Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 8ª Edição ISSN:2178-3098 A LITERATURA AUTOBIOGRÁFICA NA TEORIA LITERÁRIA: Introdução às suas principais questões. Enaldo Pereira Soares1 RESUMO Este artigo pretende estabelecer os pontos de partida iniciais para o estudo sistemático e metodologicamente justificado da produção autobiográfica, a sua inserção, ou não, no universo da literatura e a confrontação das chamadas “escritas do eu” diante das questões que nortearam o debate teórico das últimas décadas nas pesquisas que tenham por objeto a literatura. Palavras-chave: autobiografia, teoria literária, crítica literária. ABSTRACT This article intends to establish the initial point of departure for the systematic study and methodologically justified autobiographical production, insertion, or not, the universe of literature and the clash of so-called "writing of self" on the issues underlying the theoretical debate of the last decades in research which have as their object the literature. Key words: autobiography, literary theory, critical theory. ____________________________________ 1 Enaldo Pereira Soares: Mestrando em Literatura pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES-JF); Professor de História da Rede Municipal de Juiz de Fora; Advogado; Pós-graduado em História Social (Universidade Federal Fluminense); Pós-graduado em Direito Público (Universidade Cândido Mendes); Endereço: Rua Izabel Bastos, 25, apt.401. Bairro Alto dos Passos. CEP 36025-050 – Juiz de Fora –MG; Emails: [email protected]; [email protected]; Fones: (32) 32169431, (32) 32126477, (32) 91160988; Artigos Originais. Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 8ª Edição ISSN:2178-3098 Tenho duas categorias de adversários. Os primeiros são os que não acreditam na verdade. Eles me olham com piedade. Os outros, os que acreditam na literatura. Eles me olham com indignação. (LEJEUNE, 2008, p.103) Este artigo pretende estabelecer os pontos de partida iniciais para o estudo sistemático e metodologicamente justificado da produção autobiográfica, a sua inserção, ou não, no universo da literatura e a confrontação das chamadas “escritas do eu” diante das questões que nortearam o debate teórico das últimas décadas nas pesquisas que tenham por objeto a literatura. Propomos como primeiro passo a possibilidade de se estabelecer definições e conceitos básicos, minimalistas que sejam, mas razoavelmente aptos a que se possa desenvolver a análise pertinente como um ponto de partida sobre o que se está a abordar. A espinhosa tarefa de definir o que é ou não é literatura possui longa tradição acadêmica, e dado que inevitavelmente se recai sobre uma petição de princípio, adotamos, à guisa de melhor critério, a definição a seguir: Literatura é literatura, aquilo que as autoridades (os professores, os editores) incluem na literatura. Seus limites, às vezes se alteram, lentamente, moderadamente, mas é impossível passar de sua extensão à sua compreensão, do cânone à essência. (COMPAGNON, 2010, p.45) Trata-se, portanto, de estabelecer a definição de literatura (no sentido de estabelecer os seus limites externos), mas não há como sequer esboçar o seu conceito (no sentido de seus elementos internos integrantes, sua composição e seu interrelacionamento), ou, em duas palavras, poder-se-ia, quando muito, estabelecer um conceito exógeno de literatura, dela afastando o que lhe é estranho, o que não lhe pertence, mas jamais um conceito endógeno (o seu funcionamento interno, a sua essência). Mas mesmo uma definição do que vem a ser literatura não avança muito por depender de um critério de autoridade conferida a duas instituições: os docentes (de Literatura, por óbvio) e os editores. Mas, o que se entende por autobiografia? Lançamos mão aqui da principal referência em matéria de autobiografia no mundo acadêmico literário em língua latina: Definição: narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade. (LEJEUNE, 2008, p.15) Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 8ª Edição ISSN:2178-3098 Por esta definição estão fora: as memórias, a biografia, o romance pessoal, o poema autobiográfico, o diário, o auto-retrato. Chegamos assim a uma delimitação de literatura autobiográfica a ser adotada nas páginas seguintes: toda narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência e incluída como literatura pelas autoridades. Os escritos autobiográficos atenderiam a este critério? A resposta se nos afigura positiva. Editores publicam autobiografias com regularidade, como um sub-gênero editorial das biografias, objeto de grande interesse do público. Adotando-se este critério que é mais afeto ao mercado do que à ciência, não há por que duvidar de que as autobiografias pertencem ao universo da literatura. Mas o que dizer do mundo acadêmico? Teria ele a mesma boa vontade em aceitar uma escrita cujo objeto por excelência é a existência do próprio autor? As maiores objeções encontradas alhures nos trabalhos acadêmicos e mesmo em entrevistas com escritores repousam nas seguintes questões: 1. Qual é a identidade do autor autobiográfico? 2. Qual é a confiabilidade do relato autobiográfico? 3. Qual é o valor literário da literatura autobiográfica? 4. Quem é o autor autobiográfico, sociologicamente determinado? Menos esquematicamente, é como se nos puséssemos a perguntar: quem escreveu o que escreveu, foi sincero e fiel à realidade, vale a pena ser lido, e esteve a falar de si como individualidade única ou como produto do meio? A autobiografia enquanto tal exige uma relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem (Ibidem, p.15). Explorando esta relação, LEJEUNE coloca um problema pertinente: Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um só tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente responsável e o produtor de um discurso. Para o leitor, que não conhece a pessoa real, embora creia em sua existência, o autor se define como a pessoa capaz de produzir aquele discurso e vai imaginá-lo, então, a partir do que ele produz. (Ibidem, p.23) Isto posto, o pacto autobiográfico, ao contrário do que uma primeira impressão faz sugerir, não diz respeito a um acordo, contrato, avença, compromisso, entre quem escreve Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 8ª Edição ISSN:2178-3098 e quem lê. O pacto autobiográfico limita-se à autenticidade da assinatura, e não à semelhança entre o que é narrado e o que é vivido. O primeiro ensaio de Phillip Lejeune sobre o tema é datado de 1975, e mesmo revisto vinte anos mais tarde (1996), prossegue, no entanto, sem ter oferecido maiores conclusões a partir do seu melhor ponto: o que há de verídico em uma autobiografia, e qual é a sua credibilidade, seja como literatura, seja como fonte histórica. Parece ter percebido que mais colocou questões do que se propôs resolvê-las. O que por si só não chega a ser de se lamentar, todavia: No final das contas, esse estudo me parece ser antes um documento a ser estudado (tentativa de um leitor do século vinte para racionalizar e explicitar seus critérios de leitura) do que um texto 'científico': documento a ser adicionado ao arquivo de uma ciência histórica dos modos de comunicação literária. (Ibidem, p.46) O terceiro ensaio sobre o mesmo tema, O pacto autobiográfico, 25 anos depois, escrito em 2001, já nos permite compreender como a literatura autobiográfica pode ser interpretada sob uma perspectiva de pacto autobiográfico: Ora, no pacto autobiográfico, como, aliás, em qualquer contrato de leitura, há uma simples proposta que só envolve o autor: o leitor fica livre para ler ou não e, sobretudo, para ler como quiser. (...) [Mas] você se envolve no processo; alguém pede para ser amado, para ser julgado, e é você quem deverá fazê-lo (Ibidem, p.73) Aparentemente, a questão da identidade do autor autobiográfico não se resolve sem a presença do leitor. Menos ainda seria desnecessária a presença do leitor no quesito da confiabilidade do texto autobiográfico. Ao ler uma obra literária autobiográfica o leitor confia na boa-fé do seu autor. No entanto, ainda que o narrador se exima de inventar fatos, os limites da apreciação da realidade estão aí presentes, como em qualquer criação humana que se proponha fazer um corte fiel do objeto estudado: (...) uma prova suplementar de honestidade consiste em restringir a verdade ao possível (a verdade tal qual me parece, levando-se em conta os inevitáveis esquecimentos, erros, deformações involuntárias, etc.) e em demarcar explicitamente o campo ao qual o juramento se aplica (a verdade sobre tal aspecto de minha vida, sem me comprometer sobre tal outro aspecto). (Ibidem, p.37) Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 8ª Edição ISSN:2178-3098 Para a questão de se um relato é verdadeiro ou não, a depender da filosofia que aborda este problema, a resposta poderá ser sempre não, no sentido, um tanto usual em epistemologia, de que qualquer sujeito do conhecimento atua sobre a realidade e molda o seu conteúdo conforme o seu contexto pessoal, ou se assim o preferir, conforme sua ideologia. A correlação entre a vida do biografado objetivamente falando