O IDIOTA E O COMPARTILHAMENTO DA CRIAÇÃO COMO POTÊNCIA
POLÍTICO-POÉTICA
BITENCOURT, Tuini dos Santos1
RESUMO
A presente comunicação quer discutir os processos de construção do
espetáculo O Idiota da Mundana Companhia de Teatro, dirigido por Cibele
Forjaz e baseado no romance de Dostoiévski. A peça, de 7 horas de duração,
circulou diversas cidades do Brasil sendo apresentada em “capítulos” divididos
em três dias, ou num único dia com dois pequenos intervalos. O público
acompanha os atores num percurso de múltiplos espaços e inesperadas
apropriações. A intenção desse trabalho é analisar de que modo as condições
de criação muito peculiares influenciaram na qualidade da relação entre atores
e espectadores ao longo de todo o espetáculo. A peça se construiu a partir
uma conjunção de processos abertos. O público compartilhava com os atores
esse momento de gênese, de criação, de desconhecido. E o espetáculo porta
essa relação de inclusão, de participação nesse percurso criativo. A hipótese é
de que esse processo de criação transformado em experiência estética
conferiu uma espécie de potência política muito peculiar, gerando uma forma
específica de inclusão. Através da explicitação das ferramentas da teatralidade,
se constrói uma política dos afetos, da poesia do momento da criação.
Palavras-chave: processos de criação, experiência estética, exercícios
cênicos, política.
1
Tuini Bitencourt é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
UNIRIO. É Mestre em Artes Cênicas também pela UNIRIO (2011) tendo desenvolvido a
pesquisa O Príncipe Constante de Ryszard Cieslak e Jerzy Grotowski: Transgressão e
Processos de Construção como possibilidades do político na arte. Foi atriz da Companhia
Studio Stanislavski; dirigida por Celina Sodré, de 2007 a 2012. Possui graduação em
Comunicação
Social
pela
Universidade
Federal
Fluminense
(2005)
e
Formação
profissionalizante de atriz na Casa das Artes de Laranjeiras (2005). É professora de
interpretação e de História do Teatro e Literatura Dramática.
ABSTRACT
This communication wants to discuss the process of construction of the
spectacle The Idiot acted by the Mundana Theatre Company, directed by
Cybele Forjaz and based on the novel by Dostoiévski. With 7 hours duration,
the play circulated several cities in Brazil and was presented in "chapters"
divided into 3 days or in a single day with two short breaks. The audience
follows the actors in a course of multiple spaces and unexpected
appropriations. The intention of this paper is to analyze how the peculiar rearing
conditions influences the quality of the relationship between actors and
spectators throughout the play. The piece construction was based open
processes, watched by the public. The public shared with actors that moment of
genesis, creation, and unknown. And the play port this relationship of inclusion,
of participation in this creative journey. The hypothesis is that this creative
process transformed into aesthetic experience generated a kind of a peculiar
political power, with its specific mode of inclusion. Through the explicitation of
thetheatricalitytools, it is possible to achieve a policy of affections and poetry of
the creation moment.
Keywords: creative process, aesthetic experience, scenic exercises, politics.
O que é o teatro brasileiro contemporâneo? Quais são os porquês, os
vetores, os caminhos? E se a primeira pergunta fosse repetida assim: O que é
o “teatro brasileiro contemporâneo”? Algo como um nome, um território, uma
casa. Um edifício de múltiplas portas, múltiplas janelas. Mas as chaves não
existem. Ou estão em pleno processo de fabricação.
O teatro está em trânsito. É nômade sim. Mas nós continuamos fixados
na condição tanto etérea quanto eterna de seres humanos. É um teatro do
porvir, cuja síntese está no lugar da utopia. Fingimos compreender o paradoxo
pulsante entre teatralidade e performance do mesmo modo que nos
confortamos com um desenho da casa em risco de giz, ou com um edifício sem
chaves. Ainda não suportamos ser responsáveis por um teatro inapreensível, e
nos instrumentalizamos de palavras.
