Proteger o futuro contra crises financeiras
As crises financeiras dos últimos anos fizeram sentir as suas ondas de choque em todo o mundo. Os
responsáveis pela formulação de políticas estão a conceber medidas preventivas e os debates na
Conferência Internacional sobre o Financiamento do Desenvolvimento poderão ajudar a clarificar estas
ideias e formar consensos para as pôr em prática.
No final de 1998, na sequência da crise no Leste Asiático e na Federação Russa, era evidente que a
liberalização económica e a globalização da década de 1990 tinham excedido a capacidade das estruturas
internacionais, tanto no seio das nações como no exterior, de as enfrentarem eficazmente. Os custos da crise,
em especial para os países em desenvolvimento e com economias em transição, foram muito elevados.
Perderam-se milhões de postos de trabalho e o número de pobres aumentou consideravelmente em países
como a Tailândia, a Indonésia, a República da Coreia, o Brasil e a Federação Russa. O investimento nos
mercados emergentes desceu em flecha e nunca recuperou.
Desde a propagação da crise, em 1997-1998, foram propostas diversas medidas preventivas. Entre elas,
contam-se o reforço da vigilância internacional das economias nacionais e outros sistemas de alerta rápido, e
a acumulação de créditos a curto prazo suficientes para serem utilizados caso se desencadeie uma crise
financeira. A situação actual na Argentina põe em destaque os desafios mas também as grandes
possibilidades que se deparam aos responsáveis pela formulação de políticas.
No âmbito dos preparativos para Conferência Internacional sobre o Financiamento do Desenvolvimento,
as Nações Unidas e os seus parceiros na Conferência – em especial, o Fundo Monetário Internacional (FMI),
o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio – analisaram modos que permitam que os
intervenientes no sistema económico internacional enfrentem melhor essas dificuldades. Parte desse
processo implica reunir os especialistas responsáveis pela formulação de políticas de comércio internacional,
pela cooperação financeira e pela cooperação para o desenvolvimento, de modo a atingir-se um grau mais
elevado de coerência e consistência. Para dar um exemplo simples, a assistência que permite aos países em
desenvolvimento aumentarem a sua capacidade produtiva não se deveria ver comprometida pelos limites que
os países doadores impõem às importações provenientes desses países.
O fornecimento de informações adequadas, oportunas e fiáveis – pedra angular de qualquer sistema
financeiro sólido – depende da transparência tanto no sector público como no privado. Embora a supervisão
das instituições e mercados financeiros esteja principalmente nas mãos das autoridades nacionais, existe um
amplo consenso quanto à necessidade de um controlo internacional mais intensivo dos fluxos de capital.
Nas conversações realizadas nas Nações Unidas, no âmbito da preparação para a Conferência sobre o
Financiamento do Desenvolvimento, prevista para Monterrey, no México, os países em desenvolvimento
defenderam duas ideias que complementam as medidas tomadas desde 1997-1998 para melhorar a vigilância
financeira.
Uma delas é que deveria ser melhorada a vigilância a nível de todas as economias, em especial da dos
principais países industrializados. Esses países têm um impacte desproporcionadamente elevado nas
tendências mundiais. O argumento apresentado é o seguinte: embora os países sejam responsáveis pelas suas
próprias políticas nacionais, o mundo, no seu conjunto, pode ter preocupações legítimas quando as políticas
nacionais são insustentáveis ou podem ter sérias consequências a nível internacional.
A segunda é que as instituições internacionais e multilaterais que estabelecem as normas dos sistemas
financeiros e alertam para crises eventuais deveriam contar com uma representação relevante de países em
desenvolvimento. Desde a crise de finais da década de 1990, a atenção internacional tem-se centrado
principalmente no reforço das políticas dos países em desenvolvimento. Todavia, para que estes países
possam ser responsabilizados com base nas normas estabelecidas pelas forças, por vezes impiedosas, da
economia globalizada, devem participar plenamente na elaboração e aplicação dessas normas.
Falando na reunião preparatória da Conferência Internacional sobre o Financiamento do
Desenvolvimento, em Janeiro de 2002, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, apoiou a ideia
de que os países em desenvolvimento deveriam ter mais a dizer na gestão da economia mundial e pediu à
Conferência que propusesse medidas práticas para que tal objectivo seja atingido.
Medidas adoptadas
O FMI é o principal organismo responsável pela supervisão do sistema monetário e financeiro internacional.
Para tal, realiza a vigilância anual, ao abrigo do “Artigo IV”, da situação macro-económica e dos
pagamentos externos dos países, controla programas negociados de ajustamento da balança de pagamentos e
leva a cabo Programas de Avaliação do Sector Financeiro realizados conjuntamente com o Banco Mundial.
O FMI incentiva também a transparência financeira dos governos através da sua Norma Especial de Difusão
de Dados para países que desejem aceder aos mercados financeiros. Promove também o cumprimento de
diversos códigos de formulação de políticas macro-económicas e de regulamentos do sector financeiro.
Do mesmo modo, tanto o Banco Mundial como o FMI têm estado a trabalhar para tornar as suas próprias
operações mais transparentes para os mercados financeiros e o grande público.
Todavia, ainda há muito a fazer em matéria de transparência, sobretudo no que respeita à informação no
sector privado. São necessários mais indicadores comparáveis a nível internacional, mais normas no domínio
da contabilidade e da publicação de informações. A Comissão Internacional de Normas Contabilísticas, um
organismo privado que reúne 142 organizações de contabilistas profissionais de 101 países, tem estado a
trabalhar para a harmonização das normas contabilísticas.
