídricos sob a forma de uma abordagem holística. De acordo com a Associação
Mundial pela Água (em inglês GWP - Global Water Partnership), "a GIRH é um
processo que promove o desenvolvimento e a gestão da água, da terra e dos
recursos relacionados de forma coordenada, visando otimizar o bem-estar
econômico e social resultante de maneira justa, e sem comprometer a
sustentabilidade de ecossistemas vitais" (GWP: 2000).
O caminho na direção da GIRH levou a importantes mudanças na gestão de
recursos hídricos a níveis local e internacional. Houve uma reforma completa
dos princípios de gestão dos recursos hídricos, passando de enfoque
setorializado, na infraestrutura e no investimento, para uma abordagem
integrada e multissetorial, considerando os diferentes usos dos recursos hídricos
e com foco nas inter-relações entre diferentes setores do uso da água.
1.2 Princípios da GIRH
Há quatro princípios, conhecidos como os princípios de Dublin, considerados
orientadores2:
1.
A água doce é um recursos finito e vulnerável, essencial para
garantir a vida, o desenvolvimento e o meio ambiente.
Como a água garante a vida, a gestão eficaz dos recursos hídricos
requer uma abordagem holística, ligando o desenvolvimento social e
econômico à proteção dos ecossistemas naturais. A gestão eficaz liga
terra e usos da água através da totalidade de uma área de captação ou
aquífero subterrâneo.
2
Da Declaração de Dublin sobre Recursos Hídricos e Desenvolvimento, Conferência Internacional sobre Água
e o Meio Ambiente, Dublin, Irlanda, de 26 a 31 de janeiro de 1992, preparatórias à Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992.
Nota de Revisão. Tais princípios foram incorporados na Agenda 21 aprovada na Conferência das Nações
Unidas, realizado no Rio de Janeiro, em junho de 1992.
2
Correntes do Direito
1
A noção de que a água doce é um recurso finito surge quando o ciclo
hidrológico médio escoa uma quantidade fixa de água em determinado
período. Essa quantidade, total ou não, pode ser alterada de forma
significativa por ações humanas, embora a quantidade disponível para as
pessoas e para o ecossistema possa ser, e é frequentemente, reduzida
em razão da poluição causada pelo ser humano. O recurso da água doce
é um ativo natural, que precisa ser mantido para assegurar que os
serviços desejados sejam mantidos.
Esse princípio reconhece que a água é necessária para muitas e
diferentes finalidades, funções e serviços; assim, a gestão precisa ser
holística (integrada) e envolver a consideração das demandas em relação
ao recurso e as ameaças a tal recurso.
2.
O desenvolvimento e a gestão da água devem ser baseados
em
abordagem
participativa,
envolvendo
usuários,
planejadores e formuladores de políticas em todos os níveis.
A real participação só acontece quando os grupos de interesse são parte
do processo de tomada de decisão. Uma abordagem participativa é o
único meio de alcançar consenso duradouro e acordo entre as partes.
Entretanto, para que isso aconteça, os grupos de interesse e as
autoridades das agências de gestão da água precisam reconhecer que
sustentabilidade do recurso é um problema comum e que todas as partes
terão que sacrificar alguns desejos pelo bem de todos. A participação
está relacionada a assumir responsabilidade, reconhecendo o efeito de
ações setoriais sobre outros usuários da água e ecossistemas aquáticos,
aceitando a necessidade de mudança para melhorar a eficiência do uso
da água, permitindo o desenvolvimento sustentável do recurso. A
participação nem sempre alcança o consenso; poderá ser necessário
recorrer a processos de arbitragem ou a outros mecanismos de resolução
de conflitos3.
Os governos a nível nacional, regional e local têm a responsabilidade de
tornar a participação possível. Isso envolve a criação de mecanismos
para consulta das partes interessadas em todas as escalas espaciais;
como a nível nacional, de bacia hidrográfica ou aquífero; a nível de áreas
de captação e comunidades. Além disso, precisa ser reconhecido que a
simples criação de oportunidades de participação de nada adiantará para
grupos atualmente em desvantagem, salvo se aumentarem as
possibilidades de participação desses grupos (GWP: 2000).
3.
As mulheres têm um papel central no suprimento, na gestão e
na salvaguarda da água.
O papel extremamente importante das mulheres como supridoras e
usuárias da água e guardiãs do meio ambiente vivo poucas vezes se
refletiu em soluções institucionais para o desenvolvimento e a gestão dos
recursos hídricos. A aceitação e a implementação desse princípio exigem
ações afirmativas para atender as necessidades específicas das
mulheres, fornecer-lhes os meios e dar-lhes capacidade, para que
3
Nota de revisão da versão em português: Gestão de água é a gestão de interesses opostos ou divergentes e
de conflitos.
Correntes do Direito
3
1
participem em todos os níveis de programas dos recursos hídricos,
inclusive na tomada de decisões e na implementação, da forma que elas
definirem.
É largamente reconhecido que as mulheres têm papel chave na coleta e
proteção da água para uso doméstico e, muitas vezes, para uso agrícola,
mas seu papel é muito menor do que o dos homens no que se refere à
gestão, análise de problemas e tomadas de decisão. Como as
circunstâncias sociais e culturais variam muito entre as sociedades,
sugere-se que existe a necessidade de explorar diferentes mecanismos
para aumentar o acesso das mulheres ao processo de tomada de
decisão e alargar o espectro de atividades por meio das quais elas
podem participar da GIRH.
A GIRH requer a tomada de consciência de gênero. Para desenvolver a
participação da mulher de forma completa e efetiva em todos os níveis de
tomada de decisão, é preciso considerar como as diferentes sociedades
determinam de forma particular os papéis social, econômico e cultural de
homens e mulheres. Existe uma importante sinergia entre a equidade de
gênero e a gestão sustentável dos recursos hídricos. Envolver homens e
mulheres em papéis importantes em todos os níveis da gestão pode
acelerar a realização da sustentabilidade; a gestão da água de forma
integrada e sustentável contribui de forma significativa para a equidade
de gênero, pelo maior acesso de homens e mulheres à água e aos
serviços a ela relacionados, atendendo às necessidades básicas de
todos4.
4.
A água tem valor econômico em todos os seus usos e deve
ser reconhecida como um bem de valor econômico.
O erro antigo de não reconhecer o valor econômico da água levou a
desperdício e a usos do recurso que prejudicaram o meio ambiente. A
gestão da água como bem de valor econômico é uma forma importante
de alcançar o uso eficiente e equitativo do recurso e de encorajar a
conservação e a proteção dos recursos hídricos.
Tratar a água como um bem de valor econômico é uma forma importante
se significado para a tomada de decisões a respeito da alocação da água
entre diferentes usos setoriais e entre diferentes usos dentro de um setor.
Isso é especialmente importante quando o fornecimento duradouro não é
uma opção variável.
Na GIRH, o valor econômico dos usos alternativos da
água dá aos responsáveis pelas decisões orientações
importantes das prioridades de investimento, mas
essa não deve ser a única consideração. As metas
sociais também são importantes. Num ambiente de
escassez, seria correto, por exemplo, que o próximo
recurso hídrico desenvolvido fosse alocado para uma
siderúrgica, pois o proprietário pode pagar mais pela
água do que os milhares de pobres que não têm
acesso à água potável? As metas sociais,
4
Perguntas sobre o lugar de
onde você vem
A água é formalmente
reconhecida como direito
humano em seu país? Como
o acesso à água está
relacionado a outros direitos
humanos?
Nota de revisão. A incorporação de perspectiva de gênero em GIRH é princípio que integra a Declaração de
Bonn (Dublin+10), 2001.
4
Correntes do Direito
1
econômicas e ambientais, todas têm um papel importante na tomada de decisão
na GIRH.
1.3 GIRH: Um processo
de
gestão
para
a
governança da água
É importante compreender
que esses princípios não
são estáticos. É claramente
necessário atualizá-los e a
eles acrescentar detalhes,
à luz da experiência da
implementação prática. Mais
ainda, é necessário explorar
esses princípios e
compreender seu significado
e para onde estão chamando
nossa atenção. 5
Quadro 1.1 Compreender a governança da
água
O conceito de governança aplicado à água se refere à
capacidade de um país, de forma coerente, organizar o
desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos. Tal
definição engloba a capacidade de projetar uma política
pública socialmente aceitável, que fomenta o
desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos e os
implementa de modo eficaz nas instituições relevantes. A
governança, no sentido amplo, existe em todas as
sociedades. Em alguns casos, ela é boa, em outros, o
normal é uma "crise de governança”. A governança implica a
capacidade de gerar e implementar políticas e leis
apropriadas. Tais capacidades são o resultado de um
consenso estabelecido, do planejamento de sistemas de
gestão coerentes (regimes baseados em instituições, leis,
fatores culturais, conhecimento e práticas), além da
administração adequada dos sistemas (baseada na
participação e aceitação social), e o desenvolvimento de
capacidade (Solanes, M.; Peña, H.: 2003).
A GIRH não é um plano de
ação. Nem um complexo sistema para a gestão dos recursos hídricos, mas um
processo de gestão. O movimento na direção da GIRH é uma mudança do
desenvolvimento da água para a governança e significa um reconhecimento do
fato de que há interesses que competem quanto ao uso e a alocação da água
(Gupta, J.; Leendertse, K.: 2005).
Nesse contexto, a gestão é usada no seu sentido mais amplo. Enfatiza a
necessidade de nos concentrarmos não apenas no desenvolvimento dos
recursos hídricos; de forma consciente; precisamos gerir o desenvolvimento dos
recursos hídricos de modo a assegurar o uso sustentável para gerações futuras.
(Solanes, M.; Peña, H.: 2003).
1.4 Por que a legislação sobre a água é fundamental no processo de
GIRH?
Um exame dos sistemas hídricos de âmbito global revela que, em quase todos
os sistemas legais, a legislação sobre a água contemplou a água ou os direitos
ao seu uso, as responsabilidades e os poderes. Os sistemas legais são uma
forma de proteger as necessidades humanas e, muitas vezes, também o meio
ambiente; o sistema impõe os direitos e as responsabilidades designados aos
atores sociais (Gupta, J.; Leendertse, K.: 2005). Como o novo paradigma social
mudou na direção da GIRH, espera-se que os diplomas legais tenham um papel
fundamental para que os novos princípios sejam formalmente implementados.
Essa mudança de política claramente tem consequências na maneira de as
disposições institucionais atenderem aos novos desafios de gestão, havendo a
necessidade de uma adaptação da legislação sobre a água para assegurar que
sejam atendidos os princípios do novo paradigma de gestão. A legislação sobre
o assunto deve: (Cap-Net 2006):
5
Uma abordagem profunda sobre a governança da água consta do capítulo sete
Correntes do Direito
5
1





esclarecer a qualificação e a responsabilidade dos usuários e
permissionários e concessionários dos serviços de água;
esclarecer os papéis do Estado em relação a
outros grupos de interesse;
Perguntas sobre o lugar de
formalizar a transferência de alocações de
onde você vem
Há no seu país uma lei
água;
exclusiva sobre a água ou as
definir a situação legal das instituições
questões legais sobre o assunto
governamentais de gestão e a grupos de
estão distribuídas entre
diferentes leis?
usuários de água; e
assegurar o uso sustentável dos recursos.
Uma estrutura legal torna-se essencial porque a interação da GIRH causa
mudanças nos direitos de água (usos), o papel dos grupos de interesse, a
relação com o meio ambiente, a abordagem da bacia hidrográfica, entre outros.
Por outro lado, as mudanças legais são muitas vezes necessárias para permitir a
implementação apropriada da GIRH.
1.5 Uma visão mais apurada da legislação sobre a água

A legislação é parte de uma estrutura para ação; a legislação fornece a
base para a
intervenção e a
Quadro 1.2 A água em diferentes leis ... ou num
ação e estabelece o
direito das águas?
contexto e a
Leis específicas sobre a água foram editadas em um número
considerável de países, mas alguns ainda não têm uma lei
estrutura para a
específica sobre recursos hídricos em si. Embora se possam
ação de todas as
encontrar referências a recursos hídricos na legislação
instituições
nacional, estão com frequência dispersas em leis setoriais e
podem ser contraditórias ou inconsistentes em alguns
(inclusive das
aspectos de utilização dos recursos hídricos.
entidades não
Fonte: GWP, 2000.
governamentais).
Assim, é um
elemento importante
dentro do ambiente
propício.

Legislação, regulamentos e estatutos; normalmente é difícil fazer
alterações na legislação sobre a água e, por isso, a legislação deve ter um
sentido geral, estabelecendo direitos e obrigações de todos os grupos de
interesse envolvidos na gestão da água, os poderes e funções de órgãos
regulatórios e as penalidades pelas infrações da lei. Entretanto, a legislação
sobre a água deve ter o equilíbrio certo entre o sentido geral e que propicie
a aplicação adequada, evitando conflitos de interpretação. Diretrizes
detalhadas e disposições para impor e implementar o texto legal devem ser
incorporadas às partes mais dinâmicas do sistema legislativo, por exemplo,
a estrutura representada pelos regulamentos e estatutos que podem ser
alterados num processo contínuo, caso mudem as circunstâncias.

A aplicação das leis sobre a água e o espaço para interpretações; as
leis sobre a água, como as leis em geral, não são uma estrutura estática,
mas dinâmica. Uma vez criada, a lei deve ser de aplicações pelas
autoridades e por outros grupos. Como podem ter interpretações (e
6
Correntes do Direito
1
interesses) diferentes, o judiciário pode ser chamado a intervir para a
solução de conflitos ou interpretação da lei.6
Pense nisso
Como a legislação sobre a água vai lidar com múltiplos e competitivos usos da água?
Pense em termos de aplicabilidade, o sistema legal e a GIRH. Você pode ter acesso a
diferentes leis sobre o assunto e avaliá-las nesse aspecto?
Considere a pergunta agora, no início do manual e volte a considerá-la ao final. A
discussão ganhou substância?
1.6 O que a legislação sobre a água normalmente contém
Legislação sobre a água converte política em direitos e obrigações e deve
(GWP: 2000; GWP: 2005)








Estabelecer situação legal para as instituições governamentais
responsáveis pela gestão dos recursos hídricos e para grupos de
usuários da água;
Esclarecer a qualificação e as responsabilidades dos usuários e dos
encarregados pelo suprimento da água, e os papéis do Estado em
relação a outros grupos de interesse;
Estar baseado em uma política nacional de recursos hídricos, que seja
transversal e as divisões de grupos de interesses que abordem a questão
da água como um recurso que enfatiza a prioridade da sociedade para
atender às necessidades humanas primárias e de proteção do
ecossistema;
Assegurar os direitos (uso) à água para permitir investimentos privados e
comunitários e a participação na gestão da água (formalizar a
transferência dessas alocações de água);
Regularizar o acesso monopolizado à água bruta e aos serviços de água,
além de evitar danos a terceiros;
Apresentar uma abordagem equilibrada entre o desenvolvimento dos
recursos para fins econômicos e a proteção da qualidade da água, dos
ecossistemas e de outros benefícios públicos referentes ao bem-estar;
Garantir que as decisões relativas a empreendimento de água sejam
baseadas em sólidas avaliações econômicas, ambientais e sociais.
Assegurar a possibilidade do emprego de modernas ferramentas
participativas e econômicas, onde e quando necessárias, e na medida
certa.7
Em outras palavras, uma lei sobre a água fornece as regras para a
implementação de políticas, assim servindo de base para regras sobre a
conservação, a proteção, as prioridades e a gestão de conflitos. Entre outras
coisas, uma lei sobre a água cobre a propriedade da água, permite o seu uso, a
6
Nota de Revisão. Esta participação do judiciário em maior ou menor grau depende do sistema legal de cada
país. No caso de países do sistema anglo-saxão, o judiciário tem papel mais relevante, que é sintetizado no
princípio “o Juiz faz a lei”, porém no caso dos países do sistema romano-germanista, o papel do judiciário na
interpretação da lei tem outros procedimentos.
7
Nota de Revisão. No Brasil, a Governança da Água é feita com a participação da sociedade civil, conforme
instituído na Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/97)
Correntes do Direito
7
1
possibilidade de transferência das permissões e as qualificações ligadas ao
costume.8
1.7 Implementando a GIRH
Vimos que a GIRH é uma ferramenta flexível para se enfrentar os desafios da
água e otimizar a contribuição do recurso para o desenvolvimento sustentável.
Não é uma meta em si. A GIRH trata de fortalecer as estruturas para a
governança de a água fomentar a boa tomada de decisões em resposta às
necessidades e situações que podem mudar.
Interpretar na prática as
propostas
de
novas
Quadro 1.3 Reformando as leis? Pontos a
políticas
é
considerar:
provavelmente exigir a
Ao iniciar o processo de mudança, considere:
 Que mudanças devem ocorrer para se alcançar as
reforma
de
leis
e
metas estabelecidas?
instituições
nacionais.

Onde é possível mudar, dada a situação social,
Incorporar alguns dos
política e econômica atual?
princípios da GIRH na
 Qual a sequência lógica da mudança?
política
de
recursos
 Que mudanças precisam acontecer primeiro para
hídricos e alcançar o
tornar possíveis outras mudanças?
apoio político para tal
pode ser um desafio,
como acontece no caso de decisões difíceis (por exemplo, realocação de direitos
à água). Não é surpresa, pois, que as grandes reformas legais e institucionais
não tenham acontecido, salvo quando aconteçam sérios problemas de gestão da
água (Gupta, J.; Leendertse, K.: 2005).
1.8 Leituras sugeridas
Global Water Partnership, GWP. 1999. TAC Background paper no. 43, The
Dublin Principles for Water as Reflected in a Comparative Assessment of
Institutional and Legal Arrangements for Integrated Water Resources
Management. GWP, Estocolmo, Suécia.
Global Water Partnership, GWP. 2000. TAC Background paper no. 4, Integrated
Water Resources Management. GWP, Estocolmo, Suécia.
Global Water Partnership, GWP. 2003. TAC Background paper no. 7, Effective
Water Governance. GWP, Estocolmo, Suécia.
Global Water Partnership, GWP. 2005. Catalyzing Change: A handbook for
developing integrated water resources management (GIRH) and water efficiency
strategies. Global Water Partnership, Technical Advisory Committee (TAC).
Estocolmo, Suécia.
The World Conservation Union, IUCN. 2004. IUCN Environmental Policy and
Law paper no. 51. Water as a human right? IUCN publications, Reino Unido.
8
Nota de Revisão. Regras de costume são previstas no sistema legal anglo-saxão. No caso de países do
sistema germanista, há necessidade de previsão legal expressa em se tratando de normas dispondo sobre
bens de dominialidade pública, como ocorre no Brasil (Lei nº 9.433/97).
8
Correntes do Direito
Capítulo 2
Conceitos para uma Estrutura Legal de GIRH
2
Meta
A meta deste capítulo é esclarecer a estrutura legal básica da GIRH, seus
conceitos e princípios.
Objetivos do Aprendizado
Após o estudo deste capítulo, os participantes:


Serão capazes de descrever as principais características que fundamentam
a GIRH; e
Reconhecerão como as leis sobre a água e as estruturas legais devem
incorporar tais fundamentos para facilitar a implementação da GIRH.
2.1 Introdução
Um profundo entendimento de diversos conceitos e princípios da GIRH é
essencial se quisermos estabelecer uma base firme para estruturas legais e para
a legislação sobre a água e facilitar as mudanças nas formas de gestão dos
recursos hídricos. Como vimos no Capítulo 1, a GIRH não é um modelo padrão
ou uma receita, mas o processo de implementação de um paradigma de gestão
da água. O paradigma está baseado no entendimento geral de que alguns
conceitos e princípios são condições necessárias para mudar a forma da gestão
dos recursos hídricos.
Este capítulo descreve alguns desses conceitos e princípios básicos, como:
gestão holística; sustentabilidade; equidade; equilíbrio de gênero, valor
econômico da água e governança. No final do capítulo está uma lista de
perguntas a respeito do local de origem dos participantes, que devem respondêlas depois da leitura dos Capítulos 1 e 2.
2.2 Gestão Holística
As abordagens tradicionais de gestão geralmente eram guiadas por diversas
visões setoriais. Em vários países, a administração da água foi conduzida por
organizações distintas; como resultado dessa administração fragmentada
surgiram múltiplas políticas e regulamentações sobre o assunto, sem reconhecer
a natureza do ciclo da água e a relação entre os diferentes usos do recurso.
O processo de GIRH está baseado em uma abordagem holística; é importante
levar em consideração diferentes usos da água e se concentrar nas interrelações entre diferentes usos setoriais. Essa abordagem reconhece o fato de
que existem diversos interesses que competem entre si quanto ao uso e a
alocação da água (Gupta, J.; Leendertse, K.: 2005) e permite a criação de
estratégias coerentes para o uso sustentável dos recursos hídricos.
A abordagem da GIRH advoga que devem ser consideradas, prioritariamente, as
necessidades humanas, mas também os usos industriais, agrícolas e as
demandas do meio ambiente em conjunto e de forma balanceada. Nesse
Correntes do Direito
9
contexto, as leis se tornam uma ferramenta essencial para regulamentar essas
necessidades que competem entre si e as inter-relações entre os usuários.9
2
Uma lei orientada nos princípios de GIRH deve considerar as múltiplas
perspectivas a serem regulamentadas a nível nacional, regional e local.
Questões ligadas à competência, cooperação e distribuição de tarefas entre as
diferentes autoridades em uma bacia hidrográfica são necessárias para melhorar
a cooperação e a partilha de informações.
Com uma abordagem holística, os orçamentos são melhor distribuídos,
compartilhando-se esforços e benefícios. Entretanto, é necessário reconhecer a
possível existência de conflitos entre grupos de interesses. As leis devem se
antecipar ao fato, criando instrumentos específicos para conciliação, negociação
e participação. As decisões devem ser tomadas por uma autoridade da bacia
hidrográfica legalmente estabelecida e o planejamento deve ser determinado
considerando estruturas legais existentes (Cepal, 1995).10
2.3 Sustentabilidade
Quadro 2.1. A gestão holística na “Agenda 21”
A meta geral da GIRH é a
sustentabilidade, que
precisa ser acompanhada
pela equidade social e pela
eficiência econômica (CapNet, PNUD, AMA: 2005). A
sustentabilidade é um
conceito transversal,
considerado natural, sem
que normalmente se pense
profundamente no assunto
A Agenda 21 é um plano de ação abrangente, a ser adotado
de maneira global, nacional e local pelas organizações do
Sistema das Nações Unidas, pelos governos e grupos
significativos em todas as áreas em que haja impacto humano
o sobre o meio ambiente. Resultado da Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (em
inglês Conference on Environment and Development UNCED), que aconteceu no Rio de Janeiro, Brasil,entre 3 e 14
de junho de 1992, a Agenda 21 foi adotada por 178 governos .
A Comissão Brundtland,
formalmente Comissão
Mundial sobre o Meio
Ambiente e
Desenvolvimento.
Seu Capítulo 18 considera a importância de se realizar uma
gestão política dos recursos hídricos: “A gestão holística da
água doce como um recurso finito e vulnerável, e a integração
de planos setoriais de água aos planos e programas dentro de
políticas econômicas e sociais nacionais são medidas de
importância fundamental para a década de 1990 e adiante. A
fragmentação das responsabilidades pelo desenvolvimento de
recursos hídricos entre organismos setoriais se está
constituindo, no entanto, em um impedimento ainda maior do
que o previsto para promover a gestão integrada dos recursos
hídricos. São necessários mecanismos eficazes de
implementação e coordenação".
Fonte: Agenda 21, capítulo 18, parágrafo 6.
(UNCED), (em inglês
World Commission on
Environment and
Development - WCED), em
1983, colocou a atenção das
Nações Unidas no conceito de desenvolvimento sustentável definido como “o
desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a
capacidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades”. O
campo do desenvolvimento sustentável pode ser conceitualmente dividido em:
sustentabilidade ambiental, econômica e sociopolítica. (Cap-Net, PNUD, AMA:
2005).
9
Nota de Revisão. No Brasil, conforme a Política Nacional de Recursos Hídricos, as necessidades humanas e
sedentação animal são usos prioritários da água e o balanço entre os demais usos dependerá dos usos
prioritários e aqueles preponderantes em determinado corpo hídrico, seja bacia hidrográfica ou água
subterrânea.
10
Nota de Revisão. No caso do Brasil, a bacia hidrográfica é a unidade territorial de planejamento e gestão
das águas (Lei nº 9.433/97 – Política Nacional de Recursos Hídricos).
10
Corrrentes do Direito
Desde então, numerosos documentos internacionais incorporaram o conceito.
Entre outros, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio
Declaration on Environment and Development) (1992) proclama em diferentes
princípios a necessidade de se alcançar o desenvolvimento sustentável como
objetivo principal. A Corte Internacional de Justiça no caso Projeto GabcíkovoNagymaros reconhece a sustentabilidade e a proteção do meio ambiente. O
conceito foi endossado pela Declaração de Nova Déli de Princípios de Direito
Internacional Relativos ao Desenvolvimento Sustentável (International Law
Association New Dheli Declaration on Principles of International Law Relating to
Sustainable Development) (2002) e na Declaração de Joanesburgo sobre
Desenvolvimento Sustentável (The Johannesburg Declaration on Sustainable
Development) (2002).
Como também vimos, a sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável estão
presentes nas principais definições e princípios da GIRH. Para a implementação
da GIRH e para que a estrutura legal facilite tal implementação, é importante
considerar qual o significado da sustentabilidade para o contexto específico e
quais ações (medidas, regulamentos, controles e instrumentos de gestão)
devem, então, ser formalizadas. Metas e desafios específicos do
desenvolvimento sustentável devem ser identificados, avaliados e incorporados
como parte de uma abordagem de GIRH.
Pense nisso
As constituições de muitos países incluem a sustentabilidade como meta central. A
questão é como realizá-la. A GIRH é um processo rígido para a sustentabilidade? Qual
é a situação em seu país, e como a legislação sobre a água terá um papel para a GIRH e
para o desenvolvimento sustentável?
2.4 Equidade
Onde há equidade existe uma certeza de que grupos vulneráveis da sociedade
não serão excluídos do acesso a bens e serviços básicos. No nosso caso, a
equidade se refere ao acesso à água potável e ao saneamento, mas também a
um ambiente saudável. E, de uma perspectiva de gestão, também implica a
possibilidade de tais grupos serem representados, tendo em conta e
participarem das práticas de gestão dos recursos hídricos.
Como acontece com a sustentabilidade, o conceito de equidade é complexo e
contraditório. E a pergunta permanece sendo como colocá-la em prática? Quais
as necessidades a nível de implementação? E o que a estrutura legal deve
contemplar? Como a União Internacional para a Conservação da Natureza e dos
Recursos Naturais (em inglês The International Union Conservation of Nature:
IUCN) diz claramente, sem direitos iguais de acesso e controle sobre a água e
os recursos da terra, a iniquidade e o conflito vão continuar (IUCN, 2000).
A equidade exige a participação em todos os níveis, de todas as pessoas; os
grupos de interesse devem ser parte de todo o processo de tomada de decisão
para assegurar que suas necessidades, preocupações, problemas e
conhecimentos sejam refletidos no processo de GIRH. O conhecimento exigido
para aplicar a GIRH não é limitado a dados científicos e a relatórios técnicos; o
Correntes do Direito
11
2
conhecimento popular e o tradicional são importantes para garantir a
participação na GIRH.(Burton, J.: 2003).
2
A situação dos que se encontram em algum estado de desigualdade social e
econômica deve ser reconhecida pela lei, para que tenham acesso a
ferramentas para participar e tenham tratamento especial no processo de GIRH.
O papel das mulheres é especialmente importante para que se alcance a
equidade; a equidade entre gêneros ou de gênero em relação ao uso e à gestão
dos recursos hídricos é crucial para resolver potenciais conflitos relativos à água,
aumentar a segurança social e melhorar estratégias para a conservação da
água, o controle da poluição e a gestão da demanda (UICN, 2000).
2.5 Equilíbrio de gênero
O gênero se refere aos diferentes papéis, direitos e responsabilidades de
homens e mulheres e as relações entre eles (Aliança do Gênero e da Água Gender and Water Alliance - GWA, 2006). A abordagem de gênero tem por
objetivo tornar homens e mulheres visíveis em todas as ações planejadas, em
todas as áreas e níveis, de forma a alcançar a igualdade (Conselho Econômico e
Social - Economic and Social Council ECOSOC, 1997). É largamente
reconhecido que a exclusão das mulheres do projeto, do planejamento e da
tomada de decisão sobre projetos de suprimento de água e saneamento nos
países em desenvolvimento é um grande obstáculo ao seu bem-estar (Aureli, A.;
Brelet, C.: 2004).
O processo de GIRH, seguindo os princípios de Dublin, exige políticas para
concretamente ligar as mulheres a leis que as habilitem e capacitem a participar
em todos os níveis dos programas de recursos hídricos, inclusive em tomada de
decisões e na implementação.
A lei é uma ferramenta
necessária para fechar
Quadro 2.2. Igualdade de gênero
lacunas entre homens e
A igualdade de gênero é o processo de avaliação das
mulheres
quanto
a
implicações para homens e mulheres de qualquer ação
planejada, inclusive legislação, políticas e programas
condições de acesso à
em todas as áreas e em todos os níveis. É uma
água, oportunidades de
estratégia para que as preocupações e experiências de
participação e outros
homens e mulheres sejam uma dimensão integral do
tipos de iniquidades de
projeto, da implementação, do monitoramento e da
gênero. Como exemplo,
avaliação de políticas e programas em todas as esferas
políticas, econômicas e sociais, de modo que homens e
uma lei pode garantir a
mulheres possam se beneficiar igualmente e que a
participação de uma
iniquidade não se perpetue.
percentagem
de
(GWA: 2006).
mulheres em papéis de
tomada de decisão em
diferentes fases da GIRH
(planejamento,
desenvolvimento,
monitoramento).
Esse
tipo de ação afirmativa
pode assegurar a representação das mulheres na gestão dos recursos hídricos.
Um bom exemplo aconteceu na Colômbia. O país regulamentou a participação
adequada e efetiva das mulheres nos níveis de tomadas de decisão, passando
de 11,5% do início dos anos 1990 aos atuais 34%.
12
Corrrentes do Direito
2.6 Valor econômico da água
Uma vez alcançada uma decisão pública de respeito a como abordar a questão
do valor econômico da água e todas as suas implicações, será necessário aos
responsáveis pelas
decisões implementá-las
Quadro 2.3. Elementos de Governança
por meio da legislação.11
Allan e Rieu-Clarke (2008) identificaram 12 principais
Como consequência,
elementos de governança como definido pelo PNUD, o
será necessário avaliar
Banco Mundial e o Banco de Desenvolvimento Asiático:
se o sistema legal
 Gestão do setor público;
existente o permite. Nos
 Responsabilidade;
casos em que o sistema
 Estrutura legal para o desenvolvimento;
legal não fornece os
 Estado de Direito;
instrumentos específicos
 Previsibilidade;
exigidos para a
 Transparência e informação;
implementação da
 Participação;
GIRH, será inevitável
 Receptividade;
alterar a legislação
 Orientação para o consenso;
 Equidade;
existente. Uma estrutura
 Eficácia e efetividade, e
legal vai fornecer uma
 Visão estratégica.
concepção institucional,
coordenação, e criar as
condições adequadas
para colocar em prática
o sistema acordado pactuado e elaborar todos os instrumentos adequados.
2.7 Governança
Atualmente, o consenso internacional a respeito de esforços fracassados para
que todos tenham acesso à água e saneamento está reduzido a um problema de
governança (Solanes, M.; Jouravlev, A.: 2006; Programa Mundial de Avaliação
da Água- World Water Assessment Programme: 2006). Por isso, a política
pública precisa considerar os mecanismos, processos e instituições por meio dos
quais os cidadãos e os grupos articulem seus interesses, exerçam seus direitos
legais, cumpram suas obrigações e medeiem suas diferenças.
Uma extensa revisão a respeito da importância da governança da água está no
Capítulo 7. De acordo com o PNUD, a governança da água se refere à grande
amplitude de sistemas político, social, ambiental, econômico e administrativo que
existem para regulamentar o desenvolvimento e a gestão dos recursos hídricos
e o fornecimento de serviços de água em diferentes níveis da sociedade (PNUD,
2005).
A Associação Mundial pela Água (GWP) (em inglês Global Water Partnership)
definiu os elementos da governança efetiva e o 2º Relatório das Nações Unidas
Sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos (em inglês 2nd UN Water
Development Report) sugere critérios para essa governança: participação,
transparência, equidade, efetividade e eficiência, estado de direito,
11
Ver o estudo de caso apresentado no Capítulo 3: a Política Nacional de Recursos
Hídricos – Brasil – Lei 9.433/97
Correntes do Direito
13
2
responsabilidade, coerência, receptividade, integração, considerações éticas
(Allan, A.; Rieu-Clarke, A.: 2008).
2
Uma estrutura legal de
GIRH precisa contemplar
todos
os
elementos
associados
com
a
governança da água para
evitar o fracasso. Assim, a
legislação precisa estar
habilitada
a
fornecer
mecanismos
de
participação para que a
comunidade participe de
procedimentos
que
tenham um impacto direto
em
suas
vidas
e
atividades diárias
Perguntas sobre o lugar de onde você vem
Já tendo estudado os capítulos 1 e 2, você
provavelmente pode avaliar a situação no seu país no
que se refere à implementação da GIRH e
compreender melhor os desafios de ter uma estrutura
legal adequada. Algumas das perguntas que você
pode querer responder são
 Quais são, em seu país, os principais setores
envolvidos na utilização dos recursos hídricos e
quais as interações entre eles?
Há urgência para gerenciar recursos hídricos de
forma integrada e qual a maneira melhor de fazêlo? Quais serão os benefícios para os diferentes
setores?
Como são afetados os homens e as mulheres
pelas mudanças na gestão dos recursos hídricos?
Considerando as estruturas governamentais do
meu país, quais são as reformas institucionais e
legais necessárias para implementar a GIRH e
quais são as exigências para que seja eficaz?
A que ponto os conceitos e princípios vistos neste
capítulo estão presentes na atual estrutura legal
do seu país (no que se refere à água)?
Qual é a atitude geral na direção da gestão
integrada dos recursos hídricos no meu país e
quais são as barreiras setoriais que precisam ser
derrubadas antes da implementação da GIRH?
Qual o melhor equilíbrio em termos do
envolvimento dos grupos de interesse? O excesso
de envolvimento vai trazer o risco de um processo
de tomada de decisões ineficiente? Você pode
pensar em alguns mecanismos de representação?
As
autoridades,
as
organizações
e
os
indivíduos, sejam dos
setores público e privado,
responsáveis pela gestão
do recurso precisam ter
um
mandato
legal,
segundo o qual podem ser
considerados
responsáveis
pelo
desempenho inadequado.
Isso é o que chamamos
responsabilidade
e
prestação de contas. Em
alguns casos, as ações
podem ser consideradas
violação de deveres ou
corrupção. Se a corrupção
não
é
devidamente
combatida, e é encorajada pela estrutura legal, muitos recursos valiosos e
escassos podem ser perdidos.
Os grupos de interesse precisam estar habilitados, não somente podendo tomar
parte nas decisões que os afetam diretamente, mas precisam estar bem
informados. Em outras palavras, a GIRH exige transparência para avaliar sua
governança. A disponibilidade de informações precisa ser protegida pela
legislação na forma de ações de transparência ou um instrumento legal
equivalente.
Entretanto, os grupos de interesse beneficiados pela participação e pela
transparência não têm força se não tiverem capacidade para desafiar decisões
que podem ter sido tomadas contra a lei. Nesse caso, remédios legais precisam
ser um instrumento preciso para desafiar a decisão, em tempo hábil, a um custo
que não deve inibir esse exercício. Assim, se os remédios legais existentes na
legislação geral de um país não atendem esses critérios básicos, a legislação
sobre a GIRH precisa editar uma nova norma para facilitar o acesso à justiça.
14
Corrrentes do Direito
A legislação é parte da estrutura para a ação. Fornece a base para a intervenção
e a ação do governo estabelece o contexto e a estrutura para a ação de
entidades não governamentais (GWP: 2000).
2.8 Leituras sugeridas
Learning Together to Manage Together. Improving Participation in Water
Management. 2005. HarmoniCop Team. Harmonising Collaborative Planning.
European Commission.
UN-Water and Global Water Partnership (GWP). 2007. Road mapping for
Advancing Integrated Water Resources Management (IWRM) Processes. UNWater, GWP, Estocolmo, Suécia.
United Nations, Economic and Social Council. 2002. The Right to Water (Articles
11 and 12 of the International Convenant on Economic, Social, and Cultural
Rights). United Nations, Genebra.
Stockholm International Water Insitute (SIWI). Water and Development in the
Developing Countries. SIWI, Estocolmo, Suécia.
Correntes do Direito
15
2
Capítulo 3
Legislação Nacional sobre a Água
Meta
A meta deste capítulo é apresentar componentes de estrutura nacional legal e
institucional efetiva e tópicos relacionados à implementação de GIRH onde
reformas são necessárias.
3
Objetivos do Aprendizado
Após o estudo deste capítulo, os participantes:
 Compreenderão a importância da legislação sobre a água baseada nos
princípios da GIRH;
 Compreenderão as reformas legislativas necessárias para a bem sucedida
implementação de legislação nacional sobre a água baseada nos princípios
da GIRH.
3.1 Introdução
O uso da água está
passando por profundas
transformações com a
mudança do foco de
gestão de abordagens de
gestões setoriais para a
intersetoriais, aplicando os
princípios de gestão
integrada. Tal fato tem
consequência de longo
alcance para a
organização dos setores e
quanto às estruturas de
implementação da gestão.
Quadro 3.1 Tópicos que ajudam a criar uma
estrutura forte de GIRH
Estabelecer a estrutura institucional, inclusive os papéis
legais e as responsabilidades das instituições e suas
inter-relações;
 Mecanismos de participação dos grupos de interesse na
gestão de recursos hídricos;
 Mecanismos de resolução de conflitos;
 Serviços de água e direitos e responsabilidades
associados (direito à água, padrões de serviço, entre
outros);
 Sistemas de tarifação e de preço da água, incluindo os
princípios de justiça, da acessibilidade econômica e da
proteção dos mais pobres;
 Mecanismos claros para os mercados de água
minimizarem os conflitos e o risco de agitação social.
Fonte: Adaptado de García Pachón (2005)
A GIRH não vai acontecer
se a estrutura legal não
estiver adequada e se as alterações institucionais necessárias não forem feitas.
Quadro 3.2 O que é a lei sobre a água? O que é política nacional de recursos hídricos?
água?
“A lei sobre a água é composta de todas as disposições que, de uma forma ou de outra, governam os vários
aspectos da gestão dos recursos hídricos, por exemplo, conservação da água, uso e administração,
controle dos efeitos nocivos da água, poluição, entre outras." O direito das águas pode estar inserido na
legislação constitucional, administrativa, civil, criminal, agrícola, mineira, sobre recursos naturais/ meio
ambiente /saúde pública do país, além de jurisprudência e opiniões de representantes do mundo
acadêmico.
Até recentemente, não havia uma legislação bem definida aprovada por um corpo legislativo (Parlamento)
que se chamasse legislação sobre a água. Diversas leis a respeito da água, com o tempo, têm sido
elaboradas e aprovadas, visando lidar com os diferentes usos do recurso.
O desafio aos responsáveis pela elaboração de políticas é encontrar um caminho para integrar as diferentes
legislações relacionadas à água e desenvolver uma política que contribua para uma efetividade da lei. Nas
últimas décadas, a GIRH tornou-se o ponto central em qualquer nova lei sobre a água.
Fonte: Adaptado de Caponera (1992)
16
Correntes do Direito
Este capítulo revisa as possibilidades e questões referentes à inserção da
política pública das águas em legislação. A Seção 4 apresenta uma ampla
discussão a respeito dos componentes da legislação nacional sobre a água,
abordando também suas questões relevantes. Podemos aprender muito com as
experiências de outros países e com a comparação de casos. As seções 3 e 5
fornecem exemplos de alteração da política e da legislação sobre as águas no
Brasil e na África do Sul. Na seção 6, estão algumas recomendações e
conclusões para facilitar o processo de construção de uma política pública e
legislação nacional.
3.2 A política da água traduzida em normas legais
Em primeiro lugar, uma política nacional de água precisa ter claros objetivos
governamentais e dos outros grupos de interesse referentes à GIRH. A
legislação sobre a água vai ser naturalmente distinta, dependendo da
importância dada ao recurso como direito humano (direito à água), da política
referente à privatização ou concessão, água pública ou privada.12
Pense nisso
Uma legislação sobre a água incorpora conhecimentos técnicos a respeito da natureza
de deve ser aplicável aos casos concretos. Nem a ciência, nem a legislação de águas
podem refletir certezas sobre tempos de mudanças climáticas. As características da
água (de superfície ou subterrânea) são tão diversas e variáveis que nós não podemos
sujeitá-las a rigores determinantes legais, nem construir um sistema imutável de regras
jurídicas fundamentadas, pois que fundamentos em dados científicos relativos e fatos
da natureza como fenômenos naturais podem variar, também as normas legais poderão
ser alteradas para atender a questões como direitos de alocação de água para refletir as
realidades cambiantes!
De modo a definir tal política sobre a água, um país precisa ter ao menos uma
avaliação superficial de seus recursos hídricos, a relação das exigências
presentes e futuras, reconhecerem direitos sobre a água e outros fatores
relevantes. Se bem concebida, a política sobre a água deve estar bem refletida
na legislação, dispondo sobre fenômenos que não são coerentes e previsíveis
com as regras necessárias.
Aplicando os conceitos
Vamos supor que você seja um proprietário de terras em seu país. Um dia,
decide cavar um poço para bombear água subterrânea, em área de sua
propriedade privada. Você tem o direito a extrair a água? Em outras palavras,
você tem o direito ao uso da água?
Essa pergunta poderia ser ampliada para: existe um direito à água?
Ou mais ainda: a quem pertencem os recursos hídricos?
Mesmo que a meta da política da água seja a implementação dos princípios de
GIRH, pode não ter impacto considerável se não for traduzida em legislação
sólida, com um bom suporte institucional. Em resumo, a gestão eficiente dos
recursos hídricos tem que levar em consideração os três mais importantes
componentes da GIRH: política, leis e instituições.
12
Nota de revisão. A Política Pública sobre águas deve ser concebida a partir dos pactos entre os diversos
atores públicos e privados, sendo uma política de estado e não de governo.
Correntes do Direito
17
3
Quadro 3.3 Regimes Jurídicos da água segundo as Famílias do Direito
Nos últimos 2000 anos, falando de modo amplo, foram desenvolvidas Famílias do Direito que
definiram regimes jurídicos diferenciados com respeito à água: romano, germanista (civil law)
anglo-saxão, islâmico, hindu e comunista. O sistema anglo-saxão (ou da common law)
baseado na interpretação dos juízes (o juiz faz a lei) determinava que a propriedade da água
é da comunidade, incluindo a água da chuva e a subterrânea. No direito romano, os recursos
hídricos eram de três classes: água bem de todos, da comunidade e da municipalidade. No
sistema germanista (civil law) houve influência do direito romano. No direito islâmico
(Shari’a) a água corrente era propriedade de todos, as pessoas tinham duas classes de
direitos, o direito à água para beber (dessedentação) e o direito à irrigação. No direito
comunista (ou Soviético) a água era propriedade do Estado, exceto classes limitadas de
água. No direito hindu/direito budista, a propriedade privada da água não pode existir.
A difusão desses regimes legais se espalhou pelo mundo. Entretanto, há ambiguidades entre
o direito do povo e a propriedade do Estado. Cada vez mais o recurso se torna bem público
(seja propriedade do Estado ou confiado a entidades públicas, podendo-se requerer somente
direito de uso (separando a propriedade da terra dos usos da água).
3
Fonte: adaptado de Gupta, J. and Leendertse, K. (2005).
A legislação deve enfatizar princípios e conceitos baseados na GIRH, como
vimos nos Capítulos 1 e 2: gestão holística, sustentabilidade; equidade:
equilíbrio de gênero, valor econômico da água e governança. Também é da
mesma importância que a legislação esteja afinada com que podemos chamar
de questões "técnicas" baseadas na GIRH, como uma abordagem da bacia
hidrográfica.13
A estrutura institucional apropriada para uma abordagem de gestão por bacia
hidrográfica deve responder a um grupo de questões: como devem os recursos
ser desenvolvidos pelo organismo da bacia (comissão, conselho, comitê). Quem
faz o quê para quem, e para quem devem prestar contas?
3.3 Componentes de uma legislação nacional sobre a água
A legislação sobre a água, antes de tudo, precisa ser simples e elaborada em
termos amplos. Embora tal legislação possa ser alterada, deve ser duradoura e
funcionar como base para a intervenção governamental (regulamentações ou
outros instrumentos relevantes).14
A legislação nacional sobre a água precisa definir as questões principais,
começando com a definição de disposições gerais, levando em consideração os
termos utilizados e a aplicação da legislação. A titularidade dos recursos hídricos
precisa ser definida, devendo ser abordadas as questões ligadas ao meio
ambiente (por exemplo, vazão mínima). É preciso tratar de arranjos institucionais
tais como comitês de bacias hidrográficas, conselhos, comissões e agências de
bacias. A legislação precisa estipular poderes, competências e
responsabilidades, além de direitos, obrigações e papéis dos grupos de
interesse (por exemplo, associações de usuários da água, papéis dos gêneros).
13
Nota de revisão. O princípio de bacia hidrográfica com espaço territorial para gestão das águas está
conseguindo na doutrina jurídica, em especial, pela Resolução de Helsinki, de 1966, do Instituto de Direito
Internacional,cujos fundamentos reportam a casos jurídicos relevantes.
14
Nota de revisão. No Brasil, a gestão das águas está definida por princípios constitucionais, entre os quais o
estabelecimento do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGREH, a dominialidade
dos corpos hídricos (bacias hidrográficas e águas subterrâneas), a competência de normas para legislação
sobre águas, a outorga pelo uso da água, que estão reguladas pela Lei de Política Nacional de Recursos
Hídricos – Lei nº 9.433/97.
18
Correntes do Direito
Ainda devem constar a abordagem regulatória, a priorização de alocação de
água, a determinação do âmbito para resolução de conflitos, as infrações, além
das disposições transitórias e finais.15
Quadro 3.5: Sugestão de essenciais questões essenciais para uma legislação nacional
sobre a água / Lei
Introdução (exposição de motivos, com breve resumo sobre princípios e prioridades da política
subjacente da água)
Parte I: DISPOSIÇÕES GERAIS
(a)
Definição de termos gerais usados na lei
(b)
Autoridades responsáveis pela imposição da lei
Parte II: PROPRIEDADE DOS RECURSOS HÍDRICOS/ CLASSIFICAÇÃO DA ÁGUA
(a)
Águas superficiais (água pública, da comunidade, privada)
(b)
Águas subterrâneas (água pública, da comunidade, privada)
Parte III: CONSERVAÇÃO E PROTEÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS
(a)
Proteção do ecossistema e sustentabilidade do meio ambiente
(b)
Vazão mínima
Parte IV: GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS
(a)
Disposições sobre instituições (gestão por bacia hidrográfica, agência de água)
(b)
Poderes, competências e responsabilidades
(c)
Direitos, obrigações e papéis dos grupos de interesse (associações de usuários, papéis dos
gêneros)21
Parte V: REGULAMENTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ÁGUA
(a)
Preço da água, qualidade do serviço, águas servidas industriais, padrões técnicos, entre
outros.
(b)
Parceria público-privada, concessão e privatização (isso não é parte da lei sobre a água)
Parte VI: ALOCAÇÃO DA ÁGUA
(a)
Água doméstica e direito à água (o(s) direito (s) à água deve ser esclarecido na seção sobre a
propriedade – Esta seção se refere aos direitos de uso?
(b)
Água para agricultura, aquicultura, gestão costeira e água industrial23
(c)
Permissão, licença e autorização
(d)
Controle de barragens
(e)
Comércio de água/alocação/transferência
Parte VII: RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
(a)
Tribunais
(b)
Arbitragem e técnicas de RAC24
Parte VIII: INFRAÇÕES E SANÇÕES
(a)
Poder de polícia dos órgãos públicos gestores de água
(b)
Procedimento
(c)
Penalidades
Parte IX: DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS E FINAIS
(a)
Direitos à água e titularidade dos povos
(b)
Cooperação internacional em cursos d´água compartilhados
16 17 18 19
, , ,
, , ,
20 21 22 23
15
Nota de revisão. A Lei das Águas, no Brasil, data de 1934. O Código de Águas o saneamento tem
disposições constitucionais específicas da Constituição Federal de 1988, que determinou à União estabelecer
as Diretrizes Nacionais sobre Saneamento, cabendo aos municípios a titularidade dos serviços de suprimento
de água, esgotamento sanitário, gestão dos resíduos urbanos e captação de águas pluviais.
16
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGREH.
17
O Brasil é uma federação, com 26 Estados mais ou menos autônomos.
18
Nota de revisão. O Plano Nacional de Recursos Hídricos – PNRH incorporou entre seus princípios a
incorporação da perspectiva de gênero em GIRH (Volume I).
19
Nota de revisão. A questão de gênero deve considerar sua incorporação na gestão integrada de recursos
hídricos, conforme os princípios da Declaração de Haia de 2000 e da Declaração de Bonn de 2001 (Dublin +
10).
20
Nota de revisão. No Brasil, a governança da água é compartilhada pelos governos federal, estadual e
municipal, usuários da água e sociedade civil. A questão é um princípio que deve ser transversal na
representação desses grupos de interesse acima citados. Sobre esse tema, sugere-se a leitura do Projeto
Marca d’Água.
21
Nota de revisão. O suprimento de água – que é dos usos prioritários para atender ao consumo humano e
dessedentação animal – é regulado pela Política Nacional de Saneamento. Lei 4.115, de 2005.
22
Nota de revisão. Os múltiplos usos são extensivos à geração de energia elétrica, que contribui com os
“royalties” estabelecidos na Constituição Federal de 1988 (artigo 20, para a sustentabilidade financeira do
SINGREH. Ver sítio virtual da Agência Nacional de Energia Elétrica (www.aneel.gov.br).
Correntes do Direito
19
3
A legislação sobre a água deve conter as diretrizes apropriadas e fornecer uma
estrutura para ser desenvolvida posteriormente por meio de regulamentações ou
outros instrumentos relevantes que possam ser modificados e adaptados para
atender às mudanças e aos casos concretos.
Na elaboração da legislação sobre a água é importante considerar:
 A comparação da legislação sobre a água e experiências nacionais de países
selecionados deverá ser feita antes e durante o processo de elaboração.
 A legislação sobre a água deve ser aceita pela sociedade e aplicável em
3
termos administrativos.
 A legislação sobre a água precisa ser flexível para considerar e se adaptar às
mudanças de circunstâncias ambientais, sociais, entre outras.
 As relações entre terra e água (quantidade e qualidade) devem estar
refletidas na legislação.
 Os direitos existentes sobre água e a titularidade de povos tradicionais devem
ser revistos de forma cuidadosa, criando-se disposições transitórias.
 A legislação nacional sobre a água precisa levar em consideração
convenções internacionais.24
Quadro 3.6 A abordagem participativa: o processo de preparar a legislação sobre a água na
África do Sul
O processo de preparar uma legislação nacional sobre a água exige uma extensa abordagem
participativa de todas as camadas da sociedade. Com isso, ficam asseguradas aos cidadãos do
exercício pelo direito de influir na legislação e o devido empoderamento dos grupos de interesse. Este
estudo de caso mostra como é possível se realizar uma abordagem participativa (envolvendo usuários,
planejadores e elaboradores de políticas em todos os níveis) no processo de preparar a legislação sobre
a água.
A Lei Nacional de Águas da África do Sul No. 36 (de 1998) é um exemplo. Foi promulgado em agosto de
1998 e os desafios foram os seguintes (Stein, nd):
 o acesso e a distribuição de direitos à água foram determinados, durante o regime do
apartheid, em bases raciais;
 distribuição desigual do acesso a condições sanitárias e adequado saneamento;
 não foi considerado o direito à água;
 chuvas irregulares no tempo e no espaço, cheias e secas;
 uso ineficaz e abusivo da água;
 degradação ecológica e poluição da água;
 imperativos constitucionais da nova democracia ; e
 conflito geopolítico regional quanto ao acesso à água.
Todas as camadas da sociedade tiveram a oportunidade de contribuir para a elaboração do Projeto de
Lei da Água. O sucesso de revisão do projeto de lei é atribuído à importância da forte vontade política.
Em 1994, o Ministro para Assuntos de Água e Floresta nomeou uma equipe de consultores composta de
pessoas de diferentes origens raciais, políticas, culturais e de gênero. Por meio do Ministro, a equipe
deu orientação à equipe de elaboração do projeto. Em março de 1995, o processo de revisão começou
com um documento intitulado “Você e seus Direitos à Água”, publicado pelo Ministério para Assuntos de
Água e Floresta. O documento pedia ao público contribuições valiosas para o desenvolvimento da
política.Revogou os fundamentais princípios e disposições da estrutura legal então existente, e também
contextualizou a legislação em vigor com sua origem e desenvolvimento histórico. Uma comparação da
estrutura legal de alguns países selecionados também foi apresentada. Como resultado do clamor
público por essa revisão, em abril de 1996, publicou-se, para comentários, o documento "Princípios
Fundamentais e Objetivos para uma Nova Legislação de Águas na África do Sul” (“Fundamental
Principles and Objectives for a New Water Law in South África”). Tais princípios concentravam a atenção
nas áreas primárias de gestão de recursos hídricos, exigindo uma reforma urgente. Depois de
numerosas revisões decorrentes de reuniões para amplas consultas formais, e uma vez finalizados, os
princípios foram aprovados pelo Gabinete depois de uma série de reuniões e processos.
23
Nota de revisão. A gestão das águas é a gestão dos conflitos. No Brasil, as questões de disputa entre os
múltiplos usos são de competência dos comitês de bacia, Conselhos Estaduais, Conselho Nacional de
Recursos Hídricos – CNRH. Os recursos a outros fora de resolução de conflito está submetido às regras
constitucionais.
24
Nota de revisão. As convenções internacionais das quais os países são partes.
20
Correntes do Direito
3.4 Conclusão
Este capítulo mostrou que as reformas precisam ser feitas para o sucesso da
implementação de GIRH. A legislação sobre a água tem múltiplas camadas, que
refletem as diferentes dinâmicas nacionais, mas com influências similares
frequentemente.
É comum que uma boa legislação sobre a água não seja compreendida ou
aceita por políticos ou cidadãos. A reforma institucional precisa ser feita com
uma abordagem participativa e de consultas, envolvendo arranjos formais e
informais, para desenvolver o entendimento e o controle do processo de
mudança.
Os pontos principais para esboçar uma legislação sustentável sobre águas
poderiam assim ser resumidos:
 As regras devem ser consistentes, coerentes e obedecer ao disposto em
acordos internacionais de investimento (Proteção do investimento
estrangeiro);25
 Tendência a usar terminologia que tem sido aplicada em precedentes
controvérsias, e o desejo de eliminar incertezas quando mais de uma lei
relativa a águas podem estar envolvidas;
 A legislação deve conter diretrizes, facilitando a conciliação entre os
interesses que competem dentro de uma estrutura adaptável às
circunstâncias em mudanças – econômicas, ambiental e social, entre outras.
Implementação da GIRH: algumas perguntas
Ao final deste capítulo, considere as seguintes perguntas em relação a seu
próprio país, onde a GIRH precisa ser posta em vigor e implementada:
 Que componentes devem ser considerados na elaboração de projeto
baseado em GIRH?
dividir as responsabilidades entre as diferentes autoridades
competentes (considerando planejamento, monitoramento e permissão)?
Como deve ser determinado um mecanismo de coordenação entre essas
autoridades?
 Que tipo de sistema de monitoramento deve ser estabelecido em lei? Quem
deve ser o responsável pela implementação desse sistema? Existem
entraves?
 A lei deve desenvolver um sistema de informações para facilitar a
coordenação e a troca de informações? E que tipo de informação deve
abranger? (Ênfase na importância de um inventário dos corpos de água doce,
suas características, sistema ecológico, impactos gerados pelas atividades
humanas, análise dos usos da água atuais ou no futuro)
 Como você faria o monitoramento da implementação da GIRH?
 Como
25
Nota de revisão. No Brasil, a Política Nacional de Recursos Hídricos não dispõe sobre matérias além das
relativas à implementação dos princípios de gestão integrada de recursos hídricos. Investimentos estrangeiros
são objeto de legislação própria e os acordos internacionais somente têm força de lei quando incorporados ao
ordenamento jurídico nacional, conforme processo definido na Constituição Federal.
Correntes do Direito
21
3
3.5 Leituras sugeridas
Burchi, S. and D’Andrea, A., 2003. Preparing
national
regulations
for
water
resources
management, FAO Legislative Study No. 80,
Roma.
Salman M. A. Salman and Siobhán McInerneyLankford. 2004. The Human Right to Water. Legal
and Policy Dimensions. The World Bank.
Washington. DC, EUA.
3
Salman M. A. Salman and Siobhán McInerneyLankford. 2006. Regulatory Frameworks for Water
Resources Management. A comparative study.
The World Bank. Washington. DC, EUA.
Leitura sugerida em português:
Kloske, Izabel e Leme Franco, Ninon. Bacias,
Comitês e Consórcios Intermunicipais: a gota
d’água para um olhar atual sobre o planejamento
municipal. In O Direito Ambiental das Cidades,
Luman Juris Editora, 2ª edição revista, atualizada
e ampliada. 2009.
Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Plano
Nacional de Recursos Hídricos, Brasília 2006.
www.cnrh.gov.br/pnrh
22
Correntes do Direito
Perguntas sobre o lugar
de onde você vem
Considere as seguintes
perguntas e reveja qualquer
experiência a nível local de seu
país:
 O quanto é complexa a
elaboração de um projeto
de legislação nacional
sobre a água?
Você pode identificar as
ações prioritárias de
desenvolvimento de
capacidade nesse campo
para contribuir para o
processo de reforma para
a GIRH?
Onde você se coloca na
questão da dependência
do governo central versus
a autonomia local ?
 Como, em seu país, as
instituições ligadas à água
podem se tornar
eficientes?
 O princípio de gestão por
bacia hidrográfica é
aplicável no seu país?
(Técnica vs. legal)
As atuais estruturas legal e
institucional voltadas para o
planejamento e a
implementação da GIRH?
Como? Se não, por que não?
Capítulo 4
Disposições sobre a Água Baseadas no Costume
Meta
A meta deste capítulo é examinar a existência, na comunidade ou a nível local
(povos nativos, grupos étnicos, moradores de cidades pequenas) de disposições
baseadas no costume e sua contribuição para melhorar a gestão dos recursos
hídricos.
Objetivos do Aprendizado
Após o estudo deste capítulo, os participantes:


Conhecerão a importância do pluralismo social;
Indicarão como uma disposição baseada no costume pode ser integrada à
legislação se você deseja reconhecê-la legalmente.
4
4.1 Introdução
O paradigma da GIRH, que corrobora as atuais reformas ligadas à água em
muitos países, está baseado principalmente no uso de determinações escritas
(sistemas formais) para regulamentar o uso dos recursos hídricos. Entretanto,
diversos países operam sob um sistema social plural, em que diversas
disposições baseadas no costume (sistemas informais) são adotadas na
implementação da GIRH.
Pense nisso
Quanto a GIRH pode ser participativa quando isto depende apenas de determinações
escritas e negligencia costumes nos quais se baseiam algumas pessoas da comunidade
ou um grupo a nível local? Quais são as ligações entre sistemas formais, costumes e a
GIRH?
Este capítulo começa com
uma breve abordagem do
pluralismo social, a
estrutura teórica na qual a
discussão se baseia. A
Seção 3 descreve a gestão
dos recursos hídricos sob a
ótica do pluralismo social.
A Seção 4 ilustra a gestão
da água nas disposições
baseada no costume,
como usada em Aflaj
(Sultanato de Omã) e no
Tribunal das Águas (Water
Court) (Espanha).
Quadro 4.1: Disposições gerais de normas do costume e
arranjos de água baseados nos costumes
As disposições gerais baseadas em costumes utilizam regras
não escritas e flexíveis, ou normas que regulam toda uma
sociedade. Tentam respeitar as tradições que passaram de
geração em geração. Originalmente uma grande parte das leis
da maioria das sociedades foi derivada de costumes.
Entretanto, as disposições específicas de costumes são as
regras de conduta, que prevalecem em um lugar específico ou
entre uma determinada classe do povo em um dado país.
As disposições ligada à água baseadas no costume são uma
subcategoria de disposições espec´ficas baseadas no
costume. A maioria dessas disposições cuida da titularidade da
água na comunidade, criando " direitos comunitários" à água.
Essas práticas normalmente são regras não formais.
Correntes do Direito
23
Um breve resumo na Seção 5 apresenta lições aprendidas com a adoção de
normas e costumes e, na Seção 6, estão listados os prós e contras de tal
abordagem.
4.2 Pluralismo social: uma estrutura teórica
A conceptualização dos arranjos baseados no costume na Ásia, na América
Latina e na África tem origem nas políticas coloniais. Foi criado pelos governos
das colônias para se referir a uma espécie de disposição tradicional
subordinada.
O poder colonial via as disposições baseadas no costume como um sistema
estático, mas, na prática, os povos nativos, os grupos étnicos ou moradores de
vilarejos as usavam tais regras com grande liberdade e flexibilidade. Era um
sistema dinâmico porque dependia de circunstâncias específicas que afetavam
as pessoas. Isso tornou a codificação um desafio.
4
Como percebido por Meinzen-Dick e Pradhan (2001), os responsáveis pela
elaboração de políticas são muitas vezes influenciados por abordagens
referentes a direitos como unitários e fixos, e não diversificados e mutantes. Isso
também acontece em diversos países, onde o governo, instado por pressão
crescente nos recursos hídricos, tem feito esforços para tentar elaborar uma
legislação sobre águas para gerir a utilização do recurso por diferentes usuários,
ou seja, alocar o direito à água, legalizar, conceder, modificar controlar a
alocação de água; proteger os direitos à água já existentes e punir judicialmente
os infratores.26
Apesar de o governo normalmente se basear em disposições escritas, estudos
mostraram o importante papel de disposições "formais' e "informais" em normas,
organizações e práticas reais em relação à terra e à gestão da água.
A interação entre disposições formais e informais é bem entendida por MeinzenDick e Pradhan (2001), que notaram que muitas concepções de direitos de
propriedade se concentravam apenas em disposições formais estáticas,
ignorando outras múltiplas camadas sociais.
O artigo fala de implicações do “pluralismo legal” para a gestão de recursos
naturais, ressaltando que muitos conceitos ignoraram a coexistência e a
interação entre "múltiplas
ordens legais". Entretanto,
o conceito de "pluralismo
Quadro 4.2 Pluralismo Social
legal" de alguma forma é
Não se refere apenas às leis formais e escritas, mas
também a disposições religiosas e baseadas em
confuso e desorientador,
costumes. Essas últimas sempre predominaram a nível
já que as disposições
local, mas são, de alguma forma, negligenciadas na
baseadas no costume
reforma no setor hídrico implementada sob o conceito
nem sempre podiam ser
de GIRH por razões práticas, legais e políticas.
qualificadas de "legais".
(isto é, de acordo com a
lei ou a ela pertencente).
26
Nota de revisão. No Brasil, a Política Nacional de Recursos Hídricos estabelece mecanismos para que haja
a mediação entre os diversos usos que se faz, principalmente nos comitês de bacia. Diz-se que gestão de
água é gestão de conflitos. A palavra rival, do latim rival – rivalis, tem sua etimologia como aquele que usa a
água do rio.
24
Correntes do Direito
Sob essa visão será usado o conceito de pluralismo social, e parece adequado
lembrar que uma das máximas da lei diz que as definições são perigosas.
Diversos países têm disposições sociais concorrentes e, assim, os recursos da
terra e hídricos são regulamentados por diferentes disposições, incluindo as
formais e também as regras informais, oriundas de grupos nativos, religiosos,
etc.
Onde há escassez de água e competição entre os tipos de disposições, a reação
típica dos nativos, dos grupos étnicos e moradores de vilarejos é: "Por que vocês
acham que esse Direito Romano ou esse Código de Napoleão são mais
adaptados à nossa realidade do que a nossa própria experiência e tradição de
muitos anos?"
É importante considerar que o pluralismo social pode talvez fornecer às pessoas
que desenvolverão trabalhos e às agências internacionais uma ferramenta para
diagnosticar e implementar projetos sustentáveis.
O pluralismo social está-se tornando reconhecido como um direito humano
fundamental, o direito de ser diferente (Declaração da Organização das Nações
Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas - UN Declaration on Rights of
Indigenous Peoples - GA/10612 – adotado em 13/09/2007, Convenção da
Organização Internacional do Trabalho – OIT (ILO Convention) No. 169 adotada
em 27/06/1989 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes,
Comunidade Andina (Andean Community), Decisões 391 e 486). Há uma
crescente rejeição da antes prevalecente premissa de que a unidade nacional
tem de surgir às custas da supressão de toda heterogeneidade.
Assim, além de sua utilidade analítica, o pluralismo social pode ser usado para
desenvolver a adequada legislação sobre a água.
Pense nisso
Como podemos implementar disposições multiculturais relativas à água? Como
podem funcionar efetivamente nas bases?
4.3 Gerindo recursos hídricos sob o pluralismo social
Como já observado no Capítulo 3, à legislação nacional sobre a água foi
atribuída uma missão centralizadora (o conceito de nação leva a um sistema
legal para a água).
Mas essa equação de uma nação/um sistema legal para a água não é na
verdade descritivo, mas dá direções em cima de suposições a respeito da
legislação sobre a água e a sociedade, sendo particularmente irrelevantes no
contexto do amplo quadro da legislação como processo social (Ubi Societas, ibi
Jus - Onde há sociedade há o direito27). A legislação não está acima da dinâmica
social. É o contexto social que dá forma e condições ao papel da legislação. A
legislação e o contexto social na qual é aplicada precisam ser observados
juntos.
27
Nota de revisão. Princípio construído pelos seguidores de São Tomás de Aquino.
Correntes do Direito
25
4
Atualmente, alguns Estados enfrentam o desafio de ultrapassar a ideologia do
centralismo legal da água. A maioria das sociedades não possui um sistema
"legal" consistente e único para ajuda, mas há tantos sistemas quantos são os
subgrupos (pluralismo social).
Os níveis sociais e a multiplicidade de sistemas sociais para água são usados
para descrever essas organizações intermediárias (isto é, tribo, família,
linhagens, associações). Cada uma dessas organizações tem autonomia em
relação ao mais inclusivo sistema legal (lei do Estado) e, assim, não há uma,
mas diversas fontes e formas para a regulação da água.
O dilema enfrentado por aqueles ligados à gestão da água a níveis locais tem
sido como conciliar as novas instituições a níveis do distrito, da província, do
governo central. Eles precisam harmonizar os papéis da lei escrita e as
disposições baseadas nos costumes tradicionais (povos nativos).
4
Por exemplo, um sistema de irrigação proposto, oferece um caso interessante
em que aparecem normas formais e de costumes. Para a maioria das pessoas
na bacia de Rufiji, na Tanzânia (Maganga, 2003), o acesso à terra e à água para
irrigação é regulamentado de acordo com os costumes. Por exemplo, nas
planícies de Usangu, em muitas situações em que os moradores de vilarejos se
auto-organizam em uma associação informal, chama, para construir um sistema
de irrigação. Como visto em Odgaard e Maganga (1995), a construção de canais
e sulcos de irrigação era controlada pelo chefe, embora uma única pessoa
pudesse desviar um curso d’água para satisfazer seus interesses, sem primeiro
consultar o chefe, e este poderia proibir a construção ou o uso de tal canal ou
sulco. Uma vez construído, o canal ou sulco era de exclusiva propriedade das
pessoas que os construíram, até que abandonassem o local, quando a
propriedade reverteria ao chefe. Com o tempo, essa disposição tribal baseada
no costume sofreu algumas mudanças.
Há muito ressentimento
entre os habitantes de
comunidades quanto às
tentativas por parte da
recém-criada Junta de
Água de Rufiji (Rufiji Water
Board) para impor sua
autoridade
quanto
à
alocação de água nas
planícies de Usangu, uma
das
áreas
sob
sua
jurisdição.
Preocupados
pela decisão da Junta de
que todos os canais de
irrigação deveriam ser
registrados
e
pagar
anualmente pelo direito à
água, os moradores da
comunidade
acharam
incompreensível estarem
agora sujeitos a obrigações
das disposições formais. A
reação típica foi: "essa
26
Correntes do Direito
Quadro 4.3: Como lidar com os desafios da Bacia do rio
Rufiji ?
Para lidar com os desafios de implementar a GIRH utilizando
as disposições baseadas nos costumes, recomenda-se aplicar
os princípios da gestão de demanda no nível mais baixo.
Recomenda-se identificar as prioridades da bacia e as funções
a serem realizadas pela autoridade da bacia, deixando as
funções de gestão em níveis mais baixos, incluindo:
 Alocação: canais de irrigação e comitês ou grupos de
sulcos podem alocar água, enquanto as comunidades
regulamentam o acesso;
 Conflitos de acesso podem ser mediados pelos cidadãos
seniores da comunidade ou por tribunais formais;
 A poluição pode continuar a ser responsabilidade do
governo central, que tem laboratórios para executar a
função. Mas a função também pode ficar a cargo dos
estatutos da comunidade, usando regras próprias que
restrinjam o cultivo perto de cursos de água para reduzir o
risco de poluição;
 Proteção do meio ambiente: sugere-se que tal função
seja feita em cooperação entre as comunidades, distritos,
divisões e o Conselho Distrital.
Fonte: Maganga, 2003
água nos foi dada de graça por Deus, e até agora nós a temos usado livremente
... por que agora somos forçados a pagar por ela?” (Maganga, 2003).
O exemplo mostra que é comum comunidades marginalizadas não serem
regidas pelas por leis escritas (legislação sobre a água). Um número de
recomendações são a seguir apresentadas, para vencer este e outros desafios.
4.4 Estudo de casos: gestão de recursos hídricos disposições
baseadas no costume
Em diversos países, o acesso à terra e à água para irrigação é regulamentado
de acordo com disposições baseadas em costumes, a maioria não escrita e, de
certa, forma flexível. A aplicação das disposições do costume, informais e da lei
escrita, formal, para guiar a gestão dos recursos hídricos é o foco dos dois
estudos de caso.
4
Pense nisso
Quais são os pró e os contras de codificar ou escrever as disposições de costumes? Por
que é um desafio registrar formalmente os costumes?
 Estudo de caso 1: Aflaj (Omã)
Os Aflaj (sing. Falaj) ou foggaras são considerados os principais sistemas de
água tradicionais no Sultanato de Omã. Estima-se que tenha 2.700 anos.
Apesar da introdução de poços subterrâneos e de superfície, os aflaj ainda
têm o principal papel da irrigação das terras agrícolas do sultanato,
assegurando a água potável, a dessedentação de animais e outras
finalidades domésticas (ROSTAS/HYD/1/86).
A principal estrutura
do Falaj consiste de: o
poço mãe, que pode
ter de 20 a 60 metros
de profundidade, o
canal principal, e as
colunas de acesso,
construídas a cada 50
a 60 m ao longo do
canal.
O Falaj é conhecido
como Qanat no Irã.
Um
sistema
comparável
ainda
existe
em
muitos
lugares,
como.
Afeganistão
(Kariz),
Algéria
(Foggara),
Ilhas
Canárias
(Galerias), China, Itália
(Ingruttato),
Japão
Quadro 4.4: Administração do Falaj
O Wakeel está encarregado da administração geral do
Falaj (distribuição e aluguel da água, gastos do orçamento
dos Falaj, resolução de conflitos entre fazendeiros,
emergências e outras atividades relativas a tomadas de
decisão). No caso de conflitos, o Wakeel ou os
proprietários podem reclamar para o xeque. Se o xeque
não consegue resolver o problema, o assunto é levado ao
governador (Walee), que transfere a matéria para
tribunais comuns, que aplicam a lei islâmica (o Islamismo
é a fonte oficial do direito em Omã). Um dos Areefs faz o
horário da circulação da água (Dawran) entre os
fazendeiros ou acionistas da água. O trabalho do Qabidh
é controlar as receitas dos Falaj (ações da água, terra,
e/ou plantações). Ele também é o "Guarda-Livros dos
Falaj”, organizando leilões de venda dos acionistas da
água com um leiloeiro (Dallal) - empregado pelo Qabidh.
Os deveres do Beedars são limpar o canal e o túnel, fazer
o conserto de pequenos avaria em pedras ou paredes.
Geralmente, o aluguel da água representa a maior parte
das receitas dos Falaj. As receitas são usadas para
operar, manter e fortalecer o sistema, além de lidar com
emergências como enchentes ou seca.
Fonte: Majzoub, 2005
Correntes do Direito
27
(Manibo, Mappo), Coreia (Man-nan-po), Marrocos (Khattara, Rhettara),
Iêmen (Felledj).
Cada fazendeiro tem sua própria porção de água, dependendo do tamanho
de suas terras e da contribuição para a construção do Falaj. Embora a
maioria dos Aflaj seja de propriedade dos fazendeiros, alguns são, no todo
ou em parte, propriedade do governo.
No alto do Falaj, onde o canal é aberto, a água potável pode ser extraída
(chama-se Sharia). Depois das instalações para beber água, lugares para o
banho dos homens, depois lugares para banho de mulheres e crianças, a
água passa pelos fortes/ castelos, mesquitas, até chegar a Mughisla para a
lavagem dos mortos.
No alto do Falaj, onde o canal é aberto, a água potável pode ser extraída
(chama-se Sharia). Depois das instalações para beber água, lugares para o
banho dos homens, depois lugares para banho de mulheres e crianças, a
água passa pelos fortes/ castelos, mesquitas, até chegar a Mughisla para a
lavagem dos mortos.
4
Em cada Falaj, essas frações da água, hoje, não são propriedade das
pessoas, mas alocadas para a comunidade.
Depois do uso doméstico, o Falaj é utilizado primeiro para irrigar terras
cultivadas permanentemente (a maioria, com tamareiras), depois as terras
que são sazonalmente cultivadas (chamadas Awabi). Se vem a seca, os
fazendeiros reduzem a área das plantações sazonais.
No sistema Falaj de irrigação, a água distribuída é baseada no tempo
decorrido. Somente em poucos casos usa-se o volume como critério. O
sistema de distribuição é complexo, mas justo e efetivo.
A administração típica de um grande Falaj consiste de um diretor (Wakeel)
para gerir o sistema da organização Falaj; dois encarregados (Areefs) para
tratar de problemas
técnicos, um para
Quadro 4.5: Por que o sistema Falaj funcionou tão bem?
serviços
 A água é considerada uma fonte de vida na sociedade de
subterrâneos, outro
Omã, e o Aflaj têm um papel importante na sustentação
da vida. Assim, respeitar a organização do Falaj é uma
para
serviços
na
necessidade para manter e guardar a principal fonte de
superfície,
um
vida.
tesoureiro (Qabidh ou
 O sistema Falaj é gerido e mantido por comunidades
locais, por meio de um sistema administrativo consagrado
Amin Al Daftar) para
pelo tempo, que faz parte de uma estrutura social
regulamentar
os
derivada da interdependência e de valores da
aspectos financeiros,
comunidade. Com o advento do Islamismo, esse sistema
hidropolítico tornou-se um contrato social profundamente
um leiloeiro (Dallal)
enraizado em princípios religiosos.
para
ajudar
o
 O sistema se baseia na sacrossanta congregação
tesoureiro com a
religiosa dominante; no respeito às tradições ancestrais;
venda das ações de
na lealdade tribal no respeito humano básico, pessoa a
para pessoa, a família a para família, família a para
água, e trabalhadores
comunidade.
diários (Beedars). O
Fonte: Majzoub, 2005
chefe (xeque) dá a
função ao Wakeel
depois
de
uma
recomendação
dos
28
Correntes do Direito
proprietários
dos
Falaj. A venda de
ações da água para
um ciclo hídrico ou
um ano acontece em
leilão aberto.
Quadro 4.6:Distribuição da Água
Para a distribuição da água de Turia, aplica-se uma
fórmula simples e eficiente: todos os fazendeiros que
recebem água de um canal são os proprietários comuns da
água fornecida; a água é concedida na proporção da terra
de cada um. Agregados de toda a terra irrigada, do canal
principal por meio de um sistema de canais menores,
formam o que é conhecido como uma Associação de
Irrigadores. Em tempos de pouco fluxo, usa-se uma
unidade variável volumétrica inventada, a "fila", que
permite uma distribuição justa.
Fonte: Majzoub, 2005
O governo de Omã
de forma regular
toma
providências
para preservar o
sistema Aflaj. A lei
mais recente sobre a
conservação de recursos hídricos foi promulgada pelo Decreto Real n°
29/2000 (15/ 04/2000), que revogou o Decreto Real n° 82/88. Cinco meses
depois, uma ordem ministerial foi editada para organizar os poços Aflaj. Seu
capítulo 5 regulamenta a outorga de permissões de Aflaj (artigos 29 e 30).
Isso ilustra como as disposições formais podem interagir com as baseadas
nos costumes.
 Estudo de caso 2: O Tribunal das Águas (Espanha)
O “Tribunal de las Aguas de la Vega de Valencia”, mais conhecido como
“Tribunal de las Aguas”, está entre as mais antigas instituições europeias
informais. Está encarregado de manter a paz entre os fazendeiros e
assegurar uma distribuição justa.
O tribunal se ocupa da área à volta do rio Turia e seus oito canais principais.
Na margem direita são cinco, na esquerda três canais.
As Associações do
Canal são
governadas por
antigas
Ordenanças. A
observação estreita
das regras é
supervisionada por
um Conselho
Administrativo
renovado a cada
dois ou três anos.
O chefe do
Conselho,
chamado “oficial”, é
eleito pelos
membros da
Associação de
Irrigadores, e deve
cultivar as próprias
terras, de uma
dimensão
suficiente para que
ele ali viva, deve
Quadro 4.7: Organização do tribunal
Devemos a organização dessa instituição aos Califados de
Córdoba (Abd El-Rahman III e Al-Hakem II). O Tribunal é
composto de oito oficiais. As razões das acusações podem
ser: roubar água em tempos de escassez; quebra de
canais ou muros; excesso de alijamento de água em
campos vizinhos; alteração dos turnos de irrigação; manter
sujos os sulcos de irrigação, ou irrigar sem ser sua vez.
O acusado é convocado pelo administrador do canal para a
quinta-feira seguinte. Se ele não comparece, é convocado
mais duas vezes; se não se apresenta, a acusação é
considerada válida, e ele é sentenciado. Para garantir o
máximo de imparcialidade, o Oficial do canal ao qual a
pessoa pertença não intervém. Também há uma regra que
diz que se o acusado pertence a um canal na margem
direita do rio, a sentença é dada pelo oficial da margem
esquerda, e vice-versa. Não se pode apelar, e a execução
da sentença é assegurada pelo Oficial de Sentença do
Canal.
Fonte: Majzoub, 2005
Correntes do Direito
29
4
ter reputação de
“homem honesto”.
A instituição
valenciana
sobreviveu a
séculos de
agitação política e
ficou melhor com o
passar do tempo.
Quadro 4.8: Quais são as principais características do
tribunal?
 Simples, porque o Administrador ou a parte ofendida está
presente, junto com o acusado, e ambos podem
apresentar seus argumentos perante o Oficial e
apresentar evidências e testemunhas sem protocolos
complicados ou fórmulas legais.
 Verbal, porque todo o julgamento é oral, desde a
acusação, que é apresentada pelo Administrador ou pelo
autor, até a sentença, passando pelos interrogatórios
(feitos para esclarecer, explicar ou justificar os fatos com
a intervenção do Presidente e dos oficiais que interrogam
as partes verbalmente)
 Rápido, porque as sessões são semanais, o tribunal lida
com infrações cometidas desde a quinta-feira anterior. Os
assuntos só podem ser adiados por, no máximo, 21 dias,
caso o acusado não compareça.
 Econômico, porque o julgamento não envolve qualquer
tipo de custas processuais, os oficiais não recebem
salário ou reembolso. O acusado tem de pagar por
despesas de viagem do Administrador ou do oficial de
justiça. As indenizações não são despesas processuais.
Fonte: Majzoub, 2005
Por trás do tribunal
está um modelo de
justiça que os
valencianos
sempre
respeitaram; nunca
foi necessário
apelar para
tribunais espanhóis
comuns para uma
sentença ser
cumprida. Esse é
outro exemplo de
como uma
disposição
baseada nos
costumes pode interagir com a legislação espanhola, que é superior. Esse
tribunal espanhol deu origem a tribunais formais das águas em diversos
países desenvolvidos.
4
O que podemos aprender com os casos acima?
Os estudos de caso ressaltam o caráter complementar entre as disposições
legais (ou formais) e as baseadas em costumes (ou informais) nos processos de
desenvolvimento dos recursos hídricos, na condução dos problemas de gestão
da água e na resolução de conflitos.
Esses estudos de casos não são de forma alguma apresentados como um "kit
universal de soluções" ou respostas prontas para todos os casos, mas como
sugestão, sempre útil para conhecer outras experiências.
Entretanto, os Estados podem se beneficiar de alguns desses costumes ainda
vigentes, consagrados pela tradição.
O uso da água permanece influenciado pelas disposições baseadas nos
costumes, que aparecem de forma resiliente28 na área da alocação de água. Um
ponto-chave é a extensão na qual essas disposições podem ser incorporadas na
GIRH.
Como já foi visto, pode existir muito ressentimento entre as pessoas na
comunidade ou no nível local quando se trata de tentativa de criar uma
legislação nacional obrigatória sobre a alocação da água.
28
Nota de revisão. Resiliente: capacidade de um indivíduo possuir conduta sã em ambiente insano ou do
indivíduo sobrepor-se e construir positivamente frente às diversidades.
30
Correntes do Direito
4.5 Prós e contras de reconhecer disposições baseadas no costume
Qualquer legislação sobre a água deve, de alguma forma, tratar da
questão das disposições baseadas no costume utilizadas por grupos
a nível da comunidade ou a nível local (povos nativos, grupos
étnicos, habitantes do vilarejo/povoado e utilizar com equilíbrio as
disposições
formais
e
informais. Na
Holanda, há
os
"waterschappen", comitês da água, um exemplo de disposição
baseada no costume que se tornou, de fato, legislação.
Naturalmente, onde as disposições baseadas no costume estão
funcionando bem e são fortemente apoiadas pelos usuários da água,
devem idealmente formar a base da legislação nacional sobre a água
ou, pelo menos, ser incorporadas ao texto legal; os legisladores e
responsáveis pela política devem estar atentos a isso.
No entanto, seria pouco apropriado presumir que as disposições informais
funcionem sem problemas. As pessoas no nível da comunidade ou no nível local
têm suas próprias dinâmicas de poder e, muitas vezes, há divisões por etnia,
alianças de clãs, por gênero e por nível de riqueza. Tais divisões podem filtrar o
acesso à água e perpetuar iniquidades, ou seja, podem perpetuar padrões
sociais e econômicos ou de gênero que contenham elementos retrógrados (por
exemplo, proprietários de terra) à conta de possíveis disposições baseadas nos
costumes, mas que precisam ser mudadas.
As potenciais dificuldades em conciliar um sistema baseado nos costumes e o
desenvolvimento de uma legislação moderna sobre a água serão maiores se as
disposições informais se aplicarem em apenas uma parte do Estado (talvez
áreas rurais, ou até a algumas áreas rurais) ou se tais disposições não
funcionam mais para gerir o recurso (por exemplo, como resultado do
crescimento populacional, da migração de populações, do aumento da
população e da urbanização).
Naturalmente, onde as disposições baseadas no costume estão
Pense nisso
funcionando bem e são fortemente
apoiadas pelos usuários da água,
Podem
todas
as
disposições
baseadas
em
costumes
ser incorporadas
legislação
de
devem idealmente formar a base da legislação
nacionalnasobre
a água
GIRH? São questões de escala?
ou, pelo menos, ser incorporadas ao texto legal; os legisladores e
responsáveis pela política devem estar cientes disso.
Múltiplas formas de disposições orais baseadas no costume coexistem e, às
vezes, podem entrar em conflito com padrões reconhecidos de direitos humanos
(direitos individuais vs. direitos da comunidade) e com a legislação, que deve
prevalecer.
Uma provável manipulação política pode levar a consequências "indesejadas",
como agitação política, ao serem legalmente reconhecidos direitos de grupos
minoritários.
Além dessas ideias amplas, há problemas em operar duas disposições paralelas
(as baseadas nos costumes e as disposições legais). Assim, é comum haver
Correntes do Direito
31
4
dois paradigmas paralelos de gestão dos recursos hídricos, ambos com pontos
fortes e fracos. Em alguns casos podem até ser contraditórios. Por exemplo, as
disposições baseadas em costumes podem estabelecer iniquidades que
remetam as mulheres a uma situação legal secundária, enquanto o paradigma
legal pode exigir equidade de gênero. Por outro lado, as disposições legais
podem não apoiar as necessidades das comunidades locais. Podem até, sem
intenção, deixar em desvantagem os pobres que não têm o acesso necessário a
sistemas formais para fazer com que esses trabalhem a seu favor.
Mensagem-chave
O desafio para os governos é tirar o melhor das disposições com base nos
costumes e o melhor das disposições legais e criar, no interesse do mais pobre
dos cidadãos, um paradigma de gestão da água que atenda às necessidades e
à cultura da sociedade.
4
Um passo a frente seria desenvolver uma metodologia para operacionalizar esse
desafio, provavelmente na forma de diretrizes ou de uma lista de controle que o
governo poderia usar para verificar, compilar e avaliar as disposições formais e
informais. Esse desafio é uma questão importante no discurso a respeito da
GIRH.
Implementação da GIRH: algumas perguntas
Considere as seguintes perguntas e reveja uma experiência a nível local ou da
comunidade no seu país:









