ATELIÊS DE ESCRILEITURAS: MODOS DE LER-ESCREVER EM MEIO À VIDA
Samuel Molina Schnorr
Carla Gonçalves Rodrigues
Josimara Silva Wilkboldt
Universidade Federal de Pelotas
Introdução
O presente trabalho nos reporta à possibilidade de dialogar a respeito de
campos de conhecimento que transversalizam a Educação, a Arte e a Filosofia.
Pensar sobre as relações que podem ser estabelecidas entre esses três campos de
estudo, torna-se importante tarefa no texto em questão. Para tanto, desde 2011 são
oferecidos ateliês voltados para o exercício do ler e escrever de acordo com os
princípios do Projeto denominado Escrileituras: um modo de “ler-escrever” em meio
à vida, acolhendo pessoas da comunidade em geral, mais especificamente,
professores em serviço da rede pública da região sul do Rio Grande do Sul, alunos
de graduação e pós-graduação das instituições públicas, bem como particulares
localizadas nos arredores da cidade de Pelotas
O referido Projeto tem como principal meta a criação de propostas de
intervenções extensionista educativas por meio de variadas linguagens, trazendo
discussões a respeito dos modos de vida deste tempo e que solicitam a produção de
novos apontadores conceituais para as ciências da Educação. É uma tentativa de
discorrer sobre ela, imersa e tramada no cenário desta atualidade, tratando-a como
um conjunto de processos em que indivíduos se transformam ou são transformados
por dispositivos culturais nos quais se situam elementos da Arte Contemporânea e
da Filosofia da Diferença.
O Projeto Escrileituras é desenvolvido em quatro universidades brasileiras –
UFPel, UFRGS1, Unioeste e UFMT. Seu intuito, em concordância com o Instituto
Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP), é proporcionar um trabalho em ateliês
de escrileituras, objetivando melhorar os números indicados pelo Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) 2 acerca da produção de leitura e
escrita dos alunos. Trata de um trabalho articulador do ensino, pesquisa e extensão,
desempenhando suas atividades em vários pontos do Brasil, entrecruzando áreas
do conhecimento que são “propostas como linhas de intensidades a serem
multiplicadas numa cartografia intensiva” (Dalarosa, 2011, p.21): artes, biografemas,
filosofia, matemática, música e teatro. Acredita-se que essas modalidades dão vida
a uma escritura3 que é impulsionada a agir diante de signos lançados nos momentos
em que elementos da multiplicidade se envolvem, possibilitando a produção de uma
composição singular pelos participantes dos ateliês. É uma experimentação de
1
Tem sede central na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenado pela Profª. Drª.
Sandra Mara Corazza.
2
O IDEB foi criado em 2007 para medir a qualidade de cada escola e de cada rede de ensino. O
indicador é calculado com base no desempenho do estudante em avaliações do INEP e em taxas de
aprovação. Assim, para que o IDEB de uma escola ou rede cresça, é preciso que o aluno aprenda,
não repita o ano e frequente a sala de aula. (Portal do MEC. http://portal.mec.gov.br).
3
Termo conceituado como sendo a produção de um texto singular para aquele que cria e que inventa
novas línguas, permitindo engendrar outras formas de expressão e de conteúdo capazes de
diferenciar-se na estrutura da linguística.
outras formas de tratamento das mais variadas linguagens, advindas da arte e da
filosofia, na tentativa de alcançar aprendizagens includentes dos desafios pelos
quais atravessa a Educação brasileira.
Metodologia
Como ação intervencionista na atual problemática relativa aos baixos índices
de alfabetização no Brasil, os Ateliês de escrileituras visam ativar as quatro funções
do ego: pensamento, percepção, criação e comunicação (Zimerman, 1993). Em
seus procedimentos de leitura e de escrita, implicam o campo do vivido, das
sensações e das invenções. Os atos de ler e de escrever são tomados como ações
criadoras de sentidos diferentes para cada leitor-escritor, em seus processos de
subjetivação, bem como exercem importantes funções sociais, culturais,
comunitárias, éticas e políticas.
Aposta-se nos Ateliês de Escrileituras (escrita-pela-leitura e leitura-pelaescritura) pelo fato de tratar, sempre, de alguma escritura; ou seja, de uma escrita
singular, promovida por um escritor-leitor ou leitor-escritor (Barthes, 2004). Portanto,
trata-se de uma escrileitura que é autoral e que não é possível imitar, pois não pode
funcionar como modelo de leitura ou método de escrita, visto que estas são
avaliadas por sua capacidade de traduzir acontecimentos; capaz de produzir efeitos
artistadores, transformar forças em novas maneiras de sentir e de ser, engendrar
diferentes práticas de educar e revolucionárias formas de existência (Corazza,
2011).
O trabalho intervencionista, destacado neste texto, reúne três Ateliês, que
tiveram como intenção maior focalizar a formação docente, tanto inicial como em
serviço, abrangendo a Educação de Jovens e Adultos. Assim, realizou-se durante o
mês de julho de 2011, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Pelotas, o Ateliê intitulado Tramas e usos do passeio urbano: por uma estética
professoral, com carga horária de quarenta horas, visando articular o passeio urbano
com mídias de uso doméstico da comunicação atual, registrando cartograficamente
o material produzido por cada participante. Tal experimentação foi amparada por
interlocutores como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Francis Alÿs, Agnès Varda,
Samuel Beckett e Jorge Larrosa. Tendo como produto final, a produção de um vídeo
cartográfico.
No “Encontro escrilendo uma vida – Máquina de guerra para uma existência
contemporânea” está inserido os outros dois Ateliês, de quatro horas cada.
Realizado, em 2013, em uma Escola da Rede Estadual da cidade de Rio Grande –
RS, com os professores da EJA (noturno). No primeiro, denominado “Ateliê Conatus”
foi lido coletivamente o texto “A Metamorfose” de Kafka em HQ 4. Na sequência,
realizou-se o estudo dos conceitos corpo, alma, conatus e potência de vida em
Spinoza e Nietzsche, utilizando programas do Café Filosófico 5. Compondo o
conjunto, a apresentação de um trecho do filme Quando Nietzsche chorou,
demonstrando a ideia de Eterno retorno. Esses dispositivos tiveram como intenção a
produção de um podcast6 como produto dos trabalhos desenvolvidos a partir das
escritas.
4
Texto em quadrinhos da Metamorfose de Kafka, adaptado por Peter Kuper.
A existência como doença com Márcia Tiburi: http://www.youtube.com/watch?v=e2cm2ug-jOo; A
alegria e o trágico em Nietzsche com Roberto Machado: http://www.youtube.com/watch?v=36L6Hp5_ug&list=PL9C38121C3514F1BB.
6
Podcast é o nome dado ao arquivo de áudio digital, frequentemente em formato MP3, publicado
através de podcasting na internet e atualizado via RSS. A palavra é uma junção de Pod-Personal On
5
O segundo, “Rabiscos de sensações de um corpo crianceiro” caracterizou-se
por proporcionar aos participantes vivencias infantis. O grupo participante foi
convidado a experimentar circuitos, onde foram propostas brincadeiras, que exigiam
atividades corpóreas. Ainda, o Ateliê foi composto por subsídios filosóficos e
artísticos (literatura), com o objetivo de fomentar o exercício de escriler, intercalados
por elementos do universo crianceiro. Por fim, os participantes foram convidados a
montar um livro, reunindo as folhas A2 recebidas no início.
Análise e discussão
Sobre o Ateliê Tramas e usos do passeio urbano: por uma estética
professoral é possível dizer que na tentativa de articulação de ensino, pesquisa e
extensão, e tendo como maior propósito fomentar a Escrileitura na formação
docente, as aulas teóricas demonstraram grande importância. Cada participante foi
construindo sua compreensão ao mesmo tempo em que utilizava o método
investigativo cartográfico, possibilitando durante os passeios, um olhar diferenciado,
alguma experimentação, permitindo que conexões entre elementos díspares se
formassem, territórios fossem desconstituídos ou reforçados, e que sensações
pudessem transparecer no vídeo elaborado.
Pode-se destacar a partir das análises feitas posteriores à execução do
trabalho, a potência do método cartográfico na formação docente, visto que
possibilita a produção de novos saberes desde o múltiplo arranjo curricular de
matérias heterogêneas, potencializando a escrita por meio do que é lido. O uso
entrelaçado de saberes advindos da arte, da filosofia e da ciência educativa na
formação de professores, possibilitou, conforme afirmam Deleuze e Guattari (1997),
o enfrentamento do pensamento caótico no ato de criação do vídeo. Cada um dos
participantes conseguiu construir filmes com um caráter metodológico cartográfico,
apresentando, por vezes mais fortemente e outras nem tanto, uma visão
diferenciada daquilo que, até então, era perceptível à sua corporeidade.
Nos outros dois Ateliês é possível destacar a transversalidade dos saberes,
tendo na trama dos elementos da arte, da filosofia e da ciência, território consistente
para as tentativas de expressão frente ao adoecimento dos sujeitos pertencentes a
esta contemporaneidade, por meio dos modos ler e escrever em meio à vida. Ainda,
a escolha pela literatura foi uma aposta no que tange a sua possibilidade de
diferenciar-se e descentralizar-se de alguns marcadores de poder linguísticos, como
no caso, o uso de normas ortográficas para escrever. A escrita como
empreendimento de saúde foi a aposta, conforme Deleuze propõe em Crítica e
Clínica. O filósofo indica a literatura como modelo de saúde, na medida em que esta
permite invocar um povo que resista a tudo que aprisiona e favoreça estados de
existência em variação. Estados que não se pretendem ser identificáveis,
mensurados ou categorizados.
As filosofias da diferença e as práticas estéticas atuais têm demonstrado uma
enorme capacidade de contribuição para problematizar os processos de
subjetivação docentes, mediante as transformações sociais. As discussões
conceituais e os modos de fazer que esses campos põem em jogo, atualmente, têm
muito a auxiliar nos estudos sobre como alguém se torna professor, com vistas a:
superar o entendimento do campo da arte como disciplina, abordando-o como
potência de criação; superar a identificação do campo filosófico com discursos
herméticos de especialistas, para aprender com suas formas de problematizar a
realidade e produzir diferença.
Demand (numa tradução literal, pessoal sob demanda) retirada de iPod e broadcast (transmissão de
rádio ou televisão).
Conclusão
O que pode uma escrita e uma leitura? – perguntaria Spinoza (2002). Nunca
se chegará a uma resposta exata sobre o processo de escrileiturar. Apenas o que se
pretende é focalizar a potência do ler e do escrever e vice-versa como exercício
clínico no empreendimento da saúde como múltiplas formas de se constituir um
professor nesta contemporaneidade, favorecendo o enfrentamento das avaliações
nacionais no que diz respeito à alfabetização.
Não há maiores dúvidas que os Ateliês de Escrileituras favorecem outras
maneiras de pensar, melhor dizendo, pensar-se. Uma intervenção que destitui as
habilidades que um professor deve atingir, previamente definidas como uma
identidade a ser alcançada, possibilitando a construção de critérios de existência
para uma vida que também é docente, mas não somente docente. Por meio dos
Ateliês que, em seus procedimentos de leitura-e-escrita, implicam o campo do
vivido, dos sentidos, das sensações e das invenções; solicitam um tempo que não é
o cronológico, mas o da duração; autorizam-se a fazer atravessamentos na
ortodoxia dos textos, para existir a seu modo; reivindicando outras maneiras
possíveis de inscrever signos e de escriturar sentidos.
Considerando que “a vida deve ser traduzida, como processo de criação”
(Villani, 1999, p. 71), nesses circuitos e transcursos tradutórios, os Ateliês
privilegiam elementos de funções científicas, de conceitos filosóficos, de perceptos e
afectos artísticos, extraídos de obras já realizadas, que outros autores criaram, em
outros planos, tempos, espaços, línguas, como as suas efetivas condições de
possibilidade, necessárias para a própria execução; e, ao mesmo tempo, como o
seu privilegiado campo de experimentação, necessário para as próprias criações de
leitura-e-escrita.
Referências
BARTHES, Roland. (2004) Inéditos: v.1 – teoria. São Paulo: Martins Fontes.
CORAZZA, Sandra Mara. (2011) Notas para pensar as Oficinas de Transcriação
(OsT). In: HEUSER, Ester (Org.) Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias.
Cuiabá, EdUFMT.
DALAROSA, Patrícia Cardinale. (2011) Escrileituras: um modo de ler-escrever em
meio à vida. In: HEUSER, Ester (org.). Caderno de Notas 1: projeto, notas &
ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, p. 13-29.
DELEUZE, Gilles. (1997) Crítica e clínica. Rio de Janeiro: Ed. 34.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. (1997) O que é a filosofia? Rio de Janeiro:
Editora 34,
SPINOZA, Baruch de. (2002) Ética demonstrada à maneira dos geômetras. São
Paulo: Martin Claret.
VILLANI, Arnaud. (1999) La guêpe et l’orchidée: essai sur Gilles Deleuze. Paris:
Belin.
ZIMERMAN, D. E. (1993) Fundamentos básicos das grupoterapias. Porto Alegre:
Artes Médicas.
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