O IDIOTA E O COMPARTILHAMENTO DA CRIAÇÃO COMO POTÊNCIA POLÍTICO-POÉTICA BITENCOURT, Tuini dos Santos1 RESUMO A presente comunicação quer discutir os processos de construção do espetáculo O Idiota da Mundana Companhia de Teatro, dirigido por Cibele Forjaz e baseado no romance de Dostoiévski. A peça, de 7 horas de duração, circulou diversas cidades do Brasil sendo apresentada em “capítulos” divididos em três dias, ou num único dia com dois pequenos intervalos. O público acompanha os atores num percurso de múltiplos espaços e inesperadas apropriações. A intenção desse trabalho é analisar de que modo as condições de criação muito peculiares influenciaram na qualidade da relação entre atores e espectadores ao longo de todo o espetáculo. A peça se construiu a partir uma conjunção de processos abertos. O público compartilhava com os atores esse momento de gênese, de criação, de desconhecido. E o espetáculo porta essa relação de inclusão, de participação nesse percurso criativo. A hipótese é de que esse processo de criação transformado em experiência estética conferiu uma espécie de potência política muito peculiar, gerando uma forma específica de inclusão. Através da explicitação das ferramentas da teatralidade, se constrói uma política dos afetos, da poesia do momento da criação. Palavras-chave: processos de criação, experiência estética, exercícios cênicos, política. 1 Tuini Bitencourt é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO. É Mestre em Artes Cênicas também pela UNIRIO (2011) tendo desenvolvido a pesquisa O Príncipe Constante de Ryszard Cieslak e Jerzy Grotowski: Transgressão e Processos de Construção como possibilidades do político na arte. Foi atriz da Companhia Studio Stanislavski; dirigida por Celina Sodré, de 2007 a 2012. Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (2005) e Formação profissionalizante de atriz na Casa das Artes de Laranjeiras (2005). É professora de interpretação e de História do Teatro e Literatura Dramática. ABSTRACT This communication wants to discuss the process of construction of the spectacle The Idiot acted by the Mundana Theatre Company, directed by Cybele Forjaz and based on the novel by Dostoiévski. With 7 hours duration, the play circulated several cities in Brazil and was presented in "chapters" divided into 3 days or in a single day with two short breaks. The audience follows the actors in a course of multiple spaces and unexpected appropriations. The intention of this paper is to analyze how the peculiar rearing conditions influences the quality of the relationship between actors and spectators throughout the play. The piece construction was based open processes, watched by the public. The public shared with actors that moment of genesis, creation, and unknown. And the play port this relationship of inclusion, of participation in this creative journey. The hypothesis is that this creative process transformed into aesthetic experience generated a kind of a peculiar political power, with its specific mode of inclusion. Through the explicitation of thetheatricalitytools, it is possible to achieve a policy of affections and poetry of the creation moment. Keywords: creative process, aesthetic experience, scenic exercises, politics. O que é o teatro brasileiro contemporâneo? Quais são os porquês, os vetores, os caminhos? E se a primeira pergunta fosse repetida assim: O que é o “teatro brasileiro contemporâneo”? Algo como um nome, um território, uma casa. Um edifício de múltiplas portas, múltiplas janelas. Mas as chaves não existem. Ou estão em pleno processo de fabricação. O teatro está em trânsito. É nômade sim. Mas nós continuamos fixados na condição tanto etérea quanto eterna de seres humanos. É um teatro do porvir, cuja síntese está no lugar da utopia. Fingimos compreender o paradoxo pulsante entre teatralidade e performance do mesmo modo que nos confortamos com um desenho da casa em risco de giz, ou com um edifício sem chaves. Ainda não suportamos ser responsáveis por um teatro inapreensível, e nos instrumentalizamos de palavras. O conceito de “desconstrução” explorado por Derrida – nosso velho conhecido, tão eficaz para nomear o inapreensível – forja o mesmo conforto de que “estamos compreendendo tudo”. Como compreender, nomear, analisar um teatro que ecoa de tantas vozes? O embate/relação entre o indivíduo e o coletivo toma novas proporções, e passa a existir não como problema, mas como um vetor essencial para a criação. Alguns pensarão: “mas não há embate, esse é um raciocínio maniqueísta. Não há separações cartesianas”. “Cartesianas” não, epiteliais. Minha pele é o limite físico imiscível de mim mesmo. Ainda que o “quiasma” de Merleau Ponty nos traga a alegoria das mãos que se tocam e não sabem mais se sentem ou são sentidas, ainda existe o “sentir” e o “ser sentido”. Somos indivíduos na busca pelo contato com outros indivíduos. Essa busca em comum já é suficiente para formar um coletivo? O que forma um coletivo? E sobretudo um coletivo capaz de gerar transformações e contatos? Antonio Negri e Michael Hardt discorrem sobre o conceito de Multidão (2004): A multidão, em contrapartida, é múltipla. A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais, diferentes formas de trabalho, diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares. […] Na multidão, as diferenças sociais mantém-se diferentes, a multidão é multicolorida. Desse modo, o desafio apresentado pelo conceito de multidão consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo em que se mantém internamente diferente.2 Podemos assim fazer uma analogia com esse coletivo artístico contemporâneo, resultado do dialogismo permanente entre indivíduos e promotor das poéticas e políticas da arte do hoje. Político-poéticas do afeto, do encontro humano, da multidão polifônica, do coletivo em trânsito. É no sentido deste fôlego investigativo que pretendo lançar um olhar para os elementos – e mais que para os elementos, para as forças e vetores 2 HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão: Guerra e Democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2004: p. 12-13. resultantes da relação entre esses elementos – presentes na construção do espetáculo O Idiota: uma novela teatral, da Mundana Companhia de Teatro, dirigido por Cibele Forjaz e baseado no romance de Dostoiévski. Um processo que deu carne às “palavras”, encontrou chaves, derrubou portas e abriu alguns buracos na parede. As múltiplas vozes, ou “DNAs”: uma polifonia genética O Idiota: uma novela teatral, terceira produção da Mundana Companhia de Teatro3, dirigido por Cibele Forjaz e baseado no romance de Fiodor Dostoiévski. A peça, com7 horas de duração, estreou no SESC Pompéia, em São Paulo, em 2010 e teve um processo de criação que durou dois anos. O espetáculo circulou por diversas cidades do Brasil sendo apresentado em três “capítulos” divididos em três dias, ou num único dia com dois intervalos.A narrativa a história do Príncipe Míchkin, que após uma longa ausência para tratar de uma epilepsia na Suíça, retorna a São Petersburgo, na Rússia, seu país natal. Míchkin se vê então tragado para um triângulo amoroso, do qual são participantes as personagens Nastássia Filipovna e Aglaia, fato que o faz ter contato com emoções nunca antes experimentadas por ele. O Príncipe, um homem que ama a todos incondicionalmente, e que não possui as ferramentas para se inserir nas normas e padrões daquele coletivo, e acaba por sucumbirnuma sociedade assolada pela ganância e pelo vício. Segundo o filósofo e crítico literário Mikhail Bakhtin, em seu Problemas da Poética de Dostoiévski a obra de Dostoiévski se diferencia estruturalmente do romance monológico romântico, uma vez que se desenvolve a partir de “uma multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos” que “se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo sua imiscibilidade” (BAKHTIN, p. 5). O herói de Dostoiévski não é a representação de uma tese ideológica do autor ou o veículo para externar e construir uma filosofia do mundo. O olhar do herói, e, sobretudo do autor/narrador, enxerga os outros personagens não como objetos do seu ponto de vista, mas como sujeitos, como consciências de um “outro”, como universos. Essa “multiplicidade substancial de consciências 3 A Mundana Companhia foi criada em 2009 pelos atores Aury Porto e Luah Guimarãez e já encenou os espetáculos: A Queda (2007), Das Cinzas (2009), O Idiota – uma novela teatral (2010), Tchekhov – uma experiência cênica (2010) e Pais e Filhos (2012). Atualmente está em cartaz com a peça O Duelo, baseada no texto de Anton Tchékhov. imiscíveis” seria então o principal elemento estrutural das obras de Dostoiévski. Assim, Bakhtin atribuiu à obra do romancista russo o território desterritorializante do “romance polifônico”. De fato o conceito de polifonia foi um dos catalisadores artísticos de todo o processo de O Idiota: uma novela teatral.A construção do espetáculo se caracterizou pela conjugação de modalidades distintas de processo aberto, etapas essenciais para a construção tanto da dramaturgia a partir do romance, quanto da encenação. Segundo a diretora Cibele Forjaz, o trabalho foi concebido desde o seu início para ser construído junto com o público, o que foi realizado através de uma extrema precisão das etapas da criação. A obra está em movimento permanente, e o processo também é obra. O diretor num processo colaborativo, ele não é tanto um inventor das formas do espetáculo. É lógico que também é. Mas de uma forma generosa, porque essas formas, elas vêem também de workshops e imagens que os atores trouxeram, que o cenógrafo trouxe, que o iluminador trouxe... Não é uma criação sozinha. É uma grande construção, uma rede a partir das formas e intervenções criativas de uma equipe muito grande.Mas tem um papel que é muito importante para que esse “rebú” dê certo. Que é o “construtor de caminhos do processo”. Então você tem que construir o caminho de criação. No qual você delimita um percurso pra que os atores possam criar, para que toda a equipe possa criar, pra que as pessoas possam criar. (FORJAZ, 2013). 4 Os vetores polifônicos se manifestam ainda na própria formação dessa equipe criadora, que conta com atores provenientes de múltiplas companhias paulistas, como Oficina, Teatro da Vertigem, Companhia Livre, Companhia São Jorge de Variedades, Companhia da Mentira. A pesquisadora e atriz Lúcia Romano, que interpreta a personagem Aglaia em O Idiota: uma novela Teatral, discorre sobre a construção dessas “pontes de diálogo entre essas várias formas de ver o teatro contemporâneo e o trabalho do ator brasileiro” Um golpe de mestre da direção de Cibele Forjaz residiu em não insistir na hogeneização dos modos de atuação. Pelo contrário, Forjaz enfatizou o caráter polifônico da obra russa através de mudanças nos registros da encenação, assim como nas diferentes escolas de interpretação. Algumas cenas foram concebidas “à maneira” de um realismo naturalista, outras do expressionismo, outras do distanciamento brechtiano e outras, ainda, abusando de um teatralismo declarado. Da mesma forma, os atores puderam encarnar e expressar 4 Cibele Forjaz em entrevista concedida a mim em 08/08/2013. com grande autonomia os DNAs dos teatros nos quais foram formados e cuja linguagem ajudaram a organizar.5 Faz-se necessário, portanto, um maior detalhamento das etapas de construção do espetáculo, para que se possa compreender melhor a materialidade do conceito de polifonia, ao qual tanto recorro aqui. As etapas do processo A primeira etapa do projeto, realizada entre abril e outubro de 2008, foi realizada a partir da contemplação pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro consistiu na leitura e estudos públicos do romance O Idiota, ambos abertos ao público e realizados na Casa Mário de Andrade/Oficina da Palavra. Além das leituras foram realizadas oficinas, para as quais foram selecionados 20 oficineiros, cujo objetivo era a realização de experimentações cênicas e “propostas dramatúrgicas” para a adaptação de trechos do romance. Segundo Luah Guimarães, atriz e idealizadora do projeto, os atores/oficineiros teriam sido os “primeiros colaboradores polifônicos” do projeto. Concomitantemente foram realizadas palestras sobre a poética e a teatralidade de Dostoiévski, como os especialistas: Boris Schnaiderman, Bruno Gomide e Elena Vássina6. Todas essas atividades resultaram num primeiro tratamento do roteiro dramatúrgico, realizado por Aury Porto, ator e idealizador do projeto, Vadim Niktim, dramaturgo convidado para gestar as poéticas da adaptação do romance e Luah Guimarãez. Foram eleitas dezoito sequências do romance das quais Aury Porto se apropria. Essa apropriação - como Luah Guimarãez expõe no longo e polifônico programa do espetáculo, concebido como a edição de um jornal - propunha “contar o romance através dos picos de tensão”. Uma das características da prosa dostoievskiana, já apontada por vários críticos, é a oscilação entre momentos narrativos de tensão e 5 ROMANO, Lúcia. “Os atores e os DNAs dos teatros” In: Caderno Livre. Cia. Livre: Experimentos e processos 2000-2011. São Paulo, 2012: p.214. 6 Boris Schnaidermané ensaísta, professor e um dos mais reconhecidos tradutores do russo para o português. Foi o responsável pela criação do curso de língua e literatura russa da Universidade de São Paulo (USP). Bruno Gomide é professor da Universidade de São Paulo (USP), na área de Literatura e Cultura Russa, e é coordenador do Programa de pós-graduação em literatura e cultura russa. Elena Vássina é pesquisadora e professora russa com doutorado em História e Teoria de Arte (1984) e Pós-doutorado (1996) em Teoria e Semiótica de Cultura e Literatura pelo Instituto Estatal de Pesquisa da Arte (Rússia). Atualmente é professora das Letras Russas na Universidade de São Paulo (USP). outro de distensão, como se ora falasse o trágico, ora o cronista. Daí provém o primeiro critério de adaptação do romance: fechar o foco nos momentos decisivos ou críticos, sejam eles diálogos ou situações. São o que Bakhtin chama de umbrais, ou seja, instante de viragem. Os diálogos que regem a grandeza da obra de Dostoiévski são verdadeiras danças a beira do abismo. O umbral é travessia, momento decisivo e tenso de crise, de corte, de transformação, saturado de contradições estraçalhantes, o que lhe dá caráter dionisíaco. É um limiar, um entrelugar problemático na soleira que liga e separa dois lugares.7 Esse primeiro roteiro dramatúrgico, denominado de “roteiro de umbrais e lugares” norteou as experimentações dos Exercícios Cênicos ocorridos na sede da Cia. Livre, companhia dirigida por Cibele Forjaz, entre novembro e dezembro de 2008. Esta foi portanto a segunda etapa do projeto,cujo objetivo era realizar experimentações cênicas abertas ao público através do encontro de toda a equipe artística.8 Cibele Forjaz propõe ao dramaturgo Vadim Niktim a elaboraçãode roteiros dramatúrgicos denominados “ENVELOPES” que continham, indicações e provocações referentes às partes do romance selecionadas para elencar a adaptação para o teatro. ENVELOPE 1 | 25.11.2008 ROTEIRO GERAL Doença-dança. Letargia. Viagem de trem de Míchkin da Rússia à Suíça. Passagem pela Alemanha. Letargia, letargia, letargia. (...) A cena do trem, com Míchkin, Ragôjan e Lhêbediev. O primeiro cara-a-cara epifânico entre Míchkin e Ragôjan. A chegada a São Petersburgo. ALESSANDRA DOMINGUES (iluminação) e LAURA VINCI (cenografia): 1) Se da Rússia à Suíça Míchkin havia tomado um “trem da morte”, quatro anos depois ele embarca semi-curado num “trem da vida” rumo à sua terra natal. Não é só uma travessia pelo espaço como também pelos estados da matéria. (...) O trem Rússia-Moscou-Rússia é em grande parte feito de luz. O alvorecer do degelo, também. A natureza suíça, sem comentários. Apenas uma encomenda importante: 7 Vadim Niktim, no programa do espetáculo. Esse projeto foi realizado através da junção dos projetos de fomento das duas companhias, a Companhia Livre - dirigida por Cibele Forjaz - cuja intenção era desenvolver estudos sobre o mito de amor e morte, e a Mundana Companhia liderada pelos atores Luah Guimarãez e Aury Porto, que tinha o objetivo de mergulhar concretamente no universo cênico e dramatúrgico de Dostoiévski. 8 a luz da letargia, para ser quebrada pelo canto do jumento. Afinal, a luz sempre é, por excelência, um zurro, ou seja, uma revelação. 9 Foram elaborados um total de 10 roteiros, correspondentes aos 10 dias de experimentação cênica abertos ao público ocorridos na sede da Companhia Livre. Para esses improvisos/experimentações foram convidados atores da Companhia Livre, em conjunto com os atores que permaneceram até a realização da montagem do espetáculo: Aury Porto, Luah Guimarãez e Lúcia Romano. A cenógrafa Laura Vinci, a iluminadora Alessandra Domingues,a figurinista Joana Porto e o diretor musical Otávio Ortegarecebiamo roteiro, de dois a um dia antes da próxima experimentação a ser realizada. Essa equipe desenvolvia nesse pequeno tempo propostas e elementos para o espaço, figurino e trilha sonora. Os atores e a direção recebiam o roteiro 4 horas antes da improvisação da noite, e o estudavam transformando-o num roteiro de ações. Ao chegar no espaço, elenco e diretora se deparavam com as proposta da equipe técnico/artística. Às 16h, pontualmente, abríamos o envelope e começávamos a urdir o roteiro da noite. A cada encontro, um pedaço de O Idiota ia sendo narrado ao público. Não havia possibilidade de repetição, porque o roteiro era combinado com os atores sentados em cadeiras, sem nenhum ensaio. A consciência de que os improvisos aconteceriam uma única vez e se desvaneceriam junto com a noite causava, em todos, um sentimento de rigor e urgência, que respaldava o exercício teatral no melhor sentido10. Essa precisão, relativa à combinação e realização dos procedimentos, foi capaz de gerar uma circunstância criativa muito potente. As apresentações/improvisos não eram o resultado de um ensaio ou de um espetáculo inacabado. O público compartilhava com o elenco esse momento de gênese, de criação, de exploração do desconhecido, que não tinha limite de duração temporal. Aqui, o processo de criação era, desta forma, transformado em experiência estética, o que produzia uma forma muito específica de inclusão e de engajamento. Esta foi uma etapa fundamental para o estabelecimento de alguns dos elementos e características que norteariam a encenação. Segundo Luah Guimarãez: 9 Texto extraído do ENVELOPE 1. Cibele Forjaz, no programa do espetáculo. 10 Os exercícios cênicos representaram um marco para todos os que participaram, foram dez dias em “estado de graça”. O conceito de polifonia foi vivenciado por cada membro desse coletivo, e se tornou nossa segunda poética como norte na criação da dramaturgia final e, também, agora, no processo de montagem.11 O resultado dramatúrgico dessa empreitada foi concluído por Aury Porto, que finalizou o material textual utilizado na montagem da peça. A terceira etapa do projeto foi realizada entre novembro de 2009 e março de 2010. Neste momento se realizaram os ensaios para o espetáculo, já com o elenco definitivo e estreia prevista e realizada no dia 30 de março de 2009 no SESC Pompéia, em São Paulo. O espetáculo foi construído através de ensaios abertos numa travessia por 9 unidades do Sesc, no interior de São Paulo. Era realizado um capítulo da adaptação por noite, nas unidades de Araraquara, São José dos Campos, Santo André, Campinas, São José do Rio Preto, São Carlos, Ribeirão Preto e Bauru, com a estreia no Pompéia. “Rito teatral explícito” é como nomeei o procedimento específico de trabalho elaborado para nortear a construção cênica da novela teatral O Idiota. Uma tradução para o teatro do conceito de POLIFONIA, palavra cara ao crítico Mikhail Bakhtin, que significa, grosso modo, uma encruzilhada de pontos de vista projetados sobre um mesmo acontecimento ou narrativa, um turbilhão incessante de ideias.12 Os procedimentos utilizados na construção de O Idiota: uma novela teatral parecem responder a alguns dos questionamentos dispostos no início deste artigo. A construção de um campo de experiência em que os espectadores são testemunhas constantes de atos de criação e compartilham do risco e da tensão dos atores imersos no vazio do momento pré-criativo, reunidos em uma espacialidade criada com esse objetivo, é um modo de participação que busca incluir os espectadores através do desnudamento da gênese do processo de criação e de seus mecanismos. Essa participação é fundamentalmente política, justamente por se instaurar nesse limite de dissoluções de fronteiras e superação de oposições. Esse “coletivo-multidão” do teatro contemporâneo se manifesta aqui em todas as etapas da criação do espetáculo O Idiota: uma novela teatral, que constrói uma espécie de 11 Luah Guimarãez, no programa do espetáculo. Cibele Forjaz, no programa do espetáculo. 12 compartilhamento muito particular e instaura a experiência política através dessa qualidade de experiência estética. O espetáculo e o espaço Gostaria de propor agora um olhar “entrelaçado” entre as poéticas espaciais do espetáculo analisado e o texto de Nelson Brissac Peixoto, Passagens da imagem: pintura, fotografia, cinema, arquitetura. O princípio desse processo é o movimento, que transforma o ponto em linha. Deleuze definiu assim essa condição: estar no meio, como o mato que cresce entre as pedras. Mover-se entre as coisas e instaurar uma lógica do ‘e’. Conexão entre um ponto qualquer e outro ponto qualquer. Sem começo nem fim, mas entre. Não se trata de uma simples relação entre duas coisas, mas do lugar onde elas ganham velocidade. O ‘entre-lugar’. Seu tecido é a conjunção “e... e... e...”. Algo que acontece entre os elementos, mas que não se reduz aos seus termos. Diferente de uma lógica binária, é uma justaposição ilimitada de conjuntos.13 Esse trecho traduz quase fotograficamente a sensação estética provocada pela construção espaço-temporal de O Idiota. Brissac discorre sobre o conceito de passagens, que seriam “a arquitetura da cidade das imagens” (Idem: p.237). O autor recorre a esse conceito com o objetivo de caracterizar a estética da contemporaneidade como o resultado de uma interpenetração de linguagens, imagens e arquiteturas. O espetáculo O Idiota: uma novela teatral foi dividido em capítulos ligados aos principais movimentos de ação presentes no romance de Dostoiévski. Cada cena correspondia a um desses capítulos, e era realizada em cenários totalmente distintos e distantes entre si. O público tinha que caminhar compondo grandes “procissões” para chegar no próximo lugar da encenação. No trecho destacado, essa “lógica do e”, remete aos elementos que estruturam a participação dos espectadores que caminham pelo espaço sem ponto fixo, buscando a próxima cena. O público segue os atores numa itinerância que dura 7 horas e dá corpo a essa “justaposição ilimitada de conjuntos”. 13 PEIXOTO, Nelson Brissac. “Passagens da imagem: pintura, fotografia, cinema, arquitetura”. In PARENTE, André (org.) Imagem-máquina: A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993: p.238). Os cenários e objetos de cena compõem uma profusão visual sempre renovada. Cada cena instaura um novo espaço temporal, pictórico e psíquico. E ao mesmo tempo temos a consciência de que aquele espaço é apenas uma parte do caminho que vai continuar sendo percorrido. Esses caminhos, que instauram “entre-lugares” incorporados pelo espetáculo, são justamente os momentos em que os atores estabelecem uma interação mais próxima com o público, construindo uma relação sem distinções, hierarquias. Não há nada além de muitas humanidades no mesmo percurso. É curioso encontrar durante o intervalo entre uma cena e outra atores bebendo água ou fumando um cigarro. Eles estão vivos, espalhados não pelo espaço da cena, mas pelo espaço daquele acontecimento partilhado. Assim o compartilhamento do percurso por atores e espectadores acaba por contribuir para o estabelecimento de uma relação de qualidade muito particular. É como se todos estivéssemos buscando alguma coisa. E para encontrá-la é necessário percorrer o caminho. Mas o primeiro encontro é entre todos nós, espectadores e atores que juntos – principalmente nessas grandes romarias entre-cenas – compõem um “ser de porosidade e pregnância”14. Um entrelaçado no qual espaço e tempo tomam parte, dando forma a um continuum de percurso e duração. Os elementos cenográficos são utilizados justamente como dispositivos que se relacionam entre si produzindo múltiplas camadas e desdobramentos. Esse lugar das passagens acaba por se instaurar não apenas durante o percurso entre uma cena e outra, mas no interior de cada etapa do espetáculo. É freqüente o uso de grandes passarelas em que os atores se deslocam como se buscassem sempre o caminho, a abertura para o próximo percurso, para a fissura que vai desencadear a continuação da caminhada. O próprio texto de Dostoiévski está estruturado em “espaços narrativos” que se desenvolvem dentro dessa lógica de saturação e desdobramento. É como se a ação caminhasse em direção ao seu próprio esgotamento, e em algum momento é preciso que ela “escoe” tomando novas direções, transformando atores e público novamente em caminhantes com destino 14 Idem. incerto. A experiência estética se constrói aqui através de um movimento contínuo e imprevisível, em que a atmosfera das passagens se constitui numa cenografia que não busca criar o simulacro de um ambiente inexistente, mas que faz do próprio local dispositivo e discurso. O político-poético Quero recorrer agora ao conceito de político-poético, cunhado pela professora e pesquisadora Sueli Rolnik15.Esse lugar da construção artística e política num mundo contemporâneo, em que se fluidificam e se despolarizam as estratégias de captura do poder, é bastante prolífero como material para a presente discussão. Rolnik afirma que a resistência e as estratégias de transgressão hoje não se localiza mais num lugar fixo, ou que se justifica a partir da simples oposição ao regime vigente, mas se configuram tendo como principal alvo “o princípio que norteia o destino da criação”. Dentro de um pensamento que vê o capitalismo contemporâneo como estimulador e capturador de subjetividades e de formas de criação múltiplas, Rolnik considera o artista criador aquele que precisa lidar com essa ambigüidade, com esse problema específico, e utiliza como exemplo a obra do artista plástico pernambucano Tunga. As “Instaurações” são obras híbridas que contemplam um “conjunto formado pela performance + processo + instalação” que “instaura ‟um mundo”. Dispositivo singular que, com sagacidade e humor, instala-se no âmago da ambigüidade do capitalismo contemporâneo, e de dentro dele problematiza e negocia com sua nova modalidade de relação com a cultura. Estratégia que mantém viva a função político-poética da arte e impede que o vetor perverso do capitalismo tome conta da cena, reduzindo a arte a mera fonte de mais-valia, esvaziando-a por completo de sua função.16 É interessante perceber a multiplicidade de questões geradas pela citação acima, que inicialmente enxerga o artista contemporâneo como um “negociador” que se move no interior da dinâmica das relações capitalistas de 15 Suely Rolin é psicanalista, crítica de arte e cultura, curadora, Professora Titular da PUC-SP e docente convidada do Programa de Estudios Independientes do Museu de Arte Contemporáneo de Barcelona. 16 ROLNIK, Suely. Despachos no Museu, sabe-se lá o que vai acontecer. Conferência apresentada em The Deleuzian Age, Californian College of Arts and Crafts São Francisco, 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102392001000300002&script=sci_arttext. poder, estabelecendo-se ao mesmo tempo como parte dessa dinâmica e como uma alternativa a ela mesma. Mas, no mesmo parágrafo, Rolnik ressalta o “vetor perverso do capitalismo” que se apropria economicamente da arte e a esvazia completamente de sua função. Essa expressão remonta, de certa forma um raciocínio maniqueísta que quer se afirmar a partir da negação e da aniquilação do outro, vendo a arte política e de resistência como um microcosmo da luta entre a ideologia de esquerda e a de direita. Mas ainda assim, a construção do pensamento nesse texto se aproxima de uma busca por reconhecer a obra de arte em sua positividade, uma vez que “as manifestações da potência criadora tendem a não mais ser interpretadas como anormalidade, transgressão de uma referência absolutizada, mas sim como anomalia; tomadas em sua positividade, tais manifestações deixam de ser malditas” (ROLNIK, 2000). O conceito de função político-poética da artetraz uma definição ao mesmo tempo precisa e instigante desse entre-lugar proveniente das relações entre arte e política. A filosofia contemporânea enfrenta esse tema construindo um campo de conhecimento espiralado e auto-reflexivo. Entendo que tanto a experiência estética instaurada no processo de construção do espetáculo O Idiota: uma novela teatral, quanto o resultado da obrasão desdobramentos e manifestações do político na arte, ou do políticopoético Segundo Jaques Ranciére: Temos de pensar na estética em sentido largo, como modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos constroem o mundo. É um processo estético que cria o novo, ou seja, desloca os dados do problema.17 (RANCIÉRE, Entrevista). Para o autor, a experiência estética é essencialmente política por ser uma constante “reformulação do universo dos possíveis”. Desse modo, como podemos pensar nesse modo de conceber os processos artísticos como um conjunto ininterrupto de reformulações, em que os modos de fazer vão se configurando como o próprio fazer? 17 Entrevista com Jacques Rancière disponível em http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere/ O “Rito teatral explícito” a que Cibele denominou os procedimentos de criação de O Idiota: uma novela Teatral, se apresenta aqui não só como estética do espetáculo, mas como uma lógica que atravessa todo o processo de construção. A explicitação do processo se transforma, assim, num procedimento artístico. O procedimento artístico se transforma, assim, em obra. REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Ed.34, 2002. FERNANDES, Sílvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010. FISHER, Stela. Processo colaborativo e experiências de companhias teatrais brasileiras. São Paulo: Hucitec, 2008. FORJAZ, Cibele. A novela Teatral “O Idiota”. Texto presente no programa da peça diagramado em formato de jornal, em 2010. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. 2004 – Multidão: Guerra e Democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record. PEIXOTO, Nelson Brissac. “Passagens da imagem: pintura, fotografia, cinema, arquitetura”. In PARENTE, André (org.) Imagem-máquina: A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. P. 237-252. RANCIÈRE, Jacques. O Espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012. Programa da peça O Idiota: uma novela teatral ROLNIK, Suely. Despachos no Museu, sabe-se lá o que vai acontecer. Conferência apresentada em The Deleuzian Age, Californian College of Arts and Crafts São Francisco, 2000. Disponível http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102392001000300002&script=sci_arttext. ROMANO, Lúcia. “Os atores e os DNAs dos teatros” In: Caderno Livre. Cia. Livre: Experimentos e processos 2000-2011. São Paulo, 2012: p.214. em: Entrevistas Entrevista com Cibele Forjaz, concedida a mim em 08/08/2013 Entrevista com Lúcia Romano, concedida a mim em 09/08/2013 Entrevista com Jacques Rancière disponível em http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere/