Ano XVIII boletim 04 - Abril de 2008
O corpo na escola
SUMÁRIO
O CORPO NA ESCOLA
PROPOSTA PEDAGÓGICA ...................................................................................................03
Léa Tiriba
PGM 1: A ESCOLA, A DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
….......................................................................................................................................... 14
Walter Kohan
PGM 2: EDUCAÇÃO DE CORPO INTEIRO......................................................................... 19
Daniela Guimarães
PGM 3: ACONCHEGANDO O CORPO NA ESCOLA: AS PERSPECTIVAS......................... 28
Alexandra Pena, Isabel C. Bogéa Borges, Leonor Pio Borges
PGM 4: EDUCAÇÃO E VIVÊNCIA DO ESPAÇO:
DIÁLOGOS ENTRE A ARQUITETURA E A PEDAGOGIA.....................................................40
Léa Tiriba
PGM 5 : O CORPO NA ESCOLA: EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS …............................ 52
Adrianne Ogêda Guedes
O CORPO NA ESCOLA
2.
PROPOSTA PEDAGÓGICA
O CORPO NA ESCOLA
Léa Tiriba1
Entre os séculos XVII e XIX ganha força a idéia de uma separação entre mente e corpo, uma
das bases sobre a qual se fundou uma ciência e uma civilização que hipervalorizaram a
racionalidade e o trabalho, em detrimento de outros caminhos de conhecer e modos de viver,
buscando suprimir todas as outras formas de conhecimento relacionadas à existência carnal
dos seres humanos: os sentimentos, a imaginação, a intuição, o conhecimento sensual, a
experiência. O objetivo desta série é o de debater e questionar uma lógica de funcionamento
escolar ainda orientada pelo pressuposto de que “Penso, logo existo”, máxima do pensamento
racionalista, que inspira e define, ainda nos dias de hoje, propostas pedagógicas e rotinas
escolares.
(...) Em todos os espaços, chama a atenção a formalidade, o vazio de referências infantis,
não há objetos, brinquedos, desenhos das crianças... A organização é semelhante a das
escolas de ensino fundamental: pequenas carteiras enfileiradas, mesa de professora ao lado
do quadro-negro... Num prédio reformado, de pintura brilhante, limpeza caprichada,
crianças de três para quatro anos assistem, enfileiradas em pequenas e coloridas carteiras
escolares individuais, a uma professora que se esmera em explicar-lhes noção de conjunto.
O que mais impressiona é o formidável empenho e a delicadeza da professora em sua
intenção de ensinar conceitos matemáticos, ali no quadro-negro...
As crianças,
desconfortáveis e desengonçadas nas carteiras, apenas repetiam suas palavras: “Quantos
elementos têm aqui? Trêeeees.......!!!” Depois desta atividade, exercícios no papel. Na sala
ao lado, crianças bem menores, algumas ainda bebês de 1 ano e pouco, cercadas por todos
os lados das mesmas carteiras coloridas. Do lado de fora, no pátio da escola, um colorido
parque infantil, que as crianças desfrutavam por um período diminuto em relação ao longo
tempo em que permaneciam na creche. Lá fora, depois da cerca, os campos, as árvores, os
animais, o sol, as nuvens o vento... (Observações feitas em escola infantil da área rural de
um município do Rio de Janeiro - 21/05/01).
O CORPO NA ESCOLA
3.
A cena insólita, mas tão comum nas escolas brasileiras, é a expressão de uma concepção de
educação e de escola que, além de não fazer conexões entre conhecimento e vida, está voltada
para processos de transmissão/apropriação de conhecimentos via razão, que necessita,
portanto, de mentes atentas e corpos paralisados. Pois não é necessário mais do que atenção
mental para observar, refletir e compreender as regras de uma realidade que é entendida como
racionalmente organizada. Em outras palavras, o modo de funcionamento descolado do
mundo natural indica que as práticas pedagógicas das instituições escolares estão definidas,
geralmente, pelas concepções ontológica, epistemológica e antropológica que estruturam o
paradigma moderno, compondo uma idéia de que as leis da realidade poderiam ser
apreendidas por um ser cuja principal atividade é a racional (Plastino, 1994). Em
conseqüência, fica secundarizado tudo que extrapola esta dimensão: as brincadeiras, as
sensações corporais, o devaneio.... Mas isto não é só: a reprodução deste modo de
funcionamento se faz com o controle do corpo.
Denominada por Foucault (1987) como instituição de seqüestro, a escola e outras instituições,
como os presídios, os hospícios e os quartéis, visavam controlar não apenas o tempo dos
indivíduos, mas também seus corpos, extraindo deles o máximo de tempo e de forças. De
maneira discreta, mas permanente, as formas de organização espacial e os regimes
disciplinares conjugam controle de movimentos e de horários, rituais de higiene,
regularização da alimentação, etc. Assim, historicamente, a escola assume a tarefa de
higienizar o corpo, isto é formá-lo, corrigi-lo, qualificá-lo, fazendo dele um ente capaz de
trabalhar.
(...) A ordenação por fileira, no século XVII. Começa a definir a grande forma de repartição
dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos nas salas, nos corredores, nos pátios; (...)
determinando lugares individuais (a organização de um espaço serial) tornou possível o
controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do
tempo e da aprendizagem. Fez funcionar o espaço como uma máquina de ensinar, mas
também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar (Foucault, 1987, p. 126).
O CORPO NA ESCOLA
4.
As filas que se formam para levar as crianças de um espaço a outro, os tempos de espera em
que permanecem encostadas às paredes, a falta de conforto das salas, as regras que são
impostas nos refeitórios, os tempos previamente definidos para defecar: tudo isto remete à
idéia de fabricação de uma retórica corporal, mas também de uma retórica do espírito, pois,
“é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado
e aperfeiçoado” (Foucault, 1987, p.118).
Tendo como referência a concepção espinosiana de que a vivência do que é bom e do que é
mau constitui dois tipos humanos, que vivem, aprendem e incorporam distintos modos de
sentir e viver a vida (como potência ou como impotência), consideramos que esta
perspectiva (de controle do corpo) está na contramão de um projeto de educação pautado
numa ética da alegria e do cuidado, na medida em que favorece a constituição de um tipo
humano que é fraco, impotente (Espinosa,1983; Deleuze, 2002).
Se somos capazes de produzir história e cultura, como produzir um cotidiano que se paute
pela vivência do que é bom, que alegra e, que frente à vida, nos faz mais potentes? Como
favorecer encontros que compõem? E como evitar os maus encontros, que decompõem,
produzem tristezas? Se estas são sempre expressões da nossa impotência, como trabalhar no
sentido de um cotidiano em que, diria Espinosa, as paixões alegres se sobreponham às paixões
tristes?
Uma resposta possível é: acreditando nos desejos das crianças, apostando em sua capacidade
de escolha, possibilitando contato permanente com o mundo natural, brincadeiras, livre
movimento do corpo. Entretanto, é evidente a distância da realidade escolar em relação a esta
crença e a este movimento a favor do prazer, da potência. Onde estão as origens deste modo
de funcionamento?
Educação, escola e divórcio entre natureza e cultura, corpo e mente
Desde a Revolução Industrial, (que inaugurou a reprodução em série de bens materiais) e,
depois, a Revolução Francesa (que superou o feudalismo e propôs o mercado como eixo da
O CORPO NA ESCOLA
5.
vida social) a função social da escola vem sendo a de ensinar às novas gerações a lógica sob a
qual o sistema capitalista-urbano-industrial-patriarcal se estrutura.
No contexto de uma ordem capitalística em que o sentido principal do trabalho social é a
produção e a acumulação de bens, a escola está ainda organizada de acordo com o
pressuposto de que a razão pode decifrar a lógica interna da natureza. Isto explica que o
objetivo fundamental do trabalho escolar seja o de desenvolver plenamente em seus alunos a
capacidade racional para a compreensão e a submissão da natureza aos interesses do mercado,
desprezando ou secundarizando outros caminhos de abordagem da realidade material e
imaterial. Assim, alguns conceitos/idéias/sentimentos/visões de mundo – constitutivos dos
ideais da modernidade – orientam concepções e práticas escolares em nosso tempo.
Primeiramente, uma crença na razão como salvo-conduto para enfrentar os ritmos da
natureza, que são tomados como obstáculos para um espírito conhecedor, pesquisador,
desvendador de todos os mistérios da vida, que seria capaz, inclusive, de determinar os rumos
da história. Há, em conseqüência, supervalorização do intelecto e desprezo pelo corpo. Esta é
uma decorrência da lógica dual que, separando seres humanos de natureza, afirma a
racionalidade como processo superior, em oposição à natureza, identificada com o corpo
humano.
No coração da lógica paradigmática está uma idéia de superioridade em relação à natureza: a
faculdade da razão não apenas coloca o “Homem” acima dos animais, como, por sua
qualidade, é superior a qualquer outra espécie. Decorre daí que o pensamento seja
considerado a atividade humana mais importante, que a cultura se apresente como a
característica peculiar do homem, pela qual se distingue como um ser especial, diferente dos
animais e das coisas e, portanto, acima deles. Nesta perspectiva, a ordem natural seria inferior
à ordem cultural, tudo O que é relativo a este plano se sobrepõe. Assim, a cultura
antropocêntrica fragmenta o que é uno: separa os humanos da natureza, a razão da emoção,
definindo uma oposição hierárquica entre as partes, uma das quais é sempre considerada
como superior e sempre progride mediante a subordinação a outra (Mies e Shiva, 1997).
Assim, a natureza aparece subordinada aos homens, a mulher ao homem, o consumo à
produção, o local ao global, a emoção à razão, o corpo à mente.
O CORPO NA ESCOLA
6.
Onde nasceu esta dupla fragmentação, marcante na trajetória do pensamento ocidental? Na
visão de Nietzsche (2000), já no momento de surgimento do pensamento filosófico científico,
na Grécia, algo de essencial se perdeu na relação dos humanos com a natureza e no equilíbrio
entre afetivo e cognitivo.
Para Nietzsche, a tradição filosófica ocidental inaugura um afastamento em relação à
natureza, que é nefasto para os humanos, na medida em que provoca um desequilíbrio
patológico entre corpo e mente, razão e emoção. Na sua visão, algo de essencial se perdeu
quando, a partir de Sócrates, os gregos começam a se afastar dos rituais a Dionísio, o deus da
música e da embriaguez, e passam a privilegiar Apolo, o deus da racionalidade argumentativa,
do conhecimento científico, da lógica. Dionísio é o deus que não habita o Olimpo, mas a
natureza. Representa a força vital, a alegria, o excesso, enquanto Apolo, o deus severo,
representa a ordem, a norma, o equilíbrio. Para Nietzsche, “a história da tradição filosófica é a
história do predomínio do espírito apolíneo sobre o espírito dionisíaco” (Marcondes, 1997,
p.243), ou seja, é a história do predomínio da razão sobre o desejo. A decadência e a fraqueza
da cultura ocidental teriam sua origem neste predomínio da racionalidade sobre a imaginação,
as emoções, as sensações, que o filósofo define como “forças afirmativas da vida”. Em sua
visão, esta distorção teria sido reforçada por elementos trazidos posteriormente pelo
cristianismo, como a culpa, o pecado, a submissão, o sacrifício.
O conceito de corpo (do latim, corpus) vem se transmutando ao longo da história do
Ocidente. Durante a época moderna, a discussão sobre o que se convencionou chamar de
“problema da relação entre alma e corpo” manteve algumas das concepções antigas e
medievais. Mas o desenvolvimento da ciência, em especial da física, em moldes mecanicistas,
trouxe a noção de “corpo material”, radicalmente separado da alma.
Descartes (1596-1650) é o expoente desta distinção entre a substância ou “coisa” extensa (res
extensa) e substância ou a “coisa” pensante (res cogitans). Para o pensamento cartesiano, o
corpo material opõe-se ao espírito, à alma, ao pensamento, na medida em que estes seriam
indivisíveis, enquanto que o corpo/ a matéria seriam divisíveis (Japiassu e Marcondes, 1996).
O CORPO NA ESCOLA
7.
Na contramão da concepção cartesiana – em que a mente domina o corpo e as paixões, e tem
o poder de explicar todas as funções corporais de modo puramente mecânico – Espinosa
(1632-1677), ao invés de perguntar “o que é um corpo”, ao invés de buscar uma definição,
interroga: “o que pode um corpo?” Ao fazer esta pergunta, fere a lógica descrita por
Descartes, segundo a qual todas as funções corporais podem ser explicadas, medidas,
quantificadas. Para Espinosa, estamos fechados nos limites corpóreos, mas podemos fugir
sempre, graças à força que nos impulsiona para além. Assim, não haveria hierarquia entre
corpo e alma, “há uma força inconsciente no espírito, assim como há uma potência insuspeita
no corpo” (Barros e Passos, 2000, p. 3).
Entretanto, ao assumir a função de formar as novas gerações para a reprodução do modelo
urbano-industrial, a instituição escolar ignorou concepções que não fragmentam nem
subordinam o corpo à mente. Ao contrário, optou por uma visão que, ao hipervalorizar o ego
e o intelecto, nega a verdade do corpo. De fato, temos sentido as conseqüências de um
cotidiano regido por uma rotina de esforços mentais e inflexibilidade física. As doenças se
manifestam, são resultado de um modo de funcionamento – da sociedade, da fábrica, da
escola, da instituição familiar, de cada um de nós – que é alienado em relação a muitas das
mais elementares necessidades físicas, como respirar profundamente, alimentar-se
sadiamente, dormir bem, relaxar.
O corpo humano é mais do que um portador do texto mental
Numa sociedade marcada por controle e racionalidade, os movimentos de liberdade e
expressividade das crianças assustam os adultos. Amarrados ao império do relógio, ao tempo
da produção, estamos aprisionados aos próprios esquemas, ou melhor, aos limites que nos
foram impostos, na vida escolar, na família, no trabalho. Tendo aprendido a engolir os
desejos, são estes mesmos esquemas que necessitamos reproduzir, através das normas que
pretendemos impor às crianças, modelando os gestos e, simultaneamente, aquietando o
espírito. Pois, corpo e espírito não estão separados, o que é ação no corpo é, necessariamente,
ação na alma (Espinosa,1983).
O CORPO NA ESCOLA
8.
“Há, em todos os lugares, como que a obsessão do controle, que perpassa todos os nossos
comportamentos adultos com relação à criança; precisamos sentir-nos donos da situação,
ter presentes todas as alternativas que a criança poderá escolher, porque só assim nos
sentiremos seguros. A liberdade da criança é a nossa insegurança, enquanto educadores,
pais ou simples adultos, e, em nome da criança, buscamos a nossa tranqüilidade, impondolhes até os caminhos da imaginação” (Lima, 1989, p.11).
