TEMA
STANISLÁVSKI E AS AÇÕES FÍSICAS: DAS PARTITURAS
CORPORAIS ATÉ À DRAMATURGIA DO ATOR
TÍTULO
ESTUDO DA ATENÇÃO
NAS AÇÕES FÍSICAS DE STANISLAVSKI
Autor: Francisco de Assis Gaspar Neto
Programa de Pós Graduação em Teatro (PPGT)
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Em Das ações físicas às imagens vivas, Stanislavski (1984) apresenta dois
modelos de atenção que se colocam para o ator em todas as fases do seu trabalho. Podese denomina-los, segundo o próprio Stanislavski, de Clichês, por um lado e Estado
Criador Interior, por outro. O primeiro está relacionado ao modo como a atenção do ator
está voltada para as opiniões gerais e correntes a respeito do papel que ele deve
executar. Elas exercem uma pressão exterior: ao invés de entrar em contato direto com a
“vida” do papel o ator reproduz a forma externa de representações anteriores e
consagradas por outros atores. Também, pode-se reproduzir um arsenal de gestos e
trejeitos consagrados pelo senso comum, o que de qualquer forma estaria ligado à
cristalização nas interpretações. Para Stanislavski essas opiniões são clichês que se
colam ao papel, assim como as opiniões correntes a respeito da obra. O que está
implícito no modelo dos clichês é a ideia de um movimento que vai de “fora para
dentro”, das opiniões do mundo para a execução do ator. Uma imagem apropriada é a
do ator afastado intelectualmente e afetivamente da personagem, focado nas pressões
mundanas que atacam o processo de composição.
O Estado Criador Interior é a contrapartida aos clichês que de antemão apresenta
um modelo de atenção que se inicia e amadurece no interior do ator e se direciona para
a vida espiritual do papel, afastado das pressões mundanas. Contrapartida sem
reciprocidade, porque enquanto os clichês vão da vida mundana para as reproduções do
ator, o Estado Criador Interno vai das ações do ator para a vida espiritual, espaço que se
estabelece entre ator e personagem. A pergunta aqui é se é possível fazer uso de certa
descrição de um processo de suspensão do juizo habitual para explicar o funcionamento
destes dois modelos nas proposições de Stanislavski. O processo em questão é uma
nova leitura do conceito de Epoché, originalmente central na filosofia de Edmund
Husserl e revisitado por Depraz, Varela e Vermesch (2002;2006) que valorizam a
análise pragmática, ao invés da abordagem hermenêutica tradicional. Antes de
trabalharmos com o conceito é preciso defini-lo e situá-lo históricamente. A palavra
Epoché no contexto husserliano traduz-se como suspensão do juízo, enquanto a palavra
grega epokhé (εποχη) significa colocar entre parênteses. Em termos cognitivos trata-se
da atitude de colocar em suspensão uma verdade, recusando-se a dar-lhe um significado
total. A Épochè husserliana se insere na tradição filosófica ocidental como reação à
filosofia cartesiana e, mais especificamente, ao modo como Descartes faz corresponder
o indivíduo e o mundo. Para Descartes o pensamento está diretamente ligado ao mundo
e ao reconhecimento dos objetos nele contidos, ou que a mente é uma consciencia
subjetiva que contém ideias que correspondem diretamente às coisas que estão no
mundo (VARELA, THOMPSON, ROSCH,1991), se os sentidos não atrapalharem. É
possível que dois órgãos sensoriais percebam diferentemente o mesmo objeto, mas isso
é uma falha sensível e não uma prova da não relação das idéias e dos objetos. Esse
processo ficou conhecido pela noção de intencionalidade de Franz Brentano: “De
acordo com Brentano todos os estados mentais (percepção, memória, etc.) são a respeito
de alguma coisa ou direcionados para alguma coisa” (VARELA, THOMPSON,
ROSCH,1991, p. 15). As referências mentais estão sempre direcionadas para um objeto,
ou ideia. Assim, segundo Brentano, e seguindo a tradição filosófica, a mente está
sempre intencionada para o mundo, consciente ou inconscientemente. Husserl, aluno de
Brentano, procurou extender os estudos sobre a intencionalidade, pensando-a a partir da
experiência e defini-la sem nenhuma relação com o mundo. Assim, Husserl colocou em
questão a noção de que a mente era naturalmente intencionada para o mundo e, ao
mesmo tempo, teve de repensar a idéia de experiência. O primeiro passo foi suspender a
ideia habitual de que havia uma relação direta da mente com o mundo e a essa
suspensão ele denominou de Epoché. O objetivo de Husserl era descobrir os processos
puramente mentais e reduzir a experiência humana a essas estruturas essenciais, além de
mostrar como o mundo humano é gerado a partir dela. Isso levou à conclusão de que
para conhecer o mundo era preciso conhecer a própria estrutura do conhecimento e,
consequentemente, essa estrutura só pode ser conhecida pela própria mente. Husserl
coloca no centro das suas investigações o mecanismo que leva à cognição e não as
opiniões que se colam a ela.
Em On Becoming Aware (2002) e A redução à prova da experiência (2006),
Natalie Depraz, Francisco J. Varela e Pierre Vermersch tratam da mudança de
paradigma no que diz respeito à Epoché, tendo como objetivo estabelecer as etapas do
processo pelo qual as coisas emergem à consciência. Enquanto os estudos de Husserl
ficaram no campo especulativo, o novo estudo investiga como o processo pode ser
observado na vida cotidiana. Para eles, o ciclo primário dessa nova concepção de
Epoché caracteriza-se por uma atitude ativa de suspensão da objetividade da atenção
natural na direção de uma atenção difusa, deixando emergir à consciência conteúdos
pré-refletidos, ainda indistintos e que sentimos nos habitar de modo nebuloso.
Diferentemente da atenção natural que está voltada para a necessidade de responder às
demandas da vida cotidiana a Epoché apresenta uma conversão na atenção de fora para
dentro. A atenção difusa tem caráter de abandono, de deixar-vir, uma negação do
hábito. Estes três momentos da Epoché serão tomados aqui para estabelecer algumas
relações com o texto de Stanislavski. Eles serão trabalhados à medida que forem
encontradas relações entre eles. Em Stanislavski, esse movimento começa com as ações
físicas e vai se fortificando no corpo do ator até que este sinta interiormente como sua a
vida da personagem:
Em outras palavras, não analisamos nossas ações com a razão, friamente,
teoricamente, mas as atacamos pela prática, do ponto de vista da vida, da
experiência humana, dos nossos próprios hábitos, do nosso sentido artístico e
outros, de nossa intuição, de nosso subconsciente. Nós mesmos procurávamos
o que quer que fosse necessário para nos ajudar a cumprir nossas ações; a nossa
própria natureza vinha em nosso auxilio e nos guiava. Pensem nesse processo e
compreenderão que se tratava de uma análise interior e exterior de nós
mesmos, como seres humanos nas circunstâncias da vida do nosso papel.
(STANISLAVSKI, 1984, p. 249)
Este é o primeiro ponto para a análise de uma reversão da atenção pensada a partir do
método das ações físicas. Se ambos os modelos apresentados no início do texto podem ser
chamados de atenção, o que neles se difere? Dir-se-á que é uma diferença de qualidade e
também de força. A atenção está naturalmente voltada para a necessidade de responder às
demandas da vida cotidiana (DEPRAZ, VARELA & VERMESCH, 2006;2002). Nas atividades
habituais a atenção é naturalmente interessada no mundo. O hábito organiza as atitudes por
meio da apreensão de regularidades, estabelecendo relações a partir de esquemas sensórios
reconhecidos e objetivados. Relacionando isso aos clichês de que nos fala Stanislavski, e ao seu
vetor de dentro para fora, entende-se que naturalmente a percepção está atenta às informações
que vêm de fora, muito mais do que ao seu próprio processo de funcionamento. Escapar ao
aprisionamento do mundo é antes de qualquer coisa um gesto inabitual. A atenção natural não
se desvia voluntariamente do mundo e uma ação, não natural ou inabitual, deve necessariamente
ocorrer para que isso aconteça. Essa ação pode ser um acontecimento externo e casual, uma
ordem ou ensinamento, dados a alguém por um agente externo ou resultado de prática
individual. Mediações de caráter mundano, intersubjetivo ou individual. Em Stanislavski
encontramos um ensinamento que se espera que se tansforme em uma prática individual:
Pelo que lhes mostrei hoje, devem compreender que isso é importantíssimo.
Não é à toa que insisto em que vocês dêem a esses exercícios sua especial
atenção. Quando tiverem elaborado uma técnica semelhante à que se
desenvolveu em mim, devido ao meu longo treino, então poderão fazer o que
eu fiz. E quando conseguirem isso, a mesma vida criadora interior, além do
âmbito da sua consciência, agitar-se-á espontaneamente em vocês. Seu
subconsciente, suas intuições, suas experiências tiradas da vida, o hábito de
manifestar qualidades em cena, tudo isto trabalhará, por vocês, no corpo e na
alma, e criará para vocês. (STANISLAVSKI, 1984, p. 242)
Trata-se da interrupção de um vetor que vai da percepção para o mundo e a sua
conversão em um vetor que vai da percepção para os seus modos de funcionamento,
assim como foi dito da redução fenomenológica anteriormente. Do exterior para o
interior. É preciso escapar das amarras do mundo e para tanto deve-se estar fortemente
treinado para isso e motivado. Outra passagem do texto de Stanislavski é, neste sentido,
emblemática: “Enquanto atuo, vou me escutando e sinto que, paralelamente à linha
ininterrupta de minhas ações fisicas, corre outra linha, a da vida espiritual de meu
papel” (Stanislavski, 1984, p. 239). Enquanto Tórtsov, personagem que enuncia a fala
acima, exercita o encadeamento das ações físicas sua atenção está voltada para o seu
interior e para um evento muito específico que se passa nele: o paralelismo ininterrupto
entre as ações físicas e a vida espiritual do papel. Eis porque, logo de início,
Stanislavski avisa que a análise do papel não pode ser meramente intelectual, agora
entendemos, com o risco de se perder o instante fugaz do encontro daquelas duas linhas.
Anuncia-se, neste momento, o segundo movimento da Epoché. A mudança na
qualidade de atenção é um ato de conversão consciente de fora para dentro. Neste, a
atenção desloca-se dos processos de construção da percepção, mais do que a percepção
dos objetos dados. A atenção focada para o interior abre espaço para a percepção dos
próprios processos de apreensão de informações. Do ponto de vista cognitivo trata-se de
um fazer específico, causado por uma mudança de atitude na relação do sujeito com o
mundo. A visada deixa de ser sobre o que se observa para o como se observa. A atenção
volta-se para os meios mais do que para as finalidades. Stanislavski mostra que isso é
necessário para se alcançar a percepção do encontro fugaz entre a vida física do ator e a
vida espiritual do papel. Mas, se essa relação não pode ser percebida por uma atenção
habitual isso deve significar que ela é muito mais fraca ou de difícil acesso. Por isso, ele
diz que, no processo inicial, o ator tem de se manter focado na consecução das ações
físicas e no foco com os objetos:
Vocês viram que eu não fiz isto por meio de uma análise puramente intelectual,
mas me estudei nas condições determinadas pelo papel, e com a participação
direta de todos os elementos interiores humanos, com o seu impulso natural
para a ação física. Não levei a ação até o fim porque tive receio de cair em
clichês. Porém, o ponto principal não está na ação propriamente, mas na
evocação natural de impulsos para agir. (STANISLAVSKI, 1984, p. 236)
O que Stanislavski propõe é um método de germinação, de estar atento para
encontrar o que ainda não está muito claro, mas que se credita que será muito mais
potente e visível quando se alcançar:
Mas esses sentimentos ainda são transparentes, não são muito provocadores.
Ainda é dificil defini-los ou ter interesse neles. Mas isso não é um infortúnio.
Estou satisfeito, porque sinto dentro de mim o começo da vida espiritual de
meu papel disse Tórtsov. — Quanto mais vezes revivo a vida fisica, mais
definida e firme vai se tornando a linha da vida espiritual. Quanto mais
freqüentemente sinto a fusão dessas duas linhas, mais fortemente acredito na
veracidade psicofisica desse estado, e mais firmemente sinto os dois planos
de meu papel. (STANISLAVSKI, 1984, pp. 239-240)
Um ato de fé inicial dispara um processo de busca por algo que não se sabe
existir, mas é preciso se manter no percurso, atento aos menores sinais, focado na tarefa
a cumprir e nos objetos com os quais se trabalha. É bela neste sentido a imagem criada
por Depraz, Varela e Vermesch (2002, p. 8): “O caçador imóvel sabe ao menos o que
ele espera com vigilância e paciência, enquanto que, no caso em questão, há a espera
sem conhecimento do conteúdo que vai se revelar”. O ato de fé traduz-se aqui como um
ato consciente de espera ou de deixar-vir, que serve de trampolim para os saltos internos
do sistema:
Quanto mais vezes revivo a vida fisica, mais definida e firme vai se tomando a
linha da vida espiritual. Quanto mais freqüentemente sinto a fusão dessas duas
linhas, mais fortemente acredito na veracidade psicofísica desse estado, e mais
firmemente sinto os dois planos de meu papel. (STANISLAVSKI, 1984, pp.
239-240)
Não há mudança quantitativa no processo, como um conjunto de diferentes
ações que vão se adicionando em direção a um fim esperado. O que há são saltos
qualitativos dentro da repetição das mesmas ações. Um ato de fé leva à insistência nas
ações físicas e no foco com os objetos.
A cada repetição as ações físicas vão
fortalecendo a consecução dos seus elos e o foco nos objetos vai aumentado a sensação
de veracidade. Sentir o que se está fazendo com um ato verdadeiro e autêntico, valida a
fé neste fazer. Aí então o processo recomeça, mas em outro plano, mais fortemente
percebido. O sistema salta sobre ele mesmo e a cada salto mais forte será a sua demanda
por atenção. A tal ponto do ator sentir que está tomado por esta força e que ela trabalha
autonomamente:
Tive a ingenuidade de pensar que estava criando as ações fisicas, que as estava
administrando. Mas na realidade, verificou-se que elas eram apenas os reflexos
externos do trabalho criativo que além do alcance do meu consciente ia sendo
executado dentro de mim pelas forças subconscientes de minha natureza.
(STANISLAVSKI, 1984, p. 250)
Esta passagem exemplifica o terceiro movimento da Époché, o deixar-vir.
Fortemente amparado pelos dois primeiros estágios do processo o deixar-vir trás
consigo um caráter de não intencionalidade. Na vida mundana o hábito sempre nos leva
a ter atitudes objetivadas em relação àquilo que nos é oferecido à percepção, na medida
em que a atitude mais natural, mais involuntária, é a de ler e julgar esses dados
procurando oferecer uma resposta, se não acertada, pelo menos imediata, no que diz
respeito às previsões futuras. Por isso uma mudança no estatuto da atenção é realizada
por um gesto de abandono ou desapego. Deixar passar e recusar a responder. O gesto de
abandono é em si um fazer. Estranho fazer caracterizado pela recusa por um objetivo,
uma espera por algo ainda indefinido, nebuloso, que embora possa ser intuído não é de
todo apreendido.
Assim, minimamente, foi possível estabelecer um paralelo entre o método das
ações fisicas e descrição pragmática do ciclo básico da Époché apresentada por Natalie
Depraz, Francisco J. Varela e Pierre Vermersch. Ele foi apresentado como uma
sensação interna forte que responde ao ato de fé inicial e que fortalece na seqüência este
mesmo ato de fé, fazendo com que o sistema relance sobre si mesmo. Então, todo o
processo só pode ser validado por esta sensação interna qualificada somente por aquele
que a sente. Ela não pode ser medida por nenhum modelo externo, clichês e opiniões. O
próprio Stanislavski assume isso ao dizer que o ator deve se orientar pela lógica e
consecutividade das ações, traçar pequenos objetivos e dar-lhes um passado e um
futuro, doar atenção e tempo às ações físicas para encontrar suas devidas qualidades.
Finalmente, o importante é que a relação da percepção com o mundo não se constrói a
partir de duas substâncias estanques, mesmo que uma esteja diretamente direcionada à
outra, mas em gradações, planos intermediários que unem o ator à personagem, como
pontes.
BIBLIOGRAFIA
DEPRAZ, N., FRANCISCO J. VARELA & VERMERSCH, P. On Becoming
Aware: A Pragmatics of Experiencing. Philadelphia, John Benjamins North America,
2002.
_____________________________________
A
Redução
à
Prova
da
Experiência. Arquivo brasileiro de Psicologia, v.58 n.1, Rio de Janeiro jun. 2006
STANISLAVSKI, C. A Criação de um Papel. Rio de Janeiro, Ed. Civilização
Brasileira, 1984.
VARELA, FRANCISCO J.; THOMPSON, E. & ROSCH, E. The embodied
mind. Cognitive science and human experience. Boston, MIT Press, 1991.
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