Diálogos Sur-sur: pedagogias descolonizadoras
Pedagogias do corpo: o Teatro do Oprimido como ferramenta de pesquisa.
Eliana Nunes Ribeiro
Doutoranda do Programa EICOS- Psicossociologia de Comunidades e Ecologia SocialUniversidade Federal do Rio de Janeiro.1
[email protected]
Compreender a pesquisa como parte integrante de um processo pedagógico
decolonial, implica na busca de metodologias e ferramentas questionadoras da
epistemologia universalista eurocêntrica. Um dos caminhos para a constituição de uma
episteme outra é reconhecer que a existência humana é corporal e in corporareste
reconhecimento à prática de pesquisa. De Oto (2003) enfatiza que não há ideia sem
corpo, não há histórias sem experiências corporais. Neste sentido, o corpo do
pesquisador integra o processo de pesquisa
Este trabalho tem por objetivos assinalar a importância da corporeidade nos
processos de ensino/pesquisa, apresentando o relato da experiência com a oficina O
Teatro do Oprimido como ferramenta de pesquisa, promovida pelo Laboratório de
Imagens, ligado ao programa EICOS_ Pós graduação em Psicossociologia de
Comunidades e Ecologia Social, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.A oficina_ oferecida aos mestrandos e doutorandos do Programa EICOS,
ligados ao Laboratório de Imagens e aos mestrandos do Programa MITRA:
Médiationinterculturelle, identités, mobilités, conflits _ propiciou um espaço
pedagógico intercultural, desafiador e questionador,
O
Teatro
mostrou-se
uma
ferramentapara
que
os
estudantes/pesquisadores
reconhecessem sua própria corporeidade, situando-se a partir própria experiência,
tornado mais fecundo os encontros aos quais chamamos de ensino, pesquisa e extensão.
Neste sentido, a prática do Teatro do Oprimido, pode criar um espaço pedagógico de
estar, sentir, fazer, pensar, escutar e saber de outro modo. Segundo Walsh (2013), as
práticas pedagógicas são aquelas que
Abren caminhos y condiciones radicalmente “otros” de
pensamento, re- e in- surgimento, levantamento y edificación,
prácticas entendidas pedagogicamente_ prácticas como pedagogias_
que a la vez, hacencuestionar y desafiar larazón única de
1
Autorizo a publicação deste trabalho em qualquer formato definido pelo Comitê Acadêmico do II
Congresso de EstudiosPoscoloniales, III Jornadas de Feminismo Poscolonial.
lamodernidade occidental y el poder colonial aún presente,
desenganchando-se de ella. (WALSH, 2013:28)
A origem grega da palavra teatro, o theatron, revela uma propriedade
fundamental desta arte _ é o local onde o público olha uma ação que lhe é apresentada
num outro lugar. Teatro é, então, um ponto de vista, um olhar, um ângulo de visão sobre
um acontecimento. O deslocamento da relação entre olhar e objeto olhado propicia a
construção onde tem lugar a representação.
Haraway (1995) sinaliza para a natureza corpórea do sentido da visão _e do
ponto de vista_ na construção epistemológica da dominação, argumentando que este
sentido tem sido usado para significar um salto para fora do corpo marcado, para um
olhar conquistador que se pretende não localizado.
Este é o olhar que inscreve miticamente todos os corpos
marcados, que possibilita à categoria não marcada alegar ter o
poder de ver sem ser vista, de representar, escapando à representação.
Este olhar significa as posições não marcadas de Homem e Branco,
uma das várias tonalidades desagradáveis que a palavra objetividade
tem para os ouvidos feministas nas sociedades científicas e
tecnológicas, pós industriais, militarizadas, racistas e dominadas pelos
homens. (HARAWAY,1995, p.18).
A configuração eurocêntrica e patriarcal configura-se, também, em um sexismo
epistemológico. Para Grosfoguell (2008) as disciplinas são homens ocidentais criando
um tipo de conhecimento que não se assume como ponto de vista, assumindo-se como
ponto zero _ o ponto de partida no qual se camufla quem fala e de onde fala_ o que o
autor considera como egopolítica do conhecimento, o universalismo do sujeito de
enunciação, o “penso, logo existo”.
A prática teatral, ao problematizar mediante exercícios e jogos, os enunciados
corporificados que fundamentam as práticas dos estudantes/ pesquisadores, vem somarse às leituras realizadas pelos mesmos, contribuindo para uma abordagem outra dos
temas pesquisados. O conhecimento passa pelo sensível, pela localização corporificada
que é um caminho para a descolonização epistemológica. Reconduzir o corpo ao seu
potencial heurístico é provocar um deslocamento epistemológico, passando do olhar
universal ao localizado.
Corpo e Conhecimento
Cada sociedade delineia um saber singular sobre o corpo no que se refere a seus
elementos constitutivos, suas performances, suas correspondências. Segundo Le Breton
(2010) as concepções de corpo são tributárias da concepção de pessoa. O autor sinaliza
para representações diferenciadas da corporeidade, distinguindo entre dar corpo ao
homem, onde há separação entre homem e corpo, e dar carne ao homem, onde não há
distinção entre homem e corpo e a corporeidade é dada por uma rede complexa de
correspondências entre a condição humana e o cosmo; e a carne permanece sob a
influência do Universo que lhe dá energia. Para o autor, o isolamento do corpo no seio
das sociedades ocidentais testemunha uma trama social na qual o homem é separado do
cosmo, separado dos outros e de si mesmo. O corpo passará a ser considerado residual,
não mais um sinal da presença humana, mas o suporte para algo _ a alma ou a
racionalidade.
O corpo ou a corporeidade _experiência do corpo _ ocupa um lugar central no
discurso colonial e pós-colonial. A visão do corpo como um lugar de representação e
controle, como um texto no qual discursos conflitantes podem ser escritos e lidos
sublinha a complexidade de maneiras nas quais este pode ser construído, elaborando seu
papel ambivalente na manutenção e resistência ao poder colonizador.Concomitante à
construção de um discurso colonial sobre o corpo, a epistemologia eurocentrada, então
em processo de formação silencia as formulações fruto da corporeidade, da experiência
dos povos conquistados.
Interessa a este trabalho o conceito de diferença colonial, proposto por Mignolo
(2003), entendida como forma de reconhecer conhecimentos outros, constituídos a partir
das margens e das experiências criadas pela colonialidade, a partir de formas de ser,
pensar e conhecer diferentes da modernidade europeia, mas em diálogo com esta. Para o
autor, a diferença colonial é um reordenamento da geopolítica do conhecimento em duas
direções: crítica da subalternização na perspectiva dos conhecimentos invisibilizados e a
emergência do pensamento liminar _ uma nova modalidade epistemológica na
interseção da tradição ocidental e a diversidade de categorias suprimidas pelo
eurocentrismo. A perspectiva da diferença colonial requer um olhar sobre outros
enfoques epistemológicos e interesse por produções de conhecimento distintas da
modernidade ocidental.
No escopo deste trabalho, a corporeidade pode ser considerada diferença colonial.
Mignolo (2011) foca na matriz colonial de poder, cujos dois lados são a retórica da
modernidade e a lógica da colonialidade e, em relação à corporeidade faz distinção entre
a biopolítica- conceito que tem servido para analisar estratégias de orientação estatal
para gerenciar e controlar a população e corpopolítica do conhecimento- usado para
descrever e afirmar respostas, pensamentos e fazeres em regiões e corpos
desqualificados pelo pensamento da colonialidade. Para o autor, é partir do corpo que
questões surgem e respostas são exploradas.
Sinaliza o autor que a epistemologia do ponto zero ou hubris do ponto zero é um
conceito chave para entender como a colonialidade do saber opera. Segundo este
conceito, as formulações da modernidade são produzidas por sujeitos desracializados,
dessexualizados, de gênero neutro e sem localização. Citando o neurofisiologista
chileno Humberto Maturana, faz distinção entre objetividade sem parêntesis, que leva a
uma epistemologia de controle, por um lado e da obediência, por outro lado e
objetividade entre parêntesis, na qual a distinção entre objetos e experiência não é
esquecida, mas a referência aos objetos não é a base da explanação, é a coerência da
experiência com outras experiências que constitui a fundação de toda a explicação.
Todo ser é constituído através do fazer de observadores. Deste modo, relações
interepistêmicas requerem a hegemonia de uma epistemologia entre parêntesis. Torna-se
necessária a tradução.Atradução, postula a criação de uma inteligibilidade mútua, na
qual uma determinada luta, particular ou local só reconhece outra na medida em que
ambas perdem parte do seu particularismo e localismo, identificando o que une e é
comum a entidades que estão separadas por suas diferenças recíprocas.