e sua representação por meio da escrita autobiográfica desperta maior interesse no leitor do que o da teoria literária. Ao leitor interessa, por razões psíquicas que fogem ao objeto deste artigo, o maior grau possível de veracidade do relato, o que supostamente poderia ser obtido, à maneira das provas judiciais, pela descrição minuciosa dos eventos da vida do biografado que escapam ao quotidiano do homem comum. Um relato de vida isolado, se for suficientemente desenvolvido, se a voz e a perspectiva do modelo forem transcritas de maneira sugestiva, se permitir imaginar concretamente as situações e mentalidades, se enfatizar o interesse dramático que cada um tem pela própria vida, acaba provocando no leitor um efeito imaginário e afetivo de identificação. (Ibidem, p.183) Mas e se o autor autobiográfico adota a postura deliberada de quebrar confiabilidade de seu texto para com o leitor? “Tudo isto deve ser considerado como escrito por um personagem de romance”, afirma Roland Barthes em sua autobiografia (BARTHES, 2003, pg.11): Daí a fascinação que exerceu sobre mim Roland Barthes por Roland Barthes (1975), que parece ser o anti-Pacto por excelência e propõe um jogo vertiginoso de lucidez em torno de todos os pressupostos do discurso autobiográfico – tão vertiginoso que acaba por criar no leitor a ilusão de que não está fazendo o que, entretanto, está. (...) Dizer a verdade sobre si, se constituir em sujeito pleno, trata-se de um imaginário. Mas, por mais que a autobiografia seja impossível, isto não a impede de existir. (Ibidem, p.65-6) Mas a veracidade em maior ou em menor grau de uma obra literária não é o interesse maior da literatura enquanto criação artística, e a questão, portanto, se desloca: qual é o valor literário da literatura autobiográfica? O valor da literatura autobiográfica remete ao próprio valor da literatura. O público espera dos profissionais da literatura que lhe digam quais são os bons livros e quais são os maus; que os julguem, separem o joio do trigo, fixem o cânone. (...) Mas as avaliações literárias, tanto as dos especialistas quanto as dos amadores, têm, ou poderiam ter, um fundamento objetivo? Ou mesmo sensato? Ou elas nunca são senão julgamentos subjetivos e Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 8ª Edição ISSN:2178-3098 arbitrários, do tipo “Eu gosto, eu não gosto”? Aliás, admitir que a apreciação crítica é inexoravelmente subjetiva nos condena fatalmente a um ceticismo total e a um solipsismo trágico? (COMPAGNON, 2010, p.221) Os estudos literários desde a primeira metade do século XX tentaram afastar-se da crítica dita impressionista, e buscaram, sob forte influência do positivismo e cientificismo dominantes no mundo acadêmico, criar uma ciência literária. As mais diversas tendências teóricas não lograram alcançar a objetividade plena e tampouco repeliram por completo a subjetividade: Mas a oposição entre objetividade (científica) e subjetividade (crítica) é considerada pela teoria como um engodo, e mesmo a história literária mais restrita, fixada unicamente nos fatos, repousa ainda em julgamentos de valor, quando nada devido à decisão prévia, o mais das vezes tácita, sobre o que constitui a literatura (o cânone, os grandes escritores). (...) Entre os New Critics, dos quais muitos eram também poetas, a valorização da analogia e da iconicidade favorecia a poesia em detrimento da prosa. Em Barthes, a distinção entre texto legível e texto escriptível, abertamente valorativa, privilegia os textos difíceis ou obscuros. (...) Todo estudo literário depende de um sistema de preferências, consciente ou não. (Ibidem, p.222) A questão do valor da literatura em si mesma é diferente da questão se esta ou aquela obra literária possui um bom valor. Por extensão, o mesmo se pode afirmar da literatura autobiográfica. A grande maioria dos poemas é medíocre, quase todos os romances são bons para serem esquecidos, mas nem por isso deixam de ser poemas, deixam de ser romances. (Ibidem, p.223) A tentativa de se distinguir entre arte mais elevada e arte aplicada também poderia resvalar para a inclusão da literatura autobiográfica como uma sub-categoria literária. T.S.Eliot também distinguia literatura de valor: para ele, a literariedade de um texto (o fato de pertencer à literatura) devia ser estabelecida com base em critérios exclusivamente estéticos (desinteressados ou puros de finalidade, na tradição kantiana), mas a grandeza de um texto literário (uma vez reconhecido como pertencendo à literatura) dependia de critérios não estéticos: [A grandeza da literatura – escreve ele em “Religião e literatura’ (1935) – não pode ser determinada exclusivamente por padrões literários; embora devamos lembrar-nos que o fato de tratar-se ou não de literatura só pode ser determinado por padrões literários]. (ELIOT, Religion and Literature, p.97. Apud. Ibidem, p.224) Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 8ª Edição ISSN:2178-3098 Vencida, em um primeiro contato com o tema, a questão da possibilidade ou não de que a literatura autobiográfica possua valor literário passamos à questão de quem é o autor autobiográfico. Ou antes: quem é o autor? Entre os elementos que constituem a literatura (autor, leitor, espaço, tempo, estilo, valor e literariedade) é o autor justamente o que ocupa o papel de maior controvérsia. Mas qualquer que seja a opção do crítico literário entre os dois grandes grupos que dão maior responsabilidade ou não ao autor pelo sentido e significação do texto (de um lado, filólogos, positivistas e historicistas conferindo primazia à intenção do autor, e de outro, formalistas, adeptos do New Criticism e estruturalistas, em sentido oposto), é inevitável, em se tratando de literatura autobiográfica, que o autor aí desempenhe um papel relevante Afirmava LEJEUNE em 1980: Escrever e publicar a narrativa da própria vida foi por muito tempo, e ainda continua sendo, em grande medida, um privilégio reservado aos membros das classes dominantes. O “silêncio” das outras classes parece totalmente natural: a autobiografia não faz parte da cultura dos pobres. (LEJEUNE, 2008, p.113) O autor de um texto é na maioria das vezes, aquele que o escreveu: mas o fato de escrever não é suficiente para ser declarado autor. Não se é autor incondicionalmente. Trata-se de algo relativo e convencional: só se torna quando se assume, ou alguém lhe atribui a responsabilidade da emissão de uma mensagem (emissão que implica a sua produção) no circuito de comunicação (Ibidem, p.124). Todas as questões concernentes ao autor de um romance podem ser igualmente aplicáveis ao autor autobiográfico: a tese da sua morte (Barthes); a função autor como uma construção histórica e ideológica (Foucault); a polissemia do texto trazendo de volta o leitor; as distinções entre hermenêutica e semântica; a pré-compreensão da fenomenologia hermenêutica de Heidegger; a afirmação de Gadamer de que a significação de um texto não esgotaria as intenções do autor; a crítica da consciência da escola de Genebra (Georges Poulet); a posição ultra-subjetivista de Stanley Fish; a distinção entre sentido e significação por E.D.Hirsch, etc. (COMPAGNON, op.cit., p.47-94). As questões relevantes da literatura autobiográfica (identidade, confiabilidade, valor literário e autoria), portanto, são também questões relevantes para a teoria literária. Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 8ª Edição ISSN:2178-3098 Referências bibliográficas: BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. 215p. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Literatura e senso comum. 2.ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 292p KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 265p. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. De Rousseau à internet. NORONHA, Jovita M.G. (org.) Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. 404p. Artigos Originais Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 8ª Edição ISSN:2178-3098 01) Autor: Enaldo Pereira Soares 02) Titulação: Mestrando em Literatura pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES-JF) Professor de História da Rede Municipal de Juiz de Fora Advogado Pós-graduado em História Social (Universidade Federal Fluminense) Pós-graduado em Direito Público (Universidade Cândido Mendes) 03) Endereço: Rua Izabel Bastos, 25, apt.401. Bairro Alto dos Passos CEP 36025-050 – Juiz de Fora –MG 04) Emails: [email protected]; [email protected]; 05) Fones: (32) 32169431, (32) 32126477, (32) 91160988 DECLARAÇÃO Revista Eletrônica Fundação Educacional São José 8ª Edição ISSN:2178-3098 Declaro que o artigo “A literatura autobiográfica na Teoria Literária: introdução às suas principais questões.” é de minha autoria original, sob minha inteira responsabilidade. Declaro ainda que li e estou de acordo com os procedimentos éticos desta publicação Autorizo a sua publicação na Revista Eletrônica das Faculdades de Santos Dumont. Juiz de Fora, 18 de junho de 2012. __________________________________________ Enaldo Pereira Soares (Mestrando em Literatura do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora)