REVISTA DO CFCH • Universidade Federal do Rio de Janeiro ISSN 2177-9325 • www.cfch.ufrj.br Edição Especial JICTAC • agosto/2014 Oficinas Temáticas: A Potência da Psicologia em um Projeto Educacional de uma ONG Thiago Colmenero Cunha (bolsista PIBEX) – [email protected] Instituto de Psicologia – 10° período Lara Soutto Mayor Vieira (bolsista PIBIC) – [email protected] Instituto de Psicologia – 8° período Orientador: Pedro Paulo Gastalho de Bicalho – [email protected] – Instituto de Psicologia – Pesquisa “Construindo um processo de escolhas mesmo quando ‘escolher’ não é um verbo disponível” Trazendo reflexões, vivências, práticas e narrativas a partir do que foi vivenciado, o presente trabalho mostra o desafio da ampliação do campo de atuação da Psicologia Escolar Contemporânea para o contexto de um projeto educacional em uma favela carioca ao sistematizar ações diferenciadas que promovam o desenvolvimento e a reflexão dos envolvidos no cotidiano. Colocando a pensar sobre as intercessões entre Psicologia e Educação, atuação profissional contemporânea e intervenção em favelas, tem-se como objetivo refletir sobre como é fazer Psicologia em uma ONG, num projeto educacional. Nosso plano de trabalho se dá através da inserção na organização não governamental Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), localizada no Morro do Timbau, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, que se dá através do trabalho no projeto de pesquisa-intervenção “Construindo um processo de Escolhas mesmo quando ‘escolher’ não é um verbo disponível” do Instituto de Psicologia da UFRJ. Ao subjetivar a escolha profissional como um disparador para poder falar sobre outras tantas escolhas da vida, entendemos a escolha como um processo e como uma aposta, o que possibilita que outras significações sejam feitas sobre os caminhos e critérios que as pessoas têm sobre o ‘escolher’ e que, a partir da análise destes critérios, possam se realizar decisões mais autônomas. O trabalho se dá a partir da realização de grupos de Análise do Vocacional, entendidos como dispositivos, a partir dos quais podemos construir novas possibilidades a partir da 1 REVISTA DO CFCH • Universidade Federal do Rio de Janeiro ISSN 2177-9325 • www.cfch.ufrj.br Edição Especial JICTAC • agosto/2014 desindividualização das demandas, coletivizando-as semanalmente, estranhando-as, colocando-as a prova e em xeque. Como procedimento, além do grupo, realizamos entrevistas individuais com os indivíduos interessados, de dez a doze encontros grupais e a devolutiva através de um laudo psicológico individual. Atuando no CEASM junto ao curso Preparatório para escolas técnicas de Ensino Médio no município do Rio de Janeiro, nos foi solicitado no início do ano que, antes da realização destes grupos, trabalhássemos com os adolescentes temas que em sala com os professores ou em conversas e bate-papos com as coordenadoras não eram possíveis de serem trabalhados, por falta de tempo, espaço ou oportunidade. Com a proposição de uma encomenda, questionamentos surgiram: como pautar a prática da Psicologia naquele contexto-dependente? Como fazer emergir os anseios dos jovens no processo, entendendo que fazem parte do processo educacional? Poderíamos ter pensado alguns temas gerais e atuais e levá-los, mas fizemos diferente. Como acreditamos na escolha como um processo e em uma educação pautada na construção coletiva do que e como vai ser trabalhado, não tínhamos roteiro, metas ou suposições a serem feitas. Tivemos seis encontros semanais, em um tempo de 1h 30 de aula do curso, e começamos a construir com eles o que chamamos de “oficinas temáticas”. Uma questão importante a se pensar é sobre a posição ético-política com a qual um psicólogo entra em uma instituição educacional. Cabe escolher entre reproduzir modelos que não permitam criar saídas para processos de singularização ou, ao contrário, trabalhar para fazer funcionar processos na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam por para funcionar, reconhecendo a atuação profissional crítica, atenta e política, abrindo mão de uma suposta neutralidade na relação. Para manter ou para mudar? Entendemos que as máquinas produtoras de subjetividade trazidas por Guattari e Rolnik (2005) também estão inseridas nesse contexto educacional da favela, a partir do momento em que engendram posições de ser e estar no mundo. O que fazemos quando isso se apresenta? Quando pensamos em termos da cidade, podemos nos questionar acerca de determinadas formas de viver que são produzidas de acordo com o seu local de residência, sua escolaridade ou a sua história familiar. Efeitos de uma produção de subjetividade capitalística, moradores jovens de favela escutam diariamente que “pobre 2 REVISTA DO CFCH • Universidade Federal do Rio de Janeiro ISSN 2177-9325 • www.cfch.ufrj.br Edição Especial JICTAC • agosto/2014 tem que fazer curso técnico para ir trabalhar mais rápido” (K., 14 anos) ou que “o curso técnico é uma salvação pra sair desse lado de cá” (L., 15 anos). Para os estudantes do curso Preparatório, o estudo aparece como uma ponte para uma vida melhor, como uma etapa necessária a ser passada, vencida; a educação aparece como formalidade, burocracia, como algo tradicional, como a frase de K., de 15 anos: “faz parte do meu plano de vida passar para a escola técnica, porque se não, quem eu vou ser na vida?”. Como uma alternância de forças, então o projeto educacional é capturado e atravessado por uma produção docilizante de corpos, valorizar o estudo acima de tudo, acreditar que esse é o “único modo de ser feliz”, “dar certo”. Para nós, como psicólogos em uma organização educacional, nos surge uma possibilidade de trazer um outro olhar, como forma de, ao invés de tentar “apagar incêndios” e resolver “problemas emergenciais”, como nos dizem Oliveira e MarinhoAraújo (2009), problematizamos estas forças que produzem este modo de ser aluno, na favela, e estes discursos prontos trazidos por professores, pais, etc. Historicamente, a instituição escolar foi um local de adaptação e promoção de desenvolvimento, através de ideias do evolucionismo e funcionalismo. Como nos diz Patto (1999) o psicólogo, sempre convocado à escola para resolver problemas que surgiam nesse espaço de formação, contribuía para a patologização e psicologização do espaço escolar por atribuir ao próprio aluno a culpa por suas dificuldades, descontextualizando e fragmentando os indivíduos, negando o caráter histórico-cultural da subjetividade. A partir de avanços teóricos e práticos relativos à Psicologia e de uma postura crítica diante da atuação da área nas escolas, a relação Psicologia-Educação se modificou. Passando a valorizar as relações e o contexto histórico nos quais as questões se instalam, com foco na promoção do processo educativo, vendo a escola como espaço de relação, compartilhamento e reflexão, o psicólogo contribui, nessa outra perspectiva, dando voz às potencialidades e às possibilidades, não aos problemas e às dificuldades (OLIVEIRA & MARINHO-ARAÚJO, 2009). Nesse sentido, nossa proposta nas oficinas era fazer ressoar temas de infinitas formas, utilizando os mais variados dispositivos, como vídeos, dinâmicas de grupo, músicas, poesias, crônicas, elaboração de cartazes, para abordar assuntos que surgiam ao longo de cada encontro. Todo este processo foi possível de ser acompanhado a partir da metodologia da cartografia, com a qual nos munimos para entendermos as oficinas 3 REVISTA DO CFCH • Universidade Federal do Rio de Janeiro ISSN 2177-9325 • www.cfch.ufrj.br Edição Especial JICTAC • agosto/2014 como um processo que se construiria a partir das experimentações, dando lugar à criação e à invenção A atividade do cartógrafo “presta-se a escapar dos grudentos decalques pré-fabricados sempre prontos a serem aderidos a toda e qualquer superfície, diminuindo a miríade dos registros a um punhado de expressões prêt-à-porter” (MIZOGUCHI, 2012, p. 54). Como exemplo das reverberações e narrativas construídas nos encontros semanais com os jovens, em uma oficina discutindo preconceito, A. (14 anos) disse que o modo como estamos vestidos faz diferença no shopping e que isso também tem a ver com a cor de pele. Disse que se ela, negra, andasse de top no shopping todo mundo ia olhar torto, pois não é roupa adequada para shopping, mas que se tivesse uma branca, com cara de academia, no shopping, ninguém ia falar nada. Essa fala abriu para o porquê de haver roupas específicas para ir ao shopping: G. (15 anos) falou sobre a questão das roupas curtas associadas à imagem de moradores de favela. Vistas como um local de convivência diferente das outras aulas que tinham no curso, as oficinas apareciam no discurso dos jovens como “são boas para discutir, falar sobre nossa realidade” (D., 16 anos), “fazem a gente refletir sobre o cotidiano e pensar em coisas que antes a gente não pensava” (A., 14 anos), “foram legais, aprendemos a respeitar as diferenças e nos conhecer melhor” (A. C., 15 anos), ou ainda “[é um espaço] onde dá pra ouvir o outro, em que podemos ter espaço pra entender e respeitar a opinião do outro” (L., 14 anos). Tendo em vista estas considerações, pôde-se investigar, a partir da metodologia de pesquisa cartográfica, de que maneira, no campo, se dá a construção desta outra forma de a psicologia ser colocada em prática em uma organização educacional em uma favela carioca, Após pousar no movimento, o presente trabalho aponta que, nas diversas formas de entrada e intervenção, o papel do psicólogo é poder viabilizar espaço de criação e produção de reflexão, o que, ao fazer circular os discursos nos diferentes espaços do estabelecimento, permite entender a diferença como potência, propiciando desconstruções desestabilizações de ideais tomados como naturais. Dessa forma, as discussões sobre temas variados com estes alunos permitiram desconstruir “uma certa” psicologia escolar preocupada em adequá-los ao processo de ensino-aprendizagem, produzindo, desta forma, a força de fazer circular discursos e repensar qual é o papel do psicólogo num projeto de educacional. 4 REVISTA DO CFCH • Universidade Federal do Rio de Janeiro ISSN 2177-9325 • www.cfch.ufrj.br Edição Especial JICTAC • agosto/2014 Referências FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2011. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes, 2005. MARTINEZ, M. A. O que pode fazer o psicólogo na escola? Aberto, v. 23, n. 83, 2010, p. 39-56. MIZOGUICHI, D. H. Equivocidades. In: BAPTISTA, L. A., FERREIRA, M. S. (Orgs.). Por que a Cidade?: Escritos sobre experiência urbana e subjetividade. Niterói: EdUFF, 2012. OLIVEIRA, C. B. E.; MARINHO-ARAÚJO, C. M. Psicologia Escolar: cenários atuais. Estudos e Pesquisas em Psicologia. 9(3), 2009, p.648-663. PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: historias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999. 5