ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL de 1803 a 1822: Um Olhar sobre a Vila de São José do Parayba. Maria Aparecida Papali, Maria José Acedo del Olmo e Valéria Zanetti1 “ É nas Vilas, sedes dos termos e das comarcas, que se concentram as autoridades (coloniais): ouvidores, juízes, câmaras e as demais. Era este o modelo do Reino (Portugal) e ninguém pensou em modificá-lo. Ou se tratava de uma Vila, então todas aquelas autoridades deviam estar presentes, ou não era Vila, e não tinha nada”2 Estudiosos do Brasil Colônia vêm de longa data discutindo a importância das Câmaras Municipais na organização administrativa das Vilas brasileiras em seus mais diversos aspectos. Caio Prado Júnior comenta o quanto é necessário historicizar as funções das câmaras no período colonial, pois, se hoje temos órgãos administrativos com funções bem definidas, isso não ocorria na colônia, onde as Câmaras Municipais se ocupavam das mais variadas incumbências, como por exemplo a fiscalização de todo modo de viver urbano, as relações mercantis, higiene e salubridade das vilas, o abastecimento de gêneros, entre outros.3 O preenchimento dos cargos era feito através de eleições, realizadas em média a cada três anos, quando eram escolhidos três ou quatro vereadores, dentre os “homens bons” da cidade; um escrivão, um procurador e um tesoureiro, além de alguns oficiais de câmara. Tais senhores reuniam-se uma ou duas vezes por semana, ocasiões em que deliberavam sobre os mais diversos temas do cotidiano local. As Atas da Câmara Municipal de São José dos Campos do século XIX encontram-se em bom estado de conservação e constituem-se em fontes de informação sobre a história da cidade no idos coloniais. Muito embora tais fontes oficiais tragam dados restritos sobre o cotidiano da cidade, é possível, através de seus registros, visualizarmos um pouco de sua dinâmica econômica e vida cotidiana. 1 Professoras e Pesquisadoras da UNIVAP, integrantes do Projeto Pró-Memória. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000 (Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro), pág. 312. 3 Idem, pág. 2 Foram analisadas 39 atas do período entre 1803 a 1822, essas atas diziam respeito à arrematação do estanco4 do comércio de bebidas da terra e "de mar em fora", isto é, bebidas do Reino - aguardente de uva, vinhos, azeite e vinagre - e das aferições dos pesos e medidas usados na vila. Com relação ao estanco do comércio de bebidas o arrematante pagava ao Estado um determinado valor - em 1804 correspondia a 82$000 réis - pelo direito de comerciar bebidas da terra e do Reino. Assim, qualquer um que quisesse vender bebidas deveria pelo direito de comerciar pagar a quem tivesse arrematado o estanco. Nas Atas da Câmara de São José isto é afirmado em duas ocasiões: em 1819 o estanco é arrematado por 91$000 réis, sendo o arrematante obrigado "a assinar os ramos dentro da vila a dez mil e no rusio e nas estradas pelo que se ajustar"5; e, em 1821 quando o estanco é arrematado por 110$000 réis sendo o arrematante "obrigado a vender ramos a toda e qualquer pessoa que queira avancar com ele"6. Livro de Ata No início do século XIX o Vale do Paraíba ainda mantinha-se tímido em suas atividades econômicas, a agroindústria exportadora tinha pouca expressão e o café – principal motor do crescimento econômico da região – só se desenvolveu como lavoura de exportação a partir de 1830; as cidades do vale buscavam na produção para o abastecimento uma oportunidade de 4 No Brasil Colonial, Estanco era o privilégio comprado da Coroa Portuguesa para se ter o direito de comerciar os mais diversos gêneros. 5 Ata de Câmara de 14/11/1819, ata 33, folha15, Livro de Atas da Câmara Municipal de SJC, Arquivo Público Municipal. 6 Ata de Câmara de 08/12/1821, ata 37, folha17, Livro de Atas da Câmara Municipal de SJC, Arquivo Público Municipal. atividade mercantil. Mafalda Zemella apontou a transformação das vilas do planalto paulista em abastecedoras de gêneros alimentícios e animais de carga para as Minas Gerais: A região planaltina transformou-se, nessa época recente dos descobrimentos [de ouro], na verdadeira retaguarda econômica das minas, privilegiada com relação ao Rio de Janeiro, já que esta capitania não dispunha de caminho direto para manter o intercâmbio com o hinterland aurífero, e também privilegiada com relação à Bahia porque esta fora proibida de negociar com as Minas.7 A vila de São José do Parayba era, dentre as demais da região, possivelmente a mais tímida e acanhada de todas. A descoberta das Minas Gerais, segundo Zemella, dinamizou todo o comércio de São Paulo e, seria de se supor que a onda tivesse atingido a Vila de São José que, mesmo acanhada tenderia a buscar o circuito comercial . É o que sugerem os dados levantados nas Atas da Câmara do município. No entanto, para uma afirmação categórica sobre a inserção da Vila de São José no mercado de abastecimento interno no início do século XIX, tornase necessário consultar outras documentações; contudo, não deixa de ser significativo o decréscimo do valor anual do estanco de bebidas entre os anos de 1806 e 1810 que poderia estar associado a um declínio do comércio junto com o declínio do ouro das Minas Gerais. Vilas Coloniais - Rugendas 7 ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento das Minas Gerais no século XVIII, 2ª ed., São Paulo: Hucitec, Edusp, 1990, p.63. Questões relacionadas à dinâmica econômica para fins de subsistência também podem ser vislumbradas com a leitura das Atas da Câmara de São José. Baseando-nos na análise das 39 atas foi possível identificar que apenas duas dessas atas diziam respeito ao fornecimento de carnes para a cidade. São as atas de 1804 e 1809, cujo arrematante foi Bernardino de Sena em ambas as ocasiões, sendo que na primeira o compromisso era o de matar reses quando pudesse e na segunda se comprometia a matar a cada 15 dias; a população auto-suficiente praticamente dispensava o abastecimento urbano. Talvez até por isso o restante das atas diga respeito às aferições a comércio de produtos de fora da vila. Outras questões, relativas aos hábitos, costumes e moléstias da população também puderam ser interpretadas com a leitura de uma única ata do período. O conteúdo da ata de 25 de dezembro de 1809 nos mostra que também a Vila de São José andava às voltas com o medo e repulsa causados pela presença de infelizes portadores de hanseníase, existentes em grande número na Capitania de São Paulo, os quais perambulavam de uma vila para outra, ao encalço de esmolas e caridade.8 Sabe-se que a partir do final do século XVIII a chamada “lepra” espalha-se pela capitania paulista, dando início a uma política segregacionista, implantada pelas autoridades locais. Os enfermos eram expulsos dos núcleos urbanos através de verdadeiros rituais de expulsão, ocasião em que recebiam algumas roupas e alimentos suficientes para alguns dias. Eram proibidos de executar qualquer tarefa e de conviverem com a comunidade em geral, pois o pavor milenar da doença contagiava até os corações mais cristãos.9 É o que se pode entrever da mencionada ata da Vila de São José, que não obstante ter sido elaborada na data máxima da cristandade (25 de dezembro) emite sinais claros de segregação aos portadores do “mal de Lázaro”. No texto da ata consta a proibição de que tais doentes não poderiam trabalhar na confecção de alimentos que seriam revendidos por comerciantes locais, resultando em multas e até prisão para aqueles que infringissem tais normas. A referida ata explicita que Manoel Rodrigues arrematou o estanco de bebidas por 63$000, entretanto lhe foi imposta uma condição: 8 Pesquisando Listas Nominativas de São Luís do Paraitinga do mesmo período, Maria José Acedo del Olmo também encontrou referência à moléstia na cidade. OLMO, Maria José Acedo del. Vila, Vida, Mercado: São Luís do Paraitinga (1800-1820) Dissertação de Mestrado: PUC/SP, 2000. 9 BERTOLLI FILHO, Cláudio. Vale do Paraíba: saúde e sociedade (1750-1822) São José dos Campos: UNIVAP, 1995. "...tão bem com a condisão de não aseitarem comestivas de cazas daqueles que tiverem o mal de Lázaro10 deque se constar que ouvese vendido comestivas das tais cazas ser o mesmo rematante prezo e condenado em seis mil reis e trinta dias de cadeia ficando sogeito as nosas postulase e correisoins surtindo o seu estanco de todas as bebidas de fora na forma do veo e custume..."11. É nesse cotidiano, entre aferições, vendas, comércio e medidas segregacionistas em relação aos doentes de hanseníase que a Vila de São José se apresenta para nós através de suas Atas de Câmara. Uma pequena vila, uma cidade em construção... BIBLIOGRAFIA BERTOLLI FILHO, Cláudio. Vale do Paraíba: saúde e sociedade (1750-1822) São José dos Campos: UNIVAP, 1995. OLMO, Maria José Acedo del. Vila, Vida e Mercado: São Luís do Paraitinga (1800-1820) Dissertação de Mestrado: PUC/SP, 2000. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000 (Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro) VAIFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento das Minas Gerais no século XVIII, 2ª ed., São Paulo: Hucitec, Edusp, 1990. 10 Hanseníase, lepra. Ata de Câmara de 25/12/1809, ata 14, folha 06, Livro de Atas da Câmara Municipal de SJC, Arquivo Público Municipal. 11