O conceito de “desconstrução” explorado por Derrida – nosso velho
conhecido, tão eficaz para nomear o inapreensível – forja o mesmo conforto de
que “estamos compreendendo tudo”.
Como compreender, nomear, analisar um teatro que ecoa de tantas
vozes? O embate/relação entre o indivíduo e o coletivo toma novas proporções,
e passa a existir não como problema, mas como um vetor essencial para a
criação. Alguns pensarão: “mas não há embate, esse é um raciocínio
maniqueísta. Não há separações cartesianas”. “Cartesianas” não, epiteliais.
Minha pele é o limite físico imiscível de mim mesmo. Ainda que o “quiasma” de
Merleau Ponty nos traga a alegoria das mãos que se tocam e não sabem mais
se sentem ou são sentidas, ainda existe o “sentir” e o “ser sentido”.
Somos indivíduos na busca pelo contato com outros indivíduos. Essa
busca em comum já é suficiente para formar um coletivo? O que forma um
coletivo? E sobretudo um coletivo capaz de gerar transformações e contatos?
Antonio Negri e Michael Hardt discorrem sobre o conceito de Multidão
(2004):
A multidão, em contrapartida, é múltipla. A multidão é composta
de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a
uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias,
gêneros e orientações sexuais, diferentes formas de trabalho, diferentes
maneiras de viver; diferentes visões de mundo e diferentes desejos. A
multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares. […]
Na multidão, as diferenças sociais mantém-se diferentes, a multidão é
multicolorida. Desse modo, o desafio apresentado pelo conceito de
multidão consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja
capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo em que se
mantém internamente diferente.2
Podemos assim fazer uma analogia com esse coletivo artístico
contemporâneo, resultado do dialogismo permanente entre indivíduos e
promotor das poéticas e políticas da arte do hoje. Político-poéticas do afeto, do
encontro humano, da multidão polifônica, do coletivo em trânsito.
É no sentido deste fôlego investigativo que pretendo lançar um olhar para
os elementos – e mais que para os elementos, para as forças e vetores
2
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão: Guerra e Democracia na era do Império. Rio de
Janeiro: Record, 2004: p. 12-13.
resultantes da relação entre esses elementos – presentes na construção do
espetáculo O Idiota: uma novela teatral, da Mundana Companhia de Teatro,
dirigido por Cibele Forjaz e baseado no romance de Dostoiévski. Um processo
que deu carne às “palavras”, encontrou chaves, derrubou portas e abriu alguns
buracos na parede.
As múltiplas vozes, ou “DNAs”: uma polifonia genética
O Idiota: uma novela teatral, terceira produção da Mundana Companhia
de Teatro3, dirigido por Cibele Forjaz e baseado no romance de Fiodor
Dostoiévski. A peça, com7 horas de duração, estreou no SESC Pompéia, em
São Paulo, em 2010 e teve um processo de criação que durou dois anos. O
espetáculo circulou por diversas cidades do Brasil sendo apresentado em três
“capítulos” divididos em três dias, ou num único dia com dois intervalos.A
narrativa a história do Príncipe Míchkin, que após uma longa ausência para
tratar de uma epilepsia na Suíça, retorna a São Petersburgo, na Rússia, seu
país natal. Míchkin se vê então tragado para um triângulo amoroso, do qual são
participantes as personagens Nastássia Filipovna e Aglaia, fato que o faz ter
contato com emoções nunca antes experimentadas por ele. O Príncipe, um
homem que ama a todos incondicionalmente, e que não possui as ferramentas
para se inserir nas normas e padrões daquele coletivo, e acaba por
sucumbirnuma sociedade assolada pela ganância e pelo vício.
Segundo o filósofo e crítico literário Mikhail Bakhtin, em seu Problemas da
Poética de Dostoiévski a obra de Dostoiévski se diferencia estruturalmente do
romance monológico romântico, uma vez que se desenvolve a partir de “uma
multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos” que “se combinam
numa unidade de acontecimento, mantendo sua imiscibilidade” (BAKHTIN, p.
