ID: 51640016 06-01-2014 Tiragem: 37425 Pág: 45 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 19,85 x 22,60 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 1 de 1 Sobre os ideais marítimos de liberdade e governo limitado A João Carlos Espada Cartas do Atlântico no novo, vida nova, como se costuma dizer. Ao cabo de três anos como Cartas de Varsóvia, estas crónicas passam agora a Cartas do Atlântico. Geograficamente, assinalam o meu regresso a Lisboa, à beiramar plantada. Simbolicamente, mantém o mesmo compromisso com os ideais marítimos de liberdade e governo limitado. Foram estes mesmos ideais que presidiram à libertação da Polónia, em 1989, depois de décadas de opressão pelo comunismo continental. Durante três anos em Varsóvia, pude testemunhar o compromisso polaco para com a aliança euro-atlântica, que ainda hoje é a âncora da sua liberdade reconquistada. Não terá sido por acaso, como também se costuma dizer, que Winston Churchill e Franklin Roosevelt escolheram o Atlântico como sede de consagração da sua — então célebre, hoje quase esquecida — Carta do Atlântico. Os princípios enunciados nessa Carta, em Agosto de 1941, estiveram na origem da ONU e da NATO, em parte também da Comunidade Europeia. Mas talvez tenha sido Karl Popper quem mais enfaticamente associou a ideia de sociedade aberta às civilizações marítimas, em particular a de Atenas do século V a.C.: “Talvez a mais poderosa causa do colapso da sociedade fechada tenha sido o desenvolvimento das comunicações marítimas e do comércio. O contacto estreito com outras tribos desafia o sentimento de necessidade com que as instituições tribais são percepcionadas; e a troca, a iniciativa comercial e a independência podem afirmar-se, mesmo numa sociedade em que o tribalismo ainda prevalece. (...) Tornou-se claro [para os inimigos da democracia em Atenas] que o comércio de Atenas, o seu comercialismo monetário, a sua política naval, e as suas tendências democráticas eram parte de um único movimento, e que era impossível derrotar a democracia sem ir às raízes do mal [do ponto de vista dos inimigos da democracia] e destruir quer a política naval quer o império.” (A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, Edições 70, vol. I, p. 222). Karl Popper considerava que a civilização ocidental emergiu da transição das velhas sociedades fechadas tribais para as novas sociedades abertas. Para Popper, a Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta exprimiu essencialmente o conflito entre uma sociedade aberta emergente, a democrática Atenas, e uma sociedade fechada, a Esparta colectivista. Ele considerou que a II Guerra Mundial foi uma reedição desse conflito, tendo o lugar de Atenas sido ocupado pelas democracias ocidentais, e o lugar de Esparta pelo nacional-socialismo alemão e o comunismo soviético — cuja aliança de facto desencadeou o início da guerra e a dupla invasão da Polónia, em Setembro de 1939. Este tema foi retomado por Peter Padsfield numa monumental trilogia sobre as potências marítimas. Em Maritime Supremacy and the Opening of the Western Mind (1999), cujo título faz uma clara referência à ideia de Popper sobre a abertura intelectual, Padfield descreve a emergência da República holandesa como potência marítima e comercial no século XVII, bem como a sua gradual substituição pela Inglaterra no século XVIII. O livro seguinte, intitulado Maritime Power and the Struggle for Freedom (2003), descreve o conflito entre a Inglaterra e as potências terrestres espanhola e francesa, com a ascendência britânica à supremacia naval no século XIX. O terceiro volume, Maritime Dominion (2008), prolonga a narrativa até ao século XX, com os Estados Unidos a sucederem a Inglaterra como potência marítima dominante, e a Alemanha e a Rússia a substituírem a Espanha e a França como potências continentais. Daniel Boorstin, o célebre historiador que dirigiu a Biblioteca do Congresso em Washington, prestou devida homenagem ao papel pioneiro dos portugueses na abertura da Europa a esse novo mundo marítimo: “A nova era marítima [iniciada pelos portugueses] levou o comércio e a civilização da costa de um corpo finito, o Mediterrâneo fechado, o “mar-no-meioda-terra, para a costa do Atlântico aberto e dos oceanos sem fronteiras no mundo.” (Os Descobridores, Gradiva, p. 153). Karl Popper, Peter Padfield e Daniel Boorstin associaram as culturas marítimas a valores de liberdade, comércio livre, livre empreendimento, Estado de direito e governo representativo ou democrático, que responde a um Parlamento eleito livremente. Esta combinação de “liberdade, tolerância e riqueza” tende a libertar o génio humano, sustentam aqueles autores. Em contraste, as potências continentais tendem a valorizar a rigidez, o fechamento ao exterior e ao comércio, a organização estatal centralizada e o abafamento da sociedade civil. Estas Cartas do Atlântico retomarão aqueles velhos ideais marítimos, em detrimento dos sonhos continentais de organização centralizada. Não terá sido por acaso que Winston Churchill e Franklin Roosevelt escolheram o Atlântico como sede de consagração da sua Carta do Atlântico Professor universitário, IEP-UCP Escreve à segunda-feira