L.E.R. o corpo no trabalho 1 Ana Laura Giongo Em uma edição dedicada ao “corpo pulsional”, proponho que se pense sobre o lugar que ocupa este corpo e o sujeito que o habita no mundo do trabalho hoje. Venho, então, trazer aqui algumas observações sobre a L.E.R. (Lesão por Esforço Repetitivo), doença ocupacional que pode ser escutada como um sintoma social relativo ao modo como está estruturada a organização do trabalho em nossa cultura. No universo do trabalho hoje, um sujeito se depara a todo momento com expressões tais como: “produtividade”, “excelência”, “concorrência”, “qualidade total”. É fácil escutar aí um pedido de “esforço” excessivo que, em alguns casos, se desdobra em esforço repetitivo . Um trabalhador que não “sua a camiseta”, ou que não “veste a camisa” da empresa está em risco. O corpo está em cena, sendo desafiado a todo momento. Os limites do humano são tomados como empecilhos, constituindo-se um ideal de que um trabalhador não falhe, não erre, não precise descansar, não sofra, não adoeça. É fácil perceber o quanto a dimensão da castração aparece como algo a ser tamponado, havendo no horizonte o ideal de desvencilharse das falhas. Não por acaso vemos a substituição de trabalhadores por máquinas e a extinção de algumas profissões. Em nossa cultura, um trabalhador está sempre em risco, nada garante seu lugar. A todo momento, o saber constituído acerca de seu trabalho precisa ser refeito e a qualquer momento ele pode ser substituído por um empregado que custe menos para seu empregador. Nada assegura seu valor para a empresa. De algum modo, isto vai ter como efeito que o próprio sujeito se encarregue de tal tarefa, produzindo um imaginário em torno do que pode vir a garantir sua permanência, o que se traduz em um certo modo de se colocar em relação às demandas do trabalho. Analisemos uma das dimensões desta demanda dirigida ao sujeito trabalhador: a forma como está 2 organizado o tempo. Lembremos que Lacan, no Seminário IV, colocava a oposição presença e ausência, como a condição fundamental de uma ordem simbólica. Neste sentido, é possível considerar que os limites do tempo, o movimento de ir e vir do trabalhador, poderiam operar como reguladores simbólicos. Entretanto, pensando na organização atual do trabalho, percebemos que o tempo já não pode exercer esta função. Em lugar de um trabalho regulado por limites definidos - tempo de trabalho, no qual o gozo não pertence ao operário, e tempo livre, regulado pelo próprio trabalhador - emerge um tempo que precisa se tornar absolutamente produtivo e são desconsiderados seus limites: há tarefas a serem cumpridas desafiando os ponteiros do relógio, fins de semana em que é preciso participar de eventos sociais da empresa - afinal, não basta trabalhar, é preciso “participar”, filiar-se a esta “família”... Deste modo, a regulação simbólica do trabalho vem sendo substituída por uma percepção moral da disponibilidade do sujeito trabalhador. O simbólico cede lugar ao imaginário: se os limites são desconsiderados, não é mais uma instância simbólica, mas o próprio trabalhador quem precisa arcar com suas escolhas diante da demanda totalizante que lhe é imposta. As “escolhas” muitas vezes implicam trabalhar sem fazer intervalos, cumprir tarefas que transbordam os limites físicos, produzir ao máximo no menor tempo possível, exercer suas funções até a exaustão ou até que o corpo grite, impondo um limite, num contexto em que o próprio sujeito não tem voz. Como psicanalistas, precisamos escutar este sintoma do mundo do trabalho por duas vias: como sintoma social, mas também através da história singular de cada trabalhador. Afinal, por que a L.E.R. não acomete a todos do mesmo modo? Encontramos sujeitos que conseguem defender-se, não deixar que a doença evolua, cronifique. Mas, ao mesmo tempo, nos deparamos com casos em que o sujeito não consegue, sequer, interrogar-se sobre o modo como se constituiu a doença ocupacional, muito menos diminuir ou interromper as atividades para tratar sua dor física. A relação de um trabalhador com as demandas que lhe são impostas desde o trabalho, a relação de um sujeito com seu corpo e seus limites, vão estar mediadas por uma forma de relação ao Outro que é própria a cada sujeito. Neste sentido, através de uma escuta psicanalítica pode-se situar o quanto há de repetição nestas lesões por esforço repetitivo. Em muitos casos, nos deparamos com sujeitos cuja relação com as demandas do Outro está marcada pela necessidade de se colocar à disposição, atendendo diretamente ao que é pedido. Uma relação que atravessa várias instâncias de suas vidas, sendo que, no trabalho, há uma repetição desta posição. Podemos pensar, neste sentido, que a lesão, a doença, implica uma ruptura na repetição. Já não é possível atender as demandas do mesmo modo, pois o corpo faz barreira a isto. É interessante pensar que talvez a doença venha cumprir uma função na repetição: parece estar em jogo uma tentativa de inscrever algo novo. Entretanto, como também é próprio da repetição fracassar, não cessar de se presentificar, a doença por si só, normalmente, não chega a fazer uma marca simbólica ao ponto de impedir o sujeito de repetir. Neste sentido, na escuta de sujeitos com LER, é freqüente nos depararmos com falas que apontam para uma busca em se colocar no mesmo lugar: “a gente não podia nem ir ao banheiro, mas me acostumei com o ritmo, não tenho queixas deles, quero voltar, só não volto por que ainda não tive alta do tratamento”; “Eu não pararia por livre vontade. Se meu corpo me obedecesse, eu estaria igual”. O que rompe a repetição não é o sujeito, mas a doença. E esta ruptura só se mantém enquanto o corpo estiver presentificando-se através da dor. É muito comum que, ao cessar a dor, o sujeito imediatamente retorne ao trabalho e a outras atividades diárias interrompidas durante o quadro mais agudo, 1 Psicanalista, membro da APPOA, trabalha desde 1997 com reabilitação de portadores de L.E.R. (na Clinica de Fisioterapia e Reabilitação SESI-VITA) 2 LACAN, J.: A Relação de Objeto e as Estruturas Freudianas. (1956-57). 2 o que certamente trará a dor de volta se não houver um trabalho de reabilitação que intervenha na relação do sujeito com as demandas que lhe chegam. Assim, a presença de um psicanalista na equipe de reabilitação (algo ainda raro, já que a maioria dos tratamentos restringe-se à diminuição da dor física) torna-se imprescindível na medida em que se aposte em uma direção de trabalho onde a melhora do paciente envolva uma mudança de posição subjetiva que traga consigo a possibilidade de evitar as constantes reincidências. Com a psicanálise, o trabalho de reabilitação parte da noção de que a dor no corpo é somente a ponta do iceberg e de que o corpo, receptáculo de significantes, é habitado por um sujeito que, através da L.E.R., está tentando construir uma borda na relação com o trabalho.