Mas o desejo conspira... Na visão do filósofo Charles Fourier (1772-1837), porque ele não
tem outras alternativas, outros caminhos para satisfazer-se! Torna-se, assim, um subversivo
permanente, “que trabalha de maneira infatigável na desorganização da sociedade,
desrespeitando todos os limites colocados pela legislação” (Konder, 1998, p.17). Isto acontece
por uma questão de sobrevivência física e espiritual. O desejo persevera porque, oprimido, se
manifesta como sintoma, como doença, do corpo e da alma, pois, “toda paixão estrangulada
produz uma contrapaixão tão maléfica quanto a paixão natural seria benéfica” (idem, p.19).
Além de buscar uma compreensão sobre um estilo de educar que desconsidera as crianças em
sua integralidade existencial, a série “O corpo na escola” quer apresentar e refletir sobre
práticas educacionais atentas às vontades do corpo; práticas que não aprisionam os
movimentos, ao contrário, ajudam as crianças a expressarem “a dança de cada um”, isto é, “o
jeito de ser, que é, em outros termos, a expressão de nossa psiquê, de nossa alma. Através da
dança do corpo se mostra o interior de cada um” (Robim, 1997, p. 1).
O CORPO NA ESCOLA
9.
Para “dançar” a sua dança e construir uma dança coletiva (o estilo de ser de cada grupo)
precisamos de “espaços-ambientes” (Lima, 1989), que favoreçam esta construção, que
abram espaços (objetivos e subjetivos) para o corpo e o movimento. A escola precisa
recuperar a liberdade de movimentos que a vida na cidade grande e seu respectivo
modelo de funcionamento escolar restringiram, impedindo as mais simples e
fundamentais manifestações como correr, pular, saltar, etc.
“(...) Tudo isto traz também uma redução da confiança no próprio corpo e uma certa
sensação de impotência que é difícil de erradicar, apesar de muitas vezes tentar-se
compensar a criança dando-lhe maior estimulação de sua fantasia ou de sua inteligência,
através de tantos meios de que dispomos atualmente, conseguindo assim que o centro
intelectual supra uma carência que na verdade não pode cumprir porque corresponde a
outros níveis de existência” (Palcos, 1998, p.2).
De acordo com Palcos (1998), a falta de liberdade de movimentos vai formando travas que
impedem as crianças de fazer um crescimento harmônico. Como todo movimento se inicia ou
deveria iniciar-se com um movimento reflexo, aqueles se perdem na medida em que estes
ficam inibidos. As escolas, enquanto espaços de educação integral das crianças, devem
constituir-se como ambientes que contribuam para evitar o surgimento de travas, ou mesmo
eliminar as que já tiverem se instalado, contribuindo para construir ou mesmo recuperar a
liberdade e a confiança no corpo. Esta é uma das responsabilidades do educador que assume a
educação integral das crianças, porque a confiança no próprio corpo está relacionada ao
sentimento de confiança na vida.
Temas que serão abordados na série O corpo na escola, que
será
apresentada
no
programa
Salto
para
o
Futuro/TV
Escola/SEED/MEC de 14 a 18 de abril de 2008:
PGM 1: A escola, a disciplinarização dos corpos e as práticas pedagógicas
10 .
O CORPO NA ESCOLA
Este primeiro programa apresentará e discutirá a idéia moderna de corpo como máquina e as
suas influências nas rotinas escolares, ainda em nossos dias. Abordará as concepções de corpo
ao longo da história, entre os gregos e, especialmente, em Descartes e Espinosa. E trará
também os estudos de Foucault sobre o papel da escola na constituição da sociedade moderna,
além das idéias da tradição filosófica racionalista e do romantismo sobre os cinco sentidos. A
intenção é a de fazer uma articulação deste conjunto de idéias com as práticas educacionais
cotidianas.
PGM 2: Educação de corpo inteiro
Este segundo programa terá como foco as contribuições atuais dos campos da pedagogia, da
psicologia e da Educação Física, que, nos últimos tempos, vêm apresentando novas propostas
comprometidas com uma educação de corpo inteiro. Serão debatidas as concepções de
conhecimento e de prática pedagógica informadas por teóricos como Piaget, Vygostsky,
Wallon, Maturana e Varela, Deleuze, e também propostas alternativas para uma educação que
considera a escola como espaço de educação integral, isto é, como instituição que considere
ritmos e interesses infantis, que permita às crianças e aos jovens aprenderem a identificar e a
respeitar as vontades do corpo.
PGM 3: Aconchegando o corpo na escola: as perspectivas
Este terceiro programa tem o objetivo de discutir as rotinas que envolvem mais claramente os
processos corporais (os tempos cotidianos para mexer, comer, dormir, dançar, relaxar, correr,
brincar), especialmente nas escolas de horário integral. Assim, serão abordadas tanto as
dinâmicas de escolas de Ensino Fundamental, quanto de Educação Infantil, no que se refere às
necessidades de ampliar os espaços e os tempos de movimentar-se livremente, relaxar,
meditar, estar atento à respiração, melhorar a alimentação, cuidar da postura, ter contato com
a natureza.
PGM 4 – Educação e vivência do espaço: diálogos entre a arquitetura e a pedagogia
11 .
O CORPO NA ESCOLA
Neste quarto programa, o debate será voltado para as relações entre a educação e a vivência
do espaço. Neste sentido, abordará a questão do conforto e/ou do desconforto que oferecem os
prédios escolares, assim como o afastamento das crianças em relação ao mundo natural. O
objetivo é discutir a sua adequação à educação integral das crianças, considerando o conjunto
de necessidades corporais, espirituais, sociais e cognitivas. O programa abordará a questão da
importância da definição de parâmetros de qualidade (recentemente elaborados no campo da
Educação Infantil), assim como as propostas de arquitetos escolares importantes, como
Mayume de Souza Lima.
PGM 5 - O corpo na escola: experiências alternativas
Este quinto programa estará voltado para o relato e o debate de experiências concretas,
trazendo educadores/instituições que buscam construir propostas pedagógicas e rotinas
cotidianas comprometidas com a superação do divórcio entre corpo e mente, razão e emoção.
O debate envolverá questões como mudanças nas formas de organização dos espaços, dos
tempos, dos materiais pedagógicos e da própria grade curricular, valorizando as atividades
que incluem o movimento do corpo em contato com a natureza, os jogos (cooperativos x
competitivos), a autodisciplina, a cooperação, a valorização das interações humanas.
Bibliografia
BARROS, Regina e PASSOS, Eduardo. “A construção do Plano da Clínica”. In:
Psicologia, teoria e pesquisa, jan./abr. 2000, vol. 16, n.1, p. 71-79.
DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
ESPINOSA, Baruch de. Ética. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os
Pensadores).
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
12 .
O CORPO NA ESCOLA
JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Zahar, 1996.
KONDER, Leandro. Charles Fourrier: o socialismo do prazer . Rio de
Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1998.
LIMA, Mayume de Souza. A cidade e a criança. São Paulo: Nobel, 1989.
MIES, Maria y SHIVA, Vandana. Ecofeminismo: teoria, crítica y perspectivas.
Barcelona: Icaria editorial, 1997.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos à
Winttengestein. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1997.
NIETZSCHE, Friedrich. “A filosofia na época trágica dos gregos”. In: SOUZA, José
(org.). Pré-socráticos – vida e obra. São Paulo, Nova Cultural, 2000. (Coleção
Os Pensadores).
PALCOS, Maria Adela. Corpo e Psiquismo. Rio de Janeiro: Espaço Coringa – Rio
Aberto, 1998, mimeo.
PLASTINO, Carlos. O primado da Afetividade. A crítica freudiana ao paradigma
moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
ROBIM, Michel. “A dança nossa de cada dia nos dai, hoje!”. Rio de Janeiro: Espaço
Coringa, 1998, mimeo.
TIRIBA, Léa. “Crianças, natureza e educação infantil”. Tese de doutorado. Rio de
Janeiro: PUC-Rio, 2005.
____. “Reinventando relações entre seres humanos e natureza nos espaços de educação
infantil”. Revista Presença Pedagógica, v.13, n.76, jul./ago., Belo Horizonte,
Editora Dimensão, 2007.
13 .
O CORPO NA ESCOLA
NOTAS:
Professora ambientalista e jornalista. Coordenadora do Setor de Educação
Ambiental do NIMA (Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente/NIMA) da PUCRio. Professora do Departamento de Educação e do Curso de Especialização
em Educação Infantil desta mesma Universidade. Assessora da Secretaria
de Educação de Santo André/SP. Consultora desta série.
14 .
O CORPO NA ESCOLA
PROGRAMA 1
A ESCOLA, A DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E AS PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS
Escola, experiência e verdade
Walter Kohan1
A escola tem sido, nos últimos séculos, uma das instituições privilegiadas para disseminar as
verdades que uma sociedade produz, por meio de uma série complexa de práticas de
disciplinamento, controle e governo. Se pensarmos no corpo, uma das coisas que mais
aprendemos na escola – alunos, professores, orientadores, diretores, funcionários, enfim,
todos nós que passamos pela instituição – é levar os corpos de determinada maneira e
privilegiar certo tipo de relações corporais, com o nosso próprio corpo e os outros corpos que
habitam a instituição. As cadeiras colocadas de acordo com alguma posição predeterminada,
os corpos alinhados nas fileiras nos pátios, o uso de uniformes e outras normas sobre
vestimenta, as regras para controlar a entrada e a permanência nos banheiros são algumas das
mais evidentes técnicas de disciplinamento corporal.
Para pensar a escola, pode ser interessante considerar conceitos como verdade e experiência.
Os conceitos são criações dos filósofos para dar conta de alguns problemas que eles mesmos
criam. Alguns conceitos são tão interessantes que adquirem vida própria, para além do
problema para o qual foram criados. Este é o caso de conceitos como experiência e verdade.
Neste texto, tentaremos pensar, com eles, a escola, a disciplinarização dos corpos e as práticas
pedagógicas. Para isso, primeiro, vamos apresentar um uso específico que M. Foucault faz
dos conceitos de verdade e experiência, contrapondo-os; num segundo momento,
estenderemos esse uso para pensar a questão que nos ocupa. Finalmente, formularemos alguns
interrogantes a partir das análises propostas para o caso específico da infância.
15 .
O CORPO NA ESCOLA
Foucault propõe pensar a experiência e a verdade em relação com a escrita. O que significaria
escrever um livro a partir dessas duas possibilidades? O autor francês propõe que, segundo a
lógica da verdade, quem escreve um livro o faz porque está instalado numa verdade e o
sentido principal da escrita é a transmissão dessa verdade para os eventuais leitores do livro.
Assim, quem escreve um livro-verdade o faz para transmitir o que sabe para quem ele
considera que não sabe. Um livro funciona muito bem como verdade quando, depois de sua
leitura, sabemos o que antes não sabíamos. De modo que, se há livros escritos como verdade,
é porque também há leitores de livros verdade, ou seja, aqueles leitores que procuram num
livro as verdades que eles desejam conhecer. Há livros que parecem ser escritos estritamente
com essa pretensão: por exemplo, aqueles que levam por título: “O que verdadeiramente disse
X” ou então “tudo o que você queria saber sobre Y”. Também muitas outras formas de escrita
podem ter essa mesma lógica da verdade. Por exemplo, o jornal. Lemos o jornal como
verdade quando pensamos que nele vamos nos inteirar do que não sabemos.
A experiência revela outra relação com a leitura. Um livro que funciona como experiência
também afirma uma série de verdades que pode ser constatada ou refutada. A experiência não
é indiferente à verdade. Mas, diferentemente de um livro que funciona como verdade, um
livro experiência não afirma verdades com o sentido de transmiti-las, mas para problematizar
a relação que um autor, ou um leitor, têm com a verdade. De modo que o ato de escrever ou o
de ler um livro, a partir da lógica da experiência, significam entrar num jogo de verdade que
tem por propósito desestabilizar a própria verdade da qual se parte. Afirma Foucault:
Eu jamais penso exatamente o mesmo pela razão de que meus livros são, para mim,
experiências. Uma experiência é algo do qual a própria pessoa sai transformada. Se eu
devesse escrever um livro para comunicar o que já penso, antes de haver começado a
escrever, não teria jamais a coragem de empreendê-lo2.
Para Foucault, então, é a experiência, como propiciadora de transformações, e não a verdade o
que dá sentido à escrita. Um livro funciona como experiência quando, depois de lê-lo, já não
podemos mais saber o que sabíamos antes, como o sabíamos. Se a verdade consolida os
lugares já habitados, a experiência é uma espécie de viagem que permite sair do lugar que se
habita. Quando ela é intensa e ousada, a transformação sequer conhece o ponto de chegada.
16 .
O CORPO NA ESCOLA
Temos então a experiência e a verdade como possibilidades da escrita e da leitura. Se o
sentido da segunda é a transmissão da verdade, o sentido da primeira é a transformação de si
através da transformação da relação com a verdade. O leitor já pode estar aplicando essa
distinção ao próprio exercício de leitura que está fazendo agora mesmo com este texto.
Pergunto ao leitor: estas palavras sobre a experiência e a verdade estão sendo lidas como
experiência ou como verdade?
Podemos também estender esses conceitos a muitos outros campos. Para aproximarmo-nos
daqueles que participam deste programa, podemos pensar na educação. Comecemos pelo
corpo. A verdade e a experiência são possibilidades do corpo em pelo menos dois sentidos.
Há, por um lado, corpos que funcionam como verdade, e a serviço de uma verdade, para
reproduzir padrões ou valores socialmente impostos de, por exemplo, comportamento e
beleza. E a verdade é também uma possibilidade para relacionarmo-nos com os corpos, de
saber o que não sabemos sobre eles, de como eles funcionam e como devem ser mostrados e
usados socialmente. Cada sociedade contém uma série de dispositivos para produzir, legitimar
e transmitir suas verdades sobre as questões que lhe interessam. O corpo não é uma exceção.
Porém, há também a possibilidade de um corpo experiência, ou seja, de uma relação de
experiência com o corpo. Neste caso, as práticas corporais não visam à consolidação e à
transmissão de uma verdade sobre o corpo, mas, ao contrário, colocar em questão as verdades
que o corpo carrega consigo.
De fato, a questão é bastante mais ampla e a escola tem funcionado como uma das instituições
mais poderosas na legitimação e na transmissão das verdades de uma sociedade, não apenas a
respeito dos corpos. São tão fortes os dispositivos escolares – consolidados não apenas pela
rigidez dos sistemas de ensino, mas também pelas tradições culturais que se sentem
extremamente à vontade neles –, que a pergunta pela própria possibilidade de uma “escola –
experiência” não carece de sentido. Em outras palavras, é possível uma escola que funcione
como experiência e não apenas como verdade? Pode sobreviver enquanto escola uma escola
que se volta contra as verdades que ela própria afirma e dissemina?
17 .
O CORPO NA ESCOLA
Um leitor poderia estar também se perguntando: e caso sobreviva, como seria esta escola no
que diz respeito às necessidades e aos desejos do corpo? A ordem disciplinar tradicional, com
as cadeiras em filas, os uniformes e os regimentos atuais, seria substituída por qual ordem?
Ou seria substituída pela falta de ordem, a desordem? Talvez seja necessário um
esclarecimento: não é apenas mudando de técnicas que se muda o modo de exercer o poder.
Por exemplo, podemos sentar os alunos em círculo, em confortáveis travesseiros, com roupas
coloridas e numa sala bem arrumada para controlar e disciplinar mais sofisticadamente seus
corpos. Também seria interessante pensar que a desordem é também uma ordem. Em todo o
caso, eis o que interessa mais a uma escrita experiência do que a uma escrita verdade: que o
próprio leitor pense a forma que uma escola mais sensível às necessidades e aos desejos do
corpo teria.
Essa pergunta, em parte, diz respeito a todos nós que habitamos a instituição escolar.
Pensemos num professor de uma escola qualquer. Ele também tem a verdade e a experiência
como possibilidades. Um professor verdade é aquele que entra na sala de aula porque pensa
que ele é portador de algumas verdades das quais carecem seus alunos. É claro que se existem
professores verdade é porque também há alunos verdade, ou seja, aqueles que entram na sala
de aula para saber a verdade que os professores pretendem lhes transmitir. Ao contrário, um
professor experiência é aquele que entra na sala de aula, mesmo afirmando uma série de
verdades, com o sentido principal de colocar suas verdades em questão, desejando mais
transformar e ser transformado do que transmitir o que já sabe. E, certamente, só há
professores experiência porque há alunos experiência. Também vale a pena se fazer a
pergunta sobre a própria possibilidade de ser um professor que funcione como experiência no
interior da escola moderna, tão próxima da lógica da verdade. Podemos ser professores
experiência no meio das condições existentes, incluindo as demandas sociais que são
colocadas na escola?
A questão diz também respeito à infância e a como a acolhemos. Se a escola pressupõe uma
infância verdade, é porque temos feito dela um dos principais objetos de saber e poder. Da
infância cada vez sabemos mais e com mais detalhes e sofisticação. Basta sabermos a idade
de uma criança para logo poder antecipar sua conduta, sua reação, e assim planejar
18 .
O CORPO NA ESCOLA
adequadamente uma estratégia de desenvolvimento. Com efeito, temos feito da infância um
dos terrenos favoritos da verdade. “Diga-me teus anos e te direi como te comportarás!” O
lugar outorgado à infância atravessa a esquerda e a direita. Sabemos a verdade de uma
formação que conservará a sociedade ou ainda a revolucionará. Outorgamos um único lugar à
infância, como é lógico, num lugar onde domina a verdade. A escola verdade acolhe uma
infância verdade, cuja formação alimenta os sonhos dos educadores. Pouco importa se esses
são também os sonhos da infância.
Contudo, podemos afirmar outra relação com a infância e dispor outro lugar para ela. Ela
pode ser também algo mais do que a matéria de nossos sonhos e utopias, se abrirmos a
infância e nossa relação com ela à experiência. Mais uma vez, não está claro se isso é
possível, e como é possível, na escola moderna. Mas parece evidente que a lógica da verdade
está dando sintomas notórios de esgotamento, que ela é pouco sensível à novidade da
infância; ao novo, virtual ou atual, que cada nascimento traz consigo.
Por fim, a questão parece ir um pouco além da escola, do corpo, da disciplina, dos
dispositivos pedagógicos e, ainda, da própria infância. A questão é se somos capazes de fazer
não apenas do corpo, da escola e da infância, mas da própria vida, uma experiência. A questão
então é se é a verdade, ou se é a experiência, que dá sentido a uma vida... dentro ou fora da
escola.
Notas:
Professor titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ).
2
M. Foucault. “Entretien avec Michel Foucault”. Entretien avec D.
Tromabadori. In: Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994/1978, p. 41.
19 .
O CORPO NA ESCOLA
PROGRAMA 2
EDUCAÇÃO DE CORPO INTEIRO
Daniela Guimarães1
De um modo geral, na escola, o corpo é compreendido e vivido na perspectiva do controle, da
adaptação e da repressão. O ajuste social aprisiona a expansão, o espaço dos impulsos e dos
prazeres. É preciso e precioso o silêncio, o uniforme limpo e alinhado, o jeito correto de se
sentar, o dedo levantado para a pergunta, o gesto calculado para não agitar o ambiente. O
cenário de uma escola costuma ser reconhecido pela presença de cadeiras e mesas, quadro de
giz, murais, ou seja, equipamentos materiais que legitimam a valorização dos processos de
representação (escrita, desenho, e outras marcas gráficas), em detrimento de espaços para a
acolhida e a movimentação do corpo. A dimensão individualizante do trabalho também
contribui para o isolamento corporal: carteiras para uma só criança, atividades individuais,
práticas em que o valor é colocado mais em cada um do que no grupo.
Na escola, os processos mentais têm primazia, em detrimento do corpo que, de modo geral,
ocupa o plano da eficiência, como instrumento do pensamento, funcionando como ponto de
aplicação de diversas técnicas – segurar corretamente o lápis, subir escadas alternando os
passos com sincronia, equilibrar-se, sentar de modo ereto, dentre outras. De um modo geral,
as ações educacionais valorizam mais as crianças como indivíduos do que como participantes
de um grupo social, incentivam mais os processos racionais do que os motores, sensoriais e
afetivos.
Esta situação enraíza-se nas concepções de desenvolvimento e aprendizagem que sustentam o
trabalho nas escolas. Diversos autores, especialmente do campo da Psicologia, elaboraram
visões sobre como as crianças aprendem e se desenvolvem que são incorporadas pelas teorias
pedagógicas, tendo em vista a organização das práticas e dos modos de ensino nas instituições
educacionais. Neste texto, vamos apresentar algumas destas teorias do campo da Psicologia,
com o objetivo de focalizar o lugar que o corpo assume em suas formulações.
20 .
O CORPO NA ESCOLA
Em suas pesquisas, na área da Psicologia, Piaget buscava responder à seguinte questão: como
o adulto chega a pensar de modo hipotético e dedutivo, quer dizer, criando hipóteses sobre
acontecimentos futuros ou planejando mentalmente suas ações antes de serem realizadas?
Como a criança deixa de precisar dos sentidos (olfato, visão, tato, etc.) ou da experiência
direta com os objetos para conhecê-los, podendo fazer isto somente através da sua ação
mental?
De acordo com Piaget, no início, quando a criança é pequena, até mais ou menos os 6 anos,
para conhecer um objeto, é preciso manipulá-lo, senti-lo, tê-lo presente. Por exemplo, não é
possível entender quanto é a soma de 2 laranjas mais 3 laranjas, se não for possível tocar e
mexer nas laranjas de verdade. Mais tarde, a criança não precisará mais lidar materialmente
com os objetos para concluir relações entre eles, mas conseguirá mentalmente resolver
problemas que envolvam essas relações: a soma, a comparação entre as laranjas, etc. Piaget
estudou como o homem chega a não precisar dos objetos concretos para extrair deles relações,
como faz isso mentalmente, pensando sobre eles.
Piaget estudou também como nasce o conhecimento abstrato, ou seja, independente da ação
do homem sobre os objetos; como é gerado o conhecimento lógico, mental. Este projeto de
estudo piagetiano denomina-se Epistemologia Genética. Genética significa a gênese, isto é, a
origem do conhecimento. Episteme significa científico; e logia quer dizer estudo. Piaget
pesquisou a origem do conhecimento científico no homem. Neste processo, investigou o
desenvolvimento intelectual (o desenvolvimento da inteligência), dividindo-o em quatro
grandes períodos: período sensório-motor; período pré-operatório; período das operações
concretas e período das operações abstratas (ou formais).
A própria definição do projeto piagetiano já expõe o seu limite na consideração do corpo. O
conhecimento pela via das sensações e do movimento é algo a ser superado, tendo em vista a
competência mental, que se coloca como o ponto de chegada final do desenvolvimento, o
pensamento abstrato, formal, hipotético e dedutivo. Conhecer é construir relações lógicomatemáticas no contato com os objetos.
21 .
O CORPO NA ESCOLA
A partir das bases piagetianas, muitos projetos educacionais centram seu trabalho na
construção das estruturas mentais das crianças, planejando atividades em que o foco é
organizar objetos logicamente, classificar, seriar, perceber diferenças e semelhanças entre
eles. A competência intelectual e individual da criança marca as práticas.
Vigotski, também no campo da Psicologia, dedicou-se a identificar o “nascimento cultural” da
criança, a partir do substrato biológico (essencialmente corporal) que a constitui. Este autor
propõe uma abordagem dialética para a relação entre biológico e cultural, corpo e mente,
compreendendo que as construções socioculturais transformam o suporte biológico que,
paralelamente, abre-se para novas elaborações simbólicas. Para este autor, a vida
interpsicológica, a cultura na qual nasce a criança, torna-se sua vida intrapsicológica,
formando suas competências particulares, a partir de processos de negociação e re-criação
constantes.
Vigotski (1984) estuda o gesto de apontar como indicador da origem do processo de
constituição sociocultural das crianças. Sobre isso, ele diz que, inicialmente, esse gesto não é
nada mais do que uma tentativa sem sucesso de pegar alguma coisa. Mas, quando a mãe vem
e ajuda a criança, notando que o seu movimento indica algo, a situação muda; o apontar tornase um gesto para os outros, para a mãe, neste caso. Então, pegar um objeto transforma-se em
apontar, pela compreensão que o adulto mostra ter da ação da criança. Um comportamento de
base biológica ganha novo sentido, torna-se comportamento dirigido para outra pessoa,
comportamento social, pelo contato com o outro.
Baseado em Vigotski, o trabalho de Pino (2006) dedica-se a buscar os indícios das origens da
constituição cultural da criança no ponto onde ocorre o encontro das formas simbólicas de
comunicação adulta, com as quais o outro significa as coisas à criança, com as formas
biológicas de comunicação da criança (formas que ela dispõe ao nascer). O autor indaga se
existiriam, antes do movimento de apontar, outros mecanismos que, sem exigir a
funcionalidade motora do apontar, poderiam desempenhar um papel equivalente. Ou seja,
antes da existência da funcionalidade motora, seria possível falar já de uma atividade cultural?
Nesta pista, identifica quando e como formas de reatividade do corpo tornam-se expressivas,
22 .
O CORPO NA ESCOLA
portadoras de significação. Destaca o choro, o olhar, o movimento e o sorriso como
mecanismos que promovem essa relação entre natureza e cultura, localizando, através da
relação do adulto com essas expressões do bebê, a construção de padrões relacionais com o
mundo cultural circundante.
Desde os primeiros instantes da existência, diferentes mecanismos culturais entram em ação,
conferindo ao movimento do bebê um caráter cada vez menos automático e cada vez mais
imitativo e deliberativo. Então, choros, sorrisos, deslocamentos e olhares são interpretados
pelos adultos, criando formas relacionais com os bebês. A forma natureza (reflexos,
movimentos fortuitos, balbucios, etc.) adquire um novo modo de existência quando ganha
significação nas relações interpessoais.
Ou seja, no início, a função sensorial e a função motora constituem o primeiro circuito de
comunicação da criança com o outro. Podemos ver as crianças trocando objetos, olhares,
muitas vezes de forma casual e contingente. Ao entrar em funcionamento, esse circuito as
coloca numa rede de relações em que suas ações vão ganhando significação, de acordo com a
tradição cultural do seu grupo. Pouco a pouco, ganham intencionalidade, sentido e direção.
Neste enfoque, o corpo é entendido como espaço de construção simbólica e cultural a partir
da relação com o outro. O mundo adulto insere a criança no universo das construções
simbólicas e verbais, quando, por exemplo, nomeia a ação das crianças, tutela suas
expressões, controla seus movimentos.
Pino (2006) propõe que “a cultura supõe a natureza, porque ela é, em última instância, a
própria natureza transformada em cultura, mas uma natureza que, sem deixar de ser
natureza, torna-se algo novo” (p. 268), o que se pode chamar de “natureza humanizada”.
Essa ponderação é importante porque chama a atenção para o risco da construção de
dicotomias e desequilíbrio na valorização de um ou outro plano, o natural ou o cultural.
De um lado, o trabalho de Vigotski chama a atenção para a importância das relações sociais
na constituição cultural das crianças, valorizando o que podem descobrir e como podem
23 .
O CORPO NA ESCOLA
crescer em colaboração com adultos e parceiros com experiências distintas. Por outro lado, é
preciso desviar do risco de considerar o plano cultural como um ideal a atingir. É importante
focalizar, por exemplo, as formas não-verbais através das quais o mundo vai sendo
significado e experimentado. De um modo geral, os adultos se colocam como aqueles que já
sabem o que a criança quer, deseja, para onde vai seu movimento. Se as vêem perto de um
balanço, a tendência é colocá-las em cima dele; se percebem objetos perto de uma caixa,
concluem que vão colocá-los dentro dela.
O referencial que Vigotski aponta para pensarmos a aprendizagem e a escola demanda que
possamos focalizar os processos de negociação de sentidos das crianças entre si, e delas com
os adultos, como diferentes relações de força se compõem. O que pode a criança no contato
com o adulto, de fato? Qual sua potência, e não como se molda ao adulto? Trata-se de uma
tênue e fundamental diferença que se coloca no cotidiano das escolas. Até que ponto o adulto
tutela a ação das crianças, ou dispõe referências e apresenta possibilidades que podem ser
agenciadas pela criança, no movimento do seu crescimento?
No plano do corpo, o desafio é perceber como a dimensão natureza se torna cultura sem
deixar de ser natureza, expressão de emoções e afetos não deliberados. Gestos e movimentos
que nascem do imponderável, para obter prazer pelo prazer, podem tornar-se gestos para e
com o outro, sem que se perca o espaço para o irrefletido, o inesperado, a surpresa, a alegria.
De modo semelhante a Vigotski, as investigações do psicólogo Wallon buscavam como as
conexões cerebrais modificam-se à medida que o ser humano relaciona-se socialmente.
Conversas do bebê com a mãe, o colo dos adultos, poder ver e escutar outras pessoas, tudo faz
com que as regiões do cérebro do bebê se ampliem e mudem suas funções. As interações
sociais transformam os padrões biológicos. Wallon afirmava que o humano é organicamente
social. Também como Vigotski, Wallon propõe que somos sujeitos a partir do outro, pela
mediação do outro, ou seja, a partir da linguagem, que se coloca no meio, entre nós e o
mundo, para organizar a nossa relação com ele. Mais uma vez, neste caso, o desafio é
perceber a linguagem para além da dimensão oral, materialização do pensamento. Há
linguagem nos olhares, no toque, na entonação, em outros modos de significar e trocar com o
24 .
O CORPO NA ESCOLA
outro, para além da forma verbal dominante e socialmente mais valorizada – qual o lugar
destas outras formas na escola?
Wallon propôs três centros que se entrelaçam diferentemente, ao longo do desenvolvimento
da criança: a afetividade, a motricidade e a cognição. Num período inicial do
desenvolvimento, no recém-nascido, predomina a afetividade (a inteligência ou cognição não
se separa da afetividade). É o período denominado por ele como impulsivo-emocional (até por
volta de 2 anos). Nesse momento, o autor reconhece algo como um "diálogo tônico", ou seja,
uma espécie de conversa entre o bebê e o adulto por intermédio não só das palavras, mas do
tônus corporal, da expressão facial, dos gestos, do contato físico.
É na relação com o movimento e a fala dos adultos que a criança vai entendendo quem é ela e
quem são os outros. O processo de imitação tem um papel importante neste momento.
Quando faz algo igual a alguém, quando busca imitar a palavra dita pela mãe, quando imita o
jeito de a avó esconder um boneco embaixo de um pano, a criança ganha novos movimentos e
vai inserindo em seu repertório a possibilidade simbólica, ou seja, a capacidade de representar
ações e objetos ausentes do seu campo perceptivo, da sua visão presente.
Conforme os movimentos se expandem e desenvolvem-se – o pegar, o andar e o deslocar-se
no espaço – também os movimentos simbólicos aparecem. Trata-se do que Wallon denomina
dos primeiros ideomovimentos, característicos do período sensório-motor projetivo (entre 2 e
4 anos).
Wallon propõe que o ato motor – o deslocamento do corpo no espaço com cada vez mais
desenvoltura e segurança – gera o ato mental. As primeiras idéias mentais das crianças
nascem em seus movimentos. Ao observarmos crianças pequenas (de 3 anos, por exemplo)
brincando, é comum percebermos que dos gestos brotam palavras e significados. Também
quando desenham, só conseguem dizer o que fizeram depois que terminam e não antes. Ou
seja, as palavras que retratam as idéias surgem nas relações e ações no espaço.
25 .
O CORPO NA ESCOLA
É importante ressaltar que o ato mental inibe o motor, mas não deixa de ser atividade
corpórea. Começa a haver uma economia no movimento quando o pensamento ganha um
lugar maior, à medida que a criança mexe menos músculos para realizar tarefas. No entanto,
Wallon reconhece nas atividades de pensamento o que ele chama de função tônica do
movimento, ou seja, uma motricidade expressiva. Então, há dois tipos de atividade corpórea:
a cinética, responsável pelo movimento, deslocamento, mudança de posição e a atividade
tônica, presente na imobilidade e responsável pela expressividade.
Para Wallon, por volta dos 4 anos, surge o período personalista, momento de afirmação do eu;
e a partir dos 7 anos, o período categorial, quando o domínio cognitivo oferece as bases para
que se desenvolvam as ações mentais de explicar, definir, diferir objetivamente o mundo.
É relevante pensarmos que tanto a dimensão afetiva, quanto a cognitiva (mental) e do
movimento estão em jogo em todos os momentos do desenvolvimento. Não há para Wallon
superposição de uma pela outra, somente predominância alternada. Valorizar estes três planos
no cotidiano da escola é um desafio!
A contribuição de Wallon para pensarmos a escola traz algumas outras provocações: como
equacionar a valorização tanto do movimento cinético quanto do tônico, quer dizer, a
importância dos deslocamentos da criança no espaço, da expansão, correr, pular, saltar e a
contração inerente ao pensamento? Como considerar o que o autor denomina como diálogo
tônico, que aparece entre o bebê e o adulto, como forma de relação mediada pelo contato
corporal, como algo importante para a vida inteira? Como o professor toca, olha, escuta e,
pelas vias sensoriais, constitui uma qualidade afetiva na relação com as crianças no cotidiano?
Autores contemporâneos do campo da Biologia e da Psicologia, Maturana e Varela, propõem
que sujeito e meio são efeitos de uma rede processual, constituindo-se reciprocamente. O
princípio é a relação. Assim, não conhecemos um mundo preexistente, que existe
independente de nossas ações nele. Não há separação entre nosso conhecimento do mundo e o
que fazemos nele. Essa circularidade entre ação e experiência permite a afirmação de que todo
ato de conhecer faz surgir um mundo. Quando nos debruçamos sobre a realidade para
26 .
O CORPO NA ESCOLA
conhecê-la, também produzimos essa realidade. Na relação entre sujeito e ambiente, ambos
estão em constante mudança. A capacidade de o organismo produzir a si mesmo sem destruir
sua unidade é denominada pelos autores de autopoiesis.
Assim, a cognição, ou a produção de conhecimento, acontece no domínio das interações de
todo o sistema autopoiético (onde a produção de sujeito e a produção de mundo acontecem
simultaneamente). Portanto, o conhecimento não é algo que acontece na mente, mas em todo
o corpo. Maturana e Varela chamam de enação a cognição corporificada, isto é, o fruto da
ação do sujeito no mundo, possibilitada pelo corpo. A ação é guiada por processos sensoriais.
A partir dessas idéias de Maturana e Varela, podemos dizer que a aprendizagem envolve a
coordenação de corpo e mente e não somente a representação mental do mundo.
Aprendizagem não é repetição mecânica, mas atividade criadora, que envolve o acoplamento
do organismo com o meio. Na escola, é importante focalizar quais as experiências sensoriais,
afetivas e relacionais das crianças, tendo em vista percebermos quais mundos criam e como
são constituídas como sujeito. A experiência produz o conhecimento e produz a própria
criança, como exploradora, criadora, confiante em si, ou submissa, passiva, expectadora da
ação do outro.
A interlocução com a Filosofia dilata essa compreensão da aprendizagem como criação de um
mundo, experiência e não representação mental, algo que acontece somente no pensamento.
Deleuze (1987), analisando a obra de Proust, propõe que a aprendizagem acontece sempre por
intermédio de signos e não pela assimilação de conteúdos objetivos; acontece quando um
signo interpela o sujeito, no encontro, não como algo planejado de antemão. Para o autor,
todo aprendiz é “egiptólogo” de alguma coisa, decifra signos que emanam dos objetos, do
mundo, das relações.
Portanto, para a escola, coloca-se o desafio de organizar espaços, objetos, relações que
incitem ao movimento, aos encontros, à alegria, à surpresa e ao imponderável. Isso não
significa deixar de lado ou de fora o pensamento e a razão, mas de equacioná-los com o corpo
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O CORPO NA ESCOLA
e a emoção, na perspectiva de dar sentido e compreender os acontecimentos da vida, o que é
diferente de controlar a vida, antes que ela aconteça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002.
PIAGET, Jean. O raciocínio na criança. Rio de Janeiro: Record, 1967.
PIAGET, Jean. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
PINO, Angel. As marcas do humano: as origens da constituição cultural da criança na
perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.
VYGOTSKY, Lev Seminovich. A formação social da mente. São Paulo: Martins
Fontes, 1984.
VYGOTSKY, Lev Seminovich. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes,
1987.
WALLON, Henri. As origens do caráter na criança. São Paulo: Nova Alexandria,
1995.
WALLON, Henri. As origens do pensamento na criança. São Paulo: Manole, 1989.
Nota:
Professora do Curso de Especialização em Educação Infantil – Perspectivas
de trabalho em creches e pré-escolas – na PUC-Rio. Doutora em Educação
pela PUC - Rio.
28 .
O CORPO NA ESCOLA
PROGRAMA 3
ACONCHEGANDO O CORPO NA ESCOLA: AS PERSPECTIVAS
Pensando o lugar do corpo na escola
Alexandra Pena1
Isabel C. Bogéa2
Leonor Pio Borges3
A famosa máxima “penso, logo existo” implica numa concepção que permeia todo o
conhecimento e os valores ocidentais, e que tem duas características muito definidas: a de que
corpo e mente são opostos, e a de que o corpo é um mero suporte para as nobres atividades
mentais. Essa concepção, na escola, se materializa como a crença de que só se aprende com a
mente.
Nossos questionamentos estão relacionados, principalmente, às rotinas e atividades escolares
que envolvem o corpo, de bebês dos berçários até crianças de 10 anos, como comer, brincar,
tomar banho, correr, se mexer, dançar, ir ao banheiro... Por que estabelecemos uma “hora”
para cada uma dessas atividades? Será que todo mundo tem fome junto? Quem diz que é hora
de dormir? Além disso, por que propomos determinadas atividades e não outras? Temos, na
escola, uma hora para dançar? E para fazer o que se tem vontade?
No início, procuramos compreender o modelo de escola vigente, evidenciando, a partir desta
contextualização, a relação que a sociedade ocidental estabeleceu com o corpo e com suas
necessidades e desejos. Em seguida, abordamos a questão do corpo como a primeira morada
do psiquismo e finalizamos com a esperança de conquistar novas concepções sobre o corpo e
sobre a criança, que gerem desdobramentos nas práticas pedagógicas e no cotidiano da escola.
Historicamente, a relação do ser humano com o corpo é marcada pelo controle. Hoje, as
instituições escolares ainda reproduzem estas práticas dicotômicas por duas razões: primeiro,
porque o discurso higienista produziu, além de uma preocupação com o corpo, a saúde e a
higiene, um discurso social e político, e segundo pela presença ainda marcante de instituições
29 .
O CORPO NA ESCOLA
religiosas nos espaços educacionais, sustentadas por um discurso do sagrado e da moral. O
controle da economia do corpo pela limpeza, pela abstinência sexual e não-masturbação foi
um princípio básico para a formação dos sujeitos capitalistas e cristãos, que nós somos.
Os corpos ficaram cada vez mais regulados e administrados em nome da ordem social. O
corpo solto torna-se imoral, desviado, desocupado e deve ser transformado, com a ajuda da
educação moral, em corpo útil. Segundo Foucault (1982), poderíamos dizer que o século XIX
realizou um “grande esforço de disciplinarização e de normalização”.
Podemos constatar a expressão destas marcas em algumas práticas escolares como: filas de
carteiras, o emparedamento por horas a fio das crianças dentro das salas de aula, as filas
indianas, as músicas para todas as atividades, a hora definida de cada coisa, etc.
A descoberta das crianças como seres diferentes dos adultos trouxe uma questão: como fazer
para educá-las, para torná-las virtuosas? Uma das respostas encontradas foi a criação de
instituições para civilizar as crianças e, em conseqüência, controlar as famílias e a sociedade
(Barbosa, 2006, p.54).
A rotina da escola demonstra um automatismo das relações e uma acomodação a padrões de
comportamento previamente estabelecidos, onde não há lugar para o surgimento do novo.
Que concepções de criança e de desenvolvimento infantil estão por trás desse modelo de
educação? Seria a concepção de uma criança autônoma, criativa, capaz de produzir cultura?
Parece mais a de uma criança em falta, que precisa ser ensinada, moldada.
No entanto, não podemos nos esquecer que somos, nós mesmos, profissionais de educação
cuja formação é marcada fortemente pelo viés cartesiano que perpassa toda a civilização
ocidental e que, inclusive, influencia a forma como construímos e organizamos nosso
conhecimento. Deste modo, por mais que saibamos que não existe desenvolvimento motor
separado de desenvolvimento afetivo nem de desenvolvimento cognitivo, ainda é difícil ter
um olhar integrado sobre o processo de desenvolvimento de nossas crianças na prática
30 .
O CORPO NA ESCOLA
cotidiana. O risco de compartimentalizar o processo de desenvolvimento infantil é real e
constante
Além dessa compartimentalização, existe a questão do peso que cada um desses aspectos
encontra em nossa sociedade. Como já colocado anteriormente, vivemos numa sociedade que
prioriza o racional, o pensamento, os processos mentais em detrimento de outras experiências
como as sensoriais, sentimentais, artísticas e o contato com a natureza.
A importância dada à ordem e ao controle aparece claramente em diversos momentos do
cotidiano: as crianças não têm liberdade para escolher as atividades que desejam realizar, de
se servirem sozinhas na hora do almoço, de dormir o tempo que precisam, de se
movimentarem da maneira que quiserem.
Todas essas questões nos fazem refletir sobre como a escola pode acabar contribuindo para a
formação de pessoas sem autonomia, que desconhecem seus próprios corpos, seus
sentimentos, suas possibilidades e seus limites.
É através do corpo que a criança experimenta o mundo, conhece as sensações de calor, frio,
aconchego, dor, prazer, medo, etc., mas para isso é necessário que ela possa se movimentar e
interagir com o ambiente à sua volta. De fato, para Maturana (2001) viver é sinônimo de
conhecer. Segundo este autor, um biólogo chileno, o ser humano aprende com o corpo inteiro.
Seu conceito de acoplamento estrutural supõe que o conhecimento se dá nas trocas
estabelecidas a partir das relações do ser humano com o outro humano, mas também com o
outro ambiente à sua volta.
Neste processo, o ser humano se modifica e modifica o outro simultaneamente, o que
significa dizer que a cada encontro, a cada momento, estamos modificando e sendo
modificados, numa espiral infinita que só cessa com a morte. Esse conceito dá a dimensão da
importância do espaço entre o eu e o outro, o espaço da relação, que é chamado por Maturana
de espaço de convivência. (Maturana, apud Pio Borges de Castro, 2006, p. 16) Este conceito
implica num ambiente verdadeiramente acolhedor à construção do conhecimento, pois parte
31 .
O CORPO NA ESCOLA
do princípio de que o conhecimento não está em mim nem no outro, mas sim na relação que
estabelecemos entre nós. Esse pressuposto inclui a necessidade de reconhecer a alteridade em
todas as suas dimensões, pois, sem respeito ao outro, às suas diferenças, desejos e
necessidades, não há aprendizado, não há paz no viver e no conviver.
Para Maturana (2001), o conhecimento não é representativo, não está gravado na mente
humana, mas é corpóreo – está gravado em nossos corpos, o que inclui outras dimensões que
não só a mente racional humana: inclui as sensações corporais e os sentimentos vivenciados.
No entanto, estamos inseridos em uma cultura que enfatiza o conflito mente-corpo e a escola
acaba reproduzindo esta dualidade em suas estruturas curriculares e em suas rotinas.
(...) o jeito de ser do nosso corpo não é algo que possuímos “naturalmente”, não é apenas
uma construção pessoal, mas social e política: é algo aprendido, construído ao longo de
toda a vida. Portanto, a história e a cultura significam nossos corpos (Tiriba, 2001, p. 01).
Há uma grande valorização do intelecto, já que a sociedade em que vivemos tende a ignorar
tudo aquilo que nos identifica enquanto animais. Relegando o corpo a um segundo plano,
ficam também esquecidos outros canais de expressão, entre eles as sensações físicas, as
emoções, os afetos, os desejos.
As práticas escolares, em geral, associam movimento à bagunça, à dispersão e, por isso,
privilegiam o não-movimento, a postura estática, quieta e atenta como condição para a
aprendizagem. Valoriza-se apenas o movimento mecânico e sistemático, que tem como
objetivo aprimorar a coordenação motora, para garantir a aquisição da leitura e da escrita ou,
ainda, o movimento ligado à prática esportiva.
Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por muitas horas e tem, provavelmente, a
habilidade para expressar gestos ou comportamentos indicativos de interesse e de atenção,
mesmo que falsos. Um corpo disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num
determinado modelo de fala; concebe e usa o tempo e o espaço de uma forma particular.
Mãos, olhos e ouvidos estão adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente
desatentos ou desajeitados para outras tantas (Louro, apud Pena, 2003, p. 35).
32 .
O CORPO NA ESCOLA
Os comportamentos e os movimentos previamente determinados compõem a rotina de
atividades infantis, desconsiderando o interesse das crianças. O espaço externo das escolas
costuma ser muito mal aproveitado, restringindo-se apenas ao recreio. O dia-a-dia escolar
lembra o de uma linha de montagem, onde os encontros acontecem sem criatividade, sem
troca, sem emoção, sem produção de conhecimento.
Hoje, quando ainda temos muitas de nossas práticas educativas resultantes desse modelo
autoritário e assistencialista, observamos, com freqüência, escolas que mantêm na sua rotina
um excessivo controle sobre as atitudes espontâneas das crianças.
O atendimento aos bebês também denuncia práticas estereotipadas de atendimento. Com a
criação de berçários, um enorme número de bebês passou a ser atendido em ambiente escolar.
O que dizer dos bebês que são impedidos, por exemplo, de explorar os alimentos com as
mãos, com a boca, de se sujarem por inteiro? Provavelmente, eles perderão muito com relação
à conquista de sua autonomia pessoal e parte da confiança em si mesmos.
Em geral, não temos idéia do quanto o corpo, desde muito cedo, está implicado na
constituição do psiquismo. No início da vida, nossa comunicação com o mundo se dá no nível
corporal, através dos sentidos: tátil, olfativo, visual, auditivo, gustativo e muscular (Anzieu,
1989).
O nascimento biológico e o nascimento psíquico não coincidem no tempo. Neurobiólogos,
psicólogos, além de psicanalistas, vêm estudando esta questão desde os anos 70,
principalmente na França e nos EUA, procurando identificar o percurso que leva ao
nascimento psíquico, considerando especialmente a enorme plasticidade do cérebro nos três
primeiros anos de vida.
Em um primeiro momento, o bebê vai adquirindo, pouco a pouco, a consciência de uma
separação de corpos entre ele e seus cuidadores. Adquirir a consciência desta separação é uma
travessia extremamente delicada que se dá durante o primeiro ano de vida. Sair da unidadedual, para perceber a existência de um “eu” e de um “não-eu”, é o caminho inicial para o
33 .
O CORPO NA ESCOLA
desenvolvimento do psiquismo. De início temos, portanto, um ego corporal para construir um
ego psíquico. Segundo Tustin (1990), a maneira como o bebê toma consciência do “não-eu” é
essencial à constituição de sua identidade individual.
Numa interseção com seus cuidadores, que deve ser contínua, se dá a interpenetração de
alguns aspectos corporais: os olhos relacionados ao olhar acolhedor do outro; a boca
relacionada à amamentação e ao auto-erotismo oral; a vivência de colo, experimentada como
suporte pelo bebê, numa junção entre cabeça, nuca e costas e, finalmente, todos estes aspectos
embalados pela capacidade de expressar sons adquirida pelo bebê. Num sutil alinhavar de
sensações, o bebê vai organizando seu corpo e percebendo-se como único e inteiro.
Os processos de subjetivação vão depender dessa primeira organização do corpo sensível.
Nesta primeira costura se faz necessária uma parceria com a doçura, como acolhedora deste
funcionamento precoce, em que as emoções ainda são confundidas com as sensações (Haag,
1991, p. 53-54). Será através da doçura do toque que construiremos a ternura. “A ternura é,
portanto, inicialmente tátil” (Fontes, 2002).
O sentido do toque entre o cuidador e o bebê é uma maneira de transmissão entre os dois. O
toque entre cuidador e bebê pode resgatar ou impedir um melhor equilíbrio nesta díade, que é
a base do contato do bebê com o mundo. Com o nascimento de um bebê, recebemos em
nossos braços muito mais que uma tabula rasa, na qual iremos imprimir nossa educação
parental ou pedagógica. O que na verdade ocorre são trocas bilaterais, que são construídas
desde o nascimento. Estas interações podem formar uma troca positiva quando há: sincronia
(simultaneidade), mutualidade (reciprocidade) e sintonia afetiva. Por outro lado, temos as
interações patológicas e patogênicas – que são o resultado de sobrecarga, carência e
assincronia (Golse, 2003).
O cuidador é uma peça-chave nesta atmosfera que envolve o bebê. Se o adulto for sensível a
este momento especial da vida do bebê, estará cuidando do espaço relacional entre ele e o
bebê, construindo um “campo de afetação” (Maia, 2004) favorável ao desenvolvimento
infantil. Desta forma, promove-se o fortalecimento dos laços afetivos, fundando uma
34 .
O CORPO NA ESCOLA
intimidade estruturante na escola. Estes subsídios permitem que os educadores possam
identificar diferentes modalidades relacionais, com o intuito de promover interações positivas
que incentivem o desenvolvimento saudável do bebê e da criança, prevenindo assim,
possíveis desequilíbrios nestas trocas.
Nos lactentes, percebemos que os estímulos auditivos constituem o grande motor da
interação. A voz do adulto provoca sorrisos, atrai o olhar, facilita uma relação face a face,
além de permitir uma troca de comunicação verbal. O ambiente lingüístico dos bebês está
composto por formas particulares de linguagem. A prosódia (pronúncia das palavras)
contribui para a estruturação do universo afetivo do bebê e também ajuda na estruturação de
seu tratamento da palavra. A criança, ainda bem pequena, já percebe os sons das palavras,
podendo organizá-los, segmentá-los e reconhecê-los. Os bebês reagem às variações na
duração e na entonação da fala dos adultos e, em resposta, se comunicam, se identificam e
captam a emoção transmitida em cada fala. A maneira de falar com as crianças, assumida,
“instintivamente” pelos pais e por grande parte dos que cuidam das crianças, mergulha a
criança num banho lingüístico e afetivo (Soulé & Cyrulnik,1999).
A Educação Infantil, ao lidar com crianças de zero a cinco/seis anos, e a primeira parte do
Ensino Fundamental, ao lidar com crianças até 10 anos, são etapas que estão mergulhadas no
mundo da comunicação, não só da comunicação verbal, como também da comunicação nãoverbal. O mundo da expressão corporal e sensorial, embora desprezado, é um universo a ser
explorado, quando o aprendizado direcionado e restritivo não dominará mais as relações
escolares.
Portanto, é de crucial importância que os educadores sejam sensíveis às necessidades e
desejos do corpo. Mas como desenvolver essa escuta com as crianças se não a tivermos
conosco? Como perceber as sensações dos outros sem conectarmos as nossas próprias? Como
estar aberto às emoções infantis sem recuperarmos os nossos sentimentos? Como acompanhar
o ritmo das crianças sem sentirmos os nossos ritmos biológicos?
35 .
O CORPO NA ESCOLA
Novas práticas, como a arte milenar de massagem para bebês desenvolvida na Índia, chamada
Shantala, poderiam ser desenvolvidas nas creches e nas escolas.
A Shantala na escola seria uma ponte entre a experiência corporal com o bebê e a
apropriação de um olhar mais amplo pelas educadoras de berçário. Praticar a Shantala, para
além de uma técnica, traduz uma oportunidade de contato não só com o corpo do bebê, mas
também com o próprio corpo das educadoras, repensando a relação que estabelecem com
cada criança, assim como valorizando as inúmeras formas de comunicação produzidas
pelas crianças. Tocar implica em ser tocado, já que o relaxamento necessário para a prática
da Shantala pode trazer uma nova forma de contato das educadoras/cuidadoras com elas
próprias, oferecendo novas representações psíquicas, que seriam acolhidas num trabalho de
formação destas educadoras (Bogéa Borges, 2007, 57-58).
Estar atento ao corpo, aos sentimentos e aos desejos das crianças nas relações e atividades
cotidianas na escola implica reconhecer, legitimar e dar voz às necessidades infantis, seja da
ordem do corpo ou do psiquismo, favorecendo o desenvolvimento de seres sensíveis a si
mesmos e aos outros. Nas situações cotidianas, por exemplo, esse reconhecimento acontece
quando a criança chega a um adulto mostrando o joelho machucado e este pergunta “está
doendo?”. Ou quando uma criança bate em outra e o adulto pergunta: “O que aconteceu?
Você está com raiva? Por que você fez isso?” Estas perguntas fazem com que a criança possa,
gradativamente, perceber e nomear as sensações do seu corpo e seus sentimentos até que seja
capaz de expressar-se pela fala, verbalizando as situações ocorridas, as sensações
experimentadas, os seus pensamentos e sentimentos. Dessa forma, constituem-se como
sujeitos sensíveis a si mesmos e ao outro, pois, ao experimentarem um olhar externo atento,
carinhoso e acolhedor em relação a si, são marcados inevitavelmente pela dimensão da
alteridade.
Em outras palavras, estamos falando de um ambiente que possibilite a constituição de sujeitos
solidários, conscientes de si e da alteridade, da existência de um outro que é “diferente de
mim”. Num mundo regido cada vez mais pela massacrante ditatura do individualismo e do
imediatismo, do “eu quero agora”, do “não me importa o que você sente, pensa ou qual a sua
36 .
O CORPO NA ESCOLA
situação – me importa que eu esteja satisfeito”, é urgente pensarmos, como profissionais de
educação, nos seres humanos que estamos formando e que queremos formar.
Segundo Tiriba (2005), o paradigma que norteia a civilização ocidental produz desigualdade
social, desequilíbrio ambiental e sofrimento pessoal. De fato, cada vez torna-se mais claro que
há algo errado num mundo onde existe um abismo entre os muitos sem nada e os poucos que
concentram a riqueza; onde a natureza sinaliza não suportar mais o modo de produção
capitalista que a explora sem trégua; e, por fim, um mundo em que os seres humanos estão,
cada vez mais, consumindo compulsivamente (bens, medicamentos, drogas, comida, sexo,
etc.) em busca de uma satisfação que não chega, o que os mantém cada dia mais deprimidos e
angustiados.
É preciso mudar. É preciso resgatar e valorizar a dimensão do cuidado conosco, com o outro e
com o mundo, começando no berçário das creches e, se possível, até incorporarmos o cuidado
ao nosso modo de viver.
Pensamos que um caminho é considerar uma concepção de formação e qualificação dos
profissionais de educação que estimule um processo de construção de autonomia, que só é
possível valorizando a história, a experiência, a palavra e também o corpo desses
profissionais.
Ao analisar as práticas escolares, especificamente entre os bebês de berçários e as crianças de
até 10 anos, procuramos demonstrar o quanto rotinas estereotipadas podem prejudicar uma
experiência rica em trocas, transformando-a numa atividade mecânica e carente de sentido.
Todos os envolvidos nesta cena sofrem, tanto adultos, como crianças. A coragem de mudar
aparece bem traduzida nas palavras de Freire:
Não nos tornamos "delinqüentes", anti-sociais, "narcisistas", deprimidos, obcecados pela
domesticação do corpo e por sensações corporais estáticas apenas porque queremos devorar
tudo e todos, segundo a lei do consumo. Tornamo-nos cronicamente insatisfeitos, infelizes,
abatidos, ansiosos, impiedosos, truculentos, apáticos ou "resignados" porque nos fazem ver,
37 .
O CORPO NA ESCOLA
sentir e pensar que nada do que somos ou temos desperta o menor "interesse", "admiração",
"cuidado" ou amor do outro (Freire Costa, 2000).
Reafirmamos nosso desejo de contribuir para um mundo diferente, uma vida menos banal,
onde a “ética do cuidado” possa retomar o seu valor, ao favorecer em cada um o encontro
com sua maneira singular de ser. Assim, propomos e buscamos maneiras de conviver com
nossos parceiros de vida, tenham eles a idade que tiverem, estimulando que o debate, os
desdobramentos e as respostas possam ser construídos pelos que vivem a experiência num
eterno compartilhar ao longo do trabalho e ao longo da vida.
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Revista Vida Simples - 06/2003
Nós fazemos o mundo.
Notas:
Psicóloga com Formação em Psicoterapia Reichiana, especialista em Educação Infantil
pela PUC-Rio e mestranda em Psicologia pela UFRJ.
2
Psicanalista e membro do grupo de pesquisa "Primórdios da Vida Psíquica - Clínica dos
Primeiros Anos", do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ. Especialista em
Educação Infantil pela PUC-Rio.
3
Psicóloga, bailarina, especialista em Educação Infantil e mestranda em Educação pela
PUC-Rio.
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O CORPO NA ESCOLA
PROGRAMA 4
EDUCAÇÃO E VIVÊNCIA DO ESPAÇO: DIÁLOGOS ENTRE A
ARQUITETURA E A PEDAGOGIA
Léa Tiriba1
Salas de aulas, geralmente inóspitas, alunos em carteiras enfileiradas, quadro de giz, um
professor à frente: estranha e inadequada organização, em especial, nos lindos “dias-de-sol-láfora”. Fechada entre muros, estranha à interação com a realidade social, desarticulada dos
cenários onde ocorre a vida de verdade, indiferente, insensível ou artificial na relação com o
que, de fato, para as crianças e jovens, mobiliza e tem significado. E inadequada à saúde do
corpo, à relação dos humanos com o mundo natural, ao desfrute do sol, do vento. Indiferente à
beleza do universo mais amplo em que estamos situados, às necessidades do corpo e do
espírito. Espaço contido, de crianças e adultos emparedados, mas fervilhante de energias.
A escola é o único espaço social que é freqüentado diariamente, e durante um número
significativo de horas, por adultos e crianças. Para os pequenos, que freqüentam creches, préescolas e as séries iniciais, especialmente os que permanecem em horário integral, é aí que,
para além do convívio familiar, aprendem a viver e a conviver. Nove horas diárias, às vezes,
mais! Para quem tem entre 0 e 10 anos, o que resta de tempo em cada dia? Se é na escola que
grande parte da vida transcorre, é preciso que aí as crianças se sintam muito bem, que aí sejam
felizes...
Referindo-se às áreas destinadas às escolas nas cidades contemporâneas do Terceiro Mundo, a
arquiteta Mayume de Souza Lima escreveu:
As construções podiam se destinar tanto a crianças, a sacos de feijão ou a carros, pois são
apenas áreas cobertas, com fechamento e piso. (...) os seres humanos perderam não apenas
a sua capacidade única de dar sentido às coisas, mas também perderam o instinto primário
de todos os animais adultos de buscar o ambiente mais favorável para o desenvolvimento
dos seres jovens de sua espécie (Lima, 1989, p.11).
41 .
O CORPO NA ESCOLA
Atualmente, somos informados sobre esforços investidos por dirigentes de secretarias de
educação, e mesmo por diretores e/ou professores, no sentido de qualificar os espaços
escolares. Sabemos de escolas que reorganizam as salas derrubando paredes, introduzindo
grandes espaços interativos e cantos para brincadeiras; que abrem “janelas” nos muros,
possibilitando a visão do lado exterior; que assumem o entorno, os parques, as praças, o
patrimônio cultural e ambiental da cidade como objeto de investigação pedagógica.
