O corpo no espaço
Natan Arend
Arquiteto e Urbanista, Brasil. E-mail: [email protected]
Resumo: Como modelo estruturador de mobilidade urbana, as vias públicas orientam o transeunte a
um destino através de um rigoroso esquema espacial de fluxos estratégicos; e a partir deste sistema
toda tática urbana é formulada pelos pedestres, que não necessariamente se adequam a alguma
estruturação. Qual é o lugar que o corpo toma nesses ambientes de circulação? Como a cidade pode
utilizar do transeunte como retórica de práticas urbanas e sociais? É possível resignificar espaços
através da presença do corpo? Os pedestres moldam espaços através de seus passos. Tecem lugares
formando um sistema real, cuja existência faz efetivamente a cidade. Segundo Michel de Certeau
nesses passos não existe lugar. O movimento dos passos é por natureza um não lugar. O corpo
(através do conceito de utopia de Michel de Foucault) no espaço (conceito de Michel de Certeau)
pode convergir à teoria do caminhar como inclusão do corpo na cidade além de contribuir para um
planejamento de mobilidade focado também na tática e não somente em estratégia (1994,
CERTEAU).
Palavras-chave: presença do corpo; mobilidade urbana; pedestres; Michel de Certeau; Michel
Foucalt.
Abstract: As structural model of urban mobility, the public pathways guides the passer-by to a
destination through a rigorous spatial scheme of strategic flows; and from this system on, all the
urban tactic is formulated by pedestrians, that not necessarily suit themselves into any structure at all.
What is the place that the body takes at these movement environments? How the city can use the
passer-like as rhetoric of urban and social practices? It is possible to resignify the spaces through
body presence? Pedestrians shape spaces through their footsteps. Weave places forming a real
system, whose existence actually makes the city. According to Michel de Certeau at these steps there
is no place. The movement of the steps is by nature a non-place. The body (through the concept of
utopia from Michel Foucault) in space (concept of Michel de Certeau) can converge to the theory of
walking as inclusion of the body in the city as well as contribute to a mobility planning focusing also
in tactics and not only in Strategy (1994 CERTEAU).
.
Key-words: body presence; urban mobility; Pedestrians; Michel de Certeau; Michel Foucalt.
O indivíduo que habita o ambiente urbano participa de diversas estruturas organizacionais em
diferentes conjunturas, sejam elas de apropriação do solo pelo mercado imobiliário ou por ritos de
passagem através dos modais de transporte. As estruturas urbanas transferem ao indivíduo
subjetivações, logo este artigo busca fazer uma reflexão conceitual sobre a presença do corpo na
cidade e as suas relações com o movimento. “A abordagem fenomenológica do espaço e do corpo
vivido mostra-nos seu caráter de inseparabilidade (...) quando dirijo um carro, minha atração pelo
espaço frontal equivale a colocar entre parênteses meu esquema corporal” (2006, GUATTARI). O
corpo em movimento é o tempo todo reflexo, é espelho, e assume diferentes formas que se atualizam
paralelamente ao tempo e ao espaço, que por fim, se tornam precursores de todos os tipos de ações.
Qual é o lugar que o corpo toma nestes ambientes de circulação? Como a cidade pode utilizar do
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transeunte como retórica de práticas urbanas e sociais? É possível resignificar espaços através da
presença do corpo?
O filósofo Michel Foucault em seu livro O corpo utópico, as Heterotopias, primeiramente afirma que
o corpo é topia implacável, pois está aqui, sempre presente, nunca em outro lugar, não se pode
deslocar sem ele, nem deixá-lo por breve espaço de tempo e em oposição, a utopia é um lugar fora de
todos os lugares, onde o corpo estaria sem corpo, quase como alma: veloz, colossal, transparente e
luminosa. Logo, o corpo nunca poderá ser utópico.
Porém, muitas vezes as utopias são destinadas a apagar corpos, como as máscaras micênicas de ouro
colocadas sobre os corpos de reis defuntos ou as múmias egípcias. Nessas manifestações transfere-se
o corpo para um objeto utópico, que subsequentemente, transfere para o corpo glórias, poderes,
dramaturgia e tempo eterno. O autor afirma então que em virtude dessa utopia o corpo desaparece
como vela que se assopra. Eis o momento onde uma ideia, ou um culto através de um objeto cria um
corpo sem corpo.
O filósofo depara-se então com o pensamento, naturalmente transparente e imponderável, que projeta
o corpo, base de todo fulcro do pensar, sempre para fora, para o além, para o imaginário. Foucault
retifica-se então dizendo que, para que o eu seja utopia basta que o eu seja corpo e que as utopias não
são voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo. As utopias nascem do próprio corpo e, em
seguida, talvez, retornem contra ele. O corpo “está, de fato, sempre em outro lugar, ligado a todos os
outros lugares do mundo e, na verdade, está em outro lugar que não o mundo.” (2013, FOUCAULT).
O transeunte, possuidor de um corpo tópico e utópico está sempre conectado tanto a fatores
conscientes como obstáculos, quanto inconscientes como à escolha de um caminho ao invés de outro,
ambos são importantes para entender o impacto das práticas de mobilidade no tecido urbano. Segundo
reportagem no caderno Cidades/Metrópole do jornal O estado de São Paulo, pesquisas da Escola
Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli), com base nos dados do mercado imobiliário,
mostram que a partir de 2002 até hoje, cerca de 25% de toda a área construída no município de São
Paulo é destinada à garagens. Isso gera um desiquilíbrio urbano sem precedentes quando considerado
o déficit habitacional total absoluto do país, segundo dados estatísticos da Fundação Pinheiro em
parceria com o Ministério das cidades de 2012 o déficit é de cerca de 5.4 milhões de domicílios.
Porque há lugar para abrigar veículos e não para as pessoas?
Nas questões subjetivas do movimento do corpo no espaço, cabe utilizar dois conceitos de Deleuze e
Guattari descritos em sua obra Mil Platôs volume cinco: O liso e o Estriado. O espaço liso pode ser
comparado ao espaço do nômade, espaço direcional e não dimensional, os pontos estão subordinados
ao trajeto. Tendo como arquétipo o mar, o deserto e o feltro, o espaço liso necessita ser estriado, assim
como o mar necessita de coordenadas para navegação. O espaço estriado, pelo contrário, se forem
colocadas às questões de oposição simples, é o espaço do sedentário, o dimensional, o tecido
constituído por elementos paralelos e fechado por pelo menos um lado, onde os trajetos ficam
subordinados aos pontos. As cidades podem ser consideradas os organismos mais estriados que o
homem já moldou e se pode fazer analogia desses conceitos com as formas de se movimentar no
espaço urbano. Essa variação acontece, dentre outros, devido à velocidade de locomoção, a
adaptabilidade do meio de transporte e a presença do corpo.
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Enquanto a velocidade de locomoção, uma pessoa utilizando veículo motorizado em velocidades mais
elevadas se movimenta de forma lisa, pois não mantém relação espaço temporal suficiente para gerar
impactos múltiplos de subjetividades com o lugar, ou seja, alisa o espaço urbano com sua passagem.
Já o pedestre se movimenta de forma estriada, quase como máquina de urdidura, utiliza a complexa
estrutura urbana para uma locução, atribuindo ao lugar diferentes significados que são atualizados
momentaneamente, ponto a ponto, sempre subordinados a uma enunciação presente.
Em relação à adaptabilidade do meio de transporte, o usuário do transporte público e o motorista de
um automóvel particular não podem simplesmente abandonar a estrutura (leis de trânsito, vias e
veículo) para realização de um desejo repentino de tomar um café em algum lugar. Já um ciclista, por
exemplo, é ambíguo, se movimenta de forma lisa (de corpo não presente) e de forma estriada (de
corpo presente) ao mesmo tempo, pois o ciclista, além de estar mais exposto as mazelas urbanas, pode
virar pedestre em segundos carregando sua bicicleta ao lado. Meios de transporte que vão solucionar
os problemas de mobilidade urbana devem ser híbridos, não dependerem de estruturas complexas para
o funcionamento, e devem conversar e convergir para a utilização universal sem exclusão.
Relativo à presença do corpo, o passante pode ter a seu alcance todos os intermédios do caminho, pois
seu corpo está ali, está presente, mesmo que de passagem o passante constitui presença relativa aos
lugares. Nota-se a ideia de potencial de presença para a inferência de lugar no espaço. Uma pessoa
que está acostumada a percorrer o ambiente urbano de forma motorizada limita suas relações com a
cidade a elementos específicos planejados e muitas vezes relacionados à máquina de locomoção como
estações de trem, estacionamentos, metrôs, aeroportos, postos de gasolina, lojas de conveniência,
restaurantes de drive thru, ou seja, limita-se as práticas do cotidiano através de uma máquina e alisase todo o ambiente outro. O pedestre, pelo contrário, está totalmente exposto ao espaço do outro, a
todo tecido urbano, com a facilidade do livre acesso a todas as interpeles dos edifícios e meios de
transporte. Sendo meio de locomoção universal, caminhar é disponível a todos sem delimitações
econômicas e sociais. O pedestre tem poder de estriagem do espaço urbano, pois infere nele
significados a cada momento e impõe nele as multiplicidades do movimento.
Uma pessoa caminhando em uma rua movimentada é habitante nato do espaço. O conceito de espaço,
segundo Certeau, se configura pelo ato de movimento em si, pelos fluxos, sendo o lugar praticado. Já
o lugar exprime uma situação fixa, física referenciada. Logo, a rua é espaço, pois nela se pratica o ato
de passar, e se torna lugar, ou seja, ganha significado de lugar através dos passos dos passantes.
O pedestre não constitui o movimento como indivíduo, pois o espaço é sempre fluxo, exprimindo uma
ideia de não sujeito, de participante de uma estrutura maior, que pode ser representada como n-1. “n-1
(é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da
multiplicidade a ser construída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma.” (1997
,DELEUZE & GUATTARI).
Uma estrutura rizomática se aplica bem ao movimento do pedestre na cidade, pois o mesmo está
exposto a tantas relatividades, que por mais que possa ser demarcado no mapa, seu movimento nunca
terá denominador comum. A soma dos passos dificilmente será igual no mesmo percurso, pois o
espaço urbano é tão polivalente e estriado, que decifrar a direção dos próximos passos de uma pessoa
em uma rua movimentada é quase impossível. Trata-se de linhas e não formas, de rede e não
estrutura, de potencial devir e não objeto consolidado.
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FIGURA 1 – Rizoma. Desenho do autor. (2015)
Quando o corpo se move é rizoma, é ponto de convergência onde os caminhos e espaços se cruzam.
Como alega Foucault: “Meu corpo é como a Cidade do Sol, não tem lugar, mas é dele que saem e se
irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.”. Este corpo em movimento, rizoma de uma
estrutura invisível aos olhos, entrega ao espaço urbano grandes responsabilidades ao mesmo tempo
em que infere sobre ele todos os códigos, estruturas, classificações e mazelas que seu corpo pode
convergir. Pode-se afirmar que de fato o pedestre está passível a realidade urbana construída, é através
dela que o corpo se move e se transforma.
A cidade com seus “edifícios e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas
produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de subjetivação.”
(1998, GUATARRI). A performance da companhia Austríaca Willie Donner Bodies in urban space
tem como intenção destacar a estrutura funcional da cidade e revelar a restrita possibilidade de
movimento, comportamento, bem como as regras e limitações impostas sobre os praticantes
ordinários da cidade. A inserção de corpos em locais inusitados motiva os expectadores a refletir
sobre seu comportamento ao se locomover e a seus próprios hábitos. Movimentar-se é ocupar o
espaço urbano e se relacionar com as subjetividades parciais, e quanto mais polinizadas por elementos
significantes é esta locomoção mais atento o indivíduo se torna do seu habitat.
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FIGURA 2 – Bodies in urban space. Fonte: Acervo digital Cie. Willi Dorner. NYC (2010).
Michel de Certeau lança dois conceitos no livro A invenção do cotidiano, que podem corroborar para
o entendimento de movimentos rígidos (estratégia) e de movimentos orgânicos (tática). Segundo o
autor estratégia se configura pela ação gerida pelo cálculo da manipulação das relações de força, ou
seja, pela circunscrição de um próprio num mundo enfeitiçado pelo poder do outro e tática é a ação
calculada pela ausência de um próprio, a autonomia não se garante por nenhum corpo externo, é a arte
do fraco, operada golpe a golpe, aproveita as ocasiões e delas depende.
O movimento peatonal é orgânico, ou seja, o pedestre utiliza da tática para se locomover e apesar de
ter a estratégia em mente do ponto de destino, as variáveis são as guias do movimento. Já o transeunte
que utiliza o transporte público sobre trilhos ou rodas ou veículo particular, se move estrategicamente
pela cidade utilizando de uma estrutura rígida e normativa que remove o passante do lugar de
passagem, sendo o lugar subordinado ao caminho.
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As abordagens relativas ao movimento de pessoas no ambiente urbano apontadas nesse artigo levam a
questionamentos sobre o movimento estruturado rígido e a importância do desvio a estrutura. A
metodologia que regula projetos de mobilidade urbana é focada em estratégias como forma única e
pragmática para realização do movimento entre ponto de origem e destino. Não se leva em
consideração no planejamento, o espaço para enunciação pedestre, logo, as cidades estão sendo
transformadas em organismos que não incitam o convívio corpo a corpo e a pluralidade, característica
intrínseca ao ambiente urbano.
Segundo Certeau caminhar possui tríplice função enunciativa: é um processo de apropriação (assim
como o locutor assume a língua), é uma realização espacial de lugar (assim como o ato da palavra é
uma realização sonora da língua) e implica relações entre posições diferenciadas (assim como a
locução verbal põe em jogo contratos entre os locutores). Ou seja, as práticas peatonais permitem a
apropriação do espaço público de forma mais igualitária, pois não há distinção de cor, credo, raça ou
posição social para o ato de caminhar, além de contribuir para um ambiente urbano com mais espaço
para ação espontânea e a co criação de lugares com múltiplos significados.
Quando não se caminha, praticamente elimina-se tudo que não é previamente planejado durante o
movimento, levando o indivíduo a um viver cotidiano artificial sem espaço para o inesperado e a
naturalidade espontânea do cotidiano. Talvez o ser urbano esteja se encaminhando para a extinção do
indivíduo pluralista em detrimento de um modelo estratégico, isso forma lugares urbanos estáticos
sem espaço para atualização bem como para novas utopias, pois toda utopia está necessariamente num
movimento futuro que necessita caminhar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALIER, Joan Martinez. Varieties of Environmentalism. London: Earthscan Publications Ltd, 1997.
CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas:
Papirus, 1994.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volumes 1, 4 e 5. São
Paulo: Editora 34, 1997.
GUATTARI, F. Caosmose um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1998.
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico; as Heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), v.23, 2012. Disponível em
<http://www.cbicdados.com.br/menu/deficit-habitacional/deficit-habitacional-no-brasil>. Acessado
em 23 ago. 2015.
BRANCATELLI, Rodrigo. SP: 1/4 da área construída é dos carros. O estado de São Paulo. São
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de
2012.
Disponível
em
<http://www.hamiltonleite.com.br/pdfs/estadao21032012.pdf>. Acessado em 23 ago. 2015.
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CIE.
WILLI
DORNER.
The
budies
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urban
spaces.
Disponível
<http://www.ciewdorner.at/index.php?page=work&wid=26> . Acesso em 23 ago. 2015.
em
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer ao professor do programa de pós graduação em planejamento urbano regional
na UFRGS, Paulo Reyes pela maestria em aterizar meus pensamentos em teorias que dialogam
diretamente com o pensar contemporâneo em relação ao indivídio e a cidade, bem como suas inter
relações . Ao querido diretor da faculdade de arquitetura e urbanismo da PUCRS Paulo Regal por me
instigar a produzir conhecimento e a desenvolver ideias que venham a colocar em pauta o atual
cenário da produção urbana. A Cibele Vieira Figueira, professora orientadora do meu projeto de
conclusão de curso focado em mobilidade na região entre Rodoviária e Mercado Público de Porto
alegre, que me contaminou de energias para transformar esse projeto em fonte de inspiração para
meus estudos subsequentes. A Hélio Scapin pelo seu esforço sem precedentes para colaborar em
minhas produções científicas discutindo e instigando novos olhares sobre meus próprios pensamentos.
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