Foram tomadas outras medidas para reforçar a capacidade de resposta rápida do sistema internacional. O
FMI simplificou os mecanismos de ajuda de emergência: o Serviço de Reserva Suplementar, concebido para
emprestar rapidamente, aos países em dificuldades, avultadas quantias em dinheiro com elevadas taxas de
juro e a prazos relativamente curtos; e a Linha de Crédito Condicional, que permite que os países aprovados
previamente obtenham financiamentos de emergência quando se verifiquem turbulências económicas
noutros países que ameacem contagiá-los.
Além disso, o Banco Mundial acordou recentemente introduzir um novo mecanismo para preparação de
empréstimos com liquidez imediata, em caso de necessidade; trata-se, essencialmente, da abertura de uma
linha de crédito, chamada “opção de levantamento diferido”.
Embora as ferramentas financeiras para combater as crises individuais estejam a ser reforçadas, ninguém
respondeu ainda à questão de saber quantas crises financeiras a comunidade internacional deveria estar
preparada para combater simultaneamente e de se dispõe de recursos suficientes para o fazer. Outra questão
é saber se as instituições públicas internacionais deveriam sequer tentar mobilizar novos empréstimos
importantes, se estes são usados principalmente para financiar as fugas de capitais ou a retirada de credores
estrangeiros que perderam o interesse por um país quando este entra em crise.
Em direcção a um novo mecanismo internacional de regularização da dívida
Apesar das novas políticas de prevenção, pensa-se geralmente que continuarão a surgir crises financeiras,
embora se espere que sejam em menor número e menos graves. No entanto, o caso recente da Argentina
mostra até que ponto pode ser profunda uma crise financeira, embora se tenha conseguido evitar o contágio,
até agora.
Foram apresentadas várias propostas para reduzir rápida e ordenadamente os problemas da dívida
insustentável de um país.
Nas discussões preparatórias da Conferência de Monterrey, defendeu-se que, em casos de dívida
insustentável, os custos dos ajustamentos necessários para a resolução da crise precisam de ser partilhados
equitativamente por todos os intervenientes, públicos ou privados, bem como por devedores, credores e
investidores. Mantém-se a questão, como é que isso pode ser feito?
Um aspecto de algumas propostas actuais de regularização da dívida é reunir os credores privados de um
país e chegar a um acordo colectivo sobre a restrição das exigências de pagamento imediato. A ideia
subjacente é que os credores compreenderão que têm mais possibilidades de recuperar pelo menos uma parte
dos seus empréstimos se trabalharem em conjunto, em vez de agirem uns contra os outros. Trata-se de um
elemento do Capítulo 11 relativo ao mecanismo que rege as falências das empresas nos Estados Unidos, que
permite também a possibilidade de novos créditos que ajudem à recuperação da empresa reorganizada.
Embora a falência de entidades soberanas seja um conceito complicado, existe um interesse crescente em
repensar como deverão tratar-se as crises de dívida tendo em conta este aspecto.
Nas crises da dívida ocorridas durante a década de 1980, a maior parte dos empréstimos aos países muito
endividados foi concedida por um número reduzido de bancos comerciais que poderiam organizar-se em
comissões, para decidir a concessão de novos empréstimos ou a restruturação das obrigações de serviço da
dívida, consoante as necessidades. Dado que são cada vez mais numerosos os países que recorreram ao
financiamento por emissão de obrigações e, consequentemente, devem dinheiro a um maior número de
credores, o valor potencial de um mecanismo colectivo de regularização da dívida aumentou.
Têm de ultrapassar-se alguns obstáculos antes de se poder tomar uma decisão sobre essas propostas, já para
não falar na sua aplicação. Uma delas é chegar a acordo quanto ao órgão que deverá decidir se um país pode
beneficiar, ou não, de uma “moratória da dívida”. Se este papel for atribuído ao FMI, a comunidade
internacional deverá elaborar e acordar novas normas e regulamentos. Se não for o FMI, que instância
tomará a decisão e a executará? Nas discussões preparatórias da Conferência de Monterrey, os governos
não mostraram grande interesse na criação de novas instituições internacionais.
Se pudesse estabelecer-se um mecanismo formal, este proporcionaria inúmeras vantagens. Em primeiro
lugar, reduziria a incerteza considerável quanto à forma como as situações de crise da dívida serão tratadas a
nível internacional, o que presentemente está a impedir a concessão de empréstimos às economias de
mercado emergentes. Reforçaria também os incentivos, para que devedores e credores cheguem a acordo de
moto próprio, evitando longos e desgastantes processos de tipo judicial e, desse modo, limitando os danos.
As instituições privadas reconheceriam que não seriam indemnizadas automaticamente ou na totalidade, se
correrem riscos imprudentes, o que contribuiria para um ambiente financeiro internacional mais estável. Por
último, deverá estabelecer-se um mecanismo para decidir a amplitude dos “cortes” a que serão submetidas
as diferentes categorias de credores públicos e privados de uma economia de mercado emergente.
Os altos responsáveis dos governos e organizações internacionais, bem como os do sector privado e das
organizações da sociedade civil, estão a pronunciar-se sobre a necessidade de uma nova forma de resolver o
problema da dívida. A Conferência de Monterrey constitui uma oportunidade única para a abertura de um
debate preliminar, entre todos os interessados nesta questão política crucial.
“Temos de fazer tudo o que for possível para impedir que a trágica experiência da Argentina se repita em
qualquer outro país”, afirmou o Secretário-Geral, Kofi Annan, em Janeiro de 2001. “Está a surgir um
consenso em torno da ideia de que os métodos existentes para a resolução das crises da dívida de Estados
soberanos são insatisfatórios e que precisamos de encontrar formas de garantir que o fardo seja
partilhado mais equitativamente entre o país devedor e os seus credores. Espero que, em Monterrey, os
Governos dêem o impulso político necessário para acelerar a criação de uma abordagem nova desse
tipo”.
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