Entretanto, esta não é a realidade da maioria das cidades brasileiras! No município do Rio de
Janeiro, por exemplo, várias escolas não dispõem de áreas ao ar livre. O resultado é que
crianças passam manhãs e/ou tardes inteiras em espaços fechados, muitas vezes em salas
inteiramente ocupadas por mesas e cadeiras.
Mesmo considerando a precariedade de muitos Sistemas de Ensino, a situação salarial dos
professores e os recursos limitados para a educação, entendemos que é hora de levantar a
bandeira da qualidade de vida nas escolas! Não é mais possível compactuar com a
insalubridade do modo de funcionamento escolar. Já é hora de serem efetivadas as condições
concretas de materialização dos direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e
que dizem respeito à integridade da pessoa humana.
Este desafio exige que superemos uma visão de mundo que concebe os seres humanos
separados do mundo natural. Não podemos esquecer que o divórcio primordial da
modernidade, entre seres humanos e natureza e os outros que dele se originam – entre corpo e
mente e entre emoção e razão – se materializam também nos espaços escolares. Como
assegurar bem-estar se as crianças não são assumidas em sua integralidade existencial, se a
escola não tem pelo corpo o mesmo apreço que tem pela mente?
Escola: um direito, uma alegria!
Do ponto de vista das crianças, não importa que a escola seja um direito, importa que seja
agradável, interessante, instigante, que seja um lugar para onde elas desejem sempre retornar.
O poder público tem o dever de assegurar acesso e permanência. Mas, a freqüência à escola
não pode ser entendida apenas como direito a um espaço que ofereça proteção física e
42 .
O CORPO NA ESCOLA
desenvolvimento cognitivo. É preciso que as crianças se sintam bem, que sejam cuidadas; e
cuidar implica oferecer aquilo que satisfaça o conjunto de suas necessidades e desejos.
Entretanto, as escolas:
Não são pensados para crianças alegres e brincalhonas, (...) mas para “massas de crianças”
(...). Roubam das crianças o direito a flores e gramados, à água no pátio, barro, areia, salas
amplas, abertas, coloridas, saudáveis (Hoemke, 2004, p.18).
Segundo esta autora, quando se trata de construir escolas, aqueles que pensam e projetam os
espaços das crianças não se dedicam a compreender a lógica da infância. Muitas vezes, o
projeto arquitetônico é realizado por uma empresa terceirizada, a partir de dados de demanda,
como número de crianças e o que se quer nas salas. Estas informações são obtidas junto às
equipes das Secretarias de Educação. Isto é, no processo de elaboração do projeto
arquitetônico, há pouca ou nenhuma participação de educadores, crianças e suas famílias,
aqueles que farão uso do prédio que está sendo construído.
Referindo-se ao processo de definição do local que abrigará a escola, Lima (1989) aponta uma
situação ainda comum: nem sempre é escolhido pela sua salubridade, acesso, topografia, mas
por decisões políticas “que se voltam para o não confronto com os loteadores e para a
diminuição aparente dos custos da construção dos prédios” (p. 65).
Há ainda um aspecto, relativo às políticas de ampliação do acesso à escola, que podemos
denominar como “ideologia do espaço construído”. Consiste em ocupar todos os espaços do
terreno com edificação de salas. Assim, as crianças ficariam confinadas, porque as áreas ao ar
livre vão sendo ocupados com novas instalações, o verde vai sumindo, as crianças vão ficando
emparedadas.
Esta situação se deve à falta de recursos econômicos, mas também a uma visão que objetiva
estender a cobertura do atendimento, sem assegurar qualidade de vida. Neste caso, o
compromisso do poder público está restrito ao cumprimento de um dever que corresponde a
43 .
O CORPO NA ESCOLA
um direito legal. Porém, esta referência não basta, porque a ética do cuidar não se pauta num
conceito de moralidade centrado em direitos, num princípio moral abstrato, assentado sobre
condutas universais (Tronto, 1997). Pois, partindo do princípio de que as pessoas são
singulares, não há uma quantidade ou uma determinada maneira de cuidar que sirva a todas.
Assim, oferecer instalações adequadas à saúde e ao bem-estar das crianças e adultos é cumprir
com um primeiro dever, pois não basta que a freqüência à escola seja apenas um direito, é
preciso que, para as crianças, seja também uma alegria!
Na contramão do desejo, aprisionadas, as crianças vão sendo despotencializadas, adormecidas
em sua curiosidade, em sua exuberância humana. Como diria Foucault (1987), seus corpos
vão sendo docilizados. Sua subjetividade vai sendo modelada. Esta situação corresponde, no
plano macropolítico, a um quadro socioambiental em que a natureza vai sendo também
destruída. Este duplo e simultâneo processo de degradação vai fazendo da Terra um planeta
inóspito, inadequado para a vida das espécies que hoje o habitam, e o das instituições
educacionais, espaços de aprisionamento, de impotência.
Controle e docilização dos corpos
Embora já haja documentos orientadores2, em muitas cidades, prevalecem os padrões antigos.
A denúncia da arquiteta Mayume de Sousa Lima é ainda atual:
“(...) as salas de aula tinham, como continuam tendo, orientação para abertura de janelas à
esquerda das carteiras, quadro à frente (...), junto à porta de acesso, com visor para a
inspeção dos administradores. Essas salas sucediam-se lado a lado, ao longo de corredores
(...). Este esquema, sempre igual, dava às escolas uma ar de caserna ou de presídio, onde as
crianças caminhavam em filas, sob as vistas dos professores ou dos bedéis. Mas o esquema
ainda hoje não mudou inteiramente. O condicionamento à disciplina dá o tom geral dos
espaços escolares” (Lima, 1989, p. 58).
A questão do controle relaciona-se com a possibilidade de olhar cada indivíduo. Na visão de
Foucault (1987), o próprio conceito de indivíduo foi produzido socialmente, e este foi um dos
44 .
O CORPO NA ESCOLA
aprendizados fundamentais para a adequação das pessoas ao modo de produção capitalista. De
fato, os espaços das salas favorecem o olhar atento e o acompanhamento das ações de cada
indivíduo. Excluindo as inovações que já podemos vislumbrar, em especial em algumas
experiências inspiradas em concepções sociointeracionistas, podemos dizer que a própria
organização dos espaços é definida em função de assegurar a atenção de cada um, não do
grupo. O seu objetivo é contribuir para a formação de pessoas que atuem produtivamente na
sociedade.
Como, na perspectiva moderna, o atributo humano principal para esta atuação é a razão, são
priorizados os espaços que favoreceriam o seu desenvolvimento. As salas escolares, como as
demais áreas fechadas que limitam os movimentos, seriam lugares mais apropriados que os
pátios para modelizar as formas de pensar, agir e sentir, assim como para controlar as
possíveis diferenças e ensinar as crianças a tornarem-se capazes, úteis e adequadas ao
mercado de trabalho. Nas palavras de Lima:
(...) o poder, primeiro da sociedade, depois das instituições representativas desta sociedade
e, terceiro, dos adultos em geral, se apodera dos espaços da criança e o transforma num
instrumento de dominação. A organização e a distribuição dos espaços, a limitação dos
movimentos, a nebulosidade das informações e até mesmo a falta de conforto ambiental
estavam e estão voltadas para a produção de adultos domesticados, obedientes e
disciplinados – se possível limpos –
destituídos de vontade própria e temerosos de
indagações. (...) A liberdade da criança é a nossa insegurança, enquanto educadores, pais ou
simples adultos, e, em nome da criança, buscamos a nossa tranqüilidade, impondo-lhes até
os caminhos da imaginação (Lima 1989, p.10 - 11).
Neste contexto, o ambiente de referência é o da sala, mais propício a metodologias voltadas
para captar a atenção das crianças. Esta necessidade levaria a uma pedagogia que privilegia os
espaços fechados. E, tanto como causa, quanto como efeito, a uma concepção e a uma prática
de formação de educadores (inicial e em serviço) que é pensada tendo os espaços das salas
como referência.
45 .
O CORPO NA ESCOLA
O emparedamento das crianças
O documento “Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil”, citado
anteriormente, já anuncia a idéia de que o convívio com elementos do mundo natural é um
direito das crianças! Entretanto, na Portaria nº 321 de 26/05/88, do Ministério da Saúde – que
serviu, ou ainda serve de referência para a construção de espaços de Educação Infantil em
municípios brasileiros – as definições para a área interna são detalhadíssimas. Ao contrário,
são poucas e genéricas as normas técnicas que orientam o projeto arquitetônico, no que diz
respeito ao espaço externo.
A falta de atenção à área do terreno que não será construída é uma característica comum a
documentos que orientam a construção de creches e pré-escolas no Brasil. Se não há uma
ênfase à importância de contato de meninos e meninas com o mundo natural, é porque ainda
não alcançamos a compreensão do quanto é fundamental para as crianças um cotidiano em
liberdade, em relação com elementos da natureza que se compõem positivamente com elas, e
que, portanto, geram potência.
Esta situação se deve ao fato de não nos percebermos enquanto seres de natureza, membros de
uma espécie entre outras. A concepção de criança enquanto ser de cultura está assegurada na
maioria das propostas pedagógicas, pois todos nós aceitamos a idéia de que nenhum ser
sobrevive com características humanas se não receber cuidados de outros humanos, e de que
só entre humanos aprendemos a recriar o jeito de ser da espécie e do grupo social de que
somos parte. Entretanto, ainda não assumimos a concepção de criança enquanto ser de
natureza, porque, na prática, esquecemos que a vida de cada criança e a vida do coletivo
social acontecem num universo maior, o cosmo, a Natureza. Nossa cultura antropocêntrica
“esquece” que os seres humanos não estão sós, partilham a existência com inúmeras outras
espécies, sem as quais a vida no planeta não pode existir. Somos parte da natureza! Somos
fruto de autopoiese, isto é, de um fenômeno de auto-organização da matéria que dá origem a
todos os seres vivos (Maturana e Varela, 2002). Portanto, as crianças são, ao mesmo tempo,
seres da natureza e seres de cultura.
46 .
O CORPO NA ESCOLA
Portanto, os espaços educacionais precisam ser pensados em função desta dupla dimensão. É
verdade que, nos últimos anos, a dimensão cultural foi valorizada: ganharam importância
outros caminhos de conhecer que envolvem as múltiplas linguagens de que os seres humanos
fazem uso no processo de interação com a realidade, mediada por outro ser humano. Mas, as
relações com o mundo natural seguem sendo de distanciamento, já que ele seria simplesmente
pano de fundo, cenário onde humanos mentais se movem.
Talvez por serem modos de expressão da Natureza (Espinosa, 1983), as crianças têm
verdadeira paixão por espaços ao ar livre, em contato com elementos do mundo natural. Mas
as rotinas as mantêm distanciadas: mesmo que se deslocando de um espaço para outro, a
maior parte do tempo permanecem emparedadas.
Utilizamos esta expressão para designar, de forma genérica, a situação das crianças nos
muitos espaços, além das salas de aula, que são utilizadas pelas crianças: dormitório,
refeitório, sala de vídeo, galpão... De fato, analisando as rotinas, aparece claramente uma
dinâmica em que a criança vai de um espaço fechado a outro: da sala onde é recebida, para a
sala da TV, para o refeitório, para sala de sua turma, para atividades de higiene, para o
dormitório... A chegada aos espaços externos é demorada, e pode mesmo não acontecer!
Em pesquisa recente (Tiriba, 2005) – realizada em quarenta instituições de Educação Infantil
vinculadas à rede pública, que atendem em horário integral – constatamos que as crianças
permanecem em espaços entre-paredes durante 8, 9, 10 horas ou mais, sendo que, em 10% das
instituições investigadas, elas dispõem, diariamente, de um curto período de 30 a 60 minutos
ao ar livre. No caso dos bebês e dos que têm até 2 ou 3 anos, evidenciou-se uma situação de
aprisionamento, pois, nas unidades que não dispõem de solário, até mesmo o banho de sol
pode não acontecer!
Verificamos também que, em 25% das instituições pesquisadas, as janelas não estão ao
alcance das crianças, ou não existem. Ou seja, além de permanecerem muito tempo em
espaços entre-paredes, são impossibilitadas de acesso à vida que transcorre lá fora.
47 .
O CORPO NA ESCOLA
E as áreas ao ar livre? O que há aí: terra, árvores, água, areia, o quê? Raramente de pés
descalços, as crianças brincam sobre chão predominantemente coberto por cimento e brita,
revestimentos que predominam nas áreas externas. Poucos pátios são de terra ou barro. A
grama, onde existe, muitas vezes não está liberada para as crianças, sob o pretexto de que nela
não se pode pisar. Por outro lado, onde ocupa a totalidade da área externa, não oferece
alternativas de brincadeiras de cavar, amontoar, criar e demolir, atividades tão desejadas, que
só a terra e a areia propiciam.
Mesmo quando as escolas estão localizadas em áreas próximas a parques, praças, bosques,
terrenos baldios, campos de futebol, elas não são utilizadas com regularidade. É como se a
realidade se reduzisse às áreas intramuros, e elas tivessem nascido para a escola, não para o
mundo. A conclusão possível é que estar ao ar livre não é uma definição, um imperativo, um
princípio pedagógico, mas uma opção de cada educadora. Como aprender a respeitar a
natureza se as crianças não convivem com seus elementos?
As três ecologias: cuidar de mim, cuidar de nós, cuidar da Terra
As formas de organização do espaço e o modo de funcionamento das creches e pré-escolas
expressam uma situação de emparedamento e desrespeito aos desejos do corpo, que se mostra
ainda mais grave em outros níveis escolares. Isto acontece porque o divórcio entre corpo e
mente é paradigmático: atravessa toda a sociedade e, conseqüentemente, as instituições
educacionais em todos os seus segmentos. Via da regra, a partir do Ensino Fundamental, as
crianças são afastadas de forma ainda mais radical do mundo da brincadeira, da vida ao ar
livre, estabelecendo-se um impasse entre o desejo das crianças e as normas impostas.
Meninos e meninas têm verdadeiro fascínio pelos espaços externos, porque eles são o lugar da
liberdade. Tudo indica que o prazer de estarem aí se deve ao fato de o tempo ao ar livre não
estar previamente esquadrinhado. As vivências ao ar livre suscitam encontros, favorecem o
exercício amplo da liberdade e possibilitam embates, oposições a movimentos individualistas,
sempre alimentados pelo sentido do "é meu", que se constitui fortemente na privacidade das
salas. Nos espaços externos, as crianças estão menos expostas aos regimes disciplinares.
48 .
O CORPO NA ESCOLA
Nesses espaços, o movimento do corpo não está capturado e a liberdade favorece a criação.
Nas salas há um campo de controle claramente predefinido, é mais fácil cortar a conexão com
os desejos e impor uma realidade em que as crianças se submetem aos objetivos da escola. O
trabalho de educação não convive com a liberdade de movimentos de corpo-espírito, porque,
no mundo ocidental, a infância é um tempo de preparação para a vida adulta, cujo sentido é a
inserção num modo de produção capitalista urbano industrial. Isto exige mecanismos de
controle. É por isto que, historicamente, a liberdade de movimentos está relacionada ao
recreio, justamente o momento em que os professores deixam suas funções para descansar,
tomar um café, relaxar. Vários teóricos têm relacionado a dicotomia aula x recreio a uma
dicotomia maior, entre atividade produtiva e lazer: divórcio típico do modo de produção
capitalista, em que o trabalho é a atividade principal. Reproduzindo a lógica da fábrica, na
escola, o tempo do recreio não tem importância para a pedagogia porque não é o tempo do
trabalho produtivo. Não está sob o foco da pedagogia porque não é lócus de aprendizagem
escolar. Seria, talvez, lugar de uma liberdade temida, porque difícil de controlar.
O que seria possível em termos de inovação pedagógica se os adultos se permitissem
acompanhar as crianças, seguir a trilha dos desejos delas? Na contramão do que é
hegemônico, esta postura exigiria uma crença na vida como vontade de potência, e, por outro
lado, uma concepção de conhecimento e de aprendizagem que não obedece a hierarquias, que
se processa de maneira rizomática, sem fronteiras (Deleuze, 2002). Nesta perspectiva, o
cuidar seria uma referência importante, porque:
(...) orienta o trabalho em relação a três ecologias (Guattari, 1990) e nos ajuda a avaliar: i) a
qualidade dos espaços/atividades relacionadas ao eu (ecologia pessoal); ii) a qualidade das
interações coletivas, relacionadas ao nós (ecologia social); e iii) a qualidade das relações
com a natureza (ecologia ambiental) (Tiriba, 2007, p. 49).
O desejo de construir uma nova qualidade nas relações de cada ser consigo mesmo (ecologia
pessoal) nos levará a inventar modos de educar/ensinar (Guattari, 1990), que possibilitem o
aprendizado da atenção às vontades e necessidades que Lowen (1991) chama de verdades do
corpo. Será necessário, então, ampliarmos os espaços e os tempos de movimentarem-se
49 .
O CORPO NA ESCOLA
livremente, assim como relaxar, meditar, estar atento à respiração, melhorar a alimentação,
cuidar da postura.
Se o objetivo é construir uma nova relação dos seres humanos com a natureza (ecologia
ambiental),
“(...) precisamos propiciar as crianças – e a nós mesmas – um contato cotidiano e íntimo
com a terra, com a água, com o ar, de tal maneira que sejam percebidos e respeitados como
fontes fundamentais de vida e de energia. Mas a proposta deve ir além de situações de
aprendizagem que são meros eventos. Não basta plantar uma árvore e difundir conceitos de
ciências naturais no dia nacional do meio ambiente: é preciso incorporar à rotina as
atividades de semear, plantar, cuidar e colher alimentos ou outros vegetais úteis à própria
escola” (Gouvêa e Tiriba, 1998).
Com o propósito de contribuir para a construção de uma nova ecologia social, o primeiro
desafio está em qualificarmos as relações entre adultos e crianças, criando espaços e rotinas
que favoreçam sentimentos de amizade, companheirismo, e solidariedade, entendendo que
estes são sentimentos que precisam ser aprendidos e exercitados no cotidiano, são conteúdos
que precisam ser introduzidos em nosso planejamento de trabalho.
Nesta linha, cozinhas, hortas, marcenarias, oficinas de produção e conserto de brinquedos
passam a ser assumidos como privilegiados espaços educacionais. Plantando, costurando,
preparando um canteiro, estaremos trabalhando Matemática, Ciências, Língua Portuguesa; e
ainda contribuindo para que, no processo de construção de saberes, o conceito assimilado seja
de conhecimento enquanto valor de uso, e não enquanto valor de troca (Oliveira, 1995).
Por fim, será necessário buscar a parceria das crianças nas decisões sobre a organização e na
decoração da escola, Pois, se as crianças são sujeitos de conhecimento e também de desejo, se
crescem e modificam seus interesses e possibilidades, também os espaços podem ser por elas
permanentemente modificados.
50 .
O CORPO NA ESCOLA
Bibliografia
DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
ESPINOSA, Baruch de. Ética. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os
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HOEMKE, Ângela. Ambiente de qualidade na educação infantil: elementos
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LIMA, Mayume S. “A cidade e a criança”. São Paulo: Nobel, 1989.
LOWEN, Alexander. “Amor e orgasmo”. São Paulo: Summus, 1991.
MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento.
Campinas, SP: Editorial Psy II, 2002.
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pedagógica. Rio de Janeiro: Papéis e Cópias de Botafogo e Escola de
Professores, 1995.
TIRIBA, Léa. “Crianças, Natureza e Educação Infantil”. Tese de Doutorado. Rio de
Janeiro: PUC-Rio, 2005.
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In: "Profissionais de educação infantil e(m) Formação". KRAMER, Sonia (org.).
51 .
O CORPO NA ESCOLA
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educação infantil”. Revista Presença Pedagógica, v. 13, n. 76, jul./ago. Belo
Horizonte: Editora Dimensão, 2007.
TRONTO, Joan C. “Mulheres e cuidados: o que as feministas podem aprender sobre
moralidade a partir disso?” In: JAGGAR, A. e BORDO, S. Gênero, corpo e
conhecimento. Rio de Janeiro: Record / Rosa dos Tempos, 1997.
Notas:
Professora ambientalista e jornalista. Coordenadora do Setor de Educação
Ambiental do NIMA (Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente/NIMA) da PUCRio. Professora do Departamento de Educação e do Curso de Especialização
em Educação Infantil desta mesma Universidade. Assessora da Secretaria
de Educação de Santo André/SP. Consultora desta série.
2
Por exemplo, no campo da Educação Infantil, o MEC elaborou o documento
Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (2006),
contendo referências de qualidade que promovam a igualdade de
oportunidades educacionais e levem em conta diferenças, diversidades e
desigualdades do nosso imenso território e das muitas culturas nele
existentes. No site do MEC, o documento Parâmetros Básicos de InfraEstrutura para Instituições de Educação Infantil (2006) apresenta
estudos e parâmetros nacionais relacionados à qualidade dos ambientes
das Instituições de Educação Infantil para que estes se tornem promotores
de
aventuras,
descobertas, desafios,
aprendizagem e
facilitem as
interações. Ver www.mec.gov.br
52 .
O CORPO NA ESCOLA
PROGRAMA 5
O CORPO NA ESCOLA: EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS
O corpo nosso de cada dia
Adrianne Ogêda Guedes1
O corpo traz uma história, uma espécie de memória, nos tendões, nos órgãos, no padrão da
respiração. Memória afetiva dos tempos de infância, memória muscular do desenvolvimento
motor nos primeiros anos de vida, e também memória de cada tombo, cada salto, cada
cambalhota, cada dança (Vianna e Castilho, 2002).
(...) É preciso perceber a necessidade de desenvolver uma cumplicidade com o próprio
corpo, a fim de que este se transforme num aliado do ser humano na busca por uma
sociedade e uma educação melhores. Tem-se consciência de que a essência da
aprendizagem está no saber se relacionar com o próprio corpo a partir do corpo do outro
(Stefano e Amaral, 2005).
Inicio nosso texto-diálogo relatando algumas cenas que provocam reflexões. Deixemos-nos
envolver pelas situações que evocam, para que possamos identificar nessas situações, cuja
ocorrência é tão corriqueira na nossa vida de professores, o lugar do corpo e do movimento e
os dilemas que os acompanham. Assumimos aqui uma atenção à educação integral das
crianças, o que, portanto, inclui o corpo e suas expressões como dimensões fundamentais.
Para tal, é preciso “instituir práticas de trabalho que não fragmentem o sentir do pensar;
práticas atentas às vontades do corpo, que não aprisionem os movimentos, ao contrário,
ajudem as crianças a expressarem ‘a dança de cada um’, isto é, ‘o jeito de ser, que é, em
outros termos, a expressão de nossa psique, de nossa alma” (Tiriba e Robin, 2003 e 1997).
Cena 1 – “O movimento limitado”: A mãe chega ao fim da tarde, vem buscar seu filho de
dois anos. O menino pula alegremente de uma pequena mureta para o chão, entre risos e
53 .
O CORPO NA ESCOLA
contentamento. A mãe, com expressão assustada, se alarma e, dirigindo-se para a professora
diz: “É muuiiito perigoso! Ele não pode fazer isso! Vou chamar o pai dele para ver!”.
Cena 2 – “A dificuldade em experimentar mudanças”: Duas professoras de Educação Infantil
que trabalham numa mesma sala e grupo discutem acaloradamente a mudança de posição da
mesa da sala. Uma delas defende que a troca tem vantagens, abre espaços de circulação para
as crianças. A outra, por sua vez, pondera que não vai ser bom, vai dar confusão, não haverá
lugar para todos se sentarem. Chegam a um meio termo, experimentam a troca da tal mesa. A
mudança é positiva, dá um novo ritmo ao trabalho, abre novas possibilidades.
Cena 3 – “As rotinas e espaços infantis”: A equipe planeja um dia diferente. Nesse dia, ao
invés de as crianças ficarem cada qual em sua sala com seu professor, circularão pela escola.
As salas estarão equipadas com diferentes materiais e estímulos e, elas terão a possibilidade
de percorrer todos os espaços ao longo do dia, com o apoio de alguns educadores. Para pensar
esse “dia diferente”, muita conversa, muitas preocupações por parte da equipe. A experiência
surpreende, as crianças têm mais autonomia do que se esperava.
Cena 4 – “Relação com as crianças ou ‘controle de turma’?” - A professora está trabalhando
com crianças do Ensino Fundamental. Ela dispõe de uma forma diferente o mobiliário, a
atividade envolve movimento das crianças, troca, diálogo. Não é uma turma “silenciosa”. A
inspetora passa pela sala, faz expressão de estranhamento e comenta, em outro momento, que
a professora “não tem domínio de turma”.
Muitas são as cenas vividas ao longo de minha vida em espaços educacionais que me vêm à
lembrança e que trazem as questões do corpo, do espaço e do movimento no cotidiano da
educação institucionalizada. Cenas que revelam aspectos recorrentes do cotidiano e que dizem
respeito às idéias que orientam nossa prática diária com crianças. Interessa-nos refletir sobre
tais cenas, enfocando o lugar do corpo no espaço educacional e as interdependências entre
este e suas relações com o espaço físico e relacional.
54 .
O CORPO NA ESCOLA
Quais são os modelos de “sala de aula” que estão entranhados em nosso imaginário
(construídos em nossa própria história e formação)? Como estes convidam (ou não) ao
movimento, à experimentação? O que é permitido e o que é proibido ao corpo em tais
espaços? E nós, professores, como dispomos de nosso próprio corpo no dia-a-dia? Na relação
com crianças e conosco mesmo? Sentamos no chão? Vivenciamos jogos corporais com as
crianças (Embolamo-nos com elas? Oferecemos nosso corpo como espaço de contato e apoio
a brincadeiras, aconchegos?) Experimentamos trocar de lugar objetos e móveis? Organizamos
nichos que convidem a diferentes utilizações por parte da criança? Que práticas fazem parte
de nosso cotidiano, nas quais é possível reconhecer possibilidades de movimento espontâneo?
Como as repetições e rituais rotineiros levam à formatação do movimento, empobrecendo a
criação e a expansão de nossa capacidade de expressar-nos via corpo? Perguntas que nos
levam a refletir sobre nossa postura diante de nosso próprio corpo e movimento e,
conseqüentemente, sobre como lidamos com o corpo e o movimento da criança. Perguntas
que conduzem à reflexão sobre os princípios que orientam nossa prática pedagógica. Tendo-as
como guia e provocação, analisemos as cenas que apresentamos neste texto.
Cena 1 – “O movimento limitado”
Quando recebemos uma criança numa instituição educacional, seja ela pública ou privada,
recebemos de fato uma família inteira, com seus valores, cultura, idéias preconcebidas e
expectativas com relação à escola e/ou Instituição de Educação Infantil. Nessa cena, a mãe
revela uma relação de zelo com seu filho que se expressa no controle e na limitação de seu
movimento. Para ela, movimento é risco, gera insegurança e a deixa exasperada. No caso em
especial da criança dessa cena, era possível reconhecer no seu próprio movimento, em outras
situações do cotidiano, uma certa retração. Correr, saltar, embolar-se fisicamente com os
amigos eram experiências que ela custou a se permitir. É possível pensar, no que nos
apoiamos em Wallon (2007), o quanto nos constituímos em nossos primeiros anos de vida
nessa díade mãe-filho/a (que podemos ampliar para adultos de referência-filho/a). Quando
experimentamos nossas primeiras reações, expressões, movimentos, é a resposta do adulto de
referência que vai nos dando um retorno sobre o sentido de nossa expressão, constituindo-o.
O adulto nos apóia no processo de nomear emoções e impressões acerca do mundo e de nós
55 .
O CORPO NA ESCOLA
mesmo. Quantos de nós já não presenciamos crianças que, ao caírem, olham para o(s)
adulto(s) e, dependendo da reação que seu tombo provoca neste(s) – apreensão, susto, excesso
de zelo – o choro pode ser mais intenso e angustiado, ou mais tranqüilo.
Para nós, educadores, lidar com famílias é lidar com visões que nem sempre são semelhantes
às nossas, o que nos leva a buscar espaços de diálogo. Se tivermos como foco a família como
parceira e a promoção da saúde infantil, é necessário que possamos abrir espaços de escuta,
compreender os medos que cercam aquela família e que se revelam em atitudes de um zelo
por vezes excessivo e limitador da expressão e expansão infantil. Além de escutar, é
fundamental convidar os familiares a refletirem sobre o que está em jogo: o desenvolvimento
pleno da criança, a descoberta de seu corpo e do movimento, o fortalecimento de sua
capacidade de explorar, com o movimento, o espaço e as possibilidades corporais de que ela
dispõe (e ampliá-las). Descobrir, explorar, ampliar são ações que só podem acontecer num
contexto que PERMITA o movimento. É claro que cabe ao educador garantir uma exploração
segura, porém o impedimento dessa exploração, para “preservar” a criança de um possível
tombo ou machucado, poderá preservá-la não apenas de acidentes, mas da própria vida.
Ramos (2007), em seu livro sobre a pedagogia do corpo de Angel Vianna (bailarina que
construiu uma metodologia de trabalho corporal apoiada na consciência do movimento),
realça:
“É pelo movimento que exploramos e descobrimos o mundo. Necessitamos tocar, mover
objetos, lançá-los no espaço, girar, nos colocar em cima e embaixo, dentro e fora deles para
realmente conhecê-los, descobrir suas estruturas, formas, direções e volumes” (Ramos,
2007, p. 35).
É possível desfilar inúmeras situações em que tendemos a limitar o movimento da criança.
Não apenas no que diz respeito ao próprio movimento em si, mas à exploração de materiais.
Tradicionalmente cobrimos as crianças de aventais para pintar, tentamos evitar que se sujem
ao máximo, pedimos a elas que escutem histórias sentadas, inquietamo-nos com seus
movimentos, exigimos seu imobilismo. Ao corpo é permitido o movimento nos momentos
56 .
O CORPO NA ESCOLA
dirigidos: as aulas extras, as atividades psicomotoras, os momentos “livres”. Desse modo,
vamos cunhando um cotidiano em que a espontaneidade perde seu espaço, em que o corpo
conforma-se a uma postura mais estática e em que, conseqüentemente, vamos nos
distanciando do conhecimento de nossas dores, apoios, articulações, desejos de movimento
que se encolhem e amoldam-se às horas estabelecidas pela instituição. Fomos formados
entendendo que a atitude corporal que é própria da escola é manter os alunos sentados, os
“corpos dóceis” (FOUCAULT, 2003), e essa imobilidade, exigida e apreciada pelo professor,
é sinal de obediência. Tal perspectiva vai contra a necessidade do corpo, o movimento nos
leva ao conhecimento e à conscientização de nosso próprio corpo, considerado a base do
próprio “impulso de vida” (Ramos, 2007).
A mobilidade do feto, por exemplo, surge como um impulso primitivo, aparentemente sem
finalidade, demonstrando um prazer no movimento por si só; Angel procura a volta dessa
espontaneidade, perdida durante a vida, para que possamos reconquistar movimentos
esquecidos e descobrir novos (RAMOS, 2007, p. 34).
Nesse sentido, a Cena 1 nos convida a pensar na necessidade de um diálogo estreito com
famílias, a uma observação atenta às crianças e às suas expressões corporais, que se
evidenciam na forma como tomam parte de jogos, relacionam-se com seus pares, exploram
espaços, lidam conosco e consigo próprias. A aproximação com as famílias precisa ter em
vista a necessária compreensão mútua da imperiosidade da permissão ao movimento infantil,
necessidade vital para um corpo que cresce e descobre o mundo. Além dessa perspectiva,
pensar na cena em questão é pensar também a respeito de como proporcionamos,
acompanhamos, instigamos as crianças a brincarem, conhecerem, expandirem seus corpos e
movimentos, mantendo-nos como referência de segurança e acolhimento, apoiando a criança
na construção de uma relação confiante com seu corpo.
Cena 2 – “A dificuldade em experimentar mudanças” e Cena 3 – “As rotinas e espaços
infantis”
57 .
O CORPO NA ESCOLA
Herdeiros dos modelos tradicionais de salas de aula, que remontam às primeiras instituições
educativas brasileiras, não é raro encontrarmos, na grande maioria das salas de crianças do
Ensino Fundamental em diante, a clássica disposição de carteiras enfileiradas, quadro de giz
na frente, perto da mesa do professor. Murais podem ornamentar as paredes, com produções
diversas.
A influência da Escola Nova no Brasil em meados do século XX, apesar das críticas que
suscitou, trouxe inegáveis mudanças nos ambientes e na forma de compreender a criança, que
passou a ser reconhecida com um sujeito sensível, capaz de construir seu conhecimento, a
quem era preciso escutar e estimular adequadamente. Na Educação Infantil, experiências
como as da médica italiana Maria Montessori (1870-1952) revolucionaram o mobiliário
infantil e os espaços de trabalho nas instituições, com mesas e cadeiras adequadas ao tamanho
das crianças e diferentes nichos de espaços com objetivos distintos (cantos de jogos, de
material de vida diária, etc.). Freinet (1896- 1966) foi também uma influência importante,
retirando os tradicionais tablados que colocavam professores em um nível mais alto que
estudantes, e promovendo uma dinâmica de trabalho que envolvia a cooperação entre todos, a
circulação pela sala de aula, a exploração do entorno da escola (Santos, 2003).
Hoje, mesmo que os espaços tenham ganhado novos contornos e disposições, ainda adotamos
atitudes pouco criativas com relação à forma como compomos tais espaços. Nas creches,
berços em quantidade por vezes subtraem espaços de circulação; mesas em excesso impedem
a utilização do chão para brincadeiras e movimentos; áreas verdes, onde a criança possa ter
contato com a natureza, experimentando com seu tato as coisas do mundo, são exíguas ou até
mesmo inexistentes. Mais do que as próprias limitações dos espaços, vale pensarmos na
“vida” que ocupa esses espaços. Modificamos a disposição dos móveis de acordo com
desejos, necessidades, curiosidades? Permitimos às crianças um uso criativo de móveis,
experimentando funções novas, diferentes das tradicionais, em que as mesas possam virar
casas, carros, pontes e as cadeiras sejam trens, torres, e o que mais a imaginação e a ação
infantis criarem?
58 .
O CORPO NA ESCOLA
Essas Cenas 2 e 3 nos remetem a essa nossa rigidez na ocupação dos espaços cotidianos, à
nossa dificuldade de vê-los como móveis, como espaços flexíveis que precisam dialogar com
nossas necessidades e originais desejos de experimentação. Para isso, vale lembrar que nos
cabe ter em conta nosso foco principal: possibilitar às crianças oportunidades ricas de
vivenciarem com seus corpos e movimentos os espaços, encontrando neles anteparo para seus
impulsos e demandas de descanso, pesquisa, experimentação, criação. Convite à autonomia
de, também nós, olharmos para o entorno com “olhos de criança”, inaugurando possibilidades
insuspeitas de vida e movimento.
Para que este corpo possa se expressar de forma mais livre, é preciso que a escola se abra a
esta possibilidade, estabelecendo espaços e tempos que favoreçam tal construção. No entanto,
sabemos que a estrutura escolar, de um modo geral, é erigida em uma dura organização do
tempo e do espaço. Quanto às oportunidades de movimentação neste contexto escolar, é
também bem possível que nos lembremos de que, durante grande parte de nossa rotina, nos
mantínhamos sentados, corpos estáticos, movimento controlado. O cotidiano da escola era (e
é ainda em muitas de nossas escolas) regido pelo tempo do relógio: hora do lanche, hora do
recreio, hora das aulas específicas... Tempo ao qual nosso corpo vai se adaptando,
gradativamente, até amoldar-se a ele.
Refletir criticamente nas Cenas 2 e 3 é repensar os tempos e espaços e ocupá-los
criativamente, permitindo o movimento, experimentando inovações, tornando-os espaços de
vida e criação.
Cena 4 – “Relação com as crianças ou ‘controle de turma’?”
Modelos do que é o comportamento de um grupo que tem um professor com “bom domínio
de turma” estão entranhados em nós. Escolas voltadas, a maior parte do tempo, para
atividades de ensino dos conteúdos socialmente organizados, seguindo uma estrutura de aula
verbalista, ou seja, em que o professor fala e o estudante escuta (e repete, confirmando o
aprendizado). Somos filhos desse modelo de escola.
59 .
O CORPO NA ESCOLA
A escola faz parte de um contexto histórico e social amplo que diz respeito à própria
concepção de conhecimento que a orienta, desde a época de sua criação. Conhecimento que
divorcia saber popular de saber erudito, saber do corpo do saber racional, colocando em pólos
distintos tais dimensões. Instituições que nascem com vocação para modelar os sujeitos, as
escolas e suas práticas partem do princípio de que o silêncio e a quietude dos corpos são
condições fundamentais para que se dê o aprendizado.
A rigidez do espaço e da própria relação professor e estudante intensificam-se quanto mais a
criança cresce. Amarrada à idéia de um extenso currículo cujos conteúdos precisam ser
“transmitidos” às crianças, a escola de Ensino Fundamental reserva menos tempo ainda –
comparando com a Educação Infantil – para o jogo, o brincar, os espaços de encontro. Tais
modelos – de uma sala de aula bem estruturada e de uma concepção de ensino que se dá pela
transmissão – estão apoiados numa visão de mundo, de relação com o corpo e o conhecimento
muito específicos.
O movimento na escola tem sido visto, de um modo geral, de duas formas. Uma espécie de
bagunça, sinal de descontrole da turma, agitação, dispersão. O movimento não está incluído
nas práticas pedagógicas. Nesta concepção, entende-se que o corpo deve-se manter quieto e os
movimentos contidos, pois só desta forma o aprendizado pode-se dar.
Outra visão é a assumida, muitas vezes, pelas aulas ligadas ao corpo, tais como as práticas
esportivas ou exercícios. Nestas propostas de trabalho, a ênfase é dada à preparação física, ao
treinamento motor e ao aprendizado das regras. Colocamos em questão tais visões, apontando
para a necessidade de olhar para o corpo e suas expressões de forma diferenciada, apoiando a
presença do movimento, incluindo o corpo em nossas práticas pedagógicas. A respeito desta
visão do movimento na escola, que se restringe muitas vezes às aulas de Educação Física, o
professor de Educação Física Marco Santoro (2005) ressalta que:
(...) As conseqüências dessas relações na escola se estabelecem de uma forma um tanto
quanto estranhas, mas de tão cotidianas, de tão comuns, acabam por se “naturalizarem”,
com a escola oferecendo um espaço para o corpo se expressar apenas nas aulas de educação
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O CORPO NA ESCOLA
física, como se não houvesse expressão corporal, gestos, e movimentos nos outros
momentos e espaços da escola. “As relações entre as crianças e o seu espaço escolar ficam
reduzidas à quadra de esportes, com tempo limitado e com, no máximo, dois encontros por
semana” (SANTORO, 2005).
No entanto, vemos que a escola se organiza em torno de práticas e rituais que direcionam e
controlam o corpo e o movimento da criança.
Em função de sua tarefa disciplinadora, a escola, desde tempos nem tão remotos assim,
lançava mão, inclusive, de castigos corporais. O corpo disciplinado era aquele do silêncio, da
imobilidade, do controle dos movimentos. O corpo que obedecia às prescrições adultas, que
se amoldava às regras socialmente impostas.
Quando a escola nega a expressão corporal do indivíduo, esta instituição está negando a
própria criança, pois o sujeito é aquilo que seu corpo é, ou seja, as emoções, os
movimentos, a razão... É impossível separar o movimento das outras habilidades, pois
somos um corpo uno. (...) A educação deve assumir a criança em seu aspecto cognitivo,
emocional, social e corporal (Thais Guimarães Vaz, 2005).
A escola se constituiu tendo, como uma de suas tarefas, disciplinar mentes e corpos,
moralizando e padronizando os comportamentos, de modo a que eles se curvassem às regras
sociais vigentes. Certamente, desde sua emergência até os dias de hoje, muitas coisas se
transformaram. Hoje, qualquer professor tenderá a afirmar que o corpo não deve ser tolhido,
que na escola é preciso haver espaço para expressão e liberdade de movimentos. No entanto,
mesmo assim, sabemos que a escola ainda guarda marcas de sua tarefa disciplinante e
controladora. Como este controle se expressa, hoje, nas relações entre professores e alunos?
Nas práticas escolares? Na disposição dos espaços físicos das salas de aula? Nas rotinas? Nos
discursos? No movimento dos professores e das crianças? Como o corpo tem ocupado os
espaços escolares? Qual o seu lugar? Quais os seus limites e possibilidades?
61 .
O CORPO NA ESCOLA
Diante de um currículo que se baseia num enfoque racional, o movimento corporal é
entendido como desordem, bagunça, dispersão. Pude observar que a noção de disciplina na
escola é entendida como “não-movimento”. As crianças educadas e comportadas eram
simplesmente aquelas que não se moviam. O excesso de disciplina na escola começava no
horário de entrada, onde as crianças deveriam se dirigir à fila de sua turma e ao seu lugar,
marcado por ordem e tamanho, e a ordem do não movimento prevalecia durante todo o
horário escolar, terminando somente na hora da saída, que era o momento em que eu via
que elas ficavam mais alegres. O dirigente do turno, no momento da fila, falava no
microfone palavras como “cobrir” e “firme”, para que os estudantes ficassem imóveis e em
silêncio. (...) Lembrei-me do regime militar. Diante dessa expressão de alegria que observei
nestas crianças, no horário da saída, perguntei a uma delas o porquê de tamanha felicidade
e a aluna me respondeu, rapidamente: “Fico feliz porque a escola é chata” (Thais
Guimarães Vaz, 2005).
Vemos, então, que o desafio da escola e do professor consiste em refletir sobre as relações
que se estabelecem, em seu cotidiano, entre a expressão de cada um, seu movimento e seu
corpo. Garantir que a disciplina não seja um sinônimo de imobilidade corporal, mas, sim, seja
fruto de uma construção coletiva, é tarefa desejável. Neste sentido, o papel da escola é
promover mudanças em uma sociedade heterogênea, é a “busca de qualidade de vida para
todos, justiça social e que promova a convivência entre as diferenças, que respeite as
expressões culturais de cada grupo social e, neste caso, o corpo necessita de ser ‘libertado’
para que as pessoas possam desenvolver os seus potenciais, as suas compreensões de mundo”
(Santoro, 2005).
Para assumir esta tarefa – de abrir a escola para a expressão do corpo – é importante que
professor de sala de aula estimule as crianças a descobrirem os espaços que a escola
proporciona, não restringindo seu uso aos momentos de recreio. O pátio, a própria sala e os
demais espaços podem e devem ser explorados para brincadeiras, jogos e até mesmo para
propostas de pesquisa e estudo, relacionando conteúdos das diversas disciplinas por meio das
atividades corporais. Desta forma, o professor estará contribuindo para ultrapassar os
obstáculos que a escola reproduz em seu meio e ensinar também pelos gestos, pelas músicas,
pelo corpo. Conhecer os gestos e as expressões corporais de cada criança é uma forma de
62 .
O CORPO NA ESCOLA
conhecê-la integralmente, estreitando nossos laços com ela e ampliando nossa possibilidade
de comunicação e troca.
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O CORPO NA ESCOLA
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UNESA, 2005.
VIANNA, Angel e CASTILHO, Jacyan. Percebendo o corpo. In: GARCIA, Regina
Leite (orgs.). O corpo que fala dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: DP&A,
2002.
VIEIRA, Nuelna. Corpo e movimento na educação infantil. Programa de Formação
Inicial do Professor da Educação Infantil em Exercício – PROINFANTIL.
Brasília: Ministério da Educação/ Departamento de Políticas da Educação
Infantil e do Ensino Fundamental, 2004.
Nota:
Doutoranda em Educação UFF-RJ, Psicóloga (UFRJ), bailarina formada pelo
curso técnico da Escola Angel Vianna. Atualmente atua como professora do
curso de pós-graduação em Educação Infantil da PUC-RJ e de graduação em
Pedagogia da UFRJ, UCAM e UNESA.
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O CORPO NA ESCOLA
Presidente da República
Luís Inácio Lula da Silva
Ministro da Educação
Fernando Haddad
Secretário de Educação a Distância
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Abril de 2008
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