5). O herói de Dostoiévski não é a representação de uma tese ideológica do
autor ou o veículo para externar e construir uma filosofia do mundo. O olhar do
herói, e, sobretudo do autor/narrador, enxerga os outros personagens não
como objetos do seu ponto de vista, mas como sujeitos, como consciências de
um “outro”, como universos. Essa “multiplicidade substancial de consciências
3
A Mundana Companhia foi criada em 2009 pelos atores Aury Porto e Luah Guimarãez e já
encenou os espetáculos: A Queda (2007), Das Cinzas (2009), O Idiota – uma novela
teatral (2010), Tchekhov – uma experiência cênica (2010) e Pais e Filhos (2012). Atualmente
está em cartaz com a peça O Duelo, baseada no texto de Anton Tchékhov.
imiscíveis” seria então o principal elemento estrutural das obras de Dostoiévski.
Assim,
Bakhtin
atribuiu
à
obra
do
romancista
russo
o
território
desterritorializante do “romance polifônico”.
De fato o conceito de polifonia foi um dos catalisadores artísticos de todo
o processo de O Idiota: uma novela teatral.A construção do espetáculo se
caracterizou pela conjugação de modalidades distintas de processo aberto,
etapas essenciais para a construção tanto da dramaturgia a partir do romance,
quanto da encenação. Segundo a diretora Cibele Forjaz, o trabalho foi
concebido desde o seu início para ser construído junto com o público, o que foi
realizado através de uma extrema precisão das etapas da criação. A obra está
em movimento permanente, e o processo também é obra.
O diretor num processo colaborativo, ele não é tanto um inventor
das formas do espetáculo. É lógico que também é. Mas de uma forma
generosa, porque essas formas, elas vêem também de workshops e
imagens que os atores trouxeram, que o cenógrafo trouxe, que o
iluminador trouxe... Não é uma criação sozinha. É uma grande
construção, uma rede a partir das formas e intervenções criativas de
uma equipe muito grande.Mas tem um papel que é muito importante
para que esse “rebú” dê certo. Que é o “construtor de caminhos do
processo”. Então você tem que construir o caminho de criação. No qual
você delimita um percurso pra que os atores possam criar, para que
toda a equipe possa criar, pra que as pessoas possam criar. (FORJAZ,
2013). 4
Os vetores polifônicos se manifestam ainda na própria formação dessa
equipe criadora, que conta com atores provenientes de múltiplas companhias
paulistas, como Oficina, Teatro da Vertigem, Companhia Livre, Companhia São
Jorge de Variedades, Companhia da Mentira. A pesquisadora e atriz Lúcia
Romano, que interpreta a personagem Aglaia em O Idiota: uma novela Teatral,
discorre sobre a construção dessas “pontes de diálogo entre essas várias
formas de ver o teatro contemporâneo e o trabalho do ator brasileiro”
Um golpe de mestre da direção de Cibele Forjaz residiu em não
insistir na hogeneização dos modos de atuação. Pelo contrário, Forjaz
enfatizou o caráter polifônico da obra russa através de mudanças nos
registros da encenação, assim como nas diferentes escolas de
interpretação. Algumas cenas foram concebidas “à maneira” de um
realismo naturalista, outras do expressionismo, outras do
distanciamento brechtiano e outras, ainda, abusando de um teatralismo
declarado. Da mesma forma, os atores puderam encarnar e expressar
4
Cibele Forjaz em entrevista concedida a mim em 08/08/2013.
com grande autonomia os DNAs dos teatros nos quais foram formados
e cuja linguagem ajudaram a organizar.5
Faz-se necessário, portanto, um maior detalhamento das etapas de
construção do espetáculo, para que se possa compreender melhor a
materialidade do conceito de polifonia, ao qual tanto recorro aqui.
As etapas do processo
A primeira etapa do projeto, realizada entre abril e outubro de 2008, foi
realizada a partir da contemplação pelo Programa Municipal de Fomento ao
Teatro consistiu na leitura e estudos públicos do romance O Idiota, ambos
abertos ao público e realizados na Casa Mário de Andrade/Oficina da Palavra.
Além das leituras foram realizadas oficinas, para as quais foram selecionados
20 oficineiros, cujo objetivo era a realização de experimentações cênicas e
“propostas dramatúrgicas” para a adaptação de trechos do romance. Segundo
Luah Guimarães, atriz e idealizadora do projeto, os atores/oficineiros teriam
sido os “primeiros colaboradores polifônicos” do projeto. Concomitantemente
foram realizadas palestras sobre a poética e a teatralidade de Dostoiévski,
como os especialistas: Boris Schnaiderman, Bruno Gomide e Elena Vássina6.
Todas essas atividades resultaram num primeiro tratamento do roteiro
dramatúrgico, realizado por Aury Porto, ator e idealizador do projeto, Vadim
Niktim, dramaturgo convidado para gestar as poéticas da adaptação do
romance e Luah Guimarãez. Foram eleitas dezoito sequências do romance das
quais Aury Porto se apropria. Essa apropriação - como Luah Guimarãez expõe
no longo e polifônico programa do espetáculo, concebido como a edição de um
jornal - propunha “contar o romance através dos picos de tensão”.
Uma das características da prosa dostoievskiana, já apontada por
vários críticos, é a oscilação entre momentos narrativos de tensão e
5
ROMANO, Lúcia. “Os atores e os DNAs dos teatros” In: Caderno Livre. Cia. Livre:
Experimentos e processos 2000-2011. São Paulo, 2012: p.214.
6
Boris Schnaidermané ensaísta, professor e um dos mais reconhecidos tradutores do russo
para o português. Foi o responsável pela criação do curso de língua e literatura russa da
Universidade de São Paulo (USP). Bruno Gomide é professor da Universidade de São Paulo
(USP), na área de Literatura e Cultura Russa, e é coordenador do Programa de pós-graduação
em literatura e cultura russa. Elena Vássina é pesquisadora e professora russa com doutorado
em História e Teoria de Arte (1984) e Pós-doutorado (1996) em Teoria e Semiótica de Cultura
e Literatura pelo Instituto Estatal de Pesquisa da Arte (Rússia). Atualmente é professora das
Letras Russas na Universidade de São Paulo (USP).
outro de distensão, como se ora falasse o trágico, ora o cronista. Daí
provém o primeiro critério de adaptação do romance: fechar o foco nos
momentos decisivos ou críticos, sejam eles diálogos ou situações. São
o que Bakhtin chama de umbrais, ou seja, instante de viragem. Os
diálogos que regem a grandeza da obra de Dostoiévski são verdadeiras
danças a beira do abismo. O umbral é travessia, momento decisivo e
tenso de crise, de corte, de transformação, saturado de contradições
estraçalhantes, o que lhe dá caráter dionisíaco. É um limiar, um entrelugar problemático na soleira que liga e separa dois lugares.7
Esse primeiro roteiro dramatúrgico, denominado de “roteiro de umbrais e
lugares” norteou as experimentações dos Exercícios Cênicos ocorridos na sede
da Cia. Livre, companhia dirigida por Cibele Forjaz, entre novembro e
dezembro de 2008. Esta foi portanto a segunda etapa do projeto,cujo objetivo
era realizar experimentações cênicas abertas ao público através do encontro
de toda a equipe artística.8
Cibele Forjaz propõe ao dramaturgo Vadim Niktim a elaboraçãode roteiros
dramatúrgicos denominados “ENVELOPES” que continham, indicações e
provocações referentes às partes do romance selecionadas para elencar a
adaptação para o teatro.
ENVELOPE 1 | 25.11.2008
ROTEIRO GERAL
Doença-dança. Letargia. Viagem de trem de Míchkin da Rússia à
Suíça. Passagem pela Alemanha. Letargia, letargia, letargia. (...) A cena
do trem, com Míchkin, Ragôjan e Lhêbediev. O primeiro cara-a-cara
epifânico entre Míchkin e Ragôjan. A chegada a São Petersburgo.
ALESSANDRA DOMINGUES (iluminação) e LAURA VINCI
(cenografia): 1) Se da Rússia à Suíça Míchkin havia tomado um “trem
da morte”, quatro anos depois ele embarca semi-curado num “trem da
vida” rumo à sua terra natal. Não é só uma travessia pelo espaço como
também pelos estados da matéria. (...) O trem Rússia-Moscou-Rússia é
em grande parte feito de luz. O alvorecer do degelo, também. A
natureza suíça, sem comentários. Apenas uma encomenda importante:
7
Vadim Niktim, no programa do espetáculo.
Esse projeto foi realizado através da junção dos projetos de fomento das duas companhias, a
Companhia Livre - dirigida por Cibele Forjaz - cuja intenção era desenvolver estudos sobre o
mito de amor e morte, e a Mundana Companhia liderada pelos atores Luah Guimarãez e Aury
Porto, que tinha o objetivo de mergulhar concretamente no universo cênico e dramatúrgico de
Dostoiévski.
8
a luz da letargia, para ser quebrada pelo canto do jumento. Afinal, a luz
sempre é, por excelência, um zurro, ou seja, uma revelação. 9
Foram elaborados um total de 10 roteiros, correspondentes aos 10 dias
de experimentação cênica abertos ao público ocorridos na sede da Companhia
Livre. Para esses improvisos/experimentações foram convidados atores da
Companhia Livre, em conjunto com os atores que permaneceram até a
realização da montagem do espetáculo: Aury Porto, Luah Guimarãez e Lúcia
Romano.
A cenógrafa Laura Vinci, a iluminadora Alessandra Domingues,a
figurinista Joana Porto e o diretor musical Otávio Ortegarecebiamo roteiro, de
dois a um dia antes da próxima experimentação a ser realizada. Essa equipe
desenvolvia nesse pequeno tempo propostas e elementos para o espaço,
figurino e trilha sonora. Os atores e a direção recebiam o roteiro 4 horas antes
da improvisação da noite, e o estudavam transformando-o num roteiro de
ações. Ao chegar no espaço, elenco e diretora se deparavam com as proposta
da equipe técnico/artística.
Às 16h, pontualmente, abríamos o envelope e começávamos a
urdir o roteiro da noite. A cada encontro, um pedaço de O Idiota ia
sendo narrado ao público. Não havia possibilidade de repetição, porque
o roteiro era combinado com os atores sentados em cadeiras, sem
nenhum ensaio. A consciência de que os improvisos aconteceriam uma
única vez e se desvaneceriam junto com a noite causava, em todos, um
sentimento de rigor e urgência, que respaldava o exercício teatral no
melhor sentido10.
Essa precisão, relativa à combinação e realização dos procedimentos, foi
capaz
de
gerar
uma
circunstância
criativa
muito
potente.
As
apresentações/improvisos não eram o resultado de um ensaio ou de um
espetáculo inacabado. O público compartilhava com o elenco esse momento
de gênese, de criação, de exploração do desconhecido, que não tinha limite de
duração temporal. Aqui, o processo de criação era, desta forma, transformado
em experiência estética, o que produzia uma forma muito específica de
inclusão e de engajamento. Esta foi uma etapa fundamental para o
estabelecimento de alguns dos elementos e características que norteariam a
encenação. Segundo Luah Guimarãez:
9
Texto extraído do ENVELOPE 1.
Cibele Forjaz, no programa do espetáculo.
10
Os exercícios cênicos representaram um marco para todos os que
participaram, foram dez dias em “estado de graça”. O conceito de
polifonia foi vivenciado por cada membro desse coletivo, e se tornou
nossa segunda poética como norte na criação da dramaturgia final e,
também, agora, no processo de montagem.11
O resultado dramatúrgico dessa empreitada foi concluído por Aury Porto,
que finalizou o material textual utilizado na montagem da peça.
A terceira etapa do projeto foi realizada entre novembro de 2009 e março
de 2010. Neste momento se realizaram os ensaios para o espetáculo, já com o
elenco definitivo e estreia prevista e realizada no dia 30 de março de 2009 no
SESC Pompéia, em São Paulo.
O espetáculo foi construído através de ensaios abertos numa travessia
por 9 unidades do Sesc, no interior de São Paulo. Era realizado um capítulo da
adaptação por noite, nas unidades de Araraquara, São José dos Campos,
Santo André, Campinas, São José do Rio Preto, São Carlos, Ribeirão Preto e
Bauru, com a estreia no Pompéia.
“Rito teatral explícito” é como nomeei o procedimento específico
de trabalho elaborado para nortear a construção cênica da novela
teatral O Idiota. Uma tradução para o teatro do conceito de POLIFONIA,
palavra cara ao crítico Mikhail Bakhtin, que significa, grosso modo, uma
encruzilhada de pontos de vista projetados sobre um mesmo
acontecimento ou narrativa, um turbilhão incessante de ideias.12
Os procedimentos utilizados na construção de O Idiota: uma novela
teatral parecem responder a alguns dos questionamentos dispostos no início
deste artigo. A construção de um campo de experiência em que os
espectadores são testemunhas constantes de atos de criação e compartilham
do risco e da tensão dos atores imersos no vazio do momento pré-criativo,
reunidos em uma espacialidade criada com esse objetivo, é um modo de
participação que busca incluir os espectadores através do desnudamento da
gênese do processo de criação e de seus mecanismos. Essa participação é
fundamentalmente política, justamente por se instaurar nesse limite de
dissoluções de fronteiras e superação de oposições. Esse “coletivo-multidão”
do teatro contemporâneo se manifesta aqui em todas as etapas da criação do
espetáculo O Idiota: uma novela teatral, que constrói uma espécie de
11
Luah Guimarãez, no programa do espetáculo.
Cibele Forjaz, no programa do espetáculo.
12
compartilhamento muito particular e instaura a experiência política através
dessa qualidade de experiência estética.
O espetáculo e o espaço
Gostaria de propor agora um olhar “entrelaçado” entre as poéticas
espaciais do espetáculo analisado e o texto de Nelson Brissac Peixoto,
Passagens da imagem: pintura, fotografia, cinema, arquitetura.
O princípio desse processo é o movimento, que transforma o
ponto em linha. Deleuze definiu assim essa condição: estar no
meio, como o mato que cresce entre as pedras. Mover-se entre as
coisas e instaurar uma lógica do ‘e’. Conexão entre um ponto
qualquer e outro ponto qualquer. Sem começo nem fim, mas entre.
Não se trata de uma simples relação entre duas coisas, mas do
lugar onde elas ganham velocidade. O ‘entre-lugar’. Seu tecido é a
conjunção “e... e... e...”. Algo que acontece entre os elementos,
mas que não se reduz aos seus termos. Diferente de uma lógica
binária, é uma justaposição ilimitada de conjuntos.13
Esse trecho traduz quase fotograficamente a sensação estética
provocada pela construção espaço-temporal de O Idiota. Brissac discorre sobre
o conceito de passagens, que seriam “a arquitetura da cidade das imagens”
(Idem: p.237). O autor recorre a esse conceito com o objetivo de caracterizar a
estética da contemporaneidade como o resultado de uma interpenetração de
linguagens, imagens e arquiteturas.
O espetáculo O Idiota: uma novela teatral foi dividido em capítulos ligados
aos principais movimentos de ação presentes no romance de Dostoiévski.
Cada cena correspondia a um desses capítulos, e era realizada em cenários
totalmente distintos e distantes entre si. O público tinha que caminhar
compondo grandes “procissões” para chegar no próximo lugar da encenação.
No trecho destacado, essa “lógica do e”, remete aos elementos que
estruturam a participação dos espectadores que caminham pelo espaço sem
ponto fixo, buscando a próxima cena. O público segue os atores numa
itinerância que dura 7 horas e dá corpo a essa “justaposição ilimitada de
conjuntos”.
13
PEIXOTO, Nelson Brissac. “Passagens da imagem: pintura, fotografia, cinema, arquitetura”.
In PARENTE, André (org.) Imagem-máquina: A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1993: p.238).
Os cenários e objetos de cena compõem uma profusão visual sempre
renovada. Cada cena instaura um novo espaço temporal, pictórico e psíquico.
E ao mesmo tempo temos a consciência de que aquele espaço é apenas uma
parte do caminho que vai continuar sendo percorrido.
Esses caminhos, que instauram “entre-lugares” incorporados pelo
espetáculo, são justamente os momentos em que os atores estabelecem uma
interação mais próxima com o público, construindo uma relação sem
distinções, hierarquias. Não há nada além de muitas humanidades no mesmo
percurso.
É curioso encontrar durante o intervalo entre uma cena e outra atores
bebendo água ou fumando um cigarro. Eles estão vivos, espalhados não pelo
espaço da cena, mas pelo espaço daquele acontecimento partilhado.
Assim o compartilhamento do percurso por atores e espectadores acaba
por contribuir para o estabelecimento de uma relação de qualidade muito
particular. É como se todos estivéssemos buscando alguma coisa. E para
encontrá-la é necessário percorrer o caminho. Mas o primeiro encontro é entre
todos nós, espectadores e atores que juntos – principalmente nessas grandes
romarias entre-cenas – compõem um “ser de porosidade e pregnância”14. Um
entrelaçado no qual espaço e tempo tomam parte, dando forma a um
continuum de percurso e duração.
Os elementos cenográficos são utilizados justamente como dispositivos
que se relacionam entre si produzindo múltiplas camadas e desdobramentos.
Esse lugar das passagens acaba por se instaurar não apenas durante o
percurso entre uma cena e outra, mas no interior de cada etapa do espetáculo.
É freqüente o uso de grandes passarelas em que os atores se deslocam como
se buscassem sempre o caminho, a abertura para o próximo percurso, para a
fissura que vai desencadear a continuação da caminhada.
O próprio texto de Dostoiévski está estruturado em “espaços narrativos”
que se desenvolvem dentro dessa lógica de saturação e desdobramento. É
como se a ação caminhasse em direção ao seu próprio esgotamento, e em
algum momento é preciso que ela “escoe” tomando novas direções,
transformando atores e público novamente em caminhantes com destino
14
Idem.
incerto. A experiência estética se constrói aqui através de um movimento
contínuo e imprevisível, em que a atmosfera das passagens se constitui numa
cenografia que não busca criar o simulacro de um ambiente inexistente, mas
que faz do próprio local dispositivo e discurso.
O político-poético
Quero recorrer agora ao conceito de político-poético, cunhado pela
professora e pesquisadora Sueli Rolnik15.Esse lugar da construção artística e
política num mundo contemporâneo, em que se fluidificam e se despolarizam
as estratégias de captura do poder, é bastante prolífero como material para a
presente discussão. Rolnik afirma que a resistência e as estratégias de
transgressão hoje não se localiza mais num lugar fixo, ou que se justifica a
partir da simples oposição ao regime vigente, mas se configuram tendo como
principal alvo “o princípio que norteia o destino da criação”. Dentro de um
pensamento que vê o capitalismo contemporâneo como estimulador e
capturador de subjetividades e de formas de criação múltiplas, Rolnik considera
o artista criador aquele que precisa lidar com essa ambigüidade, com esse
problema específico, e utiliza como exemplo a obra do artista plástico
pernambucano Tunga. As “Instaurações” são obras híbridas que contemplam
um “conjunto formado pela performance + processo + instalação” que “instaura
‟um mundo”.
Dispositivo singular que, com sagacidade e humor, instala-se no
âmago da ambigüidade do capitalismo contemporâneo, e de dentro dele
problematiza e negocia com sua nova modalidade de relação com a
cultura. Estratégia que mantém viva a função político-poética da arte e
impede que o vetor perverso do capitalismo tome conta da cena,
reduzindo a arte a mera fonte de mais-valia, esvaziando-a por completo
de sua função.16
É interessante perceber a multiplicidade de questões geradas pela citação
acima, que inicialmente enxerga o artista contemporâneo como um
“negociador” que se move no interior da dinâmica das relações capitalistas de
15
Suely Rolin é psicanalista, crítica de arte e cultura, curadora, Professora Titular da PUC-SP e
docente convidada do Programa de Estudios Independientes do Museu de Arte
Contemporáneo de Barcelona.
16
ROLNIK, Suely. Despachos no Museu, sabe-se lá o que vai acontecer. Conferência
apresentada em The Deleuzian Age, Californian College of Arts and Crafts São Francisco,
2000. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102392001000300002&script=sci_arttext.
poder, estabelecendo-se ao mesmo tempo como parte dessa dinâmica e como
uma alternativa a ela mesma. Mas, no mesmo parágrafo, Rolnik ressalta o
“vetor perverso do capitalismo” que se apropria economicamente da arte e a
esvazia completamente de sua função. Essa expressão remonta, de certa
forma um raciocínio maniqueísta que quer se afirmar a partir da negação e da
aniquilação do outro, vendo a arte política e de resistência como um
microcosmo da luta entre a ideologia de esquerda e a de direita. Mas ainda
assim, a construção do pensamento nesse texto se aproxima de uma busca
por reconhecer a obra de arte em sua positividade, uma vez que “as
manifestações da potência criadora tendem a não mais ser interpretadas como
anormalidade, transgressão de uma referência absolutizada, mas sim como
anomalia; tomadas em sua positividade, tais manifestações deixam de ser
malditas” (ROLNIK, 2000).
O conceito de função político-poética da artetraz uma definição ao mesmo
tempo precisa e instigante desse entre-lugar proveniente das relações entre
arte e política. A filosofia contemporânea enfrenta esse tema construindo um
campo de conhecimento espiralado e auto-reflexivo.
Entendo que tanto a experiência estética instaurada no processo de
construção do espetáculo O Idiota: uma novela teatral, quanto o resultado da
obrasão desdobramentos e manifestações do político na arte, ou do políticopoético
Segundo Jaques Ranciére:
Temos de pensar na estética em sentido largo, como modos de
percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos
constroem o mundo. É um processo estético que cria o novo, ou seja,
desloca os dados do problema.17 (RANCIÉRE, Entrevista).
Para o autor, a experiência estética é essencialmente política por ser uma
constante “reformulação do universo dos possíveis”. Desse modo, como
podemos pensar nesse modo de conceber os processos artísticos como um
conjunto ininterrupto de reformulações, em que os modos de fazer vão se
configurando como o próprio fazer?
17
Entrevista com Jacques Rancière disponível em
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere/
O “Rito teatral explícito” a que Cibele denominou os procedimentos de
criação de O Idiota: uma novela Teatral, se apresenta aqui não só como
estética do espetáculo, mas como uma lógica que atravessa todo o processo
de construção. A explicitação do processo se transforma, assim, num
procedimento artístico. O procedimento artístico se transforma, assim, em obra.
REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo
Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Ed.34,
2002.
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva,
2010.
FISHER, Stela. Processo colaborativo e experiências de companhias teatrais
brasileiras. São Paulo: Hucitec, 2008.
FORJAZ, Cibele. A novela Teatral “O Idiota”. Texto presente no programa da
peça diagramado em formato de jornal, em 2010.
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. 2004 – Multidão: Guerra e Democracia na
era do Império. Rio de Janeiro: Record.
PEIXOTO, Nelson Brissac. “Passagens da imagem: pintura, fotografia, cinema,
arquitetura”. In PARENTE, André (org.) Imagem-máquina: A era das
tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. P. 237-252.
RANCIÈRE, Jacques. O Espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes,
2012.
Programa da peça O Idiota: uma novela teatral
ROLNIK, Suely. Despachos no Museu, sabe-se lá o que vai acontecer.
Conferência apresentada em The Deleuzian Age, Californian College of Arts
and
Crafts
São
Francisco,
2000.
Disponível
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102392001000300002&script=sci_arttext.
ROMANO, Lúcia. “Os atores e os DNAs dos teatros” In: Caderno Livre. Cia.
Livre: Experimentos e processos 2000-2011. São Paulo, 2012: p.214.
em:
Entrevistas
Entrevista com Cibele Forjaz, concedida a mim em 08/08/2013
Entrevista com Lúcia Romano, concedida a mim em 09/08/2013
Entrevista com Jacques Rancière disponível em
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere/
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O idiota e o compartilhamento da criação como potência