Esporte Língua de boleiro O que revelam (ou escondem) os mecanismos da retórica de jogadores e técnicos de futebol Fábio Fujita Ao final da partida em que o Santos sagrou-se campeão paulista diante do Guarani, em maio, um repórter da Globo caçou Neymar pelo laço. Em êxtase pela conquista, o atacante não dava bola aos jornalistas. Mas o repórter insistiu por três vezes: "Fale do título, Neymar". O jogador o ignorou, ocupado demais em ajudar um amigo da arquibancada a invadir o campo e, assim, comemorarem juntos. Na era das celebridades, não importa o que elas dirão - apenas que digam. O pouco esforço do jornalista em formular uma mera perguntinha trai uma certeza inconsciente sobre a retórica do futebol: como não há expectativa de que um jogador vá fazer declaração coerente ou original, também a pergunta passa longe da consistência. Mesmo sem ter ido bem nos amistosos da seleção olímpica nem na Libertadores conquistada pelo Corinthians ante o Boca Juniors, o santista talvez seja, hoje, a personalidade de maior evidência no país. Pois, tanto quanto a habilidade técnica, Neymar parece saber como "vender" sua imagem por via retórica. Cálculo discursivo Primeiro, ao personificar o mito da eterna juventude: no figurino, no corte de cabelo, dançando em videoclipes, o jogador propaga os lemas da ousadia e da alegria, termos que repete como mantra. Tem discurso mais articulado do que a média dos atletas, ainda que influenciado por media training, a partir do qual se esforça em passar a imagem de uma humildade que não precisaria ter. Perguntado se jogaria no esquadrão do Santos da década de 60, em meio a craques como Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe, Neymar respondeu: "Não teria a menor chance". De forma criativa, minimiza a popularidade súbita: "Ainda não sei o que me tornei. Mas alguma tornei", vive repetindo. Neymar: jogo de cintura e treinamento para falar com a mídia geram discurso Num meio acima da média coisa me formado majoritariamente por pessoas de pouca instrução, egressas da pobreza, saber o que dizer é uma forma de diferenciar-se. Só o talento com a bola, muitas vezes, não basta para as conquistas da carreira, como convocações para a seleção ou transferências para o exterior. Compreende-se que um atleta com domínio oratório tenha potencial para a liderança, aspecto que muitas vezes prevalece sobre a condição técnica. Exlateral de Flamengo, São Paulo e da seleção campeã em 1994, Leonardo é exemplo. Há quem diga que, como jogador, foi mediano. Mas a personalidade comunicativa, associada à fluência em idiomas e à fama de galã, lhe garantiu ótimos empregos. Domínio Leonardo foi técnico do Milan sem experiência anterior na função, graças à confiança do mandatário milanista, Silvio Berlusconi; depois, ocupou o mesmo cargo na rival Internazionale. Hoje, Leonardo é diretor do Paris Saint-Germain. No Santos de Neymar, há exemplo oposto: o zagueiro Durval. Ao integrar o elenco santista campeão paulista, o zagueiro passou a acumular dez títulos estaduais consecutivos, por cinco equipes diferentes - um recorde. No entanto, esse currículo supervitorioso é pouco exaltado, certamente pela personalidade sorumbática do atleta: é apontado por companheiros e pelo treinador, Muricy Ramalho, como "caladão". Em geral, a dificuldade dos jogadores em organizar raciocínios persuasivos tem a ver com a baixa escolaridade. Isso aparece mesmo na comunicação entre eles. O zagueiro-escritor corintiano Paulo André conta no livro O Jogo da Minha Vida que, em reunião na véspera de uma partida, os jogadores eram estimulados pelo técnico a emitir opinião sobre como superar o adversário. Um atleta chamado Denner pediu a palavra: - Tem de haver sinceridade quando entrar em campo, não se pode brincar. Os companheiros se entreolharam: teriam entendido errado? Denner continuou: - Então é isso, a palavra-chave é "sinceridade". O técnico corrigiu: - Você quis dizer "seriedade", não é, meu filho? - Isso mesmo, seriedade! - emendou. Dificuldades Daí que, em entrevistas, seja um porto seguro recorrer a frases prontas, ainda que vazias, como "O objetivo é a vitória" ou "Temos de respeitar o adversário", sobre a expectativa para um jogo. Ou "A ficha não caiu", que contorna a incapacidade de ter o que dizer diante de um feito. Dizem que Pelé, em entrevista internacional, definiu: "Soccer is a little box of surprises". Mas a pasmaceira dos discursos também está atrelada a um esforço dos clubes em evitar declarações que deem margem a polêmicas e sirvam de munição a rivais. As assessorias "cantam" aos atletas o que devem ou não dizer nas entrevistas. Mas o despreparo muitas vezes é um tiro no pé. Reforço Em 2005, o então reforço corintiano, o lateral Gustavo Nery, apresentou-se ao clube chamando-o de "Corinthians Futebol Clube". No ano seguinte, foi a vez de Amoroso estar muito feliz por chegar à "Sociedade Esportiva Corinthians". Ambos fizeram, por equívoco, referência aos rivais São Paulo e Palmeiras - o nome institucional do clube alvinegro é Sport Club Corinthians Paulista. Natural que discursos rebuscados dos técnicos sejam difíceis de ser decodificