Angola, Que Perspectivas Para o Novo Milénio ? João Baptista Lukombo Nzatuzola* ntrou nos hábitos, falar de Angola é pensar guerra, mutilados, deslocados, viúvos e viúvas, crianças de rua, minas, casas destruídas, terras abandonadas, pontes partidas, mortalidade infantil e todas as várias calamidades sociais imagináveis. Também paradoxalmente, diga-se, Angola é um país rico, tem petróleo, diamantes, café, recursos marítimos, florestas, etc. e uma população com pouca densidade em relação à dimensão do país. Algumas pessoas diriam, então por que é que a guerra não acaba, com tantas potencialidades suficientes para que cada um dos angolanos possa usufruir de um rendimento razoável para viver bem? Uma resposta a estas interrogações não é dada de forma mecânica mas, sim, merece uma prévia reflexão para uma formulação bem fundamentada. A incerteza com que se alastra a tragédia angolana tem por explicação diferentes pressupostos ao longo da história dos últimos tempos. E A política colonial portuguesa, uma sociedade estratificada Uma característica da política colonial portuguesa foi marcada pela estratificação da sociedade com categorias marcadas em hierarquias: portugueses da metrópole, portugueses das colónias, os mestiços, filhos do cruzamento entre brancos e pretos, negros assimilados, com provas de domínio da língua portuguesa, abandono do uso das línguas africanas; a última categoria é a dos indígenas, os autóctones, negros na maioria e com grande amarras aos valores tradicionais entre os quais o do uso das línguas nacionais. Esta segmentação marcou substancialmente a realidade social de algumas zonas de cidades costeiras do litoral ango32 lano como Luanda e Benguela, outros centros urbanos do país principalmente as zonas do planalto central e as províncias vizinhas das zonas marítimas. Apesar desta política constituir um suporte de sustentáculo da política colonial portuguesa em Angola, a mesma não teve os mesmos efeitos através da imensidade da dimensão geofísica do território angolano. O que explica em parte a emergência em Angola de um movimento nacionalista anticolonial surgido nos contextos históricos específicos consequentes desta realidade apriorística. Esta política foi conhecida também por lusotropicalismo e foi denunciada por certos intelectuais e cientistas como Mário de Andrade ou Gerald Bender. Portugal, uma potência subcolonizada Angola, como país com ricas potencialidades em recursos naturais e terras aráveis, e Portugal, como potência colonizadora, não tinham capacidades económicas, financeiras, humanas nem tecnológicas para explorar com meios próprios esse território. Assim, Angola foi aberta aos grandes capitais ocidentais para aproveitamento das suas riquezas: com explorações multinacionais no domínio do petróleo dos belgas de FINA Petróleos e da Cabinda Golf Oil; a De Beers na exploração diamantífera da Lunda com a empresa Diamang; os alemães da Krupp na exploração mineira de Cassinga e Jamba. Portugal beneficiou de apoio da NATO, a aliança atlântica dos países ocidentais, na sua política de exploração dos povos de Angola e na perseguição da repressão da luta anticolonial travada pelos nacionalistas angolanos. Apoio este caracterizado pelo abas- tecimento em armamento e outras munições de guerra, como em apoio diplomático junto dos outros países e instituições internacionais. Daí podermos deduzir que foi uma conivência dos países ocidentais ao lado de Portugal que sustentou a política colonial de exploração de Angola e de não reconhecimento do direito do povo angolano à liberdade, à independência nacional e à soberania. A reivindicação nacionalista e a fuga para o exílio Perante esta realidade de facto, caracterizada pela política colonial e a recusa das autoridades portuguesas de não entender a voz da razão mesmo pela via pacífica em negociar pelo diálogo a transferência do poder aos representantes das organizações nacionalistas angolanas, ainda numa altura que outras potências ocidentais descolonizavam os seus territórios nos anos sessenta (1960, ano das independências de África), restava só uma alternativa, a de recurso à luta armada. Antes disso muitos angolanos abandonaram o país para o exílio no exterior do país, principalmente nos países vizinhos, em particular o ex-Congo belga (actual Congo Kinshasa). Este país acolheu importantes grupos de refugiados angolanos, que eram maioritariamente originários da zona Norte de Angola, da área etnolinguística Kongo. Este movimento acentuouse em 1961, ano em que se iniciou a luta armada contra o regime colonial português; aldeias inteiras e famílias numerosas deixaram Angola. Duas organizações protagonizaram estas acções em contextos nacionais bem distintos. O MPLA, organização nacionalista, segundo uma versão hoje polémica, fundada em Luanda em 1956 e LATITUDES n° 9 - septembre 2000 cuja liderança e influência foram determinantes no seio da elite mestiça e dos assimilados Mbundu de Luanda. Esta organização apoderou-se da autoria da acção desencadeada por um grupo de patriotas em Luanda na madrugada de 4 de Fevereiro (esta reivindicação é também objecto de uma contestação nos meios da crítica histórica sobre o nacionalismo angolano). A outra organização, a UPA, autora da sublevação do 15 de Março, que afectou toda zona Norte de Angola, e de algumas infiltrações nos subúrbios de Luanda e zonas circumvizinhas. Esta organização tem como fundadores grupos de Bakongos, oriundos da área de São Salvador (Mbanza Kongo), a partir do exílio no ex-Congo belga, donde recrutou e lançou acções no interior do território angolano. Posteriormente, a UPA juntou-se a um outro grupo político, o PDA, para formar a Frente Nacional de Libertação de Angola, FNLA. As organizações políticas tiveram em Léopoldville uma passagem quase que obrigatória no percurso da génese da afirmação das suas respectivas lideranças; isto é pouco realçado, e às vezes ocultado, em certos meios e círculos políticos. Antagonismo entre nacionalistas e letargia no terreno A luta anticolonial contra o regime português foi travada pelos três grupos nacionalistas antes mencionados: a F.N.L.A., o M.P.L.A. e a U.N.I.T.A. Seria de esperar que o facto de terem um inimigo comum deveria existir uma união de forças, com vista a juntar esforços para enfrentar o inimigo. Embora a trajectória de cada uma das organizações fosse específica e caracterizada por um contexto particular, é de salientar divergências entre elas, devidas ás opções políticas, ideológicas e mesmo a ambições pessoais das lideranças em consideração. É de lamentar este facto pelas consequências nefastas que trouxe à luta do povo angolano. As populações, nas diversas zonas sob o controlo dos grupos nacionalistas, eram LATITUDES n° 9 - septembre 2000 quase que reféns destes. Assistia-se às lutas entre eles a degladiarem-se, apesar dos comunicados de guerra triunfalistas, muitas vezes emitidos. A luta de libertação em Angola não ultrapassou tanto uma acção marcada nas zonas fronteiriças com as populações a sofrer, muitas vezes vítimas das represálias. Não se observou, mesmo com as suas características geográficas e naturais específicas, a avanços no terreno como no território de GuinéNo 25 de Abril, a guerrilha está espalhada pelo país mas dividida, e a sua logística e capacidade ofensiva são débeis Bissau. Esse antagocontro rumo a uma paz duradoira. nismo dividiu membros da socieUm observador moçambicano irodade angolana e tem germes pronizava dizendo que a guerra em fundos como parte de explicação Moçambique não se alastrou tanto do anacrónico conflito que se alascomo em Angola pelo facto não tra desde o século passado e a tranexistirem recursos naturais que sitar sem esperança de solução imelevassem os beligerantes e seus diata para o novo milénio. Um protagonistas a tirarem alguns balanço trágico caracterizado por lucros substanciais como em um número importante de mutilaAngola. Em outras palavras, a não dos de guerra, crianças de rua, viúdotação do território moçambicano vos, e viúvas, populações deslocade potencialidades naturais comdas estimadas em cerca de três paráveis a Angola teria poupado a milhões de habitantes, grandes este país uma confrontação sanespaços de terras aráveis abandogrenta tão mortífera como a de nados e estradas minadas. Angola Angola. Este raciocínio tão barato tornou-se um país totalmente não nos parece desprovido de sendependente do exterior quanto às tido. Salientámos de princípio que suas necessidades alimentares; as organizações nacionalistas angoimporta-se tudo: tomate, hortaliças, lanas eram apoiadas por movimenfrangos, ovos, frutas, etc. tos de tendências ideológicas mediante as alianças que se estabeleciam no acesso às ajudas. O MPLA Cobiça das riquezas, “enjeux” era tido como inclinado para a tengeopolíticos e ideológicos dência esquerda, enquanto as duas outras, a FNLA e a UNITA, eram É errado atribuir as culpas do tidas como próximas de regimes alastrar do anacrónico conflito liberais capitalistas, o que em parte angolano exclusivamente aos próexplica o apoio do regime ex-preprios angolanos, embora convesidente Mobutu à FNLA de Holden nhamos que são eles mesmos, em Roberto, e o apoio do regime