Quijano (apudMignolo 2003) aponta para a relação entre o corpo e o não corpo
na formulação da epistemologia eurocêntrica, sinalizando que esta formulação tem, na
experiência latinoamericana, uma estreita relação de raça e gênero. O autor considera
que a diferenciação entre corpo e não corpo é virtualmente comum a todas as culturas
historicamente conhecidas; sinaliza, contudo, que também era comum a todas a
permanente co-presença dos dois elementos como dimensões não separáveis do ser
humano em qualquer aspecto, instância ou comportamento.
O processo de separação destes dois elementos é parte de uma larga história do
mundo cristão sobre a base da ideia da primazia da alma sobre o corpo. Entre os séculos
XV e XVI sobretudo, em plena Inquisição, a primazia da alma foi enfatizada e, porque o
corpo foi objeto básico de repressão, a alma pode aparecer separada das relações
intersubjetivas no interior do mundo cristão.
Com Descartes, a abordagem dualista corpo e não corpo se converte em uma
radical separação entre razão/ sujeito e corpo, criando o que Quijano (apudMignolo
2003) considera como uma nova id-entidade _ a razão/sujeito, a única entidade capaz
de conhecimento, em relação à qual o corpo não pode ser outra coisa que não objeto de
conhecimento. Lander (2000) considera a ruptura ontológica entre mente e corpo um
marco fundamental, uma vez que tal separação deixou o mundo e o corpo vazios de
significados e subjetivizou a mente de modo radical. Desta forma, os seres humanos
foram colocados em uma posição externa ao corpo e ao mundo, com uma postura
instrumental em relação a estes. Somente sobre esta base é concebível um tipo muito
particular de conhecimento que pretende ser objetivo e universal.
Desde esta perspectiva eurocêntrica da objetificação do corpo como natureza,
produz-se a enunciação de raça e gênero, ambos os conceitos demarcando uma
inferioridade em relação ao sujeito/racional/masculino/europeu. Sendo as mulheres de
um modo geral e os homens de cor ligados ao corpo, considerados mais próximos da
natureza, tornam-se objetos de estudo, de enunciação, convertidos em domináveis e
exportáveis.
O paradigma moderno ocidental nascido na passagem dos século XVI para o
século XVII e representado pelo conhecimento biomédico e pela anatomofisiologia,
preconiza uma nova sensibilidade individualista, fundada em três grandes separações:
com o cosmo _ a carne não é mais explicada pelo macrocosmo; com o semelhante _ o
corpo torna-se fronteira da pessoa e consigo mesmo _ o homem possui o corpo. Este
ideal de separatividade constitui e é constituído por relações hierárquicas de espaço que
estabelecem, segundo Santos (2008), o longe, o abaixo (no sentido hierárquico) e o
exterior; relacionados com o Oriente, o Selvagem e a Natureza, respectivamente.
Um meio pelo qual esse foco no corpo começou a mudar as formas de compreender a
identidade foi o emprego cada vez mais frequente, particularmente a partir do século
XVIII, do corpo como recurso para atestar a natureza diferenciada entre os indivíduos.
O século XIX é o período em que o sistema capitalista colonial moderno sistematiza
uma nova organização ontológica do mundo, mediante uma lógica categorial
dicotômica e hierárquica. Peter Gay (1988) sinaliza paraa
ansiedade com que a
burguesia europeia procurou definir a si própria, seu status na sociedade, suas
hierarquias, suas características morais; em suma, uma identidade visual e performática.
O discurso da Biologia dá o suporte para a construção de identidades
essencializadas e hierarquizadas. Integrando esse processo, sendo inerente a ele,
configura-se a marginalização ontológica dos povos não ocidentais e o dimorfismo
sexual. Assim, os aspectos físicos dos materiais do corpo cada vez mais assumiram o
papel de testemunhas da natureza do eu que esse corpo abrigava.
Esta operação cognitiva configurou-se, no entender de Mignolo (2010) na colonização
da aesthesispela estética. A palavra aesthesis, originária do grego, se refere ao sentir, aos
cinco sentidos e ao afeto, ás emoções. A partir do século XVIII, o conceito de aesthesis
se restringe, passando a significar „sensação do belo‟, numa teoria filosófica para
regular o gosto.
A estética filosófica regula o gosto assim como o conceito secular de
razão regula o conhecimento. Todo aquele que não se molde às regras do gosto
e da racionalidade _ocidentalmente concebidas_ pertence à barbárie, que deve
ser civilizada ou á tradição que deve se modernizar. Destaque-se que barbárie e
tradição não são entes existentes fora do imaginário ocidental. São conceitos
desse imaginário no processo de construir-se a si mesmo como o imaginário
que regula todas as condutas humanas e a relação com outra invenção do
ocidente: a natureza. (MIGNOLO, 2010:38)
Considerando que a prática teatral pode ser um instrumento pedagógico
descolonizador da aesthesis,este trabalho abordará o teatro a partir do arsenal de
técnicas que compõem o Teatro do Oprimido, sistematizadas por Augusto Boal (1931 –
2009)a partir da década de 70, com a criação do Teatro Jornal, até o ano de 2009,
quando é publicada sua obra A Estética do Oprimido.
O Teatro do Oprimido
O Teatro do Oprimido é um conjunto de jogos, exercícios e técnicas teatrais cujo
objetivo é encaminhar o debate com intenção de uma análise da situação vivida para
uma transformação da realidade. Empregada como ferramenta de investigação e ação, a
linguagem teatral, ao privilegiar não apenas a palavra, mas as representações
corporificadas das mesmas, permite a ampliação dos sentidos atribuídos aos conceitos,
lançando luz à dimensão ação que integra cada palavra, potencializando, portanto, um
processo de criação que vai muito além da produção de uma peça teatral.
Na proposição de Augusto Boal, o teatro é uma forma de conhecimento. Para o
autor, a teatralidade é a capacidade ou propriedade humana que permite ao sujeito
observar-se a si mesmo, em ação. Define Boal que
Todas as sociedades humanas são espetaculares no seu cotidiano, e
produzem espetáculos em momentos especiais. São espetaculares como forma
de organização social, e produzem espetáculos (...)
Mesmo quando inconscientes, as relações humanas são estruturadas
em forma teatral: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das
palavras e a modulação das vozes, [grifos meus] o confronto de idéias e
paixões, tudo que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas: nós
somos teatro ! (...)
Uma das principais funções de nossa arte é tornar conscientes esses
espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco
é a plateia e a plateia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro,aprendemos a
ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão
habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível:
fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco de nossa vida cotidiana ! (BOAL,
2009)
Em seu livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas Boal (1991,
primeira edição em 1975) apresenta 4 etapas para a formação da palavra corporificada
ou, como denomina, a transformação do espectador em ator.
1ª- Conhecimento do corpo- sequência de exercícios em que se começa a conhecer o
próprio corpo, suas deformações sociais e suas possibilidades de recuperação. Para o
teatrólogo, nesta etapa o participante deveria sentir a alienação muscular, imposta pelo
trabalho.
2ª- Tornar o corpo expressivo – sequência de jogos em que a expressão se dá apenas
através do corpo, sem o uso de palavras. No texto que contém este esquema, Boal
considera que o costume de comunicação através da palavra colabora para o
subdesenvolvimento da capacidade de expressão corporal.
3ª- O Teatro como linguagem – onde começa a prática do teatro como linguagem viva e
presente. O autor divide esta etapa em 3 graus:1̊ grau- dramaturgia simultânea: quando
atores apresentam o modelo e, depois o vão modificando de acordo com as sugestões
dos espectadores. Não há a entrada do espectador no espaço cênico. 2̊ grau- Teatro
imagem: sem o uso da palavra, os praticantes exercitam formas de comunicação
corporal.3̊ grau- Teatro- debate: uma cena apresentada por atores, com intervenção da
plateia.
4ª- Teatro como discurso – apresentação de forma simples de espetáculo, onde são
discutidos certos temas ou ensaiadas certas ações, de acordo com as necessidades do
espectador-ator.
Com relação à primeira etapa, Boal apresenta a proposta de desconstruir as
estruturas musculares dos participantes, para que estes se tornem conscientes.
Para que cada operário, cada camponês, compreenda, veja e sinta até
que ponto seu corpo está determinado pelo seu trabalho.
Se uma pessoa é capaz de “desmontar” suas próprias estruturas
musculares, será capaz de “montar” estruturas musculares próprias de outras
profissões, de outros status sociais, estará mais capacitado para interpretar
outros personagens diferentes de si mesmo. (BOAL, 1991:46)
Esta proposição está de acordo com a concepção de corpo que está na base do
trabalho do teatrólogo. O autor chama de máscara social a mecanização corporal
estabelecida pelo que poderíamos chamar de enunciado performativo de classe, uma vez
que a corporeidade, para o teatrólogo seria estabelecida pela classe social, a qual seria
determinante da maneira de andar, falar e, inclusive, pensar.
Chamada pelo autor de ritual social, essa mecanização é descrita
primordialmente em função do trabalho em seu livro 200 jogos e exercícios para o ator
e o não ator com vontade de dizer algo através do teatro (1982). Para Boal, um ritual é
um sistema de ações e reações pré-determinadas, o comportamento ritualizado impede,
na opinião do teatrólogo, a criação. Portanto, ainda que necessários à convivência, os
rituais devem, ao mesmo tempo devem ser constantemente destruídos e substituídos por
outros.
Da proposição de desmecanizar o corpo, Boal sistematizou uma série de
exercícios e jogos, publicados no livro acima mencionado e em uma edição ampliada do
mesmo _ Jogos para atores e não atores (1998) _ apresenta umacategorização para os
mesmos. Diz o autor que
Na batalha do corpo contra o mundo, os sentidos sofrem, e
começamos a sentir muito pouco daquilo que tocamos, a escutar muito pouco
daquilo que ouvimos, a ver muito pouco daquilo que olhamos. Escutamos,
sentimos, olhamos de acordo com a nossa especialidade. Os corpos se adaptam
ao trabalho que devem realizar. Esta adaptação, por sua vez, leva à atrofia e à
hipertrofia. Para que o corpo seja capaz de emitir e receber todas as mensagens
possíveis, é preciso que seja re-harmonizado. Nesse sentido foi que escolhi
exercícios e jogos voltados para a desespecialização.” (BOAL, 1998: 89)
A primeira classificação trata de exercícios e jogos. Otermo exercício é utilizado
para designar todo movimento físico, muscular, respiratório, motor, vocal que ajude o
executante a reconhecer seu corpo que em sua estrutura física, que em relação com
outros corpos, espaços, volume, gravidade, etc. Segundo o teatrólogo, seria uma
reflexão física sobre si mesmo. Um monólogo, uma introversão.(Boal, 1998: 87). Os
jogos tratam da expressividade dos corpos como emissores e receptores de mensagens;
são um diálogo, são extroversão, exigem um interlocutor.
Exercícios e jogos são agrupados, então, em cinco categorias:Sentir tudo que se
toca; Escutar tudo que se ouve; Ativando os vários sentidos; Ver tudo que se olha; A
memória dos sentidos
No livro Arco íris do desejo, método Boal de teatro e terapia (1996),o autor define
o ser humano como, antes de tudo, um corpo que possui cinco propriedades principais:
é sensível; é emotivo; é racional; é sexuado; é semovente. Nessa proposição, já existe a
formulação para uma profundeza do corpo, além do ritual mecanizado, às quais se
chega pelas alucinações, pelo jogo de palavras, pelos lapsos, pelos Mitos, pelas Artes.
Em A Estética do Oprimido (2009), Boal enfatiza a corporeidade principalmente
através dos sentidos. Segundo o teatrólogo, a desvalorização do pensamento sensível_
da aesthesis_ é o princípio do domínio opressivo da sociedade. Nesse mesmo livro,
Boal(2009), o teatrólogo faz referência a três espaços teatrais superpostos, sempre
ativos: físico, estético e cênico.
Espaço físico – Comprimento, largura e altura.
Espaço estético – Imaterial, pura concentração de energia observadora dos
espectadores em uma área determinada, para onde se dirige a atenção, transferindo sua
energia para este ponto.
Espaço cênico -O cenário traça limites visíveis para conter e vestir o espaço
estético. O autor faz distinção entre espaço dramático, fechado em si mesmo, como por
exemplo, exposição de estátuas em um museu, na qual estátuas e espaço se completam,
sem que nada falte; e espaço para o drama, descrito como aquele em que falta a entrada
em cena da figura humana que o completará..
Segundo Boal (1996) o espaçodenominado Espaço Estético, possui propriedades que
estimulam o conhecimento e o reconhecimento, o saber e o descobrir. Este espaço,
segundo o autor, além das três dimensões objetivas _comprimento, largura e altura,
possuem também a dimensão afetiva e a dimensão onírica, proporcionadas pela
memória e pela imaginação.
Na dimensão afetiva o sujeito observa o espaço físico e sobre
ele projeta suas memórias, sua sensibilidade, lembra fatos acontecidos ou
desejados, ganhos e perdas, e é determinado por tudo o que ele sabe e também
por tudo que permanecerá obstinadamente inconsciente. Na dimensão onírica o
sonhador não observa: penetra nas suas projeções, atravessa o espelho, tudo se
funde e confunde, tudo é possível. (BOAL, 1996:36)
Para o teatrólogo trata-se de um espaço dentro do espaço ou dois espaços
ocupando o mesmo lugar ; as pessoas e as coisas que estiverem nesse lugar estarão em
dois espaços. Essa separação, essa divisão entre o espaço do ator, aquele que atua e age
e aquele do espectador, que observa é, para Boal, mais importante que o objeto cena que
produz. Este espaço, criado subjetivamente pelo olhar dos espectadores, permite o
deslocamento no tempo e no espaço.
É a plasticidade do espaço estético, que é, mas não existe, que permite todos os
amálgamas, que estimulam o saber e o descobrir, o conhecimento e o reconhecimento,
propriedades que, segundo Boal, induzem ao aprendizado. A corporeidade manifestada
no espaço teatral pode oferecer uma alternativa à concepção ocidental de racionalidade
uma vez que, segundo Santos (2010), a criação e legitimação do poder social tem muito
a ver com concepções de tempo e de temporalidade.
Neste sentido, cabe mencionar o que Boal pontua comoo fenômeno da metáxis
Que é pertencer total e simultaneamente a dois mundos
diferentes e autônomos.
Ele [o oprimido] compartilha e pertence a esses dois mundos
autônomos: a realidade e a imagem da realidade, que foram criadas por ele
mesmo.
É muito importante que esses dois mundos sejam
verdadeiramente autônomos. A criatividade artística do oprimido-protagonista
não se deve limitar à simples reprodução realista, ou à ilustração simbólica da
opressão real: deve possuir sua própria dimensão estética. (BOAL, 1996:56)
Linds (2006) sinaliza que, para melhor entender o significado de metáxis no
Teatro do Oprimido, é interessante retornar à origem da palavra em Platão, na qual o
filósofo sublinha que metáxis é um espaço dinâmico entre duas instâncias separadas,
cuja mediação une o universo; é o estar no intervalo. Linds pontua que
A noção de corporeidade é central para o entendimento desse
estado de in-between, uma vez que o significado emerge através de nossos
corpos atuando em um espaço metáxico. Corporeidade refere-se ao duplo
sentido do corpo como estrutura viva e experiencial (...) O corpo não é um
objeto, mas um agrupamento de significados vívidos em constante mutação.
(LINDS, 2006:114)2
Continua Lindsressaltando que, mediante a metáxis, os corpos geram
conhecimento, sendo a aprendizagem tangível e disponível para exploração futura,
questionando, assim, a distinção binária corpo/mente.Há que se pesquisar formas de
falar/ ouvir a diversidade de experiências, integrando-as na produção do conhecimento.
Tal proposta passa pelo pensamento sensível, pela corporeidade.
O corpo também é
suporte/produtor de linguagem; passar do corpo à palavra também é tradução.
2
Tradução da autora deste artigo.
Balestreri (2004), contudo, expõe inquietações que poderiam ser possíveis pontos de
tensão entre a metodologia do Teatro do Oprimido e uma proposta ampliadora de
possibilidades. Segundo a autora
Parece que tudo deve ser apreensível no TO, não deve haver lugar para a
dúvida ou para o inexplicado. Atores, curinga e, a seguir, o público, devem saber
muito bem o que está acontecendo e em que etapa. Como dar lugar ao que não possui
um modo de apreensão ?
Outra limitação dessa prática _ que, por um lado tem garantido seu
funcionamento _ é a rigidez de sua metodologia _ conflito protagonista antagonista,
identificação da plateia com o protagonista e exclusivamente com ele, etc _que
possibilita aos participantes (atores e público) uma experiência rica em debates através
da cena, mas que ao abrir mão de muitas das possibilidades do fazer teatral, acaba
reduzindo também as possibilidades do ser social que forja. [grifos meus]
(BALESTRERI, 2004:24)
Reconhecendo a pertinência da crítica deBalestreri, interessa-me no Teatro do
Oprimido o arsenal de exercícios e jogos, nos quais percebo a possibilidade de emergência das
dúvidas e dos inexplicados, que poderão possibilitar a ação pedagógica. Neste sentido trabalhei
a oficina que descrevo a seguir.