As atuais disposições baseadas no costume conduzem no sentido de um
planejamento e da implementação da GIRH?
Que reformas precisam ser realizadas se você quiser reconhecer
legalmente disposições baseadas no costume?
Qual o grau de consenso, implícito ou explícito, no que diz respeito às
disposições baseadas no costume?
Quais as principais restrições para estabelecer uma legislação participativa
como parte da GIRH?
Quem faz o quê para quem nas disposições baseadas no costume e para
quem prestam contas?
As disposições baseadas no costume atenderiam melhor às necessidades
da comunidade?
Quais são os desafios de incorporar disposições baseadas no costume na
implementação da GIRH?
A legislação nacional sobre a água considera de maneira apropriada as
disposições baseadas no costume?
Quais os principais impedimentos para implementar as disposições
baseadas no costume na GIRH?
4.6 Leituras sugeridas
Burchi, S. 2005. The interface between customary and statutory water rights – a
statutory perspective. International workshop on ‘African Water Laws: Plural
Legislative Frameworks for Rural Water Management in Africa’, 26-28 January
2005, Joanesburgo, África do Sul.
32
Correntes do Direito
IP Kyoto Water Declaration FINAL. 2003. Indigenous Peoples Kyoto Water
Declaration. Third World Water Forum, Kyoto, Japão, Março 2003
WATER LAW AND INDIGENOUS RIGHTS –WALIR. 2002. Towards recognition
of indigenous water rights and management rules in national legislation.
Summary of the presentations at the public meeting (7 March 2002) on the
occasion of the International WALIR Seminar, 4-8 March 2002, Wageningen,
Holanda.
Publicações em português
Soares, Guido F.S. Direito Internacional do Meio Ambiente- Emergências,
Obrigações e Responsabilidades, São Paulo, Atlas,2001;
Soares, Guido Fernando Silva Soares, Curso de Direito Internacional Publico,
São Paulo, Atlas, 2002
Silva, Jose Afonso da, Direito Ambiental Constitucional, São Paulo, Malheiros
Editores, 2003 4ª edição
Nascimento e Silva, Geraldo Eulálio- Direito Ambiental Internacional- Meio
Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e os Desafios da Nova Ordem Mundial,
Rio de Janeiro, Thex Editora, 2ª edição,2002;
Brasil, Conselho Nacional de Recursos Hídricos, Conjunto de Normas Legais /
Recursos Hídricos, 2009
Correntes do Direito
33
4
4
34
Correntes do Direito
Capítulo 5
Aspectos Legais da Gestão de Recursos Hídricos
Compartilhados
Meta
A meta deste capítulo é rever o papel e a relevância das leis internacionais na
promoção da GIRH cooperativa e na prevenção de conflitos relativos aos
recursos hídricos compartilhados por países.
Objetivos do Aprendizado
Após o estudo deste capítulo, os participantes compreenderão:

como a estrutura internacional legal e institucional interage com a legislação
a nível nacional;

a necessidade de reforçar a cooperação em matéria de gestão conjunta dos
recursos hídricos compartilhados, e

a importância e a necessidade do direito internacional tratando dos recursos
hídricos compartilhados para a implementação bem sucedida da GIRH.
5.1 Introdução
Mesmo sendo um elemento importante no contexto de um ambiente propício
para a GIRH, a nível nacional, a legislação enfrenta barreiras. Muitas vezes, o
problema não é a falta de legislação adequada, mas a implementação e a
aplicação inadequadas, resultantes, em geral, da falta de vontade política, de um
sistema institucional insuficiente, e de cooperação técnica. Problemas similares
ocorrem a nível internacional, em que a situação é ainda mais complicada.
A GIRH transfronteiriça é um processo complexo, com dimensões políticas,
gerenciais e técnicas, envolvendo conflitos de interesse que precisam ser
mediados e, sem dúvida, uma governança efetiva da água é crucial para a sua
implementação.
Este capítulo começa com uma visão geral do direito internacional. Seguem-se
suas fontes e uma perspectiva sobre o direito internacional relativa aos cursos
de água, e uma seleção das principais características da Convenção sobre o
Direito dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para fins distintos da
Navegação, de 1997. Diante da aplicação em cada país, o capítulo continua
ilustrando a interação entre as estruturas legais internacionais e institucionais a
nível nacional (aspectos internacionais da gestão da água) e o estudo de caso
da bacia do Nilo.
5.2 O direito internacional em contexto
O direito internacional é o conjunto de princípios e regras que os Estados
utilizam para regular as relações Estado-Estado. As normas legais internacionais
são desenvolvidas por pactos entre os Estados. O que distingue o direito
internacional do direito nacional é que o último é criado e imposto pelos Estados,
primariamente, para gerir suas relações em diversas áreas, enquanto o domínio
Correntes do Direito
35
5
do direito nacional se refere às questões que ocorrem dentro de suas fronteiras,
com o objetivo de gerir as relações entre grupos de interesse. O direito
internacional, enquanto interrelacionado com o nacional, do qual depende para a
implementação interna, opera como um sistema de direito separado, com suas
regras e mecanismos próprios.
5
O direito internacional é principalmente derivado de acordos expressos
estabelecidos
entre
Estados,
chamados
Quadro 5.1 As fontes do direito internacional
geralmente de tratados
O artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (- em
(bilateral, tendo dois
inglês International Court of Justice – ICJ), dispõe:
"1. A Corte cuja função é decidir em conformidade com o
Estados como partes, ou
direito internacional as controvérsias que forem submetidas,
multilateral, com mais de
aplicará:
dois) e de fontes como
a) as convenções internacionais, gerais ou específicas, que
estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos
as regras do direito
Estados litigantes;
consuetudinário – ou não
b) costume internacional, como prova de uma prática geral
escrito –, do direito
aceita como norma de direito;
c) os princípios gerais de Direito reconhecidos pelas nações
internacional,
de
civilizadas;
princípios
gerais
do
d) as decisões judiciais e a doutrina dos especialistas mais
qualificados das diferentes nações, como fonte subsidiária
Direito e de outras fontes
para determinar das regras de direito."
subsidiárias. As normas
O Artigo 38 classifica as fontes de direito internacional como
de costume internacional
primárias (tratados internacionais, normas de costume
é uma regra legal que
internacional e princípios gerais de direito) e subsidiárias
(decisões das cortes internacionais de arbitragem e a doutrina
evoluiu
da
prática
jurídica).
costumeira dos Estados
Além disso, as fontes da lei internacional são às vezes
(correspondência
caracterizadas como "hard law" (vinculantes) e "soft law" (não
vinculantes) O “hard law” inclui acordos escritos e vinculantes
diplomática, declarações
entre Estados que, espera-se, façam todos os esforços para
dos representantes do
cumprir com essas disposições. No entanto, a "soft law" referese a códigos de conduta, declarações, orientações,
Estado nas organizações
recomendações ou resoluções iniciadas ou substancialmente
e
conferências
influenciadas por ONGs, ou por instituições internacionais
internacionais, para citar
como o Banco Mundial, ou por agrupamentos de Estados,
como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
algumas), geralmente na
Econômico – OCDE (em inglês Organization for Economic
ausência de acordos
Cooperation and Development – OECD), ─ que não são
formais. Para se tornar
juridicamente vinculantes. Os instrumentos ou documentos tipo
“soft law” podem lançar as bases para acordos posteriores
uma regra obrigatória do
31
juridicamente
vinculantes.
direito
consuetudinário
internacional, deve haver
Fonte: Adaptado de Vinogradov, Wouters, e Jones, 2003.
uma
prática
geral
demonstrando que o
Estado entender estar
legalmente solicitado a
se conformar à norma de costume em um tópico específico. No entanto, o
costume internacional é, por natureza, impreciso e, portanto, aberto a
interpretações divergentes. Os princípios gerais do Direito são aplicados
frequentemente não somente na ausência de norma convencional ou de
costume, e também para esclarecer e interpretar a norma legal quando esta é
obscura, ambígua, ou controversa. Esses princípios não precisam existir nos
sistemas jurídicos de todas as nações. Embora os princípios gerais referidos
sejam princípios de direito interno, como tal não significa que as leis nacionais,
devam necessariamente ser aplicadas a conflitos internacionais, mas que a
análise dessas leis nacionais deverá levar à descoberta de princípios gerais
reconhecidos por nações civilizadas.29 30
29
Nota de revisão. A Corte Internacional de Justiça é fruto de Tratado Internacional e suas normas decorrem
de pactos dos estados soberanos.
36
Correntes do Direito
 Definição de tratado
Um tratado é "um acordo internacional por escrito, celebrado entre estados,
e regido pela legislação internacional, quer esteja consignado num
instrumento único ou em dois ou mais instrumentos conexos e qualquer que
seja a sua denominação específica" (Convenção de Viena sobre o Direito
dos Tratados, de 1969). Se o acordo é entre Estados, por escrito, e se
destina a ser juridicamente vinculativo e regido pela legislação internacional,
é um tratado.
A
maioria
dos
Quadro 5.2: O que é um curso d’água?
tratados é feita entre
O artigo 2º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito
Estados.
Algumas
Dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para Fins
outras
entidades,
Distintos da Navegação, de 21 de maio de 1997, estabelece:
“Para os fins da presente Convenção:
como grupos de
(a) “Curso d’água” é um sistema de águas de superfície e
Estados, como a
subterrâneas que constituem, por força de sua relação
União Africana ou as
física, um todo unitário e, normalmente, fluem para um
destino;
Nações Unidas, têm
(b) “Curso d’água internacional é um curso d’água que tem
uma personalidade
partes situadas em Estados diferentes;
jurídica
que
(c) “Estado de Curso d’água” é um Estado parte da presente
Convenção, em cujo território se situa parte de um curso
considera
ser
d’água internacional, ou uma parte que seja uma
"sujeitos" do direito
organização de integração econômica regional no
território de um ou mais Estados-Membros, onde se
internacional.
Um
encontra parte de um curso d’água internacional.
tratado pode ser
celebrado entre um
Estado
e
uma
organização
internacional,
ou
entre duas ou mais
organizações internacionais, mas não entre um Estado e uma empresa.31
5
Os tratados obrigam apenas aos países que são seus signatários, em
etapas, incluindo: assinatura, troca de instrumentos, ratificação, aceitação
ou aprovação, adesão, ou qualquer outro previsto no texto do tratado - estar
legalmente comprometido por acordo escrito32. Os tratados podem ser
conhecidos por outros nomes como convênios, acordos, cartas,
convenções, pactos, alianças, protocolos ou estatutos, mas os nomes
diferentes não têm diferença legal.
As consequências para os Estados que infringem as normas de direito e
compromissos de tratado internacionais são definidas pelas sob as normas
de responsabilidade do Estado. Assim, quando um Estado nega a outro sua
cota de um curso d’água internacional, será obrigado a reparar o ato ilícito.33
30
Nota de revisão. Em tese, normas vinculantes são aquelas cujo descumprimento pode ocasionar sanções,
em especial de responsabilidade, de parte ou das partes que não a cumprem. Já a “soft Law” ou “o direito
verde” são normas que podem ensejar ou não a construção de pactos mais formais ou vinculantes como
apresentado neste capítulo.
31
Nota de revisão. Os tratados são de competência dos sujeitos considerados pelo Direito Internacional
Público, enquanto as corporações são entidades criadas na forma do direito interno de determinado país. Não
são as corporações ou empresas entes soberanos como os Estados ou a tais equiparadas como sujeito do
direito internacional com competência para assinar tratados difunde no tratado internacional que a constituir e
cujos poderes derivam de atos dos estados soberanos, isto é, de assinar tratados internacionais.
32
Nota de revisão. Em geral, o compromisso dos países em relação aos tratados está definido em suas leis
nacionais.
33
Nota de revisão. Para os interessados em aprofundar o conhecimento sobre este complexo tema, a
sugestão é recorrer aos estudos sobre responsabilidade internacional do estado, como também dos princípios
Correntes do Direito
37
5.3 Direito Internacional dos cursos d’água
Até recentemente, o direito internacional se concentrava principalmente nas
águas de superfície compartilhadas. As questões relacionadas aos aquíferos
compartilhados eram relativamente ignoradas. O direito internacional que regula
os direitos e obrigações dos "Estados ribeirinhos" em relação aos "rios
internacionais" é o direito internacional dos cursos d’água (também conhecida
como direito internacional dos recursos hídricos).
O direito internacional dos cursos d’água tem evoluído tanto por meio de
tratados internacionais, como pelo costume, e foi influenciada por outras fontes:
princípios gerais do Direito, decisões judiciais, doutrina, resoluções e
recomendações das organizações internacionais.
 Tratados
Os acordos multilaterais normalmente estabelecem uma base legal geral e
institucional de cooperação para uma determinada região (Ásia Central,
África Austral e Europa), uma bacia hidrográfica (Danúbio, Reno), ou uma
parte dela (Nilo, Mekong). Podem ter a forma de um "estrutura" de Tratado
(Convenção de Helsinque de 1992), ou conter compromissos gerais e regras
e padrões mais específicos.
Há um grande número de acordos multilaterais-regionais e a nível de bacia
hidrográfica, sendo o principal a Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para fins distintos da
Navegação, de 1997. Entre outros importantes acordos sobre águas estão:
Acordo de Plena Utilização das Águas do Nilo (8 de novembro de 1959),
Tratado da Bacia do Prata (23 de abril de 1969), Convenção de Proteção e a
Utilização de Cursos de Água Transfronteiriços e de Lagos Internacionais,
(1992 UNECE (Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa –
Convenção de Helsinque), Acordo de Cooperação na Área de Gestão
Conjunta, Utilização e Proteção dos Recursos Hídricos Compartilhados
(1992, Acordo da Ásia Central sobre a Água, Convenção de Cooperação
para a Proteção e sobre o Uso Sustentável do Rio Danúbio (Convenção do
Danúbio 1994), Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável
da Bacia do Rio Mekong (Comissão do Rio Mekong 1995), Convenção para
sobre a Proteção do Reno (Convenção do Reno 1998), e Protocolo de
Sistemas de Cursos de Água Compartilhados para o Desenvolvimento na
Comunidade da África Austral (Protocolo da SADC de 1995), agora
substituído pelo Protocolo Revisto sobre Cursos de Água Compartilhados
para o Desenvolvimento na Comunidade da África Austral (Protocolo da
SADC de 2000 Revisto), para o desenvolvimento da Comunidade da África
Austral.34
5
Mais de 3.600 tratados internacionais, bilaterais e multilaterais, dispõem
sobre as questões relacionadas à água. Os tratados de água podem ter um
caráter estrutural que rege todas as águas transfronteiriças, ou tratam de um
curso d’água internacional específico ou parte dele; ou podem regular o uso
internacionalmente reconhecidos sobre direito das águas, em especial da Associação de Direito Internacional
(International Law Association) – www.ilahq.org.
34
Nota de revisão. Adicione na lista o Tratado de Cooperação da Amazônia, 3 de julho de 1978, que foi o
primeiro tratado internacional que adotou o princípio da Bacia de Drenagem como área de gestão dos recursos
naturais, incluindo a água, em conformidade com o desenvolvimento do direito internacional, em especial as
Regras de Helsinque da Associação de Direito Internacional.
38
Correntes do Direito
em particular, de um projeto específico ou se preocupar com a proteção e
controle da poluição do curso d’água.
 Costume Internacional
Se os países que compartilham recursos hídricos não são parte de um
tratado aplicável, seus direitos e obrigações são regidos pelo direito
internacional consuetudinário35. Como veremos, os princípios básicos da
legislação de cursos de água, incluindo, inter alia36, o princípio da utilização
justa e razoável, inicialmente surgiram e se desenvolveram como regras do
direito consuetudinário.37
 Princípios Gerais do Direito
Poderíamos listar dois princípios que ressaltam a limitação dos direitos de
um Estado no que se refere a um curso d’água internacional: o abuso de
direito e boa vizinhança. O primeiro ocorre quando a atividade de um Estado
provoca danos ao território de outro. Baseia-se na máxima do direito romano
sic utere laedas tuo ut alienum non (use o seu direito [próprio] de modo a
não causar prejuízo a outro). A boa vizinhança se refere a um bom
relacionamento entre Estados ribeirinhos.

 Decisões judiciais internacionais
Em várias ocasiões, os tribunais internacionais foram convidados a resolver
conflitos entre Estados ribeirinhos respeito de águas transfronteiriças. As
mais importantes incluem (mas não se limitam a) do rio Oder, do rio Meuse
e do Rio Danúbio, como visto no Quadro 5.3:
35
Apenas um conjunto limitado de regras é aceito como direito internacional consuetudinário. O tratado tem
mais detalhes e pode abranger áreas que ainda não foram necessariamente aceitas como direito internacional
consuetudinário
36
Inter alia – expressa em latim “entre as partes”, o que significa que somente obriga as partes do tratado.
37
Nota de revisão. É importante lembrar que na forma como dispõe a Convenção de Viena sobre o direito dos
tratados, já referida no texto, o tratado internacional, enquanto não entra em vigor, pode ser entendido e
aplicado como regra de costume internacional.
Correntes do Direito
39
5
Quadro 5.3 Importantes decisões judiciais
Rio Oder
Na década de 1920, a Corte Permanente de Justiça Internacional PCIJ, antecessora da Corte
Internacional de Justiça (CIJ), foi chamada para resolver um conflito sobre direitos de navegação em
afluentes do rio Oder, que tinha sido “internacionalizado” para efeitos de navegação após a Primeira
Guerra Mundial, nos termos do Tratado de Versalhes. Embora não coubesse à Corte avaliar os outros
usos que a navegação, aquela Corte introduziu em sua decisão uma noção relativamente nova: “a
comunidade de interesse dos estados ribeirinhos”.
Rio Meuse
Em 1930, a Corte Permanente de Justiça Internacional PCIJ foi novamente chamada a decidir sobre o
envolvido em um conflito de água, desta vez entre a Holanda e a Bélgica, a propósito do desvio de água
do rio transfronteiriço Meuse. O impacto da decisão da Corte Permanente de Justiça a respeito da
evolução da legislação sobre a água foi um pouco limitada, uma vez que se limitou primariamente nas
questões da aplicação e da interpretação dos acordos bilaterais existentes, que estabeleciam o regime,
governavam as tomadas d’água do rio.
Rio Danúbio
O mais recente, e provavelmente o mais importante conflito sobre águas levado à Corte Internacional de
Justiça - CIJ é o caso Gabcikovo-Nagymaros (também conhecido como o caso do rio Danúbio),
envolvendo a Hungria e a Checoslováquia (numa fase posterior, a Eslováquia, como estado sucessor) .
O conflito foi sobre a implementação do tratado bilateral, concluído em 1977, com a finalidade de
construção de uma série de represas e barragens em um trecho do rio que atravessa os territórios dos
dois países, a Hungria e a Checoslováquia. O projeto foi concebido como uma joint venture com
participação igual em termos de investimento e partilha de benefícios futuros, para fins de geração de
energia hidrelétrica, e melhoria da navegação e o controle de inundações e do gelo no rio Danúbio.
A gama de questões jurídicas com que a Corte teve que lidar foi invulgarmente ampla: desde a vigência
dos tratados internacionais, a sucessão de Estados e responsabilidade internacional até a proteção
ambiental e direito internacional dos cursos de água. Em essência, o Tribunal decidiu que ambas as
partes agiram ilegalmente: a Hungria, abandonando o trabalho no projeto, e terminando unilateralmente
o acordo bilateral, a Eslováquia, respondendo às ações da Hungria por meio do desvio para o seu uso e
benefício entre 80 e 90 por cento das águas da parte do rio que constitui a fronteira entre os dois países.
A Corte também confirmou a validade legal do tratado de 1977, que permitia às partes ajustar o projeto,
a fim de responder às preocupações ambientais, e decidiu que a pretensa extinção do tratado pela
Hungria não era válida. O regime operacional conjunto de todo o projeto teria que ser reinstalado, e as
partes, a menos que acordado de outra forma, teriam de compensar uma à outra pelos danos causados
por seus atos ilícitos.
5
Fonte: Vinogradov, Wouters, e Jones, 2003.
A Convenção da ONU de 1997 foi reconhecida pela Corte Internacional de
Justiça como uma declaração mandatária dos princípios fundamentais do direito
internacional do curso d’água.
Uma série de sentenças arbitrais, como o caso do Lago Lanoux, também
contribuiu para a evolução do direito internacional nesse campo. Outras incluem,
por exemplo, o conflito do rio Helmand entre a Pérsia e o Afeganistão a respeito
da delimitação da fronteira e a utilização das águas do rio, o conflito do rio San
Juan entre a Costa Rica e a Nicarágua, e o conflito do rio Zarumilla entre
Equador e Peru a respeito da delimitação das respectivas fronteiras comuns.
 Doutrina,
resoluções
e
recomendações
internacionais
São três as principais teorias postuladas:
das
organizações
(i) A teoria da soberania territorial absoluta (ou “Doutrina Harmon”):
Segundo essa teoria, por causa da soberania absoluta exercida sobre o
próprio território, cada Estado pode utilizar como quiser as águas de um
curso d’água internacional em seu território, sem levar em conta os danos
40
Correntes do Direito
que possam ser causados a Estados ribeirinhos. Essa teoria, inicialmente
defendida pelo Procurador Geral dos Estados Unidos, James Judson
Harmon, num conflito pelo direito à água entre os Estados Unidos (estado à
montante) e México (estado à jusante), tem tido pouca aplicação na prática
internacional. De fato, embora tenha sido também apoiada pela Índia (outro
estado à montante) por um tempo limitado, foi rejeitada tanto pelos Estados
Unidos quanto pela Índia, que posteriormente entraram em acordo com os
respectivos países fronteiriços.
(ii) A teoria da integridade territorial absoluta (ou teoria do fluxo
natural)
Segundo essa teoria, os Estados à jusante têm direito ao fluxo natural de um
curso d’água internacional, inalterado em quantidade e qualidade pelo
estado ribeirinho superior. Uma interrupção desse fluxo implicaria uma
violação da soberania territorial do Estado ribeirinho inferior. Esse caso, que
representa uma versão do Estado à jusante da teoria da soberania territorial
absoluta, não foi mantido.
(iii) A teoria da soberania territorial limitada:
Segundo essa teoria um curso d’água internacional constitui um todo
unitário, onde a soberania de um Estado ribeirinho é limitada pela de outro
Estado ribeirinho. A existência de um novo conceito "a comunidade de
interesse dos Estados ciliares" é reconhecida, já que influenciou a evolução
do direito internacional dos cursos de água.38
5
5.4 A Convenção de 1997 das Nações Unidas
A Comissão de Direito Internacional (CDI), o órgão das Nações Unidas
responsável pelo "desenvolvimento progressivo do direito internacional e a sua
codificação”, foi criada em 1947. A Comissão incluiu o tema “direito dos usos dos
cursos de água internacionais para fins distintos da navegação” em seu
programa de trabalho na vigésima terceira sessão (1971), em resposta à
recomendação da Assembleia Geral da ONU na resolução 2669 (XXV) de 08 de
dezembro de 1970. Depois de vinte e três anos de trabalho, a Comissão aprovou
o texto final do tratado (Convenção sobre o Direito dos Usos dos Cursos de
Água Internacionais para fins Distintos da Navegação) e de uma “resolução a
respeito de águas subterrâneas transfronteiriças confinadas”.
A Convenção da ONU de 1997 foi aprovada pela Assembleia Geral em 21 maio
1997. A votação foi 103 a favor e 3 contra (Burundi, China e Turquia), com 27
abstenções. No âmbito de uma convenção a respeito de cursos de água
internacionais, 103 votos favoráveis parecem constituir um forte apoio. O grande
número de abstenções não indica nada de particularmente bom, mas o fato de
que apenas três Estados tenham votado contra a resolução indica um amplo
consenso na comunidade internacional em relação aos princípios gerais que
regem a matéria (Convenção sobre o Direito dos Usos dos Cursos de Água
Internacionais para fins Distintos da Navegação).
38
Nota de revisão. Os cursos d’água são fronteiriços ou transfronteiriços e as águas são compartilhadas.
Correntes do Direito
41
Quadro 5.4 Esboço dos Artigos da Convenção das Nações Unidas de 1997
Parte I- Introdução
Art.1- Escopo da presente convenção
Art.2- Uso de termos
Art.3- Acordos de curso d’água
Art.4-Partes de um acordo de água
Parte II- Princípios Gerais
Art.5- Utilização e participação justa e razoável
Art.6-Fatores relevantes para a utilização justa e razoável
Art.7-Obrigação de não causar dano significativo
Art.8-Obrigação geral de cooperar
Art.9-Intercâmbio regular de dados e informações
Art.10-Relação entre os diferentes tipos de uso
Parte III- Medidas Planejadas
Art.11-Informação sobre medidas planejadas
Art.12-Notificação sobre medidas planejadas com possíveis efeitos adversos
Art.13-Período para responder à notificação
Art.14-Obrigações do Estado que notificou durante o período reservado à resposta
Art.15-Resposta à notificação
Art.16-Ausência de resposta à notificação
Art.17-Consultas e negociações sobre as medidas planejadas
Art.18-Procedimentos em caso de ausência de notificação
Art.19-Implementação urgente de medidas prevista
Parte IV- Proteção, Preservação e Gestão
Art.20-Proteção e preservação de ecossistemas
Art.21-Prevenção, redução e controle da poluição
Art.22-Introdução de espécies novas ou exóticas
Art.23-Proteção e preservação do meio ambiente marinho
Art.24-Gestão
Art.25-Regulação
Art.26-Instalações
Parte V-Condições Prejudiciais e Situações de Emergência
Art.27-Prevenção e Mitigação de Condições Prejudiciais
Art.28-Situações de emergência
Parte VI-Disposições Gerais
Art.29-Cursos de água internacionais e instalações em tempo de conflitos armados
Art.30-Procedimentos indiretos
Art.31-Dados e informações vitais para a defesa ou segurança nacional
Art.32-Não discriminação
Art.33-Resolução de conflitos
Parte VII- Disposições Finais
Art.34-Assinatura
Art.35-Ratificação, aceitação, aprovação ou adesão
Art.36-Entrada em vigor
Art.37-Textos originais
Anexo: Arbitragem (contendo quatorze artigos, estabelece os procedimentos a serem utilizados, caso
as partes, num conflito, concordem em submetê-lo à arbitragem).
5
42
Correntes do Direito
A entrada em vigor da presente Convenção certamente reforçará a sua
autoridade39. Mas, mesmo que nunca entre em vigor, marca um passo
significativo no processo de consolidação, criação, promoção e implementação
do direito internacional como norma de costume internacional referente aos
cursos d’água. Parece razoável concluir que, mesmo que a Convenção nunca
entre em vigor, ao negociar futuros acordos, os Estados vão recorrer às
disposições nela contidas como ponto de partida40.
A Convenção é composta de sete partes contendo trinta e sete artigos, e pode
ser dividida em normas substantivas, processuais, mecanismos institucionais e
resolução de conflitos.
As regras substantivas
normalmente definem as
regras de costume
internacional ou se referem
a regras de tratado que
dispões sobre criação,
definição e regulamentação
de direitos e deveres. A
questão da "titularidade" (ou
direito legal ao uso das
águas de um curso d’água
internacional) é a questão
fundamental. Trata-se da
pergunta "quem tem o
direito de usar que água?”.
Quadro 5.5 Panorama das principais regras
substantivas
1. Obrigação de evitar a poluição
2. Impedimento da invasão de espécies alienígenas
3. Proteção do meio ambiente marinho
4. Obrigação de cooperar
5. Avaliação de impacto ambiental transfronteiriço
(EIA)
6. Princípio da precaução
7. Princípio do poluidor-pagador
8. Abordagem ecossistêmica
9. Utilização justa e razoável?
10. Dano não significativo?
5
As regras substantivas primárias são encontradas na Parte II. Incluem a regra
que rege "a utilização equitativa e razoável" (artigo 5 º), e a obrigação de tomar
todas as medidas necessárias para não causar danos significativos (artigo 7 º).
Como os Estados determinam o que é justo e razoável é explicado no artigo 6 º,
que estabelece uma lista não exaustiva de fatores a serem considerados na
determinação de um uso equitativo e razoável. A convenção impõe às partes a
obrigação de "proteger e preservar os ecossistemas" (artigo 20) dos cursos
d’água internacionais e de "prevenir, reduzir e controlar a poluição de um curso
d’água internacional que possa causar danos significativos a outros Estados de
curso d’água ou ao seu ambiente, incluindo danos à saúde e segurança
humanas, ao uso das águas para fins benéficos ou aos recursos vivos do curso
d’água (artigo 21)”.
O dever de cooperar
incorporado
na
Convenção serve como
ponte entre as suas
regras substantivas e
processuais.
Para
aplicar corretamente a
regra de utilização justa
e
razoável,
certos
mecanismos
de
Quadro 5.6 Panorama das principais regras processuais
1. Dever de notificar
2. Dever de compartilhar dados
3. Dever de negociar
4. Dever de alerter
5. Resolução de conflitos
39
35 ratificações são necessárias. Não foram recebidas ainda.
O Protocolo revisto da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) pode ser citado aqui
como um exemplo. O antigo Protocolo foi revisto especificamente para colocá-lo de acordo com a Convenção
das Nações Unidas e as disposições desta última foram usadas literalmente em quase todas as instâncias.
40
Correntes do Direito
43
cooperação são necessários, incluindo a notificação prévia das medidas
previstas, o intercâmbio de informações, consultas e, em certos casos,
negociações.
Que regras os Estados do curso d’água devem seguir quando planejam novas
obras em águas compartilhadas? Na Parte III, a convenção estabelece um
conjunto de regras processuais a serem seguidas pelos Estados quando
procuram realizar novas obras. No primeiro caso, devem trocar, em bases
regulares, dados e informações disponíveis a respeito das condições do curso
d’água, em particular as de natureza hidrológica, meteorológica, hidrogeológica
e ecológica e as relacionadas com a qualidade da água, bem como as previsões
relacionadas (artigo 9º, 1). No caso de uma medida prevista, os estados são
obrigados a “trocar informações e a consultar uns aos outros e, se necessário,
negociar sobre os possíveis efeitos das medidas previstas na condição de um
curso d’água internacional" (artigo 11). Para as medidas previstas envolvendo
obras que poderiam afetar significativamente os outros Estados, os requisitos
processuais são mais rigorosos. A Parte III contém procedimentos detalhados
que visam determinar se uma medida prevista deve ser levada adiante ou não.
O Estado do curso d’água tem um tempo fixo para responder informando a sua
opinião com relação à medida prevista. Se nenhuma resposta é recebida, e o
Estado que notificou está confiante de que a medida está em conformidade com
a regra de utilização equitativa e razoável, pode, então, prosseguir. Quando o
Estado notificado faz objeções à medida, são necessárias consultas, com vistas
a encontrar uma solução equitativa e razoável.
5
Pense nisso
Os acordos internacionais da água enfrentam adequadamente os desafios atuais de
gerenciar os cursos d’água internacionais? Você consegue identificar elementos
específico contidos nos diversos acordos que se revelem adequados para enfrentar
esses desafios?
No entanto, nenhum Estado
tem o direito de veto em
relação ao desenvolvimento
de atividades de outro
Estado do curso d’água.
Nem as medidas previstas
podem ser implementadas
sem
a
respectiva
notificação
e,
se
necessário,
sem
as
exigências de consulta
estabelecidas pelas regras
processuais (Vinogradov,
Wouters, e Jones, 2003).
Nos termos da Convenção,
os
Estados
são
incentivados
a
criar
mecanismos institucionais,
mas não são obrigados a
fazê-lo (artigo 24).
Quadro 5.7 Utilização justa e razoável
O Artigo 5 º dispõe:
"1. Os Estados do curso d’água utilizarão em seus
respectivos territórios um curso d’água internacional de
forma equitativa e razoável. Em particular, os Estados
do curso d’água utilizarão e aproveitarão um curso
d’água internacional com o propósito de atingir uma
utilização ótima e sustentável da mesma e o desfrute
máximo compatíveis com a proteção adequada do
curso d’água, levando em conta os interesses dos
Estados do curso d’água de que se trate.
2. Os Estados do curso d’água participarão do uso,
aproveitamento e proteção de um curso d’água
internacional de forma equitativa e razoável. Essa
participação inclui tanto o direito de utilizar o curso
d’água quanto à obrigação de cooperar com sua
proteção e aproveitamento, conforme o disposto na
presente Convenção.
Think about it
44
Correntes do Direito
Do
O Artigo 33 oferece uma série de mecanismos de resolução de conflitos. Os
Estados são livres para escolher um meio de resolver seus conflitos, incluindo
negociação, bons ofícios, mediação, conciliação, as instituições do curso d’água
compartilhado, e assim por diante. No entanto, se essas tentativas falharem,
qualquer Estado pode invocar unilateralmente o procedimento obrigatório de
apuração de fatos previstos no artigo 33 da Convenção.
5.5. Principais características da lei internacional de curso d’água
internacional (Utilização Equitativa e Regra de Não Prejuízo)
A Convenção representa
uma tentativa de encontrar
um equilíbrio entre a
utilização equitativa e as
regras de não prejuízo.
Quadro 5.8 Obrigação de não causar danos
significativos
O Artigo 7º prevê a obrigação de cada Estado do curso
d’água de não causar dano significativo a outro Estado
do curso d’água, afirmando que:
“1. Os Estados do mesmo curso d’água, ao utilizar um
curso d’água internacional em seus territórios, tomam
todas as medidas adequadas para impedir que causem
danos significativos a outros Estados do curso d’água;
2. Quando, apesar disso, são causados danos a
outros Estados do curso d’água, na ausência de acordo
relativo a esse uso, o Estado causador de tais danos
deverá tomar todas as medidas adequadas, levando
em conta as disposições dos artigos 5º e 6º,
consultando o Estado afetado, para eliminar ou mitigar
esses danos e, quando apropriado, discutir a questão
de indenização.”
Equitativo
não
significa
igual.
Pelo
contrário,
significa que uma grande
variedade de fatores deve
ser
considerada
na
alocação de outorga para a
água.
Os
Estados
determinam o que é justo e
razoável é explicado no
artigo 6 º, que estabelece
uma lista não exaustiva de fatores a serem considerados na determinação de
um uso equitativo e razoável. Esses fatores abrangem duas grandes categorias:
(i) científica, e (ii) econômica.
Uma indicação de como esses fatores devem ser utilizados é encontrada no
artigo 6 (3), que determina que "o peso a ser dado a cada fator é determinado
pela sua importância em comparação com a de outros fatores relevantes. Para
determinar o que é um uso razoável e equitativo, todos os fatores relevantes
devem ser considerados em conjunto e se tirar uma conclusão com base no
conjunto”.
Apesar dos progressos, ainda parece haver muito a ser feito em termos de
encontrar um sistema de prioridades que leve em consideração as demandas
conflitantes dos países (art. 5 º e 6 º da Convenção das Nações Unidas de
1997).
5.6 Obrigações internacionais e implementação nacional / regional
Com o surgimento e a extensão do direito internacional do curso d’água,
começam a surgir questões a respeito do papel desempenhado por esse ramo
do direito na ordem jurídica interna de um Estado, em particular, e da relação
entre o direito internacional e o interno.
Pense nisso
Como termos como “dano significativo” podem ser definidos e medidos (art. 7º)?
Correntes do Direito
45
5
Quadro 5.10 Estudo de caso do Nilo: Transformando o conflito em acordo de cooperação
O Nilo é um recurso vital para os dez países que compartilham a sua bacia (Burundi, República
Democrática do Congo, Egito, Eritreia, Etiópia, Quência, Ruanda, Sudão, Tanzânia e Uganda), e é
especialmente importante para a sobrevivência e desenvolvimento do Egito e do Sudão (estados à
jusante). Além disso, cinco desses dez países estão entre os mais pobres do mundo. Sua bacia afeta
cerca de 300 milhões de pessoas, das quais 160 milhões são diretamente dependentes de sua água.
Os numerosos acordos relacionados à água que foram assinados, principalmente numa base bilateral,
se revelaram insuficientes para criar um ambiente propício e uma estrutura de gestão cooperativa, com
fortes pilares de sustentação. O prolongamento da situação instável e arriscado facilitou a ocorrência de
tensões políticas e conflitos, especialmente em períodos de crise (cheias, escassez de água, incidentes
de poluição).
Com o regime legal do Nilo "permanecendo controverso" após a independência dos estados africanos,
os tratados do Nilo foram objeto de diferentes interpretações, variando de acordo com os interesses dos
países ribeirinhos, exceto o Egito e o Sudão (Acordo assinado entre o Nilo e o Sudão para total
utilização das águas do Nilo, 8 de novembro de 1959).
As instituições de gestão de cursos d’água internacionais foram revitalizadas na Bacia do Nilo, em 1993.
A “Iniciativa da Bacia do Nilo” (IBN) (The Nile Basin Initiative (NBI) foi posteriormente lançada em 1999.
A IBN evoluiu como um sistema de transição regional na pendência do estabelecimento por acordo
quadro de uma estrutura permanente legal e institucional. Suas diretrizes políticas incluem o princípio da
utilização equitativa do Nilo, o desenvolvimento sustentável e a gestão eficiente da água.
Depois de muitas tentativas, o Acordo Quadro de Cooperação da Bacia do Rio Nilo celebrado no 15º
Conselho Ordinário dos Ministros do Nilo responsáveis pelos assuntos à água (Nile-COM), realizado em
junho de 2007, em Entebbe (Uganda), é certamente um “marco” no fortalecimento da Cooperação do
Nilo.
A IBN promove o interesse em cooperação interestatal e tenta limpar abrir o caminho para a ideia de
interdependência otimizada. Para traduzir em ação a visão compartilhada da IBN, um Programa de Ação
Estratégica foi criado para identificar e preparar projetos de cooperação na Bacia. O programa consiste
em dois subprogramas complementares: i) Programa de Visão Compartilhada - Construir de uma
Fundação para Ação Cooperativa, e ii) Programa de Ação Subsidiário - Buscar benefícios mútuos e
investimentos no local nas bases. Os países da Bacia do Nilo partilham os mesmos interesses e seu
desejo é seguir rumo ao futuro, com espírito de uma “comunidade do Nilo".
Fonte: Adaptado de Majzoub, 2008
5
A Corte Internacional de Justiça, no “caso” da Aplicabilidade da Obrigação de
Arbitragem (1988), destacou "o princípio fundamental do direito internacional de
que a lei internacional
prevalece sobre a lei
interna". A regra geral
Quadro 5.11 Impedindo os conflitos de água
no que diz respeito à
As seguintes medidas podem fornecer aos Estados que
compartilham os recursos hídricos do curso d’água que
posição
do
direito
procuram uma orientação para evitar conflitos de água:
interno
no
âmbito
 conscientização e construção de capacitação
internacional é que um
desenvolvimento de capacidades;
Estado
que
tenha
 disseminação de informações;
violado uma obrigação
 avaliação e gestão integradas;
internacional não pode
 parcerias multissetoriais;
se justificar referindo-se
 interesses assumidos de cooperação e
à sua ordem jurídica
interdependência otimizada.
interna. Os Estados
não podem usar as
regras nacionais como
desculpa para fugir à responsabilidade internacional
Os Estados estão, naturalmente, sob a obrigação geral de agir em conformidade
com as normas de direito internacional de curso d’água e assumem a
responsabilidade por violação às mesmas, cometida pelos órgãos legislativos,
46
Correntes do Direito
executivos ou judiciários. Além disso, os tratados internacionais da água podem
impor aos Estados exigências na legislação nacional.41
No entanto, a supremacia do direito
internacional sobre a lei interna não significa
que as disposições da legislação nacional
sejam irrelevantes ou desnecessárias. Pelo
contrário, o papel das normas legais internas é
essencial para o funcionamento da ordem
jurídica internacional. Uma das formas para
entender e conhecer a situação legal de um
Estado em uma variedade de temas
importantes para o direito internacional dos
cursos d’água é examinar as leis nacionais
(ferramentas de planejamento para alocação
de água, licenciamento e controle das vazões
ambientais, normas de qualidade da água,
padrões de qualidade, licenças ambientais, e
legislação de controle de poluição, Avaliação
de Impacto Ambiental.
Perguntas vindas das
bases
Considere as seguintes
perguntas e reveja toda a
experiência em seu país:
 A abordagem do curso
d’água é aplicável no
seu país?
 A Convenção da ONU
de 1997 influenciou os
acordos internacionais
da água ou a legislação
da água no seu país?
 Como um sistema de
prioridades pode levar
em conta as demandas
conflitantes de água
dos Estados?
 Como termos como
"dano significativo"
podem ser definidos e
medidos?
 Quais os critérios de
sucesso para um bom
acordo internacional de
água entre dois ou mais
Estados?
 Como podemos reduzir
os riscos de conflitos
relacionados à água?
Além disso, dentro do mesmo curso d’água
internacional,
os
interesses
nacionais
normalmente diferem, assim os Estados
podem desenvolver políticas divergentes e
planos não compatíveis. Esse é o dilema da
soberania: até que ponto os Estados
ribeirinhos podem desenvolver e utilizar curso
d’água dentro de seus territórios, e em que
medida eles têm que considerar os interesses
dos outros Estados do curso d’água e a
comunidade de interesse do curso d’água
como um todo? Um dos maiores desafios na partilha internacional de cursos
d’água é identificar as estratégias de desenvolvimento em que todos os Estados
ribeirinhos finalmente se beneficiam de uma alocação equitativa dos custos e
benefícios.
Assim, as relações econômicas mutuamente benéficas e justas podem obrigar
aos Estados a se unirem, criando condições em que os antigos antagonistas
reconheçam um interesse mútuo no estabelecimento e na manutenção de um
nível de cooperação. Nesse sentido, os laços econômicos fornecem a base para
que a cooperação surja por meio de processo político e, posteriormente,
institucionalize a cooperação fornecendo aos Estados fortes razões para evitar o
conflito.42
41
Nota de revisão. A complexidade da questão de orientação da CIJ depende da questão preliminar de o
estado considerado infrator aceite sua jurisdição, não sendo uma regra de aplicação direta. Tal questão
sempre dependerá como cada estado dispõe sobre o direito público internacional. Exemplo, no Brasil, a
Constituição Federal estabelece os princípios sobre a matéria de aceitação da norma internacional, não sendo
automática esta aplicação.
No caso dos recursos hídricos, o Brasil compartilha com seus vizinhos setenta e quatro bacias hidrográficas,
além de aquiferos situados no âmbito das bacias hidrográficas, por exemplo, na Bacia do Prata, o Aquifero
Guarani, e na Bacia do Amazonas, o Aquifero Amazonas. Importante salientar que, até o presente, nenhuma
disputa relevante sobre a gestão das águas ultrapassou os limites da cooperação entre estados para a gestão
compartilhada. Na caso da Bacia do Prata, o Comitê de Integração da Bacia do Prata, e no caso da Bacia
Amazônica, a Organização de Cooperação do Tratado da Amazônia.
42
Nota de revisão. As exigências assumidas de modo soberano pelos Estados presumem-se sejam conforme
as suas regras internas que ditam as relações internacionais.
Correntes do Direito
47
5
5.7 Conclusão
Este capítulo mostrou como a estrutura jurídica internacional e institucional
interage com as estruturas legais de nível nacional. Há necessidade de um
mecanismo de cooperação para atingir um rendimento sustentado ótimo dos
cursos d’água internacionais. Os profissionais e gestores de água devem se
envolver nos esforços legais sempre que surjam questões relativas à água, tanto
no contexto nacional quanto no internacional. Para enfrentar os futuros desafios
e evitar a escassez do recurso, uma estrutura institucional e legislativa deve
enfatizar uma abordagem holística e integrada para alcançar o sucesso da
implementação da GIRH.
Um acordo de cursos d’água negociado por todos os Estados ribeirinhos é prérequisito para uma ampla aplicação de GIRH e uma boa governança dos cursos
d’água internacionais. A Convenção das Nações Unidas de 1997 pode servir de
referência, incorporando as orientações para que os Estados de curso d’água
procurem negociar acordo de normas substantivas, de regras processuais, de
mecanismos institucionais e de resolução de conflitos, como previstas na
Convenção de 1997.
Uma nova maneira de pensar sobre a gestão das águas transfronteiriças deve
ser consolidada, a fim de melhor atingir três objetivos estratégicos: eficiência,
equidade e sustentabilidade ambiental, na gestão de cursos d’água
internacionais, apoiadas em uma abordagem racional, integrada e holística.
5
Implementação da GIRH: algumas perguntas
Tendo terminado este capítulo, você está agora pronto para considerar as
seguintes questões colocadas no contexto de seu país, onde a GIRH deve ser
aplicada e implementada:

Qual é a escala geográfica adequada para uma efetividade de aplicação de
GIRH? É uma unidade de bacia hidrográfica ou de curso d’água?

Os acordos atuais de água são favoráveis à GIRH? Como? E se não, por
quê?

Existe um princípio de participação reconhecido como direito em seu país?
Que tipo de mecanismos legais existe para promover a participação em seu
país? Quais são os principais obstáculos para o estabelecimento de uma
abordagem participativa como parte da GIRH?

Quais são os desafios da incorporação de normas substantivas na
implementação da GIRH?
5.8 Leituras sugeridas
Bošnjaković, Branco. Negotiations in the Context of International Water-Related
Agreements. UNESCO–Green Cross International project entitled “From
Potential Conflict to Cooperation Potential (PCCP): Water for Peace”. UNESCO,
Paris, França.
Burchi, Stefano and Mechlem, Kerstin. 2005. Groundwater in international law
Compilation of treaties and other legal instruments. Development Law Service
FAO Legal Office. Food and Agriculture Organization of the United Nations.
Roma, Itália.
48
Correntes do Direito
Malzbender, Daniel; Earle, Anton. The Impact and Implications of the Adoption of
the 1997 UN Watercourse Convention for Countries in Southern Africa. African
Centre for Water Research. Cidade do Cabo, África do Sul.
Leituras sugeridas em português
Soares, Guido F.S. Direito Internacional do Meio Ambiente – Emergências,
Obrigações e Responsabilidades, São Paulo, Atlas, 2001.
Soares, Guido F. S. Curso de Direito Internacional Público, São Paulo, Atlas,
2002.
Silva, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional, São Paulo, Malheiros
Editores, 2003, 4ª edição.
Nascimento e Silva, Geraldo Eulálio. Direito Ambiental Internacional – Meio
Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e os Desafios da Nova Ordem Mundial,
Rio de Janeiro, Thex Editora, 2002, 2ª edição.
Brasil, Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Conjunto de Normas Legais/
Recursos Hídricos, 2009.
5
Correntes do Direito
49
5
50
Correntes do Direito
CAPÍTULO 6
Resolução de Conflitos
Meta
A meta deste capítulo é apresentar as alternativas de abordagens de resolução de
conflitos que podem ser incorporadas nas políticas e práticas de GIRH.
Objetivos de aprendizagem
Ao final desta sessão os participantes

Compreenderão que os conflitos são parte integrante da interação, e nem sempre
precisam ser resolvidos no tribunal;

Terão uma primeira noção sobre duas abordagens alternativas para a resolução de
conflitos: negociação e mediação;

Reconhecerão os papéis básicos, as responsabilidades e os principais passos
necessários para a resolução de conflitos e,

Entenderão as habilidades básicas reforçadas de comunicação para a gestão de
conflitos.
6.1 Introdução
A GIRH é um desafio às práticas convencionais, às atitudes e às certezas
profissionais. A gestão integrada dos recursos hídricos confronta os interesses dos
setores e exige que a água seja gerida de forma holística para o benefício de todos.
Ninguém acha que a realização do desafio da GIRH será fácil, mas é vital para
enfrentar uma crise crescente no setor hídrico.
A implementação da GIRH não exige a criação de novas superestruturas, mas exige
que as pessoas mudem
suas práticas de trabalho e
Quadro 6.1 A implementação da GIRH exige uma
considerem um contexto
abordagem de negociação, pois as pessoas precisam:
mais amplo para suas
 Mudar a atitude de trabalho;
ações, entendendo que
 Considerar um esquema mais amplo e perceber que
elas não ocorrem de forma
suas ações não ocorrem independentemente das
independente das ações
ações dos outros (incluindo usos competitivos da
água);
dos outros. A GIRH visa

Aceitar práticas democráticas descentralizadas;
também à introdução de

Aceitar a participação.
dimensões
A
GIRH
exige duas mudanças enormes:
descentralizadas
nas

Visão
setorial visão integrada
maneiras de gerenciar a

De
cima
para baixo equilíbrio ou acordos entre
água, com ênfase na
setores.
participação dos diversos
grupos de interesse e na
tomada de decisão no
nível mais baixo possível.43
43
Nota de revisão. O princípio de subsidiaridade orienta para que, o que puder ser decidido no nível de gestão de bacia
hidrográfica, não seja elevado para níveis de decisão mais altos no âmbito do Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos – SINGREH – Lei nº 9.433/97.
Correntes do Direito
51
5
Para os objetivos deste capítulo, o entendimento é que as decisões para construir
processos orientados para a GIRH devem se basear em negociações, resultando em
pactos coletivamente assumidos. Uma abordagem de negociação pode permitir o
desenvolvimento de uma visão setorial, no sentido de uma visão integrada, ou a partir
de uma abordagem de cima para baixo para um equilíbrio de baixo para cima de pactos
entre os diversos setores.
6.2 Acordos implícitos e explícitos, pressupostos e problemas no âmbito
da gestão das águas
As práticas de gestão de recursos hídricos são baseadas em negociações a partir de
uma série de acordos assumidos coletivamente:




Políticas de recursos hídricos (estruturas legal e institucional);
Planejamento de recursos hídricos (acesso à informação, “ferramentas de apoio à
tomada de decisão”, equilíbrio de opiniões: especialistas + grupos de interesse);
Processos de intervenção (projetos de infraestrutura);
Resolução de conflitos da água (coordenação);
Em algumas ocasiões, esses pactos (e outros) estão disponíveis na forma de
documentos explícitos; em outros casos, são pressupostos implícitos. Para a execução
da GIRH, o caso é muito mais complexo, pois os princípios e as ferramentas de GIRH
são compostos de pressupostos quanto ao comportamento das sociedades e dos
indivíduos.
1.
2.
3.
4.
5.
Interdependência dos diferentes agentes no setor hídrico
Identificação de problemas comuns (em oposição aos privados ou setoriais)
Disposição para falar e aprender
Busca de soluções sustentáveis (em oposição a ocasionais)
Múltiplas vozes e responsabilidades
Assim que tomamos consciência desses pressupostos, podemos descobrir, na prática,
alguns dos problemas a eles associados:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Captura de espaço de negociação pelos poderosos (áreas política e econômica)
Falta de participação dos muito ricos e dos muito pobres
Exclusões forçadas (alguns grupos são deixados fora da discussão)
Autoexclusões (há coisas melhores para fazer)
Situações não negociáveis
Agendas ocultas
Pense nisso
A GIRH requer da sociedade como um todo uma percepção integrada. Isso é possível?
6.3 A GIRH e a Gestão de Conflitos
Segundo o Relatório das Nações Unidas Sobre o Desenvolvimento dos Recursos
Hídricos (2006), "a Humanidade embarcou num enorme projeto de engenharia ecológica
global, com pouco ou nenhum conceito anteriormente definido, ou sequer com
conhecimento total, das suas consequências. No setor hídrico, garantir o abastecimento
confiável e seguro de água para a saúde e para os alimentos, as necessidades dos
52
Correntes do Direito
processos de produção
industrial e de energia, e o
desenvolvimento
de
mercados de direitos à terra
e
à
água
alteraram
enormemente
a
ordem
natural de muitos rios em
todo o mundo”.
Quadro 6.2 Conflito:
O conflito está presente quando duas ou mais partes
percebem que seus interesses são incompatíveis,
expressam atitudes hostis ou perseguem seus
interesses por meio de ações que prejudicam as outras
partes. Os interesses podem divergir a respeito de:
 Acesso aos recursos e sua distribuição (por
exemplo, território, dinheiro, fonte de energia,
alimentos)
 Controle de poder e participação em tomadas de
decisão ligadas a políticas;
 Identidade (cultural, social e políticas das
comunidades); e
 Situações, particularmente as incorporadas em
sistemas de governo, religião ou ideologia
(Schmid, 1998).
A necessidade de mudança
é inegável. Com ela vem o
desafio, e com o desafio
vem as ameaças mesmo e
as
oportunidades.
Há
ameaças ao poder e ao
poder do povo e ameaças à
sua
identidade
como
profissionais.
A
GIRH

requer
que
sejam
desenvolvidas plataformas
que permitam que grupos
de interesse muito diversos,
com diferenças muitas vezes aparentemente irreconciliáveis, de alguma forma
trabalhem juntos.
A Associação Mundial pela Água (em inglês GWP - Global Water Partnership) (GWP,
2000) define a GIRH como um desafio às práticas, atitudes e certezas profissionais
convencionais. Ela confronta os interesses setoriais entrincheirados e exige que o
recurso hídrico seja gerido de forma holística para o benefício de todos. Ninguém está
iludindo, dizendo que enfrentar o desafio de GIRH será fácil, mas é vital que se
comece agora para evitar a crise crescente.
O conflito pode ser difícil, mas não é, necessariamente, um processo destrutivo. O
conflito desempenha um papel positivo se tivermos a necessária habilidade para criar a
sinergia para o bem estar de todas as partes em conflito. Não existem técnicas
específicas adaptadas, formais e informais, para gerir conflitos, embora as técnicas
sejam baseadas na intuição, na lógica e nas artes da substituição.44
6.4 Resolução de conflitos: mapa da situação, papéis & responsabilidades
Em qualquer conflito, é importante abordar as seguintes questões como parte do
processo de compreensão da situação e de decisão quanto à melhor abordagem do
conflito:
44
Nota de revisão. As regras principais para a solução de conflitos, no caso do Brasil, encontram nos documentos que
regem a gestão das águas, desde a Lei nº 9.433/97 ao Regimento Interno dos Comitês de Bacia. Nesse âmbito, a prática
de resolução de conflitos compreende também regras não escritas nos pactos assumidos durante as negociações entre
as partes.
Correntes do Direito
53
5
Quadro 6.3. Perguntas para o mapeamento de conflitos
Fonte: LA-WETnet, CentroAgua (2005)
Encontrar respostas para as perguntas acima não é tão fácil e simples como
desejaríamos. No âmbito da GIRH, identificar os grupos de interesse é fundamental. Se
alguém aborda um conflito com a mentalidade setorial, as chances de começar com o
pé esquerdo são grandes. Da mesma forma, os aspectos técnicos e os contextos legais
e institucionais exigem um enfoque multidimensional quando abordados de uma
perspectiva de resolução de GIRH. Diversas habilidades e disciplinas podem ser
necessárias para a compreensão profunda e o diagnóstico do caso.
Compreender os temas de conflito requer que se tenham identificado necessidades,
interesses e posições. O processo de compreensão da situação já faz parte do processo
de resolução.
Ferramenta Cebola
Fonte: Cap-Net (2008)
Também é essencial ter uma compreensão clara dos diferentes papéis e
responsabilidades de todos os que estão e estarão envolvidos no processo de resolução
de conflitos:
54
Correntes do Direito
Quadro 6.4. Papéis e responsabilidades
Fonte: LA-WETnet, CentroAgua (2005)
6.5 Resolução Alternativa de Conflito (RAC)
Para superar as limitações dos processos judiciais (por exemplo, custos elevados,
processos muito demorados, muitas vezes levando a resultados em que se ganha ou
perde tudo), as técnicas de resolução alternativa de conflitos (RAC - em inglês
Alternative Dispute Resolution (ADR) são frequentemente aplicadas, com sucesso,
em vários países. As técnicas de RAC com ênfase na busca de resultados
consensuais são comparáveis às práticas de muitas sociedades tradicionais. Vamos
revisá-las rapidamente.
 Negociação
A negociação é um processo no qual as partes em conflito se reúnem para alcançar
a uma solução aceita por ambas. Não existe facilitação ou mediação por um
terceiro: cada parte representa o próprio interesse. Os grandes conflitos sobre as
políticas públicas são cada vez mais resolvidos por meio de processos com base na
mediação e na negociação, comumente referidos como regra negociada ou
negociação regulatória. Os representantes dos grupos de interesse são convidados
a participar das negociações para chegar a um acordo sobre as novas regras que
regem questões como as normas de segurança industrial e de poluição ambiental
de repositores de lixo.
 Facilitação
A facilitação é um processo em que uma pessoa imparcial participa na concepção e
condução das reuniões de resolução de problemas para ajudar as partes a
diagnosticar, criar e executar soluções em conjunto. Esse processo é
frequentemente usado em situações que envolvem várias partes, questões e grupos
de interesse, e onde as questões não estão claras. Os facilitadores criam condições
em que todos podem falar livremente, mas eles mesmos não expõem suas ideias
nem participam ativamente na condução do acordo entre as partes. A facilitação
pode ser o primeiro passo na identificação de um processo de resolução de
conflitos.
Correntes do Direito
55
5
O facilitador:








Auxilia na concepção da reunião.
Ajuda a manter a reunião no rumo certo.
Esclarece e aceita a comunicação das partes na negociação.
Aceita e reconhece sentimentos.
Enquadra um problema de forma construtiva.
Sugere procedimentos para se chegar a um acordo.
Resume e esclarece a direção.
Engaja-se em testes de consenso em momentos apropriados.
Um bom facilitador também não julga nem critica, não impõe sua próprias ideias;
não toma, sem consulta, decisões importantes quanto a procedimentos, nem toma
o tempo do grupo fazendo longos comentários.
 Mediação
A mediação é um processo de resolução de conflitos em que uma parte externa
supervisiona a negociação entre os litigantes, que escolhem um mediador aceitável
para orientá-los na concepção de um processo e para chegar a um acordo com
uma solução aceita por ambos. O mediador tenta criar um ambiente seguro onde os
litigantes partilhem informações, resolvam problemas subjacentes e descarreguem
emoções. É mais formal do que a facilitação e as partes muitas vezes partilham os
custos da mediação. É útil quando há um impasse.
A mediação é flexível, informal, confidencial e não impositiva. O mediador não tem
interesse direto no conflito nem em seu resultado, não tem poder para emitir
decisões. Ele procura alternativas com base nos fatos e méritos do caso.
Um mediador eficiente terá a maioria das características seguintes:
 Habilidade







56
para
criar confiança;
Quadro 6.5. Prevenção de conflitos antes que
Habilidade
para
comecem: Construção de consenso/Abordagem
definir questões no
dos Grupo de Interesse
cerne do conflito;
É geralmente aceito entre os especialistas de água que a
Paciência,
participação dos grupos de interesse é fundamental para a
resistência,
utilização e a gestão sustentável dos recursos. As técnicas de
perseverança;
resolução de conflitos são geralmente empregadas depois do
surgimento de um conflito. No entanto, antecipar as formas de
Consideração,
um conflito futuro é um elemento importante de resolução de
empatia,
conflitos em si. No contexto de uma bacia hidrográfica, onde os
conflitos aparecem de tempos em tempos, é útil abrir espaço a
flexibilidade;
essas questões por meio da criação de um ambiente em que
Bom
senso,
os grupos de interesse possam se encontrar regularmente e
racionalidade;
conversar sobre interesses, necessidades e posições. Embora
não existam metodologias uniformes para a realização do
Muitas vezes uma
processo, o importante é criar um ambiente favorável, em que
personalidade
os grupos de interesse consigam participar ativamente nos
agradável;
diálogos relativos à política e nos processos de planejamento e
concepção posteriores.45
Deixa
perceber
.
que tem muita
experiência e
Neutralidade,
imparcialidade,
habilidade de resolver problemas, criatividade, ponderação.
Correntes do Direito
A mediação e os estilos de facilitação podem variar de ativo e interveniente a
passivo. Em qualquer caso, para ser eficiente o mediador deve: i) estar disposto e
apto a utilizar conhecimento especializado e/ou usar ferramentas de apoio à decisão,
ii) reunir-se com as partes prejudicadas em conjunto e separadamente, e III) suscitar
ideias de ambos os lados. O mediador eficiente concentra-se sobre o futuro sem
esquecer o passado.
45
 Arbitragem
A arbitragem é normalmente usada como uma alternativa menos formal para o
conflito, em que uma parte externa neutra ou um painel reúne-se com as partes em
conflito, ouve as apresentações de cada lado e emite a decisão. Essa decisão pode
ser impositiva ou não, conforme os acordos entre as partes antes do início formal
das audiências. As partes escolhem o árbitro através de consenso e podem definir
as regras que rejam o processo.
A arbitragem é frequentemente utilizada no mundo dos negócios e nos casos em
que as partes desejam uma solução rápida para seus problemas.
6.6 As habilidades de comunicação como elementos facilitadores nos
conflitos
A negociação é um processo de comunicação, em que se pende para um lado e para
o outro, com o objetivo de chegar a uma decisão conjunta. Há três problemas típicos
para a realização de uma comunicação eficiente.
Primeiro, as partes num conflito podem não estar se falando, nem estão dispostas a
fazê-lo. Em segundo lugar, mesmo se estão se falando, podem não ouvir o que a
outra está tentando comunicar, talvez porque já tenham se decidido quanto à outra
parte e quanto às suas intenções. Terceiro, mesmo quando há relativa harmonia entre
as partes, pode surgir um conflito difícil de resolver porque há um mal entendido geral,
por exemplo, sobre os motivos que levaram uma das partes à ação.
Um comunicador eficiente é um ouvinte ativo. Ele não está simplesmente "esperando
para falar”, mas está comprometido com o que a outra parte está dizendo. Em algumas
culturas isso é difícil de demonstrar - por exemplo, quando o contato visual é
considerado agressivo e/ou descortês, ou quando falar com franqueza e/ou contradizer
a outra parte no conflito é considerado comportamento rude. No entanto, um
comunicador eficiente fala com clareza e precisão. Ele também demonstra
compreensão e busca clareza de percepção
Um comunicador eficiente constantemente reformula as suas posições e as da outra
parte, num esforço para otimizar as opções para se chegar a um resultado positivo para
ambas as partes. Também utiliza questões abertas que dão espaço à elaboração e à
digressão, mas vai usar perguntas diretas como "Por que isso é importante para você?"
ao tentar descobrir os interesses e as necessidades que estão por trás de uma
determinada posição.
É Importante mencionar que o comunicador eficiente separa a pessoa do problema.
Entre outras coisas, o mediador/facilitador procura descobrir interesses entre as partes
45
Nota de revisão. As regras principais para a solução de conflitos, no caso do Brasil, encontram nos documentos que
regem a gestão das águas, desde a Lei nº 9.433/97 ao Regimento Interno dos Comitês de Bacia. Nesse âmbito, a prática
de resolução de conflitos compreende também regras não escritas nos pactos assumidos durante as negociações entre
as partes.
Correntes do Direito
57
5
que possam de fato ser compatíveis. Uma vez revelados, os interesses podem ser
misturados (as partes partilham alguns interesses, mas diferem fundamentalmente em
algum outro ponto), mutuamente exclusivos, ou compatíveis. É este último tipo de
interesse que desejamos mostrar e o que vamos desenvolver. Por exemplo, quando os
agentes podem ser pegos numa discussão quanto ao posicionamento "barragem/não
barragem”, o interesse comum subjacente pode ser, de fato, um abastecimento de água
previsível para a produção de alimentos.
6.7 Exigências para uma resolução de conflitos bem sucedida
As técnicas discutidas acima precisam preencher determinadas condições para obter
bons resultados. Algumas delas são:
 Disposição de participar
Os participantes devem ser livres para decidir quando participar e quando se retirar
de um processo de resolução de conflitos. Devem definir a agenda e o método a ser
seguido no processo. Porém, é impossível até mesmo concordar em discutir um
problema se uma das partes mantém uma posição ou sistema de valores
profundamente enraizados.
 Oportunidade de ganho mútuo
Vinculada ao exposto acima está a exigência de oportunidades de ganho mútuo. A
chave para o sucesso da resolução de conflitos é a probabilidade de que as partes
litigantes fiquem melhor usando uma ação cooperativa. Se uma ou ambas acredita
que pode conseguir um resultado melhor por meio de uma ação unilateral, não
estarão dispostas a participar do processo.
 Oportunidade de participação
Para uma resolução de conflitos bem sucedida, todos os grupos de interesse devem
ter a oportunidade de participar no processo. A exclusão de uma parte não somente
é injusta, mas também arriscada, porque ela pode obstruir a aplicação dos
resultados por meios legais ou extrajudiciais.
 Identificação de interesses
Ao trabalhar para se chegar a um consenso, é importante identificar interesses e
não posições. As partes em conflito muitas vezes se envolvem numa negociação de
posicionamento sem ouvir os interesses das outras partes, o que cria um confronto
e uma barreira ao consenso.
 Desenvolvendo opções
Uma parte importante de um processo de resolução de conflitos é o
desenvolvimento neutro de possíveis soluções e opções. Uma terceira parte
imparcial pode ser um grande trunfo para o processo, pois pode apresentar ideias e
sugestões a partir de uma perspectiva neutra.
 Realizando um acordo
A questão deve ser possível de ser resolvida por meio de um processo participativo
e as próprias partes também devem ser capazes de realizar um acordo.
6.8 Conclusão
A GIRH fornece uma estrutura sólida para o uso da água ecologicamente sustentável,
socialmente justo e economicamente eficiente. Hoje, mais de 154 países ao redor do
58
Correntes do Direito
mundo estão em processo de reforma quanto ao uso da água e das práticas de gestão
em conformidade com os princípios de GIRH. O principal desafio é transformar os
conflitos inevitáveis que surgem em resultados produtivos, positivos para ambas as
partes, que trarão ganhos a longo prazo (Cap-Net: 2008).
Os gestores da água que trabalham nos termos da GIRH devem ser realistas sobre a
complexidade do processo e a existência de conflitos potenciais e atuais. A estrutura
legal tem uma grande relevância nesse campo. Idealmente, deveria facilitar o processo,
mas também é conhecido por causar conflitos, devido a questões não previstas e ao
espaço deixado para a interpretação da lei. A abordagem "integrada" pede
competências específicas para resolução de conflitos.
Implementação da GIRH: algumas perguntas
Considere qualquer conflito que você conhece em seu país ou região e utilize as
seguintes perguntas para analisá-lo:
















Qual é a extensão do conflito?
Há quanto tempo existe?
Como começou?
Qual é a causa raiz subjacente?
Sobre o que é o conflito?
Quem são os causadores?
Quem são os envolvidos?
Até que ponto você foi na tentativa de resolver o conflito?
Houve alguma consulta?
Quem deveríamos envolver na resolução do problema?
Até que ponto essas questões devem ser resolvidas?
Quais são as linhas da autoridade formal?
As autoridades ajudaram ou atrapalharam o processo?
Que direito você tem de utilizar o recurso?
Houve outros conflitos assim?
Quando acontecem conflitos assim, a quem você se dirige para resolvê-los?
5
Fonte: Cap-Net (2008).
6.9 Leituras sugeridas
Sergei Vinogradov, Patricia Wouters, e Patricia Jones. Transforming Potential Conflict
Into Cooperation Potential: The Role Of International Water Law. UNESCO–Green
Cross International project entitled “From Potential Conflict to Cooperation Potential
(PCCP): Water for Peace”. UNESCO, Paris, França.
Nandalal, K. D. W.; Slobodan P. Simonovic. State-of-the-Art Report on Systems Analysis
Methods for Resolution of Conflicts in Water Resources Management. UNESCO–Green
Cross International project entitled “From Potential Conflict to Cooperation Potential
(PCCP): Water for Peace”. UNESCO, Paris, França.
Correntes do Direito
59
Capítulo 7
Governança da Água e Instituições
Meta
A meta deste capítulo é apresentar a relação entre o direito e o papel da
governança e das instituições para a implementação da GIRH.
Objetivos de Aprendizagem:
Ao final desta sessão os participantes:
 Saberão quais são os elementos da governança efetiva para a GIRH;
 Compreenderão o papel da governança e das instituições na implementação
da GIRH;
 Compreenderão a relação entre direito, governança e instituições para a
GIRH.
7.1 Introdução
Este capítulo apresenta o conceito de governança da água e seu papel na
implementação da GIRH. As questões aqui levantadas incluem os elementos
centrais para uma boa governança da água, assim como as questões
importantes a serem consideradas na elaboração de uma estrutura institucional.
São mostradas as lições aprendidas a partir de exemplos extraídos de diferentes
partes do mundo, visando ilustrar questões práticas em torno do conceito de
governança da água.
De acordo com o PNUD, a governança da água se refere à ampla gama de
sistemas políticos, sociais, ambientais, econômicos e administrativos que estão
em vigor para regular o desenvolvimento e a gestão dos recursos hídricos e a
prestação de serviços de água em diferentes níveis da sociedade (PNUD, 2005).
As leis e as instituições em diferentes níveis de gestão da água são parte
essencial da estrutura da governança. As leis definem os direitos, os papéis e as
responsabilidades em vários níveis - entre estados soberanos, entre os
indivíduos e os estados, e entre diferentes indivíduos. As leis transformam as
políticas em sistemas aplicáveis de direitos e deveres, e para que elas sejam
implementadas e cumpridas, as instituições são necessárias. Apenas quando
um quadro legal efetivo é implementado e aplicado por instituições em efetivo
funcionamento, os dois componentes podem contribuir de modo significativo
para a GIRH.
As decisões sobre gestão da água são tomadas dentro dos sistemas de
governança em diferentes níveis, internacional, nacional e local. A efetiva
implementação da GIRH deve considerar esses níveis e neles se realizar. Uma
profunda compreensão da natureza complexa do direito e das instituições, bem
como seus papéis e funções na GIRH é essencial para os gestores da água e
para os grupos de interesse. O papel da governança efetiva da água na
implementação da GIRH é proporcionar um ambiente propício para, entre outras
coisas, a tomada de decisões, o controle e a regulação, e a resolução de
conflitos.
60
Correntes do Direito
7.2 A gestão da água nas bases: as dimensões da governança da
água
Como a GIRH estava firmemente estabelecida como o novo paradigma para
enfrentar os desafios da água, a abordagem das questões da "governança" se
tornou cada vez mais relevante. Isso ocorre em parte porque a passagem para a
GIRH é uma mudança do desenvolvimento da água para a governança e
significa o reconhecimento
do fato de que há muitos
Quadro 7.1: Quatro dimensões da governança da água
A dimensão social aponta para a justa distribuição dos
interesses que competem
recursos hídricos. Além de ser distribuída desigualmente no
no modo como a água está
tempo e no espaço, a água também é desigualmente
sendo usada e alocada
distribuída entre vários estratos socioeconômicos da sociedade
nos assentamentos rurais e urbanos.
(Gupta, J.; Leendertse, K.:
A dimensão econômica chama a atenção para o uso eficiente
2005). A GIRH considera
dos recursos hídricos e o papel da água no crescimento
também outros aspectos
econômico como um todo.
de gestão como a
A dimensão do empoderamento político aponta para
participação, as práticas,
concessão de água aos grupos de interesse e aos cidadãos
em oportunidades democráticas iguais para influenciar e
do costume e vários
monitorar os processos políticos e os resultados. Nos níveis
aspectos relacionados à
internacional e nacional, os cidadãos marginalizados, tais
como os povos indígenas, as mulheres, os moradores de
cultura.
favelas, etc, raramente são reconhecidos como grupos de
A desagregação do
interesse legítimos na tomada de decisões relativas à água, e
conceito foi resumida em
faltam vozes, instituições e capacidades para promover no
mundo exterior seus interesses quanto à água .
quatro dimensões: social,
A dimensão da sustentabilidade ambiental mostra que uma
econômica, política e
governança aperfeiçoada permite intensificar o uso sustentável
ambiental, como mostrado
dos recursos e a integridade do ecossistema.
46
no quadro 7.1 .
Fonte: Relatório das Nações Unidas Sobre o Desenvolvimento dos
Recursos Hídricos 2006
5
7.3 Princípios de uma
governança efetiva da água
Esta seção discute alguns dos principais elementos essenciais para a efetiva
governança da água em qualquer escala.
Fonte:
Relatório
das
Nações
Unidas
Sobre
o
 Transparência
Desenvolvimento dos Recursos Hídricos 2006
A transparência compreende todos os meios que facilitem o acesso dos
cidadãos à informação e sua compreensão dos mecanismos de tomada de
decisão. A transparência no setor público começa com a clara aplicação de
padrões e o acesso à informação (PNUD, 2004). É fundamental garantir a
transparência, a integridade, a responsabilidade e a prestação de contas na
GIRH para a criação de uma estrutura de gestão pacífica e segura para a
sua implementação.
 Responsabilidade e prestação de contas
Uma boa governança e instituições sustentáveis desempenham um grande
papel na promoção da responsabilidade e da prestação de contas.
Responsabilidade e Prestação de Contas são como responder por suas
ações. Exige a capacidade dos cidadãos, das organizações da sociedade
civil e do setor privado de avaliar líderes, instituições públicas e governos e
46
Vimos no Capítulo 1uma outra definição de governança da água: "Governança implica a capacidade de
construir e implementar políticas adequadas. Essas capacidades são o resultado de um consenso
estabelecido, tendo elaborado sistemas de gestão coerentes (regimes baseados em instituições, leis, fatores
culturais, conhecimento e práticas), bem como a administração adequada dos sistemas (baseada na
Source:de
UN
World Water(Peña,
Development
ReportM.:
2006
participação e aceitação sociais), e o desenvolvimento
capacidades"
H.; Solanes,
2003). Ambas
as definições são compatíveis e complementares para apresentar esse conceito amplo que se propõe a refletir
o processo dinâmico e multinível da gestão da água.
Correntes do Direito
61
responsabilizá-los por suas ações (UK Department for International
Development – DFID – Departamento para o Desenvolvimento Internacional
– Governo do Reino Unido, 2006). Estruturas institucionais responsáveis são
necessárias para realizar os multifacetados desafios da gestão sustentável
da água na implementação da GIRH. O exemplo de Porto Alegre, Brasil,
Quadro 7.4 demonstra a responsabilidade na prestação de serviços de
distribuição de água.
 Estudo de caso: Porto Alegre, Brasil
Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, tem uma
das menores taxas de mortalidade infantil no país (14 óbitos por mil
nascidos vivos em um país onde a média nacional é de 65) e um índice de
desenvolvimento humano comparável ao dos países ricos. Uma efetiva
governança municipal no abastecimento de água e saneamento tem
desempenhado um grande papel nessa história de sucesso.
Os fornecedores municipais de água têm conseguido acesso universal à
água. Os preços para a água - 0,30 de dólar por litro - estão entre os mais
baixos no país. Os indicadores de eficiência são semelhantes aos das
melhores empresas privadas do mundo. A proporção de funcionários para
ligações domiciliares, um indicador de eficiência amplamente utilizado, é
3:1.000. Essa proporção é de 20 para Déli, Índia, e 5 para as empresas
privadas, em Manila, Filipinas. As condições de operação do Departamento
Municipal de Água e Esgoto de propriedade exclusiva do município de Porto
Alegre ajudam a explicar o sucesso:



Uma entidade jurídica distinta - goza de autonomia operacional e
financeira.
Não recebe subsídios e é financeiramente autossuficiente (seus
recursos têm finalidade definida).
Financeiramente independente – pode contrair empréstimos para
investimento, sem apoio municipal.
O mandato de
funcionamento
conjuga os objetivos
sociais e comerciais. A
empresa
concessionária segue
uma política de não
dividendo: todos os
lucros são reinvestidos
no sistema. Sua
isenção fiscal permite
manter baixos os
tributos de água.
Exige-se o
investimento de pelo
menos 1/4 de sua
receita anual em
infraestrutura hídrica.
Quadro 7.2 A corrupção ameaça o desenvolvimento e a
sustentabilidade.
A corrupção no setor da água é uma das causas de base e
um catalisador para a crise da água que ameaça milhares de
vidas e agrava a degradação ambiental. O seu impacto na
gestão da água é um problema fundamental de governança,
ainda que não seja suficientemente abordado nas muitas
iniciativas de política global para a sustentabilidade
ambiental, de desenvolvimento, de segurança alimentar e
energética
Quando ocorre a corrupção, o custo de conectar um lar a
uma rede de água aumenta até 30%, elevando o preço para
alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para o
saneamento de água pelo surpreendente valor de US $ 48
bilhões. A corrupção na gestão de recursos hídricos
compromete a sustentabilidade do abastecimento de água, e
encoraja a partilha desigual do recurso, que pode incitar o
conflito político pela água e promover a degradação dos
ecossistemas vitais.
Fonte:PNUD 2006 (de Viero 2003 e Maltz 2005)
62
Correntes do Direito
Por conseguinte, a falta de transparência,
de integridade e de responsabilidade e de
prestação de contas abre uma porta para
a corrupção e dificulta o alcance das
metas de GIRH. Além disso, a falta de
transparência, de responsabilidade e de
prestação de contas põe em questão a
legitimidade das decisões e também dos
órgãos do governo afins. A corrupção mina
os esforços dos países para implementar
paulatinamente os princípios da GIRH,
trabalhar no sentido de alcançar os
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM) e alimenta o aumento nos níveis de
pobreza.
Perguntas sobre o lugar de
onde você vem
 Você consegue identificar
exemplos onde a falta de
transparência, de
integridade e de
responsabilidade e
prestação de contas tenha
dificultado a aplicação dos
princípios de GIRH?
 O que causa o fracasso da
responsabilidade e
prestação de contas na
governança da água?
Num esforço para combater a corrupção e promover a boa governança o
Relatório Global sobre Corrupção (Global Corruption Report) de 2008
(Transparency International, TI, 2008) fornece as seguintes recomendações
principais:
 Estabelecer a transparência e a abordagens participativas como
princípios orientadores para todos os aspectos de governança da água
 Reforçar a supervisão regulatória
 Garantir a concorrência leal e a implementação responsável com
prestação de contas dos projetos de água.
 Participação
A GIRH só pode ser bem sucedida se todos os grupos de interesse puderem
se envolver plenamente, incluindo os grupos marginalizados e os pobres em
recursos. A fim de promover uma governança responsável da água, os
governos devem apoiar a participação de todos os grupos de interesse, que
são frequentemente excluídos, se não houver os requisitos legais para
engajá-los no processo de gestão. A legislação precisa conceder às
comunidades e outros grupos de interesse o direito de se envolver no
processo de gestão da água e incentivar as instituições estatutárias a lhes
fornecer incentivos à participação e acesso à informação para uma
compreensão profunda da situação.
Uma participação significativa de todos os grupos de interesse pode ser
realizada através do reconhecimento legal desses grupos em todos os
níveis. Em Gana, a principal estratégia a nível nacional é garantir um bom
relacionamento entre os grupos de interesse e trabalhar de forma
participativa, envolvendo-os todos, incluindo as comunidades locais no nível
da bacia hidrográfica (al-Ankomah Opoku al, 2006). A nível nacional, as
instituições são encarregadas da formulação de políticas e do planejamento
do desenvolvimento nacional e do planejamento dos recursos hídricos.
Os outros grupos de interesse são agrupados em planejamento de recursos,
usuários de água, agências reguladoras e representação dos cidadãos. A
estrutura institucional apresentada acima mostra um claro reconhecimento e
a incorporação do papel das ONGs (reconhecendo a importância de grupos
não governamentais, e questões importantes para o desenvolvimento como
a redução da pobreza); representante das mulheres (claramente
Correntes do Direito
63
5
incorporando o equilíbrio entre os sexos e uma abordagem da perspectiva
de gênero para a GIRH); e os representantes titulares (reconhecendo e
incorporando as práticas habituais e seu valor para os usuários da água e a
governança da água).
Estrutura Institucional Nacional para a Gestão dos Recursos Hídricos – Gana
Fonte: Opoku-Ankomah et al (2006)
Uma participação significativa também pode ser alcançada mediante a garantia
de que as políticas e as ações são coerentes e integradas, o que pode exigir
uma estratégia multissetorial com um elevado nível de adesão dos grupos de
interesse. O objetivo específico deveria ser a concepção de estratégias e de
políticas efetivas de intervenção que melhorem o bem estar das pessoas e dos
ecossistemas. A coerência implica liderança política e forte responsabilidade por
parte das instituições em diferentes níveis para assegurar uma abordagem
consistente dentro de um sistema complexo.
A integração das instituições de governança em todos os níveis e esferas é parte
integrante da boa governança da água. A integração aqui se refere à
coordenação e à colaboração entre as instituições de governança. A integração
horizontal se refere ao processo de alinhamento dos planos e programas das
diferentes partes em relação às questões da água. Trata-se de racionalizar os
princípios de GIRH em todos os ministérios e departamentos e de garantir que
isto seja levado em conta em todas as áreas de planejamento. A integração
vertical se refere à coordenação e à colaboração entre os diferentes
níveis/esferas de governo. Isso é importante para alinhar as estratégias, planos
e políticas com a demanda dos recursos hídricos disponíveis e para o
desenvolvimento econômico sólido (Governos Locais pela Sustentabilidade –
Local Governments for Sustainability – ICLEI, 2007).
64
Correntes do Direito
Na África do Sul, os departamentos governamentais a nível nacional (na África
do Sul um departamento é o que em outros países se chama Ministério)
desenvolveram estratégias nacionais para diferentes setores, formando a base
para a implementação da política do governo. Assim, as estratégias do setor
precisam ser alinhadas a fim de assegurar uma implementação eficiente em
todos os setores. A estratégia para o setor da água é a Estratégia Nacional de
Recursos Hídricos (em inglês National Water Resources Strategy – NWRS), que
constitui, assim, um componente importante do quadro de planejamento
nacional.
O Quadro 7.3, abaixo, mostra as muitas interações previstas e exigidas pela
Política Nacional de Água da África do Sul.
Quadro 7.3: Interfaces institucionais entre diferentes esferas de governo na África do
Sul
A Seção 8 da Política Nacional de Água exige o desenvolvimento de Estratégias de Gestão de Captação
(em inglês Catchment Management Strategies, CMSs) para cada Área de Gestão da Água. A Seção 9 (f)
estipula que as estratégias “levem em conta quaisquer planos relevantes nacionais ou regionais
preparados em termos de qualquer outra lei, inclusive qualquer plano de desenvolvimento adotado nos
termos da Política de Serviços da Água, 1997 (Act No. 108 , de 1997)”. Assim, o CMS precisa estar
alinhado com outras estratégias de desenvolvimento a nível nacional ou regional ; por exemplo, com as
Estratégias de Desenvolvimento das Províncias (em inglês Provincial Development Strategies) ou tornarse parte integrante delas.
5
Na esfera de governo local, a Seção 9 (f) do NWA é relevante para a integração dos Planos de
Desenvolvimento dos serviços de Água (Water Services Development Plans) nos Planos Integrados de
Desenvolvimento (IDPs) que os municípios devem preparar nos termos da Política de Sistemas
Municipais (Nº 32 de 2000). Todos os municípios metropolitanos e distritais , todos designados como
autoridade de serviços hídricos , e qualquer municipalidade local autorizada como autoridade de
serviços de água , deve preparar projetos de desenvolvimento de serviços de água nos termos do WSA
(Department of Water Affairs and Forestry – South África - DWAF, 2004).Um projeto de desenvolvimento
de serviços de água será a principal fonte de informação de uma autoridade responsável para obter as
informações necessárias para a alocação para uma municipalidade e a concessão de licença. As
exigências do projeto devem ser preenchidas na respectiva CMS. Por sua vez, quando preparar seu
projeto de desenvolvimento de serviços de água, a autarquia de serviços de água deve se referir à
estratégia de gestão de captação pertinente para obter informações sobre a disponibilidade de água
para atingir as metas propostas para o serviço, a fonte da água e as exigências para as águas residuais
que devem ser devolvidas para o recurso hídrico depois do uso. (DWAF, 2004).
Fonte: DWAF, 2004
Correntes do Direito
65
 Acesso à justiça
A governança efetiva da água que promove os princípios da GIRH deve
fornecer uma estrutura em que todos tenham acesso à água e isso possa
ser materializado por meio do acesso à justiça. O acesso à justiça exige
uma estrutura legal efetiva e instituições em funcionamento para que isso se
realize.
 Pronto atendimento
O pronto atendimento "se refere a como os líderes e as organizações
públicas consideram as necessidades dos cidadãos e defendem seus
direitos" (DFID 2006). O centro de uma agenda de resposta imediata é o
desenvolvimento de meios para que as pessoas articulem as suas opiniões
e necessidades. O pronto atendimento do governo aos cidadãos a respeito
da água inclui articular o direito à água (e avançar em direção); a equidade
no desenvolvimento dos serviços de água, incluindo a preocupação com os
direitos e o acesso das mulheres; fazer políticas pró-pobre e implementá-las;
e a integridade dos funcionários públicos no cumprimento de seus papéis e
responsabilidades para com os cidadãos. A agenda da governança da água
abordando o pronto atendimento poderia incluir (DFID: 2006) os direitos
humanos, a igualdade de gênero, as políticas pró-pobres, o combate à
corrupção e integridade, e a igualdade regulatória.
7.4 O Papel da Governança na implementação da GIRH
A governança da água evolui ao longo do tempo, podendo se tornar mais forte
ou mais fraca e, como resultado, necessita de reformas contínuas e periódicas.
Vamos, então, examinar superficialmente o papel da governança na
implementação da GIRH. A governança e as instituições oferecem um ambiente
propício para fornecer o seguinte (lista não exaustiva):
66
Correntes do Direito
 Legislação primária e
secundária
As instituições, as leis
e os regulamentos
fornecem as regras
relativas à gestão dos
recursos hídricos.
Tanto no direito
nacional, quanto no
direito internacional, as
disposições relativas
ao uso da água, aos
padrões de qualidade,
ao monitoramento da
qualidade da água, a
troca de dados sobre
qualidade da água,
etc. precisam ser um
componente padrão da
legislação aplicável
(Jaspers, 2005).
Quadro 7.5:Governança da Água na Região da SADC
O instrumento fundamental do direito internacional da água na
Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) é o
Protocolo Revisto sobre Cursos de Água Compartilhados,
assinado pelos estados-membros da CDSA /SADC em 2000,
que entrou em vigor em 2003. O Protocolo funciona como uma
estrutura para todos os acordos sobre cursos de água a serem
concluídos na região da CDSA / SADC, e afirma que "os
Estados de curso d’água podem celebrar acordos, que
apliquem as disposições do presente Protocolo às
características e usos de um curso d’água compartilhado em
particular ou de parte dele".
No plano institucional, as instituições da CDSA / SADC têm
para monitorar funções em relação à aplicação do Protocolo da
CDSA / SADC, e para facilitar a harmonização do direito e da
política da água entre os estados membros da CDSA / SADC.
As instituições da CDSA não estão implicadas com a
implementação e aplicação dos acordos sobre a bacia como
um todo. Isso é feito por instituições internacionais
(compartilhadas) e por instituições nacionais dos países que
fazem parte do acordo à nível da bacia (ver estudo de caso
acima). Até esta data, a maior parte dos Comitês ou
Comissões de Bacias Hidrográficas estabelecidos na região
desempenham papel consultivo. Isso pode mudar com o tempo
e eles podem vir a ser autorizados a gerenciar de forma
independente as bacias hidrográficas.
A governança dos
Assim, as instituições da CDSA / SADC não estão diretamente
recursos hídricos na
envolvidas no nível local de implementação da GIRH. No
região da CDSA /
entanto, como discutido anteriormente, a GIRH a nível local
está inserida numa estrutura nacional e internacional de leis e
SADC é gerida no
instituições. As diversas instituições da CDSA / SADC, bem
âmbito do protocolo
como as instituições internacionais, como as Comissões de
revisto da CDSA /
Bacias Hidrográficas são importantes componentes dessa
estrutura geral.
SADC a respeito de
Fonte: Earle e Malzbender (2007)
cursos
d’água
compartilhados.
O
protocolo
apoia
a
cooperação
e
a
integração regional na
gestão
e
no
desenvolvimento dos recursos hídricos na região. O protocolo está em
consonância com a Convenção das Nações Unidas, e seu principal objetivo
é promover uma estreita cooperação para a gestão criteriosa, sustentável e
coordenada dos cursos d’água compartilhados na região da CDSA / SADC
para redução da pobreza. O Quadro 7.6 indica as instituições de governança
para os cursos d’água compartilhados na região da Comunidade de
Desenvolvimento da África Austral (CDSA / SADC).
 Tomada de decisão e desenvolvimento de políticas
Considerando o fato de que as questões da água podem variar entre os
setores, as áreas geográficas, como também entre os diferentes grupos de
usuários, a GIRH requer processos coordenados de tomada de decisão.
Sem um planejamento coordenado e o desenvolvimento de políticas
coerentes é difícil aplicar abordagens integradas na gestão dos recursos
Earle e Malzbender
hídricos. Os planos nacionaisFonte:
de GIRH
incluem (2007)
ações necessárias para
desenvolver uma estrutura efetiva de políticas, legislação, financiamento,
instituições capazes com papéis claramente definidos e um conjunto de
instrumentos de gestão. O propósito dessa estrutura de governança da água
Correntes do Direito
67
5
é efetivamente regular o uso, a conservação e a proteção dos recursos
hídricos, equilibrando as exigências para um amplo desenvolvimento
econômico e a necessidade de manter os ecossistemas
 Controle e regulamentação (monitoramento, sanção e aplicação)
A gestão da água exige medidas de controle para alcançar uma governança
efetiva. Algumas ferramentas e instrumentos de controle incluem: a
qualificação de titularidade para uso por meio de emissão de permissão para
captação, definição dos critérios para alocação de água e determinação de
padrões de qualidade da água. A legislação sobre a água deve conter
também os meios legais para garantir o cumprimento pelos diversos
usuários do regime criado para o uso da água. Os meios de controle do
cumprimento e imposição da lei podem ser encontrados na própria
legislação sobre a água, mas também na legislação não especificamente
sobre a matéria, como no direito administrativo ou mesmo penal.
 Resolução de Conflitos
Sem um quadro efetivo de governança da água e de funcionamento das
instituições, os conflitos entre diferentes usuários em competição são mais
prováveis, têm menor probabilidade de serem resolvidos amigavelmente e o
objetivo de GIRH, a gestão sustentável dos recursos hídricos e afins, não
será alcançado. A estrutura legislativa deve exigir que as agências
responsáveis pela administração do sistema de gestão da água trabalhem
de forma integrada que permita partilhar os recursos e evitar
responsabilidades sobrepostas ou incertas (Allan & Wouters, 2004).
7.5 Conclusão
Este capítulo destacou questões importantes em torno de um debate sobre a
boa governança da água para a implementação efetiva dos princípios de GIRH.
O capítulo apresentou uma oportunidade de apresentar novos elementos para
promover a boa governança da água. Os princípios da efetiva governança de
água incluem: transparência, participação, responsabilidade, acesso à justiça, e
pronto atendimento. A necessidade de capacidade foi destacada como forma de
garantir a implementação efetiva das reformas da governança da água. O
capítulo tentou promover uma compreensão da relação entre a governança da
água, o direito e as instituições, e seus papéis e funções na GIRH.
Os princípios fundamentais da governança efetiva de água foram discutidos,
embora muitas perguntas surjam ao longo do tempo em vários lugares que
levantam questões a respeito do tema da boa governança da água. Pense sobre
as questões em destaque no quadro abaixo e relacione-as ao seu país.
A implementação da GIRH : algumas perguntas



68
Quais são as implicações das mudanças climáticas na política da água, a
estratégia, o direito e as instituições do seu país? Que dimensões da
governança devem considerar as implicações das alterações climáticas?
Qual é o papel do gênero na governança e nas instituições para a
implementação da GIRH?
As instituições tradicionais de governança de água podem informar a
política da água e o desenvolvimento institucional? Você pode dar um
exemplo?
Correntes do Direito
7.6 Leituras sugeridas
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Aprendendo com o diálogo. GWP. Estocolmo, Suécia
Jaspers. Frank. 2003. Institutions for Integrated Water Resources Management.
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