primeiro lugar, que detêm uma marxista de Brazzaville ao MPLA. solução definitiva para um reen33 Neto, Holden e Savimbi após o 25 de Abril: a rivalidade entre movimentos dá lugar a nova fase da guerra Aliados a estas inclinações ideológicas, os envolvimentos directos ao lado de grupos angolanos em conflito, sem descurar a corrida aos interesses nas áreas da exploração petrolífera e de diamante. Daí uma abertura frutífera ao comércio de armamento, minas, explosivos, bombas. poder para servir-se deste como um alibi para encobrir algumas práticas não conformes com o novo quadro institucional, como o nepotismo, o clientelismo, a bajulação, a não prestação de contas, a ostentação de comportamentos de novo-riquismo, o esbanjamento, a opulência ao lado da demência. A democracia versus “cultura monopartidária” As eleições como legitimação das vitórias de batalhas militares A queda do muro de Berlim e o desmoronamento dos regimes comunistas, inclusive da própria União Soviética, provocou uma conjuntura relativamente favorável à UNITA que, aliada à sua resistência militar interna, constituíram elementos internos e externos conjugados a um determinado grau como elementos motores a mudanças e à transição para a democracia em Angola. Uma transição cujos actores em presença tinham tudo a aprender da cultura de democracia. De facto prevaleceram em Angola dois estados e dois partidos únicos num mesmo espaço territorial, com zonas de influência distintas; talvez se pudesse dizer que o exercício fosse mais evidente do lado da MPLA que da UNITA. Com uma explicação a nível da abertura de novas ideias nos meios urbanos sob domínio do MPLA seja mais evidente. Paradoxalmente a UNITA, ao persistir em guerra, oferece um cheque em branco ao partido no Em 1991 na altura de assinatura dos acordos de Bicesse o MPLA tinha proposto à UNITA a realização de eleições dentro de três anos, como forma de encontrar maneira de restaurar a imagem da sua governação desgastada. A UNITA, forte da convicção da vitória eleitoral, negou a proposta com o convite de fazer parte do governo de transição. A UNITA alegou não estar disposta a gerir ou partilhar a má gestão do partido no poder, pelo falhanço da sua opção ideológica marxista e a corrupção. Apesar de não existir no país condições para a circulação de pessoas e bens, a desmilitarização e a desmobilização das tropas excedentárias, a constituição do exército único, o desarmamento da população civil, a extensão a todo território da administração do Estado, a UNITA não permitiu aos outros partidos o exercício das suas actividades nas zonas sob o seu controle. Um entorse grave no exercício da nova 34 cultura da democracia. Apesar destes condicionalismos, as eleições realizaram-se. Hoje a situação no terreno não é melhor que antes; talvez piorasse. As estradas e outros caminhos para as lavras continuam minadas; o desarmamento da sociedade civil nunca se concretizou. O Estado confundiu-se ao partido no poder, os partidos da oposição sem envergadura, nem criatividade de parir uma figura de consenso para reunir as várias correntes de opinião. A sociedade civil assediada mais atrapalhada se mostrou a gerir o quotidiano: alimentação, água, pão, transportes, rezando aos deuses para não cair doente e manter sempre firme a preciosa saúde, para não viver os piores dissabores com os preços exigidos na assistência médica e medicamentosa caso consiga adquiri-los (medicamentos) nas praças se não estiverem já caducados, fora de prazo de uso e, às vezes, sem mínimas condições higiénicas de conservação. O desespero é tão patente que suspirar “Vamos então fazer mais como ?” tornou-se o refrão do angolano para se consolar da sua situação quase fatídica. As últimas eleições deixaram cicatrizes ainda frescas e profundas amarguras nas mentes de pessoas, pelo que se deduz haver grande proporção de desistência da parte de uma franja importante da população nas próximas eleições. Se esta hipótese for encarada, então o partido no poder terá que recorrer a uma campanha que leve a população a esquecer estas taras sem considerar a outra parte como o único bode expiatório. Um exercício nada fácil pelo rumo dos acontecimentos e a atitude de recusa a conformar-se à realidade dos factos, que se verifica pela reacção da UNITA após a perda dos seus principais feudos e o mítico santuário de Jamba, símbolo durante muito tempo da sua resistência e desafio ao MPLA. Facto quase inédito na história recente do conflito angolano entre os dois protagonistas * Sociólogo, pesquisador do ISCED, Luanda (Angola). LATITUDES n° 9 - septembre 2000