O Teatro do Oprimido como ferramenta de pesquisa
No segundo semestre de 2013, coordenei a Oficina Teatro do Oprimido como
ferramenta de pesquisa, promovida pelo grupo de pesquisa Laboratório de Imagens –
Gênero, Espaço, Corpo, Participação e Desenvolvimento, do programa EICOS-UFRJ. A
oficina, optativa, foi oferecida aos mestrandos e doutorandos do Programa EICOS,
ligados ao Laboratório de Imagens e aos mestrandos do Programa MITRA.
O MITRA _ Médiationinterculturelle: identités, mobilités, conflits _ Master
Erasmus Mundus,
programa bilíngüe interdisciplinar de Ciências Humanas e Sociais
baseia-se um consórcio de oito universidades:KatholiekeUniversiteitLeuven (Belgica),
Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil), Université Lille 3 (França),
UniversityCollege Cork (Irlanda), Universidad Nacional Autónoma de México
(México), Universityof Wroclaw (Polônia), UniversitéBabeş-Bolyai (Romênia),
UniversitéCheikh Anta Diop (Senegal).
Segundo Walsh(2000),a interculturalidade é um processo de múltiplas direções,
repletas de criação e tensão, sempre em contrução. Para a autora, o princípio
intercultural busca estabelecer uma maneira de relacionar-se positiva e criativa,
implicando em um elemento pessoal e outro social que se complementam e exigem
mutuamente. A nível pessoal, há o foco na necessidade de construir relações entre
iguais; a nível social, no escopo deste projeto, busca sensibilizar as estruturas da
sociedade e as instituições que as apoiam, tornando-as mais sensíveis às diferenças
culturais e à diversidade de práticas culturais que estão em pleno exercício.
A Oficina de Teatroorganizou-se em 8 encontros, um por semana, com duração
de 2 horas e contou com oito integrantes. Teve como objetivo explorar corporalmente
os conceitos tratados em disciplina intitulada Gênero e Cultura, enfatizando a interseção
de raça, sexo, classe na produção das desigualdades sociais.
De minha parte, utilizei a oficina como laboratório, pesquisando a possibilidade
de variações de exercícios, uma vez que seguiria o caminho inverso ao seguido na
prática do Teatro do Oprimido. Se no Teatro do Oprimido parte-se das histórias vividas
para a reflexão, nesta oficina meu objetivo principal era enfatizar a implicação do
pesquisador e pesquisadora com os conceitos trabalhados, ou seja, partiria do conceito
para a história vivida. Buscava corporificar a palavra.
A título de exemplo, descrevo um exercício _ A Máquina de Ritmos 3_ realizado
no 6° encontro.
No primeiro movimento _ a máquina da mulher, uma mulher agachada,
gemendo, com movimentos contínuos; outra, por trás, aparando uma criança; a terceira
e a quarta mulheres, em atitude de amparo à mulher agachada, outra mulher fala ao
telefone, um dos homens, deitado, faz gestos de prazer e o segundo homem executa
gestos de passar um cartão de crédito.
Feedback dos participantes:
-Não sabiam se a mulher agachada sentia dor ou prazer
-A mulher que falava ao telefone, relatou que fizera a imagem da mulher
atarefada que, ainda que parindo, tinha que resolver outras questões.
-Um dos homens relatou ter interagido com a imagem enquanto prazer, o outro,
relatou que, como não sabia o que fazer frente à imagem que lhe passava tanto dor
quanto prazer, produziu uma imagem na qual passava um cartão de crédito.
3
A máquina de ritmos (Escutar tudo que se ouve)
Um ator vai até o centro e imagina que é uma peça de uma engrenagem de uma máquina complexa. Faz
um movimento rítmico com seu corpo e, ao mesmo tempo, o som que essa peça da máquina deve
produzir. Um segundo ator acrescenta uma segunda peça à engrenagem dessa máquina, com outro som e
outro movimento que sejam complementares e não idênticos. Um a um, todos acrescentam um som e um
movimento, até que o grupo esteja integrado em uma mesma máquina, múltipla, complexa, harmônica. O
diretor convida à variação do ritmo, acelerando e/ ou desacelerando os sons e gestos. (BOAL, 1998,
p.129)Segundo Augusto Boal, este jogo é particularmente útil quando se quer criar imagens de um tema
para que este não permaneça abstrato: burocracia, futuro, infância, etc.
Seguiu-se um debate, sempre variando entre o falar sobre e o falar a partir de,
sobre a questão da sensualidade das mulheres ser ou não tática de resistência; falou-se
bastante no estereótipo da mulher negra gostosa4.
Propus, então, que fosse feita a máquina da mulher negra; os integrantes da
oficina produziram o seguinte gestual:
-Uma mulher com gestos vigorosos, como que lavando roupa em um tanque;
outra mulher, se colocando em frente, com gestos semelhantes; outra mulher corria em
círculos, passando entre as duas primeiras; outra caminhava, balançando os quadris,
dando uma pequena esbarrada nas outras duas mulheres; um dos homens fez a imagem
de alguém falando em um celular, com passos trôpegos, relatou depois que era a
imagem de uma mulher negra saindo direto da balada5 para o trabalho; uma das
integrantes disse não estar conseguindo se encaixar, preferindo ficar de fora.
Durante o feedback, o grupo percebeu o quanto a imagem estava diferente do
debate sobre a mulher negra _ na fala, surgia sensualidade; na imagem, representações
de trabalho. Uma vez que todos os integrantes do grupo identificavam-se como brancos,
este exercício remeteu-me às questões sobre o Teatro do Oprimidoe políticas
identitárias de gênero, pontuadas por Armstrong (2006). A autora, após relatar o
exemplo de um fórum no qual a protagonista negra é substituída por espectatores e
espectatrizes brancos, pergunta se tal substituição reforçaria a opressão, uma vez que a
experiência foi apropriada e representada por outros ou se, em contrapartida, tal
substituição se mostraria uma importante contribuição para mover a discussão além dos
limites do corpo e ver raça e gênero como construções sociais.
No espaço/tempo da Oficina foram criadas possibilidades de espaços
narrativosinterseccionais, levando em conta a complexidade das opressões, não apenas a
luta de classes, mas o eurocentrismo, o patriarcado, a espiritualidade, a pedagogia, a
estética, as relações etno-raciais.Concordando com D‟Ávila Neto e Cavas (2011),
ressalto que indicação de se traduzir a enunciação dos sujeitos envolvidos nas pesquisas
através de corpos e experiências não se trata de uma troca, na qual os enunciados
gestuais substituiriam os verbais;tal aporte contribuiria para a permanência do silêncio.
Tratou-se de buscar novas formas de enunciados, mais fluidos, mais híbridos, mais
próximos das utopias emancipatórias. (D‟Ávila Neto e Cavas, 2011:8). Buscou-se
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Expressão idiomática brasileira, de caráter sexista, que significa mulher muito atraente. (FERREIRA,
2000:350)
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Expressão idiomática brasileira, significando festa, divertimento que dura a noite inteira, noitada.
(FERREIRA, 2000:487)
trabalhar o sentido de práxis, como preconizado por Paulo Freire (1987), reiterando a
palavra em suas dimensões de reflexão e ação.
Como conclusão, considero que o trabalho corporal utilizando as técnicasdo Teatro do
Oprimido propiciou ao grupo de mestrandos e doutorandos uma desaprendizagem _
manifestada, por exemplo, através do conflito entre a palavra e a imagem corporal
produzida no exercício descrito _ e, portanto, uma reflexão quanto aos conteúdos dos
conceitos contidos nos textos trabalhados na disciplina Gênero e Cultura.
Coletivamente, no exemplo citado, houve a identificação e reconhecimento de um
problema, possibilitando um processo de aprendizagem.
Avalio que a inclusão da corporeidade nos processos de estudo/pesquisa é um dos meios
para a união do pensamento sensível ao pensamento simbólico e pode configurar-se
como um caminho para a palavra enquanto práxis, resgatando as dimensões reflexão e
ação presentes em cada conceito. Torna-se necessário, então, o estudo e a
experimentação de ferramentas que auxiliem o diálogo Teoria-Prática.
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o Teatro do Oprimido como ferramenta de pesquisa. Eliana Nun