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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
NÃO FALE COM ESTRANHOS!
A CRIANÇA E O ESTRANHAMENTO (DO) PRESENTE
Fernanda Alcantara de Oliveira
Monografia entregue ao Instituto de
Psicologia da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro como exigência
para a conclusão da Graduação em
Psicologia sob a orientação da
professora Doutora Heliana Conde de
Barros Rodrigues.
Julho/2008
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I - ESTRANHANDO...
“Por que o fogo queima?
Por que a lua é branca?
Por que a terra roda?
Por que deitar agora?
Por que as cobras matam?
Por que o vidro embaça?
Por que você se pinta?
Por que o tempo passa?”
(Dunga e Paula Toller)
O tempo passa... Abandonamos essas perguntas. Temos mais o que fazer.
Tempo é dinheiro! O que um dia nos surpreendeu, nos causou estranhamento, nos
despertou curiosidade e muitas perguntas, hoje é banal, óbvio, natural, “faz parte”.
Levamos a vida sem indagar por que o fazemos dessa forma e não de outra, o que pode
comprometer, entre outras coisas, a nossa saúde.
Canguilhem, segundo Sandra Caponi (1997), compreende saúde como a
possibilidade de enfrentar situações novas, inusitadas, impensadas. Ela é considerada
deficiente quando tem sua margem de segurança restrita, limitando o poder de
tolerância e compensação frente às dificuldades. A saúde inclui a possibilidade de
adoecer e de se recuperar. Afinal, a vida é inconstante. Sendo assim, a saúde não é um
estado, mas um exercício, uma prática, uma luta.
A normalidade é uma modalidade defensiva, uma adaptação ao meio
(ATHAYDE, BRITO & NEVES, 2003). A defesa é uma diminuição de vida, pois
quando nos encontramos em estado de normalidade estamos dependentes da norma
instituída, incapacitados de criar modos singulares de vida. Sentir-se com boa saúde é
mais do que sentir-se normal, pois inclui uma normatividade. A normatividade é uma
capacidade de criar e recriar normas, sem ser aprisionado por elas, é uma capacidade de
lidar com as variabilidades, com as transformações, com a diferença.
O filósofo Luiz Antonio Fuganti, em entrevista1, afirma que o homem está muito
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Entrevista realizada com Luiz Antonio Fuganti, por Amanda dos Santos Gonçalves, em 2007.
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doente, pois a sociedade contemporânea é uma máquina de produzir impotência. A
saúde, para ele, é uma capacidade criativa e, o adoecimento é uma reação, uma reação
saudável. A saúde é um poder de agir, uma potência, que a doença consome. A
normalidade, para Fuganti, é uma maneira de aceitar a realidade, de sobreviver e,
geralmente é uma forma de incorporar o modo conformado de ser. Em nossa sociedade
é comum a ausência de condições necessárias para a saúde; logo, o estado de
normalidade é freqüente.
Poupamos energia automatizando certos movimentos. Alguns comportamentos
se transformam em hábito. Acostumamo-nos a nos relacionar uns com os outros de um
certo modo. O que vemos sempre - as casas da rua em que moramos, os vizinhos, o
caminho que percorremos até o local de trabalho, o ascensorista do elevador etc. - se
torna paisagem ao fundo das nossas vidas. Tão natural, como se sempre houvesse sido
assim e sempre vá continuar a ser. Quando algo escapa à rotina, a nossa atenção é
ativada. Estranhamos prontamente o que rompe com o padrão. Difícil é se surpreender
com o que constantemente se repete. Imaginem se a cada dia experienciássemos tudo
como se fosse a primeira vez!
No entanto, aquilo com o que nos acostumamos e naturalizamos se torna rígido,
com pouca possibilidade de mudança. Algo que em uma circunstância funcionou muito
bem, em outro momento pode perder o sentido, mas permanecerá operando como antes,
mesmo que não cumpra mais a sua função, pois nos habituamos a esse funcionamento.
Por que manter práticas meramente por hábito? Parece estúpido, mas nem o percebemos
por estarmos condicionados a esse modo de operar.
A Socioanálise oferece três conceitos que podem auxiliar nessa reflexão:
instituição, instituído e instituinte. Segundo Gregorio Baremblitt (1998:177), instituição
“são árvores de decisões lógicas que regulam as atividades humanas, indicando o que é
proibido, o que é permitido e o que é indiferente”. Instituinte é definido pelo autor como
o “processo mobilizado por forças produtivo-desejante-revolucionárias, que tende a
fundar instituições ou a transformá-las, como parte do devir das potências e
materialidades sociais” (1998:178). O Instituído é a forma resultante da força instituinte
e tem a tendência de se cristalizar, resistindo a mudanças. No entanto, a vida é
cambiante e o que fora instituído logo perde sua funcionalidade e precisa ser
desconstruído para que outras formas sejam forjadas.
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Devido à solidez característica do instituído, nos acostumamos com a forma
assumida e passamos a percebê-la como natural, perdendo de vista o processo que a
produziu. O estranhamento é um importante dispositivo, pois pode dar visibilidade às
instituições que enrijeceram, dificultando a vida, de modo a favorecer movimentos
instituintes.
Como estranhar o que já foi estabelecido? Não temos tempo.
“– Olá! Como vai?
– Eu vou indo. E você, tudo bem?
– Tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... E você?
– Tudo bem! Eu vou indo, em busca de um sono tranqüilo... Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é, quanto tempo!
– Me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios!
– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!
– Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí!
– Pra semana, prometo, talvez nos vejamos...Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é...quanto tempo!
– Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas...
– Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança!
– Por favor, telefone - Eu preciso beber alguma coisa, rapidamente...
– Pra semana...
– O sinal...
– Eu procuro você...
– Vai abrir, vai abrir...
– Eu prometo, não esqueço, não esqueço...
– Por favor, não esqueça, não esqueça...
– Adeus!
– Adeus!
– Adeus!”2
Nas grandes cidades, cotidianamente vivemos ou assistimos cenas como essa em
sinais de trânsito, na calçada da rua, no ponto de ônibus, no caixa do supermercado, na
fila do banco, na ala do shopping center, no corredor de uma universidade etc. Não há
tempo para encontrar, para trocar, para afetar e ser afetado, para pensar. Tudo se torna
corriqueiro, inclusive as relações. Se não temos tempo para um velho amigo, será que
temos tempo para questionar o que se repete diariamente? Que defasagem é essa que
sentimos em relação ao tempo, como se este sempre nos faltasse?
A pressa é a “alma dos nossos negócios”. A aceleração do mercado, com suas
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Letra da música Sinal fechado composta por Paulinho da Viola.
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inovações tecnológicas, exige uma intensa e veloz flexibilidade da subjetividade a
serviço de sua maquinaria. A desconstrução é tida como finalidade em si mesma, pois a
partir dela se instaura a necessidade de consumo para substituir o que fora destruído.
Segundo Felix Guattari, o Capitalismo Mundial Integrado (CMI) exerce uma
dupla opressão. A primeira se dá por uma repressão direta no plano social e econômico.
Já a segunda forma de opressão:
“consiste em o CMI instalar-se na própria produção de subjetividade: uma
imensa máquina produtiva de uma subjetividade industrializada e nivelada
em escala mundial tornou-se dado de base na formação da força coletiva de
trabalho e da força de controle social coletivo” (2005:48).
Se até recentemente a subjetividade moderna resistia a mudanças, à perda de valores,
hoje ela é convocada a transformações incessantes e desprendimento do passado
(BARCELOS, 2006).
A exigência que o mercado nos faz de nos reinventarmos é reforçada por um
discurso que afirma “Se você quer, você pode”, centrando a subjetividade na volição do
indivíduo. Todavia, para Guattari, a subjetividade é essencialmente social. É nas
relações sociais que ela se constitui e, desde a modernidade, vem se produzindo uma
individualização da subjetividade, aprisionando-a aos corpos dos sujeitos. Guattari
defende que a subjetividade individual “resulta de um entrecruzamento de
determinações coletivas de várias espécies, não só sociais, mas econômicas,
tecnológicas, de mídia e tantas outras” (2005:43).
O discurso vigente afirma que cabe a nós conquistar nosso lugar no futuro. Se
não nos adaptamos às constantes transformações, que ocorrem num curto período, é
devido a uma incapacidade nossa. Então, nos sentimos fracassados e culpados.
Reconhecemos que não nos comportamos adequadamente, não fomos suficientemente
competentes, empreendedores e criativos. Não questionamos as metas que nos são
impostas. Afinal, a subjetividade capitalística produz indivíduos submissos às regras do
mercado de consumo, indivíduos que funcionem como meras engrenagens da máquina.
“No contexto do capitalismo atual, não só os corpos estão a serviço da produção, mas,
também, a dimensão subjetiva” (BARCELOS, 2006:23). Assim, não questionamos o
que nos incomoda. Não estranhamos esse modo de operar que nos rouba a potência.
Tornamos-nos tolerante a tudo que nos acontece. Daniel Lins afirma que a
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tolerância neoliberal se apóia numa verdade, tolerando o que não é verdadeiro. Logo,
difere do sentido etimológico da palavra que remete ao respeito à liberdade. Esse
modelo de tolerância seria a intolerância legitimada. “Um gesto de desprezo, uma pitada
de caridade, um punhado de hipocrisia, uma suspeita de cinismo, uma nuvem de
presunção, uma camada de consentimento: eis a composição da química da tolerância”
(2005:20). A tolerância leva à passividade e ao conformismo com a ordem estabelecida,
pois retira o direito à revolta. Estamos apenas em busca de um sono tranqüilo.
Ainda segundo o autor, nossa sociedade vive numa guerra contra a
inventividade. Enaltecemos o que se repete, o que já fora pensado ou instituído. O que é
tolerado permanece em posição inferior ao que é norma. No entanto, “se nenhuma
forma é imposta em última instância, se nada é gravado no mármore da necessidade,
então tudo pode ser feito e tudo pode ser criado” (Idem:22). Lins propõe outra
tolerância que não se feche numa verdade, que não se equivalha à indiferença:
“Se é verdade que a tolerância tem como função nos auxiliar a acompanhar
as transformações do mundo, do mesmo modo que as nossas andanças e
errâncias pessoais, ela exerce também um papel primordial: o de impedir
que o universo do pensamento e do desejo seja cristalizado” (Idem:28).
Podemos nos valer de uma tolerância que acolha a diferença e não a solape pela
moralização que só reconhece a identidade, uma tolerância que seja um exercício de
liberdade. Essa tolerância frente às adversidades impostas pela a vida é valorizada por
Canguilhem para que se produza saúde (CAPONI, 1997).
Guattari (2005) considera que a subjetividade capitalística traz possibilidades de
desvio e de reapropriação, desde que se reconheça que a luta não se dá apenas no plano
da economia política, pois inclui o plano da economia subjetiva. Suely Rolnik, em seu
livro com Guattari (2005), valoriza movimentos sociais que operam como focos de
resistência política por atacarem a lógica do sistema, não como abstração, mas como
experiência vivida. A tentativa de controle social, pela produção da subjetividade em
grande escala, é frustrada pela resistência das “revoluções moleculares”3: processos de
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Guattari importa as palavras molar e molecular da química para conceituar as formas de
organização dos elementos. A ordem molar diz respeito às estratificações que formatam sujeitos, objetos
e representações, enquanto a ordem molecular comporta devires, fluxos e intensidades (GUATTARI &
ROLNIK, 2005). A primeira se refere à forma e a segunda à força, ao movimento.
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diferenciação permanente, que correspondem a uma atitude ético-analítico-política,
afirma Guattari. São exemplos dessas revoluções: o questionamento da vida cotidiana, a
contestação do trabalho em sua forma atual e a recusa ao sistema de representação
política. As revoluções moleculares subvertem a modelização da subjetividade pela
reapropriação desta, promovendo processos de singularização. Esses processos são
automodeladores, pois captam os elementos disponíveis e constroem suas próprias
referências, libertando-se da submissão ao poder global. O processo de singularização é
definido por Guattari como o “fato mais objetivo de desprender-se dos estratos de
ressonância e fazer proliferar e ampliar um processo, o qual poderá ou não encontrar
uma estrutura ou um sistema de referências intrínsecos” (Idem:142).
Tânia Maia Barcelos, em sua tese de doutorado Re-quebros da subjetividade e o
poder transformador do samba, busca no samba estratégias de mudança da
subjetividade no mundo contemporâneo. A autora julga necessária a mudança, no
sentido de que se faça resistência ao modo de produção de subjetividade capitalística,
aprendendo a rebolar nesse “samba do crioulo-doido” (2006:17). Sua hipótese é de que
as forças de criação, alegria e resistência que perpassam o samba podem ser grandes
aliadas na luta por novas possibilidades de vida. Barcelos pesquisa linhas de fuga no
plano da subjetividade. Essa fuga pode ser tida como utópica, mas para a autora está
longe disso, pois se faz pela ruptura, desconstruindo formas e criando o novo. Sobre o
seu trabalho, Barcelos diz:
“Interessam-me as intensidades que produzem estranhamento na
subjetividade, aumentam sua capacidade de problematização e forçam o
pensamento a decifrar os signos que emergem no encontro com o samba.
Signos em favor de novos agenciamentos com o outro e o mundo”
(Idem:35).
Uma dessas intensidades que a autora destaca é o malandro. Esse personagem
surge na música popular nos anos 20, e seu prestígio chega ao ápice na década seguinte.
No entanto, passa a ser desvalorizado com a política do Estado Novo, de culto ao
trabalho e repressão à cultura popular (MATOS apud BARCELOS, 2006). Nesse
contexto, o malandro assume uma postura fronteiriça, ocupando os lugares de
passagem, misturando em sua vestimenta signos de mundos distintos e se utilizando de
uma linguagem ambígua e sorrateira. Ele coloca em questão os valores da ideologia
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dominante através de suas táticas sutis e escorregadias. A música do malandro é o
samba-de-breque, em que o sambista brinca com o ritmo e a língua. Os breques
quebram o ritmo, possibilitando a invenção de novos movimentos do corpo. Os cortes
produzidos pela linguagem inventiva e pelos breques, “as paradinhas” do som, causam
estranheza e criam condições de produção de diferença (BARCELOS, 2006).
Para além do “devir-malandragem”4, a autora ocupa-se da relação que
estabelecemos com o tempo, pois a “invenção implica o tempo” (KASTRUP apud
BARCELOS, 2006:24). Entretanto, durante o ano, corremos desatadamente na tentativa
de dar conta de todas as atividades pelas quais nos responsabilizamos. Contamos com
aqueles momentos programados para o descanso, fins de semana, feriados ou férias,
pois é neles que depositamos a esperança de desaceleração e a expectativa de felicidade.
Onze meses de sofrimento, para gozar um de alegria. Vivemos esgotados num mundo
acelerado, mas não faz mal, pois o carnaval já está chegando. O estado de normalidade
impera. Doenças freqüentemente nos acometem. Afinal, quem tem tempo para lutar
pela saúde?
Conforme o filósofo Peter Pál Pelbart, “se o lema do capitalismo era fazer o
máximo, no mínimo de tempo, nas últimas décadas, o lema é outro: veicular de forma
estática, um regime de temporalidade instantâneo, sem duração e sem espessura”
(BARCELOS, 2006:66). Vivemos um eterno presente, um achatamento temporal, como
se não houvesse história passada ou futura:
“presente sem espessura, ilusão de imortalidade que ignora o começo e o
fim, a morte e o imprevisto, que só integra o desconhecido enquanto
probabilidade calculável. O paradoxo é que a desmaterialização provocada
pela velocidade absoluta equivale a uma inércia absoluta. Estranha equação
em que coincidem velocidade máxima e imobilidade total” (PELBART
apud BARCELOS, 2006:66).
Essa velocidade absoluta faz com que a subjetividade esteja sempre em trânsito,
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“Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das
funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso,
de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das
quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo” (DELEUZE & GUATTARI,
1997:64).
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já no passado, eternamente ultrapassada, desatualizada, em dívida. Resta voltarmo-nos
para o futuro na esperança de dias melhores. Pelbart nos aponta um pouco de possível:
“numa época em que o capitalismo desterritorializou o tempo (...), não só surge uma
consciência aguda do tempo, mas abrem-se possibilidades para outras temporalizações,
com seu novo cortejo de estranhamentos, estrangeirices, aberrações” (1998:140).
Barcelos (2006) critica o lema “viva o presente intensamente”, recusando essa
“ditadura do presente” e a aderência à estética do novo como finalidade em si. A
abertura para o novo nem sempre é abertura para o estranho, para o que difere, o
imprevisível, o instituinte. Ela sugere que se invente uma política do presente que
atualize o passado como força mobilizadora e propulsora de novas experimentações.
Uma outra relação com o tempo se faz necessária para que seja possível o
estranhamento das formas instituídas.
Guattari fala de uma resistência social que deve combater as formas de
temporalização dominantes: “isso vai desde a recusa de um certo ritmo nos processos de
trabalho assalariado, até o fato de certos grupos entenderem que sua relação com o
tempo deve ser produzida por eles mesmos – como na música e na dança” (2005:56).
Barcelos (2006) julga necessário fazer resistência aos ritmos dominantes do
tempo do capitalismo. Propõe, então, um “devir-lentidão”, que promova a
desconstrução pela sonoridade, abrindo brechas para a desaceleração do tempo. A
autora cita o exemplo de poetas que buscam sustentar uma “vagabundagem” da
imaginação em busca de aumentar a impressão de estranheza do mundo. Ela entende a
pausa não como parada do movimento ou da ação, mas um tempo para esquecimento e
criação, um “entre-tempos”. Precisamos nos desprender do conhecido e habitual, nos
esquecer do que consideramos normal, para que seja possível estranhar a norma e
inventar outras formas. A pausa é imprescindível para essa prática, pois ela faz um corte
na velocidade desenfreada da modernidade, produzindo por si só uma estranheza na
subjetividade capitalística.
Por estarmos tão acostumados com a aceleração cotidiana, não sabemos lidar
com o vazio no tempo. Corremos de um lado para o outro e de repente nos deparamos
com uma fila ou com um engarrafamento. A espera é insuportável. Como ficar parado,
se temos tantas tarefas pendentes? O que fazer quando nos sentimos imobilizados
enquanto o tempo segue sem que o acompanhemos?
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Estamos habituados a uma agenda lotada de compromissos. Se eles são
desmarcados de última hora, sem que haja tempo para remarcarmos outros, ficamos no
vazio. Sofremos um breque em nosso movimento. Sentimos uma estranheza. Não
sabemos o que fazer com o ócio. Então, logo preenchemos o vazio, de preferência
consumindo imagens televisivas. Por que não potencializar a estranheza que a pausa nos
causa, estendendo-a a outras questões? Por exemplo, estranhar o próprio ritmo de
nossas vidas.
O sobretrabalho dificulta a problematização das políticas do tempo. Apesar de
precisarmos da pausa, sentimos culpa por desejá-la. Tememos que o tempo nos engula
(BARCELOS, 2006). O corpo não suporta essa velocidade desenfreada e adoece. A
doença nos obriga a desacelerar, a cuidar de nós mesmos, a repousar. Ela tem uma
função reparadora e sinalizadora de que a nossa estética de vida está restringindo as
nossas possibilidades de lidar com as dificuldades e a nossa criatividade frente às
situações com que lidamos.
Nossos corpos e pensamentos não estão acostumados a funcionar de outros
modos. Resistimos a mudanças. No entanto, estranhar o instituído exige que
estranhemos a nós mesmos, questionando as instituições que nos atravessam e nos
subjetivam. Aceitamos a ordem vigente porque acreditamos que ela é a única ordem
possível, garantidora da vida social. Como estranhar essa crença? Como estranhar o
funcionamento de nossa sociedade? Como descristalizar o pensamento e o desejo?
Algumas intensidades favorecem o estranhamento. A criança, recentemente
chegada ao nosso mundo, não está tão cristalizada em nossos modos de vida, tão
habituada ao que já percebemos como natural. Ela estranha e questiona muitas coisas,
nos enchendo de ‘por quês’, como no trecho da música reproduzido na epígrafe. Nós já
instituímos esse movimento da infância como um período normal, a “fase do ‘por
quê?’”. Nós capturamos esse estranhar dela sem estranhá-lo, naturalizando-o numa fase.
Ocupando o lugar de adulto, aquele que sabe, damos respostas simples a essas
perguntas. Quando não temos respostas ou já perdemos a paciência com tantos ‘por
quês’, dizemos apenas “porque sim!”. Não entendemos por que tanto questionar coisas
que nos parecem óbvias. Não aproveitamos o estranhar da criança para estranharmos a
nós mesmos. O saber sobre essa realidade naturalizada já está pronto, não o recriamos
no encontro com a criança. Será que é tão natural o horário que designamos para a
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criança deitar-se ou a pintura que a mulher coloca sobre sua face?
Podemos fazer um paralelo com os agenciamentos que Barcelos (2006)
estabelece com o samba, em sua busca por aliados em processos de criação da
subjetividade. Linhas de fuga também podem ser produzidas a partir de alianças com as
multiplicidades da criança, de modo a aumentar a potência de ser afetado por linhas de
alegria.
Pensar os movimentos da infância pode ser um dispositivo para repensarmos a
lógica em que operamos. Suas velocidades e lentidões podem nos inspirar a viver de um
outro modo, menos enrijecido, menos repetitivo e mais criativo, com mais potência.
“Inventar não é uma prática exclusiva de alguns, mas de qualquer um que se aventura a
desejar novas oportunidades de vida” (BARCELOS, 2006:24).
Como nos deixar atravessar por essa subjetividade em que o estranhamento
surge como uma virtualidade intensa? Como buscar subjetividades mais inquietas, mais
desconfiadas do que é visto como natural? Como fazer de nossas práticas revoluções
moleculares?
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II – A INFÂNCIA MARCADA DE HISTÓRIA E A HISTÓRIA ARRUINANDO
O CORPO INFANTIL
Percebemos as crianças como graciosas, indefesas, inocentes, irracionais,
amáveis, fracas, dependentes, influenciáveis, delicadas, primitivas, puras, ignorantes,
frágeis, assexuadas etc. Devido às características que atribuímos a esses pequenos
humanos, reconhecemos a necessidade de certas práticas, como: as crianças precisam
ser educadas; devem freqüentar escolas; são proibidas de trabalhar; merecem cuidados
especiais (higiene, por exemplo); carecem de proteção; não podem ir a locais
tipicamente destinados a adultos; devem ser poupadas de certas linguagens (como
palavrões), informações (complexas ou trágicas, por exemplo) e vivências
(especialmente sexuais); são proibidas de participar de atividades que não lhe são
apropriadas; têm direitos especiais e consomem produtos específicos, produtos infantis
(roupas próprias, brinquedos, alimentação adequada etc.).
No entanto, a nossa concepção de infância só tem sentido no contexto em que
vivemos. O que entendemos por infância e a forma como nos relacionamos com ela é
distinto do modo como as crianças eram vistas e tratadas em outras épocas ou lugares.
A criança de hoje é marcada por um processo histórico que constituiu o lugar que lhe é
conferido, as expectativas que lhe são dirigidas, as regras a que está submetida, os
saberes sobre ela, os modelos que deve seguir, as maneiras como os adultos manipulam
seu corpo, as metas que precisa alcançar, as atividades que lhe cabem e as punições que
pode sofrer. Precisamos desconfiar de nossas verdades. Comecemos estranhando a
própria noção de infância.
Philippe Ariès nos conta uma história de como o sentimento da infância na
Europa ocidental mudou durante a Idade Média e o Renascimento. Ele define
sentimento da infância como “consciência da particularidade infantil” (1981:99).
Afirma que na velha sociedade tradicional, a infância era reduzida ao seu período mais
frágil, pois logo que a criança saía dos cueiros, vivia como os adultos, realizando com
eles trabalhos e jogos. A sua socialização garantia a educação. A aprendizagem se dava
na convivência da criança com os mais velhos, ajudando-os com as atividades diárias. O
único sentimento de infância que Ariès observa nesse período é a “paparicação”
destinada aos pequenos, em seus primeiros anos de vida. Era comum que tão logo a
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criança sobrevivesse ao tempo da “paparicação” fosse viver na casa de outra família
para aprender os costumes e desenvolver habilidades. Áries diz sobreviver, pois a
mortalidade infantil tinha grande incidência e a perda de um filho era tão freqüente que
se tornava praticamente banal. “As pessoas não podiam se apegar muito a algo que era
considerado uma perda eventual” (Idem:22).
Durante a Idade Média, não se dava importância para a idade. A partir do século
XVI é que a noção de idade passa a ganhar um valor pessoal. Isso demonstra a pequena
distinção que havia entre crianças, jovens e adultos, até então. Essa indiferença se
evidenciava nas roupas que eram as mesmas para todas as idades. Os trajes apenas
demarcavam os gêneros e a hierarquia social.
Ariès analisa as palavras utilizadas para significar infância. A noção de infância
estava relacionada à idéia de dependência. Não havia em francês uma palavra especifica
que designasse criança. As palavras fils, valets e garçons, que se referiam aos pequenos,
pertenciam também ao vocabulário das relações feudais ou senhorais de dependência.
“Um ‘petit garçon’ (menino pequenino) não era necessariamente uma criança, e sim um
jovem servidor” (Idem:11).
Na arte medieval até o século XIII a criança só era distinguida dos adultos pelo
tamanho, não era caracterizada por uma expressão infantil. A criança representada com
graça e formas arredondadas, típica da arte grega, desapareceu da iconografia do mesmo
modo que os temas helenísticos. “Os homens do século X-XI não se detinham diante da
imagem da infância, que esta não tinha para eles interesse, nem mesmo realidade”
(Idem:18). A criança aparece na arte da Idade Média, a partir do século XIII, mas nunca
como representação de uma criança contemporânea, como um retrato. Apenas anjos
infantis e a infância sagrada - Menino Jesus e Nossa Senhora menina - eram tema de
pinturas.
No século XV a infância aparece sob novas formas: o retrato e o putto, a criança
nua. “O gosto novo pelo retrato indicava que as crianças começavam a sair do
anonimato em que sua pouca possibilidade de sobreviver as mantinha” (Idem: 23).
Durante o século XVII os retratos de crianças sozinhas eram comuns, os antigos retratos
de família passaram a se organizar em torno da criança e a representação de cenas
cotidianas privilegiavam a criança, demonstrando cenas infantis, como a lição de leitura
ou de música. No retrato fixavam-se os traços das crianças vivas e mortas. Muitas
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famílias desejavam ter retratos de seus filhos.
O século XVII é marcado por Ariès como decisivo na transformação que a
noção de infância sofreu. Essa mudança ocorreu primeiramente nas classes altas e
depois se estendeu às famílias populares. A expressão “petit enfant” passa a ser usada
como contemporaneamente e surgem as expressões “pequenas almas” e “pequenos
anjos” que expressam o sentimento de infância e o romantismo a ele associado. Com o
novo interesse pela infância, o francês importa palavras estrangeiras: o baby inglês e o
bambino italiano, que se transforma em bambin.
Nessa época, as crianças deixam de se vestir como adultos e passam a usar trajes
específicos, como uniformes que as separam dos outros. É também nesse momento que
a escola assume a educação, mantendo a criança separada dos adultos. O autor afirma
que, então, se inicia um longo processo de enclausuramento das crianças, assim como
dos loucos, prostitutas e pobres, e que se denomina escolarização. Essa separação é uma
das faces de um grande movimento de moralização promovido por reformadores
protestantes ou católicos ligados à Igreja, ao Estado ou às leis, mas que só foi possível
com o apoio das famílias. A importância que se passou a dar à educação é característica
de uma família baseada na afeição entre os cônjuges e entre pais e filhos, uma família
centrada na criança. Tanto a família quanto a criança assumem um novo lugar nas
sociedades industriais.
O autor atribui a uma maior cristianização dos costumes a importância que passa
a ser dada à personalidade da criança. Apesar das condições demográficas não terem se
modificado muito do século XIII ao XVII, surge uma nova sensibilidade em relação à
infância e passa-se a considerar a alma da criança também imortal. O autor afirma que o
sentimento de infância garantiu maiores cuidados com esses pequenos seres, o que
resultou na redução da mortalidade infantil. Há na teoria de Ariès uma certa
contradição, pois segundo ele, a larga mortalidade infantil era um dos principais fatores
para o não apego das famílias com os bebês e o sentimento de infância surge apesar
disso e, contribui para a redução da mortalidade.
Algumas das práticas assumidas no cuidado dos filhos foram hábitos de higiene
e a vacinação, a partir do século XIX. “O apego à infância e à sua particularidade não se
exprimia mais através da distração e da brincadeira, mas através do interesse
psicológico e da preocupação moral” (Idem:104). A “paparicação”, o primeiro
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sentimento da infância, surgira na família. O segundo sentimento de infância proveio
dos moralistas no século XVII que estavam preocupados com a racionalidade e a
disciplina das crianças.
Antes da consolidação do sentimento de infância,
“a vida da criança era então considerada com a mesma ambigüidade com
que hoje se considera a do feto, com a diferença de que o infanticídio era
abafado no silêncio, enquanto o aborto é reivindicado em voz alta – mas esta
é toda a diferença entre uma civilização do segredo e uma civilização da
exibição” (ARIÈS, 1981:XV).
Essa afirmação, pouco fundamentada, é interessante, se tivermos cuidado com sua
mensagem moralista – vejam como eram descuidados com as crianças e hoje o somos
com os fetos! –, pois pode provocar o pensamento. Embora, a relação que temos hoje
com o feto seja bastante polêmica, tendemos a tratar a infância como sagrada,
merecedora de atenção e cuidados inquestionáveis. A afirmação de Ariès pode nos levar
a estranhar o nosso sentimento de infância.
Quando temos o primeiro contato com essa história da criança, relutamos. É
difícil nos desprender da nossa concepção de infância e imaginar uma família medieval
que não tinha apego aos recém nascidos, que mandava seus filhos para serem criados
em outras casas, que prescindia da educação formal, que não diferenciava as crianças
dos adultos. Talvez seja o trato com a sexualidade que nos cause maior espanto, pois
como as crianças eram vistas como pequenos adultos não havia pudor em relação a elas
e poderiam ser tão sexualizadas quanto um adulto. Precisamos estender esse
estranhamento para a contemporaneidade e questionar a forma como nos relacionamos
com a infância. A nossa maneira de educar as crianças é mais correta? Há uma forma
certa? As crianças são tão inocentes quanto as queremos? Há uma especificidade natural
e essencial da infância, ou a diferenciação criança/adulto foi produzida?
A filósofa Sandra Corazza, em seu livro História da infância sem fim (2000),
busca a proveniência do conceito “infantil” nos moldes da genealogia de Nietzsche e
Foucault (1979b). Seu objetivo é “manter o que se passou com o infantil, na dispersão
que lhe é própria, demarcando os acidentes, os pequenos desvios, e também as
inversões completas (...) que deram ‘nascimento’ à infância que existe e tem valor para
nós” (Corazza, 2000:114-5). Corazza coloca em análise a emergência da infância a
23
24
partir da história dos dispositivos5 de infantilidade: elementos de saber da infância, de
poder com as crianças e de subjetivação do infantil. Ela não defende que o dispositivo
de infantilidade desde o primeiro momento surgiu para infantilizar. O que pretende é
cartografar6 o diagrama de forças deste dispositivo que historicamente infantiliza,
desemaranhando algumas linhas de infantilidade, de onde deriva o imaginário, ou talvez
a ficção, da infância.
Assim como Ariès, a autora se atém às palavras que designam infância. Ela
também observa a equivalência entre os nomes que significam crianças e serviçais e
percebe que o vocabulário marca a dependência característica da identidade infantil. No
português, infância é associada a ingenuidade e simplicidade. Uma das significações de
‘infantil’ é frívolo. Na linguagem oral, chamar alguém de ‘filho(a)’ ou ‘menino(a)’
coloca-o numa posição hierárquica inferior, desqualifica-o. A palavra ‘pequeno(a)’ é
associada à infância e carrega o sentido de limitado ou insignificante. O vocábulo
‘infantilismo’, derivado de infantil, designa uma degenerescência resultante de
intoxicação crônica, que acomete o adulto e tem como sintoma características físicas e
mentais infantis. Esses exemplos ilustram a visão da criança como de menor valor em
relação ao adulto.
Retomando os “inumeráveis começos” da identidade infantil, a filósofa afirma
que “do início até o fim da Idade Média, o dispositivo de infantilidade não teve por
função ‘cuidar do infantil’, e sim zelar pelos cuidados da descendência, pelas relações
de submissão e de posse entre pais/mães e filhos(as), pela guerra e pela paz”
(Idem:120). Nos séculos XVII e XVIII começam a funcionar mecanismos que criariam
posteriormente um mundo especificamente infantil, onde as crianças seriam confinadas.
Outro “começo” que Corazza analisa se dá no processo de colonização do Brasil.
Ela conta que ao chegarem à terra de Santa Cruz, no século XVI, os europeus
consideravam as crianças almas virgens, sem pecado e que precisavam ser adestradas
5
Deleuze (1996) define dispositivo como um conjunto multilinear que faz ver, por linhas de
visibilidade; faz falar, por linhas de enunciação; exerce poder, por linhas de força; produz subjetividade,
por linhas de subjetivação e abre brechas, por linhas de ruptura. Todas essas linhas se entrecruzam e
suscitam outras, por variações e mutações de agenciamento.
6
Cartografar, segundo Deleuze (1996), é desembaraçar as linhas de um dispositivo, construindo um
mapa ao percorrer terras desconhecidas.
24
25
espiritual e moralmente. O amor era dado aos pequenos através de disciplina severa,
ameaças e castigos diariamente. Europeus estranhavam a nudez dos índios brasileiros e
não a permitiam quando se tratava dos filhos de pais portugueses com mães brasileiras.
Cobriam o corpo dessas crianças com o algodão vindo da Europa e fiado pelas mulheres
indígenas, atividade que lhes foi ensinada pelos colonizadores. O prazer que acontecia
no rio era prazeroso demais, aos olhos dos estrangeiros. Logo, foi substituído por jogos
portugueses, pelo canto e pela dança. “Muitos eventos coloridos e barulhentos eram
organizados para conquistar mais meninos, semear na sua sensibilidade um novo saber e
um novo modo de ser cristianizados” (Idem:136). Para moldar o corpo infantil ao saber
ocidental cristão, impunha-se-lhe uma pedagogia do medo que inspirava desapreço pela
carne e necessidades físicas. Nas famílias brancas, a “criança-filho” era posta a serviço
do poder paterno que centralizava a família.
“A criança brasileira, até o século XIX, permaneceu prisioneira do papel
social do filho. A família colonial dos três primeiros séculos ignorava e
subestimava essa figura, já que seu universo cultural compunha-se do culto à
propriedade, ao passado, à religião, no qual o pai, homem-adulto, o chefe da
casa, condensava a ‘majestade’” (CORAZZA, 2000:139).
Ensinava-se aos filhos que justiça se faz por punição, punição que eles mereciam. A
mensagem transmitida era de que a única forma de escapar aos severos castigos físicos
era a obediência cega. Assim, seu comportamento era condicionado às vontades e
valores patriarcais e sua subjetivação cerceada e moldada por esses valores e o modo
como eram impostos.
No afrontamento da emergência da infância, Corazza monta cenas. Uma dessas
cenas é a da infância bem-educada. Segundo a autora, a instituição escolar organizou o
começo histórico da infância na Modernidade. Ariès (1981) defende que foram as
instituições escolares e as práticas de educação que impuseram um novo sentimento de
infância. Esse sentimento de uma infância longa considerava a criança portadora de uma
inocência, que deveria ser preservada, e de uma fraqueza, que precisava ser fortalecida.
Portanto, legitimavam-se a orientação e a disciplinarização especializada da escola.
Corazza assinala que a escola passou a ser vista como o espaço privilegiado da
“formação do cidadão”, imprescindível para a constituição das nações. Essa instituição
social se tornou um bem em si mesma. Embora, posteriormente, a educação
25
26
institucionalizada se estenda a uma parcela maior da população, é à infância que ela se
destina privilegiadamente.
A cena seguinte, apresentada por Corazza, se baseia nas idéias de Postman,
apresentadas no livro The disappearence of childhood. Segundo este autor, com a
invenção da imprensa, em 1450, a necessidade social de saber ler e escrever aumenta.
Isso produz uma nova idéia de adultez: aqueles capazes de exercer tais funções. Então,
nasce uma nova concepção de infância, marcada pela incapacidade de ler e escrever.
Destacam-se quatro efeitos desse processo: a necessidade de uma organização
especializada em ensinar a ler e escrever; controle do ambiente simbólico da criança
pelo adulto devido a seu acesso à escrita; saberes possuídos por adultos, impróprias a
crianças; e a reestruturação da mente infantil pelo aprendizado da leitura.
Para Postman (CORAZZA, 2000), entre 1850 e 1950, a infância vive seu clímax
como categoria social e, paradoxalmente, começa a entrar em declínio quando a cultura
literária da imprensa é substituída pela cultura visual, eletrônica, do show-business. A
infância eclipsa-se à medida que a televisão fornece informação sem distinção de
público ou idade e não exige a capacidade de leitura.
“Dando cabo da distinção moderna adulto/criança, a televisão – assim como
todo o restante da vida social, midiatizado – opera na direção de acelerar o
desenvolvimento infantil, adultizando a criança e infantilizando o adulto, por
incorporá-los conjuntamente a uma mesma moral de consumo e uma mesma
dependência da sociedade tecnológica e dos milagres da técnica”
(CORAZZA, 2000:194).
Mais uma infância é encenada: a infância a-edípica. Desta vez, Corazza coloca
em cena idéias de Trisciuzzi e Cambi. Esses autores defendem que, no século XX, o
valor da infância continua a ser reconhecido a partir de um deslocamento do
“sentimento de infância” ao “direito da infância”. Alguns fatores que justificam essa
mudança são exibidos no palco: o crescimento econômico, que promoveu maior
distribuição de renda possibilitando que famílias pobres também passassem a colocar as
crianças no centro de suas vidas; o sentido burguês que individualiza a criança; e a
sociedade industrial, que transforma a instituição familiar, tornando-a nuclear.
Para Corazza, a mídia forja uma personalidade infantil dependente do adulto e
idealizada: serena, inocente, afetuosa e maleável. Logo, o homem contemporâneo
26
27
entende a infância dentro de uma irrealidade, uma idade que possui um valor em si
mesma e que precisa ser cuidada e protegida. “A infância perde sua autonomia por ser
interpretada e codificada de forma universal, definitiva e enganosa” (CORAZZA,
2000:197). Segundo a filósofa, o século XX inventou novos modos de exploração e
abandono da infância, como o isolamento e o confinamento a que se submetem as
crianças diante da televisão. A televisão adultiza a criança, privando-a da possibilidade
de fantasiar e refletir. A infância hoje se estende temporalmente e apesar disso lhe
exigimos um acelerado desenvolvimento. A tutela dos pais e da escola se prolonga no
tempo e, paradoxalmente, a condição infantil é contraída pelo: uso de uma linguagem
adulta, do largo conhecimento das coisas e de experiências maduras. Forma-se um
híbrido infantil e adulto, dependente e autônomo. O modelo edípico já não funciona
com as mudanças nos papéis familiares e a ausência dos pais. Cria-se a criança aedípica.
Essa “outra criança” emerge nas figuras de duas identidades sociais: a “criança
violentada” e a “criança expropriada”. A primeira é aquela que aparece nas páginas dos
jornais, marcada pela miséria e abandono. Essa infância é alvo de vigilância e
intervenções corretivas. Cecília Coimbra (2001) nos ajuda a compreender a produção da
“criança violentada”, apresentada por Corazza, quando fala das intervenções do Estado
brasileiro sobre a infância no início do século XX. Atuava-se sobre a família através dos
filhos. Os conceitos “científicos” de vício e degenerescência embasavam os
ensinamentos dados às mães de noções de higiene física e moral. A maior preocupação
era a infância pobre, que poderia vir a compor futuramente as “classes perigosas” e por
isso era tida como a infância em perigo: “a que deveria ter suas virtualidades sob
controle permanente” (COIMBRA, 2001:92). A “criança violentada”, de Corazza, é a
própria atualização desse temor, é a infância perigosa, o “menor” infrator. O primeiro
Código de Menores nasce em 1927, da aliança entre juristas e médicos. Nessa época o
termo “menor” já não designava qualquer menor de idade, e sim aqueles pertencentes às
classes pobres. Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente ter retirado de seu
texto a palavra “menor”, hoje essa marca ainda se impõe nas subjetividades brasileiras.
O termo continua a ser utilizado inclusive por profissionais que trabalham em
organizações especializadas, como o Juizado da Infância e Juventude, serviços de saúde
ou assistência social. O vocábulo “menor” reforça tanto a percepção da infância como
27
28
de menor valor em relação ao adulto, quanto desqualifica a criança pobre frente a
crianças de classes econômicas mais elevadas.
Outra identidade infantil de que Corazza nos fala é a “criança expropriada”,
produto da mídia e do consumo, da família e da sociedade. Ela é desapropriada do
direito de viver sua idade, pois é conduzida em direção ao equilíbrio da maturidade.
Essa infância já não necessita tanto da escola, pois está imersa no mundo do adulto
através da televisão e do computador. A “criança expropriada” é sedentária e
contemplativa, não cria, apenas recebe e incorpora. A escolarização colabora para a
desapropriação da infância, tornando a criança mais adulta, mais racional, mais cedo.
Corazza diz que, estranhamente, no “Mundo Infantil” se produz um “Mundo
Adulto”, criando a figura do infantil adulto que não é tão contemporâneo quanto alertam
os que afirmam o “fim da infância”, como Postman. “Pois não é de se espantar que o
infantil, sujeitado sob múltiplas formas, pelo dispositivo de infantilidade, como
dependente do Outro foi adultizado justamente pelo tipo de sujeição que lhe objetivou?”
(CORAZZA, 2001:203). O “fim da infância” - associado à adultez, à Pedagogia e à
escola – é tido como o atual nome da produção de infantilidade. Segundo Corazza, a
anunciação do desaparecimento da infância carrega-a ainda mais do valor moral,
controlando-a, reproduzindo um desgastado modelo de infância. A autora, após nos
apresentar os argumentos de Postman, Trisciuzzi e Cambi como verdade, revira-os pela
crítica.
As análises de Guattari (2005) sobre a construção de uma infância, somada às
histórias contadas por Ariès e Corazza, contribuem com o nosso estudo. Segundo ele,
até a Revolução Francesa, a subjetividade era baseada em modos de produção
territorializados7, como a família e os sistemas de castas. A produção de subjetividade
infantil não era centrada no funcionamento da família conjugal. Com a emergência dos
sistemas capitalistas, alguns modos de produção de subjetividade foram varridos do
planeta. A delimitação de uma nova forma de individuação da subjetividade produziu a
circunscrição da infância e o confinamento da família.
7
O conceito de território é caro às idéias de Deleuze e Guattari e se refere à forma como os
sujeitos organizam-se, delimitando sua subjetividade. Cada território se articula com outros territórios e,
pode ser relativo ao espaço vivido ou a um sistema em que o sujeito se sente “em casa”. “O território é
sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada em si mesma” (GUATTARI & ROLNIK, 2005:388).
28
29
Foucault (1979a), ao analisar a política de saúde européia do século XVIII, nos
fornece mais linhas da história da infância. Devido ao grande crescimento demográfico
nesta época, faz-se necessário um maior controle sobre a população. Portanto, cria-se
uma tecnologia da população, que incluía, entre outras ações, o cálculo da pirâmide das
idades. Esta nova tecnologia tem os corpos dos indivíduos e da população como fonte
de diversas variáveis que tornam esses corpos mais ou menos úteis. À medida que os
traços biológicos da população se tornam mais relevantes para a gestão econômica, a
noso-política do século XVIII assume novas diretrizes: o privilégio da higiene e o
funcionamento da medicina como instância de controle social; e o privilégio da infância
e a medicalização da família. Além do problema “das crianças” – natalidade e
mortalidade – emerge o problema da “infância” que visa a organização dessa fase em
sua especificidade – sobrevivência até idade adulta, condições econômicas e físicas
dessa sobrevivência e investimentos necessários para que esse período de
desenvolvimento seja útil. As relações entre pais e filhos são codificadas segundo novas
regras, embora as relações de submissão sejam mantidas. Novas obrigações se impõem
à família: cuidados, contatos, proximidade atenta, higiene, vestuário limpo,
amamentação dos bebês pela mãe, exercícios físicos etc. A família não deve ser mais
apenas uma mera teia de transmissão de bens. “Deve-se tornar um meio físico denso,
saturado, permanente, contínuo que envolva, mantenha e favoreça o corpo da criança”
(FOUCAULT, 1979a:199). Busca-se com as melhores condições fabricar um ser
humano maduro e, para que isso seja possível, a saúde das crianças torna-se um dos
principais objetivos da família. Criam-se instituições especializadas no cuidado de
crianças órfãs, que não contam com a família para assegurar sua saúde. As intervenções
do poder, relativas à saúde do corpo social, operam sobre o corpo do indivíduo a partir
da medicalização das famílias.
Coimbra (2001) enfatiza o papel da medicina higienista no processo de
associação da pobreza à criminalidade no Brasil. Segundo a autora, a mulher burguesa
transformada em “rainha do lar” foi a grande aliada dos médicos higienistas, a partir do
século XIX. Os filhos são alçados “de uma posição secundária e indiferenciada em
relação ao mundo dos adultos, para a condição de figura central no interior da família,
com espaço próprio e atenção especial, tornando-se o ‘reizinho da família’”
(COIMBRA, 2001:90). Sob a tutela dos médicos – detentores do saber, que orientam
29
30
como cada um deve comportar-se, trabalhar, morar, comer, dormir, viver e morrer –,
ordena-se o modelo de família nuclear burguesa brasileira. Essa tutela é especialmente
direcionada aos pobres, que, na visão dos higienistas, eram portadores de
“degenerescências”8. Objetivando transformá-los em corpos produtivos, implantava-se
uma série de medidas de controle das classes pobres, agindo preferencialmente sobre a
infância.
Baseando-se na teoria de controle da população, através do poder sobre o corpo,
apresentada por Foucault, Corazza (2000) conclui que a infância não se constituiu pela
mudança de “mentalidade” das famílias, nem por uma institucionalização da educação
na escola, que chama as crianças à razão a partir de um movimento de moralização,
como afirma Ariès (1981) sobre o surgimento do “sentimento de infância”. As novas
práticas de biopoder são tidas pela autora como responsáveis pela invenção da infância,
como hoje a conhecemos. A família e a escola funcionaram como outras instituições
disciplinares articuladas por táticas e estratégias. “Os agenciamentos concretos deste
poder trabalharam em torno de um foco que, aliás, não foi específico das crianças, mas
a elas atingiu fortemente: o domínio de si mesmas” (CORAZZA, 2001:225).
Estão postas algumas linhas da produção da infância. Como afirma Foucault:
“A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia
imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se
imaginava em conformidade consigo mesmo” (1979b:21). Apesar do “fim da infância”
ter sido anunciado, a infância recupera o vigor a partir de seu próprio enfraquecimento e
se transforma. As idéias associadas ao “fim da infância”, aclamadas pelo pânico da
infância roubada ou inocência perdida, são carregas de nostalgia de uma infância que já
8
Os ideais eugênicos – que visam o aperfeiçoamento da espécie humana pela eliminação de
traços decadentes de certas raças – foram a base das teorias de “degenerescências” e das teorias racistas
que tiveram seu apogeu na Europa, na segunda metade do século XIX. No Brasil, muitos foram e são
adeptos a essas teorias. No fim do século XIX, alguns expoentes da ciência brasileira entendiam os
mestiços como débeis, degradados e suscetíveis a doenças. Defendia-se a esterilização da população
pobre que não fosse trabalhadora. Ainda no século XIX, o movimento higienista brasileiro extrapola o
meio médico, se espalha pela sociedade e ganha aliados. Em 1920, é criada a “Liga Brasileira de Higiene
Mental” que prega o aperfeiçoamento da raça e se coloca contra mestiços e negros. A elite científica
brasileira busca eliminar a “degradação moral”, associada à pobreza e seus vícios (COIMBRA, 2001).
30
31
não é. Abandonando esse ultrapassado modelo idealizado, podemos imaginar e produzir
uma outra infância, que não seja cronológica, que não seja calcada em relações de
dominação, que se desprenda da dualidade adulto/criança, uma infância que nos invada,
que nos renove, nos faça re-nascer abrindo mão de identidades e instituições.
31
32
III – O ESTRANHAR DA CRIANÇA E O NOSSO ESTRANHAMENTO
FRENTE AO INFANTIL
As crianças ora nos cativam, ora nos chocam, com sua sinceridade e
ingenuidade. Elas enxergam a vida de uma ótica muito distinta dos adultos, por uma
lógica que não é menos verdadeira do que a dominante e que não cessa de nos
surpreender, se nos pusermos disponíveis à afecção9. A curiosidade e a sensibilidade
infantis levam as crianças a investigar o nosso mundo. Como a história genealógica, que
não aceita o “desde sempre aí” e pesquisa a produção do presente, as crianças não
aceitam o enunciado “as coisas são assim porque são”. Elas estranham, questionam,
analisam e experimentam.
A criança estranha o em baixo e o em cima, e a lua no céu. Uma criança que
vive em uma casa e não tem o hábito de freqüentar prédios, quando vai a um
apartamento se surpreende com a rua e os carros lá embaixo. Maravilhada, nos aponta
tudo que se passa abaixo. Não entendemos o porquê de tanto estardalhaço e insistência
ao nos mostrar repetidamente o que para nós é tão normal. A criança se espanta e ri
vendo as pessoas na varanda do andar de cima e ainda mais acima, a lua! Sorrindo, ela
dá tchau para a lua, pula. Quanta alegria!
Facilmente estranhamos o que difere, como a singularidade infantil. O novo nos
espanta. Na infância tudo é novidade. No entanto, a criança se entrega na descoberta e
no encontro com a alteridade. A criança se encanta com o que destoa do que, para ela, é
comum e estranha o que, para nós, já está mais do que naturalizado.
Temos grande dificuldade em lidar com a diferença, com o outro, aquele que não
sou eu. Negamos o outro. Isso não difere quando nos relacionamos com as crianças,
“esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não entendem a
nossa língua” (LARROSA, 1998:67). Jorge Larrosa afirma que a infância é o outro: a
9
O corpo humano é apto a afetar e ser afetado. Afecção, um conceito de Espinosa, é o efeito
num corpo de sua interação com outro corpo, não necessariamente humano. A afecção depende da
natureza do corpo que afeta, e da natureza e situação do corpo afetado. A afecção pela qual a potência de
agir de um corpo é aumentada ou diminuída é denominada afecto (GLEIZER, 2005). Portanto, colocar-se
disponível à afecção é se entregar no encontro com o outro, de modo a estar aberto à transformação.
32
33
absoluta heterogeneidade. “Aí está a vertigem: na maneira como a alteridade da infância
nos leva a uma região na qual não regem as medidas de nosso saber e de nosso poder”
(Idem:70). O autor fala de nossas expectativas em relação a uma criança que está para
nascer. Vemos na infância a matéria-prima da realização de nossos sonhos. A tomamos
como expressão de nós mesmos, do que somos ou queríamos ser. O nascimento é visto
como continuidade cronológica do desenvolvimento e história da humanidade e não
como acontecimento. No entanto, o nascimento frustra nossos projetos, pois é a origem
absoluta, não é antecipável nem previsível, é a extrema descontinuidade conosco,
interrompendo toda cronologia.
O poeta Manoel de Barros escreve sobre o momento em que contou aos pais,
através de uma carta, que não queria ser doutor de curar, nem doutor de fazer casa ou
medir terras. Ele desejava ser fraseador. “Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta.
Minha mãe inclinou a cabeça” (BARROS, 2003). A infância não materializa nossos
desejos, nem cumpre nossas metas. A criança dissolve a solidez de nossas crenças e a
certeza de nós mesmos. Ela sempre nos surpreende.
Damos-lhe brinquedos caros, último lançamento. A criança abandona os
brinquedos e se farta com o papel do embrulho, suas cores, brilhos e barulhos
produzidos quando manipulado. Seu comportamento escapa ao esperado, mas às vezes
nem isso é suficiente para nos surpreender. Consideramos como coisa da idade,
comportamento errante, sem sentido, “infantil”, em suma.
Caterina Lloret (1998) afirma que há uma disposição hierárquica dos grupos
etários que tem seu ápice na fase adulta masculina. Ariès (1981) discorre sobre a
iconografia das idades da vida. Para o autor, a popularidade dessas figuras estava ligada
à idéia de que a vida é dividida em fases bem definidas, correspondentes não apenas a
etapas biológicas, mas demarcadoras de funções sociais. Nessas imagens, a figura da
criança aparece no início da curva, em sua parte mais baixa – como a velhice ao fim da
curva. Freqüentemente ela é desenhada engatinhando, o que simboliza, segundo Lloret,
os atributos e possibilidades que ela ainda não tem.
Quando a infância é vista como o outro do adulto, como a sua ausência, ela é
reduzida a uma negatividade. Assim, não se enxerga a positividade da infância, sua
potência, sua afirmatividade. Esse reducionismo é realizado com outras minorias como
a mulher, o outro do masculino; a loucura, a falta da razão; o ancião, não-adulto ou
33
34
adulto em decadência; a doença, ausência de saúde; algumas etnias, os não-brancos; e o
pobre, aquele que é desprovido de riqueza. Segundo Corazza (2000), a infância,
enquanto figura antropológica, é identificada com essas minorias.
A associação da infância ao feminino é marcada nos trajes infantis dos séculos
XVII e XVIII, na Europa (ARIÈS, 1981). Tanto meninos quanto meninas vestiam
roupas femininas. O menino, quando crescia, passava a trajar-se como o homem. A
menina não se diferenciava da mulher pelas vestimentas e também não freqüentava a
escola, apesar de o menino fazê-lo desde o século XVI. Ela era preparada para o
casamento, desde nova, ou contratada como serviçal. Sua educação se dava no lar. A
especialização das meninas só ocorreria mais recentemente, na história da infância. Isso
marca a infantilização da mulher e a efeminização da infância. “Pior do que uma mulher
somente uma criança” (TUCKER apud CORAZZA, 2000:148).
Ariès (1981) estabelece uma relação entre o sentimento de infância e o
sentimento de classe. Antes do século XVII, as brincadeiras e jogos dos adultos eram os
mesmos das crianças. Quando a idéia de nobreza foi constituída, passou-se a distinguir
os jogos de adultos e fidalgos, dos jogos mais simples, reservados às crianças e plebeus.
O mesmo ocorreu com os contos de fada, que, antes apreciados por pessoas de qualquer
idade, passaram a ser considerados infantis. Os jogos, trajes, contos, roupas de fantasia,
danças e outras atividades, antes apreciadas por adultos, passam a ser restritas às
crianças e classes mais baixas. Isso pode ser visto em relação aos brinquedos infantis.
Por exemplo, a representação das coisas em formas reduzidas era uma arte popular que
se tornou brincadeira de criança. As antigas danças coletivas da corte subsistiram no
campo e nas rodas infantis. O homem do povo vestia roupas doadas; portanto, trajava a
moda do homem de sociedade de algumas décadas anteriores (ARIÈS, 1981), como as
crianças. A infância é associada à pobreza e ao passado do adulto nobre - o seu resto, o
que deixou para trás, o que ultrapassou.
No século XVIII, quando já havia uma distinção entre as idades, a incapacidade
de raciocínio, na infância, era chamada de “besteira” ou “patetice” e, se era estendida ou
surgia no adulto, denominava-se “imbecilidade”. Os loucos “estão abaixo da idade da
razão, como as crianças de menos de sete anos” (FOUCAULT, apud CORAZZA,
2000:153). A loucura é tida como uma infância social e psicológica. Corazza percebe
uma analogia entre a arte de educar as crianças e a de cuidar dos alienados.
34
35
Do mesmo modo, o adoecimento é considerado uma infantilização do homem. O
doente necessita de cuidados e proteção do mesmo modo que as crianças. Segundo
Focault, a Psicanálise identifica o doente ao primitivo e à infância ao teorizar o
desenvolvimento libidinal (CORAZZA, 2000). A doença mental, nessa concepção, é
uma regressão a comportamentos infantis. A regressão seria uma fuga dos conflitos
presentes pelo retorno a uma vida passada, mais protegida.
Corazza (2000) denomina “figura regressiva” a imagem que associa a infância
ao patológico, louco, anormal e criminoso, por estes rótulos provocarem um retorno à
menoridade jurídica e à inferioridade subjetiva, o infantilismo.
A criança é vista por nós como deficientes em relação ao desenvolvimento físico
e cognitivo de um adulto, e desqualificamos suas produções como o fazemos com a
loucura. Percebemos a vida como continuidade e a infância como fase transitória e
evolutiva – da negatividade à positividade. Não vemos o que há de positivo na infância,
o que há de acontecimento. Com a desqualificação da infância, as falas infantis são
desvalorizadas. “As palavras mais simples são as mais difíceis de ouvir. Em seguida,
achamos que a entendemos e imediatamente, sem prestar ouvidos, as abandonamos e
passamos a outra coisa” (LARROSA, 1998:71) - assim lidamos com a fala e as ações
das crianças, por nos parecerem simples, pueris. Não percebemos sua riqueza. Segundo
Larrosa, a simplicidade não oferece obstáculo ao nosso saber; logo, é ignorada por este.
“As perguntas das crianças são mal compreendidas enquanto não se enxerga nelas
perguntas-máquinas10” (DELEUZE & GUATTARI, 1997:42).
“Por que você é flamengo
E meu pai botafogo?
O que significa
"impávido colosso"?
Por que os ossos doem
Enquanto a gente dorme?
Por que que os dentes caem?
Por onde os filhos saem?
10
Máquina, conceito de Deleuze e Guattari, difere de mecânica, pois é comparável a espécies
vivas. As máquinas funcionam por agregação ou agenciamento. “Elas engendram-se umas às outras,
selecionam-se, eliminam-se, fazendo aparecer novas linhas de potencialidade” (GUATTARI & ROLNIK,
2005:385).
35
36
Por que os dedos murcham
Quando estou no banho?
Por que as ruas enchem
Quando está chovendo?
Quanto é mil trilhões
Vezes infinito?
Quem é Jesus Cristo?
Onde estão meus primos?
Well, well, well
Gabriel...
Por que o fogo queima?
Por que a lua é branca?
Por que a terra roda?
Por que deitar agora?
Por que as cobras matam?
Por que o vidro embaça?
Por que você se pinta?
Por que o tempo passa?
Por que que a gente espirra?
Por que as unhas crescem?
Por que o sangue corre?
Por que que a gente morre?
Do que é feita a nuvem ?
Do que é feita a neve?
Como é que se escreve
Reveillòn?
well, well, well, Gabriel...”11
Apesar das perguntas acima se referirem a substantivos por artigos
determinados, como “os dentes”, elas indagam sobre todo dente, ou qualquer dente, ou
nenhum dente específico. Gilles Deleuze e Felix Guattari (1997) afirmam que as
questões das crianças são direcionadas a artigos indefinidos – por exemplo, “como que
uma pessoa é feita?”. Eles afirmam que as crianças utilizam o indefinido não no sentido
de indeterminação e sim de um individuante em um coletivo. Um enunciado indefinido
– “morre-se”, “é triste” – é remetido a um agenciamento coletivo de enunciação, não a
um sujeito de enunciação. Entretanto, a psicanálise busca sentidos definidos por trás dos
indefinidos. “Quando a criança diz ‘um ventre’, ‘um cavalo’, ‘como as pessoas
crescem?’, ‘bate-se numa criança’, o psicanalista ouve ‘meu ventre’, ‘o pai’, ‘ficarei
grande como meu pai?’. O psicanalista pergunta: quem está sendo batido e por quem?”
11
36
Letra da música Oito anos de Dunga e Paula Toller, gravada por
37
(DELEUZE & GUATTARI, 1997:52).
Os autores retomam um caso analisado por Freud, o pequeno Hans. Quando
Hans fala de um “faz-pipi”, ele não se refere a uma função orgânica ou a um órgão, mas
a um material, um conjunto de elementos que realizam conexões, que variam de acordo
com suas relações de movimento e repouso. “Uma menina tem um faz-pipi? O menino
diz sim, e não é por analogia, nem para conjurar o medo da castração. As meninas têm
evidentemente um faz-pipi, pois elas fazem pipi efetivamente” (Idem:41). Apenas o
material não entra no mesmo agenciamento na menina e no menino. Por esse modo de
operar infantil, de se referir ao material ao invés de à forma, de indefinir, de fazer
perguntas-máquinas, Deleuze e Guattari (1997) consideram as crianças espinosistas.
Para a criança nada é obvio ou natural. Tudo a inquieta. Então nos enche de
perguntas. Enfadados com tantos “por quês?” - “Well, well, well, Gabriel...” -,
respondemos: porque sim. Todavia, essa resposta-cala-a-boca não contenta a criança.
Ela quer compreender os mecanismos, os sentidos, não quer uma regra, tipo é assim
porque é. No programa infantil de televisão Castelo Rá-tim-bum, há um quadro que se
destina a responder às curiosidades que surgem durante as aventuras das crianças que
são personagens do programa. A música-tema desse quadro canta:
“- Porque sim não é resposta...
"O que você quer saber?'
Eu quero saber por quê
que a gente grita
Eu quero saber por quê
Tem grito de chamar,
tem grito de avisar,
tem grito de bravo,
e grito de con ten te
Tem grito de rock,
tem grito de ópera,
tem grito de guerra,
grito de gol,
tem grito de menina
quando vê barata
aaaai
grito de horror
quero saber por quê
quero saber
Adriana Partimpim.
37
38
por que que o galo grita,
araponga também grita,
ganso, macaco, elefante, baleia,
todo mundo grita
desde a idade da pedra
com os dinossauros uhhhhrrrauuu
quero saber por quê
quero saber por quê
quero saber
tem grito de Tarzan,
tem grito karate, tem grito de mãe e grito
de bebê
Tem grito de Dom Pedro no Ipiranga
e tem o grito de assusTAR
quero saber por quê
quero saber por quê
quero saber
"A gente grita porque tem coisas
que só o grito consegue dizer..
Entenderam o porquê?-"”12
O personagem que responde às perguntas é um cientista. Entretanto, nem todas as
questões levantadas pelas crianças têm explicações científicas. A pergunta “por que a
gente grita?” é respondida na música de maneira pouco científica, quase poeticamente.
Então, por que cabe à ciência solucionar os questionamentos infantis?
A razão tecnocientífica, que rege a nossa sociedade, tem um modelo positivo de
verdade compreendida como correspondência entre os fatos e as proposições
(LARROSA, 1998). Os saberes científicos determinam o que são as coisas que foram
tomadas como objeto de conhecimento. A infância foi convertida em objeto de estudo e
reduzida ao que os nossos saberes podem objetivar e nossas práticas podem submeter,
dominar e produzir. A criança, como figura da ciência, se tornou “objeto de poder de
discursos, um saber positivado, uma subjetividade descrita, mas que não sustenta
discursos sobre si mesmo” (CORAZZA, 2000: 36). É vedado à criança o saber sobre si,
pois este pertence à ciência. Especialistas trabalham para reduzir o que há de
desconhecido nas crianças e para controlar o que há de selvagem nelas. Foucault (1987)
afirma que saber e poder estão diretamente implicados. As relações de poder se apóiam
em campos de conhecimento e os produzem. Congruentemente, os saberes constituem
relações de poder e imprescindem destas.
12
38
Letra da música Porque sim não é resposta de Hélio Ziskind.
39
Corazza (2000) afirma que o enfraquecimento do papel da família é construído
junto à demanda por especialistas – professores, médicos, psicólogos, assistentes sociais
etc. –, que detêm a verdade sobre as crianças e dizem à própria família (já outra,
portanto) o que e como fazer no cotidiano com seus filhos. “Essa necessidade de
aconselhamento e de orientação implica uma perda da intimidade, da dependência filialpaterno e da confiança que caracterizam as antigas relações pais-filhos” (CORAZZA,
2000:195). As instituições passam a entender mais sobre as crianças do que as suas
famílias. Segundo Larrosa (1998), a psicologia infantil descreve e a pedagogia dirige.
Virgínia Kastrup (2000) questiona as teorias de desenvolvimento que vigoram
no campo dos estudos da cognição. Essas teorias são baseadas numa noção de
desenvolvimento que se assemelha à noção biológica de evolução. Ela é calcada em um
tempo cronológico, seqüencial e histórico, em que as estruturas cognitivas são
construídas sucessivamente. Desse modo, as teorias de desenvolvimento tomam o
“adulto como ponto de chegada” das transformações cognitivas ocorridas na infância. A
idéia de progresso é marcante nesse raciocínio. Assim, a cognição infantil é vista como
deficiente frente à cognição adulta. Uma dessas teorias é o construtivismo de Jean
Piaget. O teórico “caracteriza a criança por certas estruturas intelectuais que tendem a
ser integradas e subordinadas ao modo adulto de conhecer” (KASTRUP, 2000:374). As
estruturas cognitivas, que vão sendo adquiridas pela criança, levam-na a ultrapassar
estágios anteriores e a alcançar estágios hierarquicamente superiores, superando o
déficit intelectual caracteristicamente infantil representado em categorias negativas
como ausência de função simbólica, inteligência pré-operatória, pré-lógica e
irreversibilidade das formas. Nesse ponto de vista, desenvolver-se é superar deficiências
e alcançar um fechamento do sistema cognitivo. “O desenvolvimento ultrapassa e deixa
para trás a criança, pensada sob a forma de estruturas intelectuais mais rígidas e pobres”
(Idem: 374). Logo, a infância é vista como uma fase de preparação para a forma de
conhecer e pensar adulta. Kastrup afirma que essas teorias se dedicam a responder à
seguinte questão: “o que falta à criança para pensar como um cientista?” (Idem:374).
Em busca de transformar a criança levando-a à idade da razão, utilizam-se dispositivos
de adultização do infantil (CORAZZA, 2000).
Essa forma de compreender o desenvolvimento humano é empregada na
pedagogia e atravessa os processos de subjetivação, marcando o modo de nos
39
40
relacionarmos com a infância. Nós, adultos, vemos a criança como algo a ser integrado
no nosso mundo, para que se torne como nós, ou como nós gostaríamos de ser. Mata-se
a infância em favor do progresso, desenvolvimento, futuro e competitividade. Só vemos
na criança o que esperamos dela: desenvolvimento adequado ou desviante. Obcecados
por um ideal de infância, diante de uma criança real só podemos enxergar duas
possibilidades: a criança modelo ou a criança fracassada. E o que não sabemos sobre a
infância? Há espaço para a criação, produção, diferença?
Apesar de toda a objetificação da infância, ela nos escapa, escapa ao nosso saber
e ao nosso poder. A infância como algo outro, de que nos fala Larrosa (1998), não pode
ser tomada como objeto de saber, pois é absoluta diferença em relação a nós e a nosso
mundo. A infância “inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas
práticas e abre um vazio no qual se abisma o edifício bem construído de nossas
instituições de acolhida” (LARROSA, 1998:69). A criança nunca está no lugar que lhe
damos, mas devemos abrir um lugar que a receba sem reduzi-la à lógica que rege nossa
casa. Devemos recebê-la de modo a possibilitar o encontro com a alteridade, com a
presença enigmática. No entanto, no paradigma da inclusão, não acolhemos a diferença,
apenas reconhecemos que os diferentes merecem fazer parte do nosso mundo.
Personificamos a diferença, enclausurando-a no corpo de um sujeito estigmatizado e
tentamos tolerá-lo. Não aprendemos com a alteridade para modificar a nós mesmos.
Fazendo compras em um shopping center, vi uma menina parar e cheirar as
flores. Achei a cena muito peculiar, afinal nunca vira ninguém dar atenção às tímidas
flores que decoram um shopping. Todos caminham por ali atentos às vitrines e
promoções nelas anunciadas. Ninguém vai a um estabelecimento como esse esperando
admirar flores; se esse fosse o objetivo, se iria a um parque. Todavia, uma criança não
se importa com a função de um shopping, ou com as ofertas instituidamente oferecidas.
A criança não respeita as convenções sociais. Se ela estranha o cheiro na casa de
alguém, não se contém e fala: que cheiro ruim! - constrangendo terrivelmente seus pais.
A criança se atém aos detalhes que nos parecem insignificantes, como uma
lesma que diariamente se desprega de sua concha e sobe numa pedra13. Admirei o ato da
13
Manoel de Barros recorda, em suas memórias infantis inventadas, que tinha fascínio em
assistir essa cena (BARROS, 2003).
40
41
menina, mas estava com muita pressa e cansaço para acompanhá-la e descobrir como
cheiravam as flores de um shopping. Apenas a observei da escada rolante e fiquei me
questionando sobre o sentido da minha tarde de compras. O pai parecia inquieto e sem
paciência para esperar a filha. A tolice infantil retardava seus objetivos de consumo.
Uma das figuras da infância, para Corazza, é a figura histórica negativa: “o
Outro, desordem da razão, o inumano, o anormal: na Geografia do Mal, negado,
abandonado, excluído, confinado, educado” (2000:36). Essa desqualificação da infância
é ainda mais extrema no caso de crianças ditas deficientes mentais.
Não há nada mais estranho do que o comportamento ou os interesses de um
autista – o abrir e fechar de uma porta; a água que sai de uma torneira; o girar de um
ventilador –, mas rapidamente os naturalizamos. Como especialistas, os nomeamos de
estereotipias; como familiares, os chamamos de manias. A criança autista é a mais
absoluta alteridade. Ela se recusa a falar, não atende nossas demandas, raramente
constrói estranhos laços sociais, não se comporta como adulto, tampouco como
esperaríamos de uma criança, entretém-se em brincadeiras que seriam tidas como
normais para uma criança de um ano de idade (mas percebemos como bizarras após
uma certa idade), parece se fechar num mundo à parte, imersa em pensamentos
inimagináveis, balança-se repetidamente com o olhar fixo. Loucura? Deficiência
mental? Portadora de grave sofrimento psíquico? Como saber se uma criança que pouco
se comunica sofre? Podemos qualificar o nosso modo de viver e de se relacionar de
mais saudável do que o modo dos autistas? Como agrupar crianças tão singulares num
só rótulo?
Vemos a infância apenas pela ótica do saber que inventamos sobre ela, mas a
infância se reinventa apesar de nós. Chamamos a sua invenção de desvio. Enquanto
especialistas, rotulamos a diferença de hiperatividade ou dificuldade de aprendizagem,
por exemplo. A família chama a divergência de desobediência. A criança testa os
limites e regras. Ela experimenta, verifica os efeitos de suas ações. Nós estabelecemos
as regras, não deixando espaço para questionamento, diálogo ou estranhamento, mas a
criança rompe com nossas imposições, nos desobedece e cria.
As famílias freqüentemente dirigem à psicologia demandas de disciplinamento.
Os pais, incapazes de conter seus filhos, queixam-se do comportamento desregrado da
criança, que não atende às suas expectativas, que não age como o desejado, que repete
41
42
palavrões aprendidos fora de casa, que se revolta, é agressiva e desobediente. Após
utilizar todos os recursos de que dispõe e não obter sucesso no controle de seu filho, a
família se volta para o especialista, em geral psicólogo ou psiquiatra, em busca de
alguém que “dê conta”. Evitando a culpa por seu fracasso, os pais buscam diagnósticos
de transtorno neurológico ou mental que justifiquem o mau comportamento infantil.
Eles esperam encontrar no consultório a solução mágica, de preferência em forma de
medicamento que cure a desobediência, ou ao menos diminua a agitação.
A escola também não tem sabido lidar com o comportamento das crianças. Os
professores culpam a família por não educar apropriadamente seus filhos. No entanto,
não é só a forma como os alunos se portam que tem incomodado os educadores. As
crianças não estão aprendendo, não atingem as metas estabelecidas pela escola. Mais
uma vez os professores culpam a família por não acompanhar o aprendizado do filho,
ou buscam distúrbios que justifiquem o não-aprender. Um grupo de professoras da
mesma escola reclama de dez irmãos que estudaram ali e apresentam os mesmos
problemas. Localizam na educação familiar e na genética a causa desses problemas.
Entretanto, não questionam a participação da escola nessa questão - afinal as dez
crianças freqüentaram essa mesma instituição.
Escola e família não se implicam nas queixas que fazem. Agem como se a
produção da criança-problema não as envolvesse. Todo o fracasso é localizado no corpo
infantil, que deve ser encaminhado para um especialista que o trate e o conserte.
Percebe-se a criança desconectada do seu contexto. Não se analisam as relações
pais/filho,
professor/aluno,
televisão/espectador,
comunidade/morador,
saber/objeto,
mercado/consumidor,
especialista/paciente,
polícia/“menor”,
Estado/cidadão, entre outras inserções da criança no mundo. Não consideramos a
perspectiva infantil. Consideramos a nossa visão de cima, do adulto, do homem
crescido, a correta, a visão que um dia a criança alcançará com o seu desenvolvimento
progressivo. Além do poder-saber que exercemos sobre a infância, o que garante o
nosso modo de entender o mundo como superior ao modo infantil?
Lembro que durante minha adolescência voltei ao prédio em que vivi até os oito
anos de idade. Estranhei aquele espaço. Tudo parecia muito menor do que na minha
memória. Os prédios, a área livre pela qual corria, tudo parecia pequenino. A grade pela
qual enfiava meu rosto quando pequena agora terminava na altura do meu peito. No
42
43
bloco que subia com grande esforço, agora facilmente apoiaria o pé. Toda aquela área e
arquitetura que eu enxergava dos meus poucos centímetros de altura era percebida
muito maior, na minha infância, do que depois de crescida na adolescência. Afinal, qual
é o real tamanho do prédio? Isso poderia ser verificado por um engenheiro ou arquiteto
com medidas precisas, embora o que realmente importe para as pessoas que freqüentam
aquele lugar seja a forma como o percebem. Manoel de Barros, inventando memórias,
diz: “Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só
descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser
medido pela intimidade que temos com as coisas” (BARROS, 2003). A percepção é
sempre parcial, posicionada, subjetiva. Precisamos apenas reconhecer que as
perspectivas variam e acolher a singularidade da perspectiva infantil.
A criança tem outra perspectiva do tempo. Uma menina estranha porque não
estava na foto de casamento de seus pais, questiona e chora por não ter participado. Ela
não era nascida, então, mas essa cronologia não faz sentido para crianças pequenas. A
mãe responde: “se você estivesse lá sua avó teria me matado”. A expectativa social da
época, de que a mulher casasse virgem e posterior ao casamento ocorresse a gravidez, é
ignorada pela criança.
Outra criança conta histórias que sempre começam por “quando eu era
grande...”. O menino diz que quando era grande alcançava o registro do chuveiro e
empurrava a irmã mais velha no carrinho de bebê. Se a maioria das pessoas que o
cercam é grande e ele é pequeno, conclui que um dia também já foi grande. Em sua
concepção, passado, presente e futuro não se sucedem linearmente. Não há uma lógica
que diga que ele não era nascido quando sua irmã mais velha era bebê.
O filósofo Walter Kohan (2007) retoma três palavras do grego clássico que
designam tempo, com diferentes sentidos: chrónos, kairós e aión. A primeira representa
a continuidade de um tempo em que o depois sucede o antes, em que o passado é
substituído pelo presente, que por sua vez cede seu lugar ao futuro. Kairós tem o sentido
de medida, proporção, momento crítico, oportunidade. E finalmente, aión representa “a
intensidade do tempo da vida humana, um destino, uma duração, uma temporalidade
não-numerável nem sucessiva, intensiva” (KOHAN, 2003:86). Em seu fragmento 52,
Heráclito afirma “aión é uma criança que brinca (literalmente, ‘criançando’), seu reino é
o de uma criança” (KOHAN, 2003:86). Diferente da lógica do chrónos, que segue os
43
44
números, a criança brinca com os números e faz um outro tempo.
Quando eu era criança e visitava meus primos, passávamos horas preparando
nossas brincadeiras. Quando finalmente estávamos prontos para começar, meus pais
vinham me chamar para ir embora. Isso sempre acontecia. Não programávamos o tempo
de preparação para que fosse possível aproveitar o jogo. Nós nos demorávamos o
quanto pensávamos necessário, pois nosso tempo não era medido pelo relógio.
Entretanto o tempo dos adultos é cronometrado e eles tinham outros planos, a hora urgia
e eram eles que decidiam quanto à hora de ir, o fim da brincadeira. O tempo adulto reina
em nossa sociedade. Cabe à criança encontrar brechas temporais para vivenciar o tempo
à sua maneira.
Deleuze diferencia dois tipos de temporalidade (KOHAN, 2007). De um lado
está a história, sucessão contínua de efeitos de um acontecimento, o conjunto de
condições que possibilitam uma experiência, e do outro lado temos o devir, a própria
experiência, o acontecimento, o descontínuo, a criação, o intempestivo. A
temporalidade infantil não é histórica.
A criança praticamente não tem passado. Não ativa muitas memórias, nem dá
grande importância ao futuro. Ela não tem uma percepção do tempo a longo prazo,
como os adultos. Se lhe dizemos que irá ao zoológico no domingo, todos os dias ela
perguntará “hoje já é domingo?”. Afinal, é o hoje que lhe importa. O tempo infantil é o
presente, o momento do acontecimento. Kastrup credita ao “fato da criança carregar
consigo menos história e também menos um projeto de ação que o adulto, mas nem por
isso aguardar por eles para orientar suas ações” o modo da criança “viver mais
plenamente a experiência que se dá no presente imediato e aí encontrar o impulso que a
inclina para o futuro” (2000:379).
A concepção de tempo do filósofo Bergson, de que nos fala Kastrup (2000),
difere da idéia do tempo cronológico, pois defende uma coexistência de todos os
tempos. Assim, passado, presente e futuro paradoxalmente subsistem como coexistência
virtual. Essa noção de tempo se assemelha ao modo como o tempo é vivenciado na
infância. Talvez as crianças não sejam apenas espinosistas, mas também bergsonianas.
Ou talvez sejam esses filósofos que experimentem o movimento da criança e inventem
conceitos a partir disso.
Para a criança não há espera. Um adulto numa fila ou sala de espera fica
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estressado remoendo a perda de tempo e planejando suas ações quando voltar a ter
controle do uso de seu tempo. A criança não tolera a espera, ela brinca com o tempo.
Enquanto o adulto está preso naquele espaço-tempo de espera, a criança que o
acompanha se utiliza dos elementos daquele espaço e estabelece novos agenciamentos.
Ela transforma os objetos em peças de um jogo e cria novas conexões. Todavia, o adulto
não suporta o comportamento da criança, que não condiz com as normas prescritas
daquele lugar, e incomoda-se que ela tome os objetos distorcendo suas funções. Logo
ordena: “Não mexa! Fique quieta”.
Essa relação diferenciada que a criança tem com o tempo possibilita outros
modos de viver. Ela vivencia o seu cotidiano num ritmo diferenciado. Esse ritmo não é
comandado pelas exigências do mercado, ou pelas instituições – ao menos quando a
infância não está aprisionada em uma instituição. No reino infantil, não há
consecutividade. As suas velocidades e lentidões atendem à experiência. O que impera é
a intensidade da duração. Se algo chama a atenção de uma criança, nada mais importa,
ela pára para observar e experimentar. Essa outra relação com o tempo favorece o
estranhar, não só do que se destaca pela alteridade, mas também do que se repete
automática e monotonamente.
No entanto, as imposições a que submetemos a infância impedem essa
experimentação do tempo. A institucionalização da infância na escola molda-a ao tempo
serializado: hora de fazer fila, hora de fazer o dever, hora de brincar etc. Seu tempo é
preenchido não só pela escola, mas inclui outras atividades programadas, como cursos e
esporte, para sua boa formação ou para não dar trabalho aos adultos, além da televisão
que cronometra a duração dos programas infantis intercalando-os com propagandas.
Desse modo, não resta à criança tempo para ser vivido livremente. Não há mais tempo
para imaginar ou estranhar. Assim, é compreensível que muitas crianças hoje não
passem pela famosa fase dos “por quês?”. A criança é adestrada a nada questionar, a
não surpreender, nem criar.
Quando adultos, já conhecemos os protocolos comportamentais: sabemos o que
devemos fazer, em que momento e de que modo. Temos regras de etiqueta. Precisamos
nos portar apropriadamente em cada situação para garantir a boa convivência. Só
falamos com um estranho o mínimo necessário – cumprimentamos, pedimos uma
informação. Entretanto, quando nos deparamos com uma criança estranha, falamos com
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ela, brincamos, fazemos caretas. Imagine-se sorrir para um adulto qualquer na rua,
passar a mão em seus cabelos e fazer caretas até ele rir. Nunca nos exporíamos a tal
“ridículo”. Imagine a reação da pessoa. No entanto, nos permitimos fazer essas mesmas
coisas quando se trata de uma criança.
Apesar dessa liberdade que gostamos de exercer ao brincar com uma criança
estranha, elas são ensinadas a não falar com estranhos. Essa regra tem ganhado maior
importância com os altos índices de violência em nossa sociedade, especialmente no
contexto urbano em que o medo encoraja uma certa paranóia, já naturalizada. Nós,
moradores das metrópoles, ao ver alguém confiando em estranhos, consideramos seu
comportamento ingênuo e, identificamos a pessoa como estrangeira à cidade grande,
pois quem aqui vive sabe se comportar desconfiada e reservadamente. Logo, reforça-se
a idéia de que é preciso evitar comunicar-se com estranhos. O que se torna uma
proibição enfática no caso das crianças, por serem consideradas frágeis e mais
suscetíveis ao mal que o estranho potencialmente oferece. As crianças só podem ser
adultizadas por adultos confiáveis, que às vezes são restritos aos pais. Popularizam-se
cada vez mais as câmeras que vigiam babás, cuidadores de creches e professores. A
família sente necessidade de monitorar tudo que ocorre com seu filho, afinal todos
somos permanente regulados em nossa sociedade de controle14.
Quando se abre mão do medo do outro, do desconhecido e, possibilitamos a
conexão da criança com o adulto, o encontro pode ser potente. A criança nos convida a
sair do nosso protocolo de adulto sério e a bancar o bobo no meio da rua. A infância tem
uma força que nos possibilita livrar-nos das regras e instituições.
14
Segundo Deleuze (1992a, 1992b), as sociedades disciplinares, apresentadas por Foucault,
tiveram seu apogeu no século XX e vêm sendo substituídas pelas sociedades de controle. Aquelas tinham
como importante mecanismo o confinamento, mas nestas o controle se dá continuamente em meios
abertos e a comunicação instantânea é um valioso dispositivo.
46
47
IV – EMPODERAR-SE DO ESTRANHAR INFANTIL: DEVIR-CRIANÇA
Kohan (2007) afirma que Platão inaugurou a tradição filosófica que tem como
referência um modelo transcendental do homem. Desse modo, também há um modelo
de educação da infância, a fim de transformá-la em direção a esse modelo supostamente
eterno de homem. Platão atribui à infância a possibilidade frente à realidade,
entendendo-a como o material para a realização de uma utopia política, através da
educação apropriada. O filósofo grego também caracteriza a infância como inferior ao
modo adulto, daí a necessidade de excluí-la de certos âmbitos, como o próprio âmbito
político. Esse entendimento da infância como negatividade é compartilhado por outros
pensadores, entre eles Aristóteles e Kant.
A infância da palavra infância, em sua etimologia, é também observada por
Kohan (2007). O nascimento deste significante está ligado a normas e ao direito. A
palavra advém do termo infans, formado pelo prefixo privativo, in, e fari, “falar”,
redundando assim no sentido “o que não fala”. O substantivo infantia, que daí deriva,
significa incapacidade de falar. Portanto, no seu nascimento (infância...), a palavra
infância era associada a uma falta: a incapacidade de falar.
“Infans não remete especificamente à criança pequena que não adquiriu
ainda a capacidade de falar, mas se refere aos que, por sua minoridade, não
estão ainda habilitados para testemunhar nos tribunais: infans é assim ‘o que
não se pode valer de sua palavra para dar testemunho’” (CASTELLO,
MÁRSICO, apud KOHAN, 2007:100)
A perspectiva da infância enquanto falta iluminou e ilumina os ideários pedagógicos,
saberes científicos, discursos filosóficos e ainda hoje é marcante na produção de
subjetividade.
No entanto, existem outros modos de compreender a infância que divergem
dessa concepção dominante, modos que não percebem a infância em comparação a um
modelo. Quanto a isso, Larrosa afirma: “a verdade da infância não está no que dizemos
dela, mas no que ela nos diz do próprio acontecimento de sua aparição entre nós como
algo novo” (1983:83). Valoriza-se assim a expressão infantil, que pode se dar através da
fala ou por meios não-verbais. Para o autor, a criança é singular, irrepetível, pura
diferença, irredutível a qualquer conceito ou causa, é condição e fundamento. Larrosa
47
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diz não ser possível representar o outro; podemos, sim, pintar a imagem do encontro
com o outro, uma imagem poética. O encontro com a infância não é um mero
reconhecimento do já sabido, ou sua apropriação, mas um face-a-face com a autêntica
experiência. É deparar-se com o desconhecido.
“O sujeito do reconhecimento á aquele que não á capaz de ver outra coisa
que a si mesmo, aquele que percebe o que lhe sai ao encontro a partir do que
quer, do que sabe, do que imagina, do que necessita, do que deseja ou
espera. O sujeito da apropriação é aquele que devora tudo o que encontra,
convertendo-o em algo a sua medida. Mas o sujeito da experiência é aquele
que sabe enfrentar o outro enquanto outro e está disposto a perder pé e a
deixar-se derrubar e arrastar por aquele que lhe sai ao encontro: o sujeito da
experiência está disposto a transformar-se numa direção desconhecida”
(LARROSA, 1998:85).
Também Kohan (2007) propõe que se pense a infância como presença,
afirmação, força. Dentre as palavras do grego clássico usadas para nomear infância, o
filósofo destaca néos, que significa novo, jovem, recente, que causa mudança.
Neoterízo, derivada de néos, tem o sentido de “tomar novas medidas”, provocar algo
novo. A palavra infância é também associada à idéia de re-visitar lugares como se fosse
a primeira vez. Assim, Kohan afirma a positividade infantil. “A infância não é apenas
uma questão cronológica: ela é uma condição de experiência” (KOHAN, 2007:86).
Para reforçar esse outro lugar conferido à infância, Kohan convida outros
pensadores, ente eles J.-F. Lyotard, Giorgio Agamben e Jacques Derrida.. Para Lyotard,
a infância é a condição de ser afetado, pois está sempre esperando o inesperável.
Lyotard afirma que o nascer é o acontecimento que muda o curso que leva as coisas a se
repetirem. A criança mantém viva a renovação do nascimento ao estender o nascer a
toda vida, libertando-nos do fato de sermos nascidos e não nascedores. A infância salva
o mundo da ruína da normalidade, naturalidade e caduquice de suas instituições. “A
infância é o reino do ‘como se ‘, do ‘faz de conta’, do ‘e se as coisas fossem de outro
modo...?’” (KOHAN, 2007:111). A criança fantasia e experimenta sem se prender ao
instituído. Ela impede a reprodução do mesmo. A vida toda sempre nos nasce uma
criança: “Somos nascidos a cada vez que percebemos que o mundo pode nascer
novamente e ser outro” (Idem:112).
Agamben associa a uma disposição infantil uma das mais humanas
características, a aprendizagem da linguagem. As crianças foram as primeiras a acessar
48
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a linguagem e continuam sendo. Um adulto não aprende a falar. A infância garante a
possibilidade de entrar na linguagem. Agamben fala por Kohan – ou seria Kohan por
Agamben – que “se ele [ser humano] renunciasse à infância em nome da adultícia
perderia a capacidade de se inventar, de encontrar novos inícios, de abrir a possibilidade
de falar para criar um novo mundo e não apenas para reproduzir o mesmo mundo”
(Idem:113).
Derrida coloca em cheque o nosso modo se relacionar com a alteridade. Ele
questiona a nossa hospitalidade frente ao estrangeiro e Kohan nos faz pensar a criança
como um estrangeiro em nosso território adulto. Derrida problematiza a hospitalidade
que exige ao estrangeiro que fale a nossa língua e compreenda nossos valores. Isso não
seria a própria morte do estrangeiro enquanto tal? Nossas tolas perguntas a um
estrangeiro – “Como te chamas?”; “De onde vens?” –, ou a uma criança – “Qual é teu
nome?”; “Quantos anos tens?” –, mostram nossa necessidade de localizar e identificar
o outro. Podemos ser hospitaleiros sem nada saber sobre o outro? Kohan expõe o
paradoxo de Derrida: “ou o anfitrião cala e isenta sua verdade e se deixa absolutamente
transpassar pela verdade do outro, ou então ele proclama saber a verdade sobre o
estrangeiro – e acompanha seu saber com a pretensa ignorância do estrangeiro sobre si”
(Idem:118). Para Derrida, o estrangeiro pode convidar o anfitrião a convidá-lo. Como
acolher as crianças, esses estrangeiros que falam outra língua? “Como não sucumbir
perante a tentação de acabar com a infantilidade da infância, em nome da tolerância, da
solidariedade, do diálogo, e de tantas outras palavras bem pronunciadas?” (Idem:119).
As idéias de Fuganti podem contribuir para essa compreensão da criança, não
relacionada à falta, mas vista como presença. Segundo Fuganti15, à existência nada falta.
Ao contrário, há uma plenitude. Ele nos convida a ver essa plenitude na loucura, pois há
nela uma generosidade de forças. A infância costuma ser associada à loucura pela falta,
pela desrazão. Ambas têm um lugar menor em nossa sociedade por sua alteridade.
Podemos dizer que na criança também há uma multiplicidade de forças, uma plenitude,
uma potência inventiva. “A criança é pura potência de afetar e ser afetada. Ela está
aberta para as multiplicidades do mundo” (FUGANTI, 1990). Para Fuganti, as oficinas
15
2007.
49
Em entrevista realizada com Luiz Antonio Fuganti, por Amanda dos Santos Gonçalves, em
50
inspiradas na terapia ocupacional ortodoxa operam como uma forma de consumir a
energia do louco, de gastar a energia que é tida como perigosa. Muitas atividades
destinadas às crianças também têm essa função de ocupá-las, consumir sua energia,
poupando a energia do adulto que tem a obrigação de cuidar e acompanhar os
movimentos infantis. Incomodamo-nos com a desordem que a loucura e a infância
tendem a promover. Consideramos a desordem perigosa, pois ela escapa das
coordenadas do espaço e do tempo que foram socialmente estabelecidos de modo a
contê-la. No entanto, é esse funcionamento outro da criança e do louco que lhes confere
uma posição privilegiada para estranhar as práticas que naturalizamos, para
experimentar quando só conseguimos repetir o conhecido.
Kohan afirma que “a infância exige pensar numa temporalidade para além do
tempo ‘normal’” (2007:113). Nesta linha, Kastrup (2000) expõe uma concepção do
desenvolvimento cognitivo que não é cronológica, o que faculta retirar a criança do
lugar da negatividade. Tal compreensão do desenvolvimento apóia-se nas idéias de
Bergson. O filósofo entende que a evolução ocorre em forma de feixe e não numa única
direção. A transformação evolutiva se dá sob o signo da diferenciação e divergência.
Bergson destaca duas tendências distintas que se misturam ao se atualizar: a repetitiva e
a inventiva. “Toda forma atualizada – e aí podemos ver o caso do sistema cognitivo
infantil ou adulto – é um misto de matéria e tempo, guardando uma abertura e
encontrando-se sujeito à instabilização” (KASTRUP, 2000:375). Assim, o modo de
conhecer da criança não é visto como algo a ser ultrapassado. Compreende-se a infância
como portadora de virtualidades, englobando em si diversas possibilidades, pois nela
prevalece a tendência inventiva. O modo de conhecer infantil assegura a abertura da
cognição. “O ‘infantil e o ‘adulto’ coexistem no interior da cognição e a dimensão
‘infantil’ vai se destacar como uma tendência sempre virtual, capaz de fazer divergir as
formas e as estruturas constituídas” (Idem:275). As formas adultas podem se enrijecer,
dificultando a sua diferenciação, mas há sempre uma criança no adulto que se revela nos
movimentos cognitivos divergentes. Não há perda irreversível dos nossos devires.
Bergson diz que
“estamos incessantemente fazendo escolhas, e sem cessar também deixamos
de lado muitas coisas. O itinerário que percorremos no tempo está juncado
dos resíduos de tudo que começávamos a ser, de tudo que poderíamos ter
50
51
vindo a ser. Mas a natureza, que dispõe de um número incalculável de vias,
(...) conserva as tendências que se bifurcam ao crescer” (Idem:376).
O filósofo Friedrich Nietzsche, em sua obra Assim falou Zaratustra, também
afirma a criança como positividade, nesse caso, como a última metamorfose do espírito,
sua última superação. As três transformações de que nos fala Zaratustra são: o espírito
que se muda em camelo, o camelo que se torna leão e, finalmente, o leão que se
transmuta em criança. O filósofo compara o espírito sólido ao camelo, pois ambos
carregam humildemente, sem resistência, seu peso pelo deserto e, abdicam da liberdade.
O espírito sólido testa sua força sobrecarregando-se dos pesados valores tradicionais,
que tanto respeita. O senhor do camelo é a imposição dos valores milenares: “Tu
deves”. Para o espírito sólido e respeitoso, a mais terrível apropriação é a obtenção do
direito de criar novos valores. Porém, na solidão do deserto, o camelo transforma-se em
leão em busca de “conquistar sua liberdade e ser o rei de seu próprio deserto”
(NIETZSCHE, p.32). O espírito do leão revolta-se contra os valores impostos e,
renuncia ao seu último senhor dizendo: “Eu quero”. O inimigo do leão fala: “todos os
valores foram já criados e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir
o “Eu quero!” (Idem). O leão nega o dever e ganha a liberdade para a nova criação. No
entanto, o leão ainda não tem uma liberdade afirmativa, não sendo capaz de criar novos
valores. Ocorre, então, a última e suprema metamorfose: o leão se muda em criança. “A
criança é inocência, e esquecimento, um recomeço, um brinquedo, uma roda que gira
sobre si própria, movimento primeiro, uma santa afirmação” (Idem). Agora o espírito
livre quer sua vontade. A afirmação da criança possibilita o jogo da criação: é a vida
que inventa os valores. Portanto, nenhum valor pode se sobrepor à vida. Fuganti (1990)
chama esse movimento da criança de reversão do platonismo e do cristianismo, mas
também a reversão de nós mesmos. “A invenção é necessariamente um movimento de
leveza, um jogo alegre, uma explosão de riso” (FUGANTI, 1990:80). Sobre o espírito
da criança de Zaratustra, Kohan diz:
“Frente ao direito aos valores novos do leão, mas ainda sem as novas
criações, a criança constitui a criação mesma, um novo começo para os
valores, a liberdade mais afirmativa, tempo circular que retorna, pura
afirmação da vida. A inocência e o esquecimento isentam a criança dos
rancores e do ressentimento” (2007:110).
51
52
Para o autor, as três metamorfoses não se dão numa linha contínua e sucessiva de
progresso, e sim num círculo de intensidades.
Kohan diferencia duas infâncias. Uma é a infância molar, majoritária, das
histórias da infância, da continuidade cronológica, do desenvolvimento por estágios, das
maiorias, do modelo de criança, idealizada, educada, disciplinada, institucionalizada. A
outra infância é a molecular, minoritária; ela habita outra temporalidade, é experiência,
intensidade, acontecimento, um detalhe, criação, resistência, revolução, ruptura com a
história, linha de fuga. Kohan diz que esta é “a infância que resiste aos movimentos
concêntricos, arborizados, totalizantes: ‘a criança autista’, ‘o aluno nota dez’, ‘o menino
violento’” (2007:94). A infância molecular está sempre saindo do lugar que lhe
concedem e ocupando outros - inesperados, desconhecidos, inusitados. A infância molar
é a forma; a molecular, a força. Habitamos as duas infâncias, ambos os espaços e
temporalidades. Elas não são excludentes. Para Kohan, não é o caso de se idealizar uma
em detrimento da outra. Trata-se não do que se deve ser, mas do que de pode ser. O
autor diz que “uma infância afirma a força do mesmo, do centro do tudo; a outra, a
diferença, o fora, o singular. Uma leva a consolidar, unificar e conservar, a outra a
irromper, diversificar e revolucionar” (Idem:95).
As idéias de Bergson e Nietzsche influenciaram muito o pensamento de Deleuze
e Guattari. Podemos ver o “tornar-se criança” de Zaratustra numa das ferramentas
criadas por esses dois autores: devir-criança. Esse conceito, segundo Kastrup, se refere a
uma criança que persiste no adulto como virtualidade, condição de diferenciação e
divergência cognitiva. Logo, ele está em consonância com a concepção de
temporalidade de Bergson. O devir, como substantivo, porta a idéia do movimento de
transformação que se dá no presente e não no decurso de um tempo histórico. “Não se
define como passagem de uma forma a outra, mas sobretudo como movimento que faz
tensão com as formas” (KASTRUP, 2000:377). A forma-adulto e a forma-criança são
estados, pontos de parada. “O devir-criança é o encontro entre um adulto e uma criança
– o artigo indefinido não marca ausência de determinação, mas a singularidade de um
encontro não-particular nem universal – como expressão minoritária do ser humano”
(KOHAN, 2007:95-96). O devir não se caracteriza pelo que ele pode vir a criar, seus
pontos de parada ou desaceleração, nem se assemelha a uma metamorfose de uma
forma que se transforma em outra. “O devir é um movimento pelo qual a linha libera-se
52
53
do ponto, e torna os pontos indiscerníveis” (DELEUZE & GUATTARI, 1997:92). O
devir é uma desterritorialização16. Ele desconstrói a forma. O bloco de devir não
transforma uma coisa em outra, pois esta também está em devir. “Devir é um encontro
entre duas pessoas, acontecimentos, idéias, entidades, multiplicidades, que provoca um
terceira coisa entre ambas” (KOHAN, 2007:95).
Deleuze e Guattari opõem o devir-criança à lembrança que temos da infância
“‘uma’ criança molecular é produzida... ‘uma’ criança coexiste conosco,
numa zona de vizinhança17 ou num bloco de devir, numa linha de
desterritorialização que nos arrasta a ambos – contrariamente à criança que
fomos, da qual nos lembramos ou que fantasmamos, a criança molar da qual
o adulto é o futuro” (DELEUZE e GUATTARI, 1997:92).
Devir-criança não significa, por exemplo, voltar a ser como na minha infância das
memórias contadas a cima. Não retornaria a mesma perspectiva visual ou temporal. Não
se trata de retomar uma vivência do tempo não-cronológico que antes possuía,
desconsiderando a organização majoritária do tempo, ou ver o mundo com olhos
infantis. Trata-se de desconstruir a forma atual, molar, adulta de ser, sem previsão dos
efeitos desse movimento. Até as memórias da infância que hoje ativo, o faço pela
perspectiva do adulto que sou nesse momento, com todos os meus atravessamentos
contemporâneos. Não é possível resgatar a percepção exata que tinha quando criança.
Segundo Kastrup (2000), falar em devir-criança é ter uma compreensão da cognição
como politemporal, pois seus movimentos operam entre diversas camadas de tempo,
entre múltiplos platôs. Um devir é sempre algo contemporâneo. Devir-criança não é
retornar à infância ou infantilizar-se, nem significa imitar uma criança. Devir não é
identificar-se, parecer, equivaler, ser ou produzir, nem é uma evolução por filiação. É
uma aliança entre heterogêneos que os autores preferem denominar “involução”.
“Involuir é formar um bloco que corre seguindo sua própria linha, ‘entre’ os termos
16
Desterritorialização é um processo que ocorre quando o território engaja-se em linhas de fuga, abre-
se, sai de seu curso e até se destrói (GUATTARI & ROLNIK, 2005).
17
“A vizinhança é uma noção ao mesmo tempo topológica e quântica, que
marca a pertença a uma mesma molécula, independentemente dos sujeitos
considerados e das formas determinadas” (DELEUZE & GUATTARI,
1997:64). O princípio de proximidade do devir indica uma zona de
vizinhança, isto é, uma co-presença de uma partícula. Emitem-se partículas
que assumem certas relações de movimento e repouso porque entram numa
53
54
postos em jogo” (DELEUZE & GUATTARI, 1997:19). A involução é criadora e não se
confunde com regressão.
Deleuze e Guattari distinguem dois planos, ou duas maneiras de conceber o
plano: o plano de consistência ou de composição e o plano de organização e
desenvolvimento. Este é um plano estrutural e genético que corresponde às condições
de possibilidade e desenvolvimento das formas visíveis e da formação do sujeito. O
plano de organização e desenvolvimento é transcendente, oculto, é analogia e ausência.
Ele próprio não é sujeito à criação. Só podemos concluí-lo a partir de seus efeitos.
“Formas desenvolvem-se, sujeitos formam-se, em função de um plano que só pode ser
inferido” (Idem:57). Ele é o plano explorado pelas consagradas teorias do
desenvolvimento cognitivo. Já no plano de consistência ou de composição,
“Há apenas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão entre
elementos não formados, ao menos relativamente não formados, moléculas e
partículas de toda e espécie. Há somente hecceidades, afectos, individuações
sem sujeito que constituem agenciamentos coletivos. Nada se desenvolve
mas coisas acontecem” (Idem:55).
Este é um plano de imanência, de proliferação, de contágio, de involução, onde a forma
é constantemente dissolvida, liberando tempos e velocidades. O plano de consistência
faz perceber o imperceptível. Segundo Kastrup (2000), apesar de estar aquém das
formas existentes e visíveis, este plano proporciona as condições de produção das
formas, sejam elas objetos ou sujeitos. As formas emergem desse plano, distinguem-se e
individuam-se pelos agenciamentos entre movimentos, forças e linhas - afirma a autora.
No entanto, as formas não se separam do plano de composição, pois são relançadas nele
e permanecem envolvidas num movimento de criação, já que não possuem limites
fechados. “Só há velocidades e lentidões entre elementos não formados, e afectos entre
potências não subjetivadas, em função de um plano que é necessariamente dado ao
mesmo tempo que aquilo que ele dá” (DELEUZE & GUATTARI, 1997:57). Podemos
dizer que o plano de organização e desenvolvimento é molar, enquanto o plano de
composição é molecular. O devir se dá no plano de consistência, no meio molecular,
invisível e denso, subsistindo entre as formas molares, visíveis. Kastrup (2000) afirma
que há comunicação entre os planos: “as formas podem involuir e entrar em devir,
zona de vizinhança, ou entram nessa zona devido a tais relações.
54
55
assim como o devir pode configurar formas que tendem a escapar dele” (p.378).
A criança molar é uma forma visível, caracterizada por determinados traços e
comportamentos. A criança da história da infância, das teorias de desenvolvimento, alvo
da pedagogia é a criança do plano de organização. A criança molecular, do plano de
composição, é o próprio devir-criança, que pode acometer tanto adultos quanto crianças.
Kastrup (2000) tenta caracterizar o devir-criança. O primeiro elemento que
destaca é a exploração do meio molecular. Essa característica aparece na escrita de
Deleuze. O filósofo diz: “a criança não pára de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar
os meios, por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa correspondente. Os mapas dos trajetos
são essenciais à atividade psíquica” (DELEUZE, 1997:73). Deleuze afirma que esse
meio é composto de substâncias, potências, qualidades e acontecimentos. Os trajetos
pelos quais a criança experimenta se confundem com sua subjetividade e também com a
subjetividade do meio. Os pais, com suas qualidades e potências, são um dos meios que
a criança percorre. “Eles só tomam a forma pessoal e parental como representantes de
um meio num outro meio” (Idem:73). A criança não se limita às coordenadas de seus
pais para chegar aos meios por derivação depois. A criança sempre está mergulhada
num meio atual que ela percorre. Os pais só têm a função de conectores ou
desconectores de zonas. Para Kastrup (2000), a criança, ao explorar diretamente o meio
molecular, está desprovida de um programa que acesse a memória ou ambicione um
projeto. Portanto, o devir-criança é uma atividade que não é guiada por regras prescritas
que determinariam sua ação. Essa é a segunda característica do devir-criança, levantada
pela autora: “A criança quer procurar e inventar, sempre à espreita da novidade,
impaciente com a regra” (BERGSON apud KASTRUP, 2000:379). Esse movimento é
exploratório e experimental, pois lança-se no presente imediato e desliza pelas brechas
que há entre as formas instituídas. “Há aí uma dimensão da subjetividade que
transborda das estruturas estabilizadas” (KASTRUP, 2000:379).
O movimento
involutivo do devir promove um processo de dessubjetivação. No entanto, é
imprescindível que haja formas para que ocorra o devir. A cognição infantil é complexa
e comporta as dimensões molecular e molar. Logo, a cognição tem uma certa
estabilidade
devido
a
suas
estruturas
molares
territorializadas
que
são
desterritorializadas pelos movimentos moleculares. “O devir-criança é uma forma de
encontro que marca uma linha de fuga a transitar, aberta, intensa” (KOHAN, 2007:96).
55
56
Singularidades femininas, infantis, homossexuais, poéticas ou negras podem
romper com as estratificações dominantes. Se tomadas por um devir, desencadeiam um
processo de singularização. Devires subjetivos, processos transversais, se instauram
então através de indivíduos e grupos. A identidade é uma paralisação desse processo.
Guattari (2005) concebe a existência de vias de passagem, de comunicação
inconsciente, entre os movimentos minoritários do negro, da mulher, da criança e da
arte - devires que permeiam essas diversas subjetividades. Os segmentos de devir –
devir-criança, devir-mulher, devir-animal, vegetal ou mineral, devires moleculares de
todas as espécies – transformam-se uns nos outros, atravessando limiares. Cantar,
pintar, compor, escrever, desenhar, brincar desencadeiam devires. Deleuze e Guattari
denominam “dimensão molecular” do inconsciente os elementos de devires que,
articulados, constroem uma subjetivação minoritária (GUATTARI & ROLNIK, 2005).
As minorias são pólos de resistência e, mais, são potenciais processos de transformação.
A criança tem essa virtualidade, essa potência de invenção.
Deleuze e Guattari (1997) destacam a vizinhança que pode haver entre as
crianças e os animais. Se essa vizinhança é atualizada num devir, torna-se impossível
diferenciar a fronteira que separa o humano do animal. Todas as crianças e alguns
adultos dividem com o animal uma convivência inumana. As crianças que comem terra,
capim ou carne crua fazem corpo com o animal: “um corpo sem órgãos definido por
zonas de intensidade ou de vizinhança” (Idem: 65).
O que nos precipita num devir pode ser qualquer coisa, mas sempre é uma
questão política, não importa o quão inesperada ou insignificante seja. É preciso
“conceber uma política infantil molecular, que insinua-se nos afrontamentos molares e
passa por baixo, ou através” (Idem:68). Onde está escrito infantil, nessa frase, os autores
diziam feminino, mas, como há passagens entre o devir-mulher e o devir-criança,
podemos dizer o mesmo de uma política infantil. “É preciso pensar o devir-criança
enquanto átomos de infantilidade, que produzem uma política infantil molecular, que se
insinuam nos afrontamentos molares de adultos e crianças” (CORAZZA apud KOHAN,
2007:85).
As crianças extraem as suas forças do devir molecular que elas fazem passar
entre as idades, afirmam Guattari e Deleuze (1997). A criança é o devir-jovem de cada
idade. “Saber envelhecer não é permanecer jovem, é extrair de sua idade as partículas,
56
57
as velocidades e lentidões, os fluxos que constituem a juventude desta idade”
(Idem:70). Como extrair da nossa idade fluxos que promovam uma involução? Como
provocar no nosso corpo uma potência inventiva? Como nos deixar invadir por um
devir-criança?
A cantora Adriana Calcanhotto entra num devir-criança e assume o nome de
Adriana Partimpim. Partimpim era o nome que se dava quando criança. O álbum que
ela grava sob esse nome foi vendido como um disco infantil. Segundo Deleuze &
Guattari (1997), um devir-criança atravessa a música. Adriana grava músicas de uma
molecularidade que faz vizinhança com as partículas infantis. Um devir-criança é
inseparável da expressão musical, pois a música tem sede de desconstrução, afirmam os
autores. Adriana, em seu website18, diz que a mudança de nome é para salvaguardar sua
liberdade, pois o sucesso aprisiona o artista a uma identidade, a uma estética, a uma
reputação, a si mesmo. Então, Adriana experencia o devir-criança para liberta-se de si e
a esse movimento nomeia “Partimpim”. Entretanto, não é só o nome que se transforma,
mas também a imagem. Na capa do álbum, no site, ou em qualquer momento em que
haja uma imagem de Partimpim, a cantora aparece com um desenho de olhos sobre os
seus. Isso dá uma característica infantil correspondendo à imagem do produto, mas
também marca uma singularização do trabalho de Adriana, que, sob o nome de
Partimpim, experimenta outras visões, outras percepções do mundo, experimenta a
molecularidade da criança.
Manoel de Barros, outro artista, quando escreve Memórias inventadas: a
Infância (2003), experimenta um devir-criança. Ele não faz um retorno à infância que
viveu através de suas memórias - afinal, como diz o título, as memórias são inventadas.
Tampouco Barros imita uma criança, ou se torna uma. Ele é um poeta, adulto, que
vivencia um movimento outro, um devir-criança. “Porque se a gente fala a partir de ser
criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas graças,
de um pássaro e sua árvore” (BARROS, 2003). Manoel de Barros faz comunhão com a
molecularidade infantil e cria, inventa memórias. O poeta involui: deixa-se
desterritorializar, desconstruindo a sua molaridade adulta para experimentar outras
velocidades e lentidões que têm uma vizinhança com a criança.
18
57
http://wwww.adrianapartimpim.com.br
58
Kohan (2007) fala sobre a poesia do mato-grossense Manoel de Barros e, em
especial, sobre esse mesmo livro. Kohan ressalta a contradição que há na expressão
“memórias inventadas”, pois uma palavra nega a outra. No entanto, as contradições
provocam o pensamento:
“Quando nos situamos nesse espaço em que o já pensado parece impossível
é que nascem as condições para pensar outra coisa, algo diferente do já
pensado. O pensar é algo que se faz sempre entre o possível e o impossível,
entre o saber e o não-saber, entre o lógico e o ilógico” (KOHAN, 1997:88).
A contradição das Memórias inventadas de Barros nos causa estranhamento e nos
convida a pensar. Sentimo-nos impelidos a pensar algo ainda não-pensado. A tensão da
contradição produz afecção. Afetados, implicados, podemos nos debruçar sobre a
contradição, colocá-la em análise, em busca de inventar outros sentidos. Costumamos
insistir em instituições que perderam o sentido. Ao estranhar uma prática, vendo nela
uma contradição, somos forçados a exercitar o pensamento e criar novas possibilidades.
O devir-criança de Manoel de Barros promove estranhamento e impulsiona o pensar. O
devir-criança é contagiante. Deixemos-nos afetar por ele.
58
59
V – FUGAS E CAPTURAS - ESTRANHANDO O FIM
Quando somos crianças e estamos recentes no mundo, estranhamos tudo. À
medida que crescemos, nos acostumamos tanto com as práticas cotidianas, que não
conseguimos nos imaginar sem elas. O que acontece durante o envelhecimento que nos
torna dependentes do hábito, da repetição, do instituído, do mesmo? Por estranharmos
essa subjetividade adulta típica de nossa sociedade contemporânea, que se surpreende
tão pouco com as práticas instituídas, podemos questioná-la. A subjetividade infantil
ainda escapa a esse modelo. As crianças se surpreendem e indagam o sentido das coisas.
Quais são as transformações que se dão na passagem da infância à fase adulta que
promovem essa mudança de atitude em relação à vida?
Alguns fatores, interrelacionados ou mesmo sinônimos, que contribuem para
essa espécie de morte da potência infantil no adulto são: a nossa ambição de transformar
a criança num ideal de adulto, legitimando certas práticas que objetivam moldar a
criança; a disciplinarização por instituições; a captura19 de seus devires; as relações de
poder; a subordinação da infância aos adultos; a infantilização da criança; o
paternalismo; a tutela; a formação do sujeito como cópia do Outro; a institucionalização
da infância na escola; a compartimentalização do saber transmitido à criança; a sujeição
de seu corpo; a moralização da infância; a vigilância; as punições por comportamentos
indesejados; a avaliação e classificação da infância; a sexualização do infantil20; a
adultização da infância; as intervenções do Estado; a objetivação da infância pela
ciência; a captura da criança como consumidora; a formação permanente; os dispersos e
19
Para Baremblitt (1998), o instituído, em especial o Estado e o capital, busca identificar,
fragmentar e recuperar as singularidades e forças produtivas. Desse modo, adequa-se as linhas de fuga e
seus efeitos à lógica estabelecida. O capitalismo é um sistema que está em permanente reterritorialização,
pois busca “recapturar” os processos de desterritorialização que ocorrem na produção e nas relações
sociais. A reterritorialização é uma “tentativa de recomposição de um território engajado num processo
desterritorializante” (GUATTARI & ROLNIK, 2005:388).
20
Segundo Corazza (2000), o poder que infantiliza é correlato ao poder que sexualiza. A
sexualização da infância é produzida concomitantemente com a infantilização do sexo. Do mesmo modo,
pedagogiza-se o infantil e infantiliza-se a pedagogia.
59
60
contínuos mecanismos de controle. Se achamos todos esses mecanismos massacrantes,
como se sentirá a criança?
Nosso corpo é roubado para fabricar indivíduos de subjetividade capitalística.
Rouba-se o devir infantil à criança para impor-lhe uma história. Nós, capturados,
colaboramos para a modelização da infância. Dizemos à criança: “Não se comporte
assim, você já é um/uma rapazinho/mocinha!” Guattari e Deleuze afirmam que a
menina é o primeiro alvo; em seguida, a exemplo dela, se impõe a adultez ao menino,
“indicando-lhe a menina como objeto de seu desejo, que fabricamos para ele”
(DELEUZE & GUATTARI, 1997:69).
A subordinação da identidade infantil é tida, por Corazza, como uma grande
unidade estratégica, em que poder e saber fundiram-se em mecanismos específicos
constituídos em torno do “infantil”. Essa unidade forneceu as condições para que um
indivíduo infantil fosse inventado, um tipo social. Subjetiva-se o individuo moderno
pela:
“submissão ao Outro pelo controle e pela dependência; sujeição realizada
por todos os procedimentos de individualização e de modulação que o poder
de infantilizar instaura, atingindo a vida cotidiana e a interioridade daqueles
infantis que ele chama ‘seus sujeitos’. Essa identidade infantil é sujeitada
pelo funcionamento do conjunto das instituições disciplinares, tais como a
Família, o Quartel, a Igreja, a Escola, o Hospício, o Hospital, o Asilo, a Casa
da Roda; e é consubstanciada em uma figura inequívoca: a do ‘infantildependente’, enquanto ‘o outro’ do ‘Adulto’” (CORAZZA, 2000:123).
A escola é uma das instituições mais importantes na produção de uma infância
submetida e manipulada conforme os moldes pré-estabelecidos. Para que o corpo
infantil se torne força útil, ele precisa ser transformado não só em corpo produtivo, mas
também em corpo submisso (FOUCAULT, 1987). A infância escolar é segregada para
ser disciplinada de modo a transformar seu corpo em dócil e utilitariamente funcional à
dinâmica social.
“Entre algumas de suas linhas invariáveis, a escola – com seus mecanismos
e táticas de normalização, implantação de hábitos e rotinas, transmissão de
conteúdos uniformes, horários, distribuição espacial, execuções
disciplinares, operacionalização de formas determinadas de racionalidades e
de subjetividades, criação de interesses, necessidades, afetos e desejo –
produz a infância, por meio do discurso pedagógico que, no infantil e em seu
desenvolvimento, encontra razões sociais, culturais, econômicas e políticas
que justificam sua necessidade” (CORAZZA, 2000:189).
60
61
Os controles da instituição escolar objetivam a internalização da disciplina que se
justifica pela passagem da heteronomia a uma autonomia da criança. Assim, domina-se
a criança com o intuito de que ela aprenda a dominar a si mesma futuramente. Segundo
Corazza, é na escola que a criança é infantilizada. Também para Guattari (2005), a
escola é responsável pela despotencialização da criança. Em nome da infância, a
educação a mata.
No entanto, Jorge Larrosa (1998) afirma que a infância escapa à captura. A
infância molecular escorre pelas brechas. Bergson nos diz, por sua vez, que nunca
perdemos todos os nossos devires (KASTRUP, 2000). A cognição infantil, com sua
característica inventiva e divergente, permanece na cognição adulta como virtualidade.
A criança, alvo de mecanismos de submissão, resiste! Uma de suas formas de
resistência aparece nas queixas mais freqüentes dos pais e professores: a indisciplina. A
psicóloga Marisa Rocha (2001) reconhece a indisciplina como uma força legítima de
resistência e a contextualiza na escola. Disciplina e indisciplina são produzidas
paralelamente. A constituição da primeira funda a segunda como seu outro, sua
negatividade. A autora afirma que:
“quando a questão disciplinar passa a ser o eixo norteador do processo
educacional, atravessando todos os segmentos da comunidade escolar, as
relações entre os diferentes segmentos passam a ser avaliadas dentro da
dualidade respeito ou desrespeito à ordem. Assim, multiplicam-se as
técnicas de controle e as oposições entre administração x professores,
administração x funcionários, professor x aluno, inviabilizando outros
modos possíveis de convivência” (Rocha, 2001).
A indisciplina é um fenômeno que afirma a diferença e explicita as tensões e conflitos
existentes num coletivo escolar em que há grande dificuldade em administrar a
singularidade, sempre comparada a modelos universais. A indisciplina é um analisador21
da hierarquia enquanto legitimação da autoridade tradicionalmente constituída. Ela é
uma reação à violência exercida em função da manutenção de uma soberania. Rocha diz
que para Castro, a indisciplina é o efeito do embate entre velhas formas institucionais e
21
Analisador é um conceito da Análise Institucional que se refere a um dispositivo ou situação que
explicita as linhas de força ali presentes, permitindo que elas sejam postas em análise.
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novos sujeitos históricos. A criança, recente habitante de nossa sociedade, estranha a
ordem instituída e suas ultrapassadas instituições e se revolta contra estas, não se
submetendo às suas disciplinas.
Entendendo a indisciplina como uma tensão inerente ao processo educacional,
Rocha defende que o desafio da escola é transformar em conhecimento as turbulências.
Afinal, a indisciplina pode ser uma força que provoque reflexão e ação sobre a relação
escola-aluno, as condições de trabalho e as estratégias usadas. Retira-se a indisciplina
do lugar que atualmente ocupa – obstáculo ao processo ensino-aprendizagem –, ao
transformá-la em um mecanismo disparador de práticas politicamente articuladas.
Nunca somos absolutamente capturados, sempre nos restam linhas de fuga.
Podemos, enquanto camelos, estranhar nossas instituições, transformar-nos em leão,
colocando abaixo os valores que nos aprisionam e, em seguida, tornar-nos criança e
reinventar a vida. No entanto, até a criança pode enrijecer, tornando-se prisioneira dos
novos valores criados, transformando-se no espírito sólido do camelo. Assim,
novamente se faz necessária a rebelião do leão e a mutação em criança. Portanto, o
estranhamento é fundamental para que se perceba que a criança envelheceu, tornando-se
um camelo, e perdeu sua potência criadora. Não há um “patamar-criança” que se
alcance e onde se repouse estavelmente. A metamorfose em criança é um movimento. É
preciso sempre se tornar criança. A saúde é essa busca permanente de mobilização de
forças, em que não há estabilidade. Ela nos exige uma negociação cotidiana para que a
vida seja viável. A luta por uma subjetividade menos cristalizada, num modo de viver
hegemônico, não tem fim. Assim como não tem fim o presente trabalho, que busca
disparar questões, reflexões e estranhamentos, na expectativa de que o movimento não
cesse aqui, nessas últimas linhas, mas repercuta em outros pensamentos e ações.
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A criança e o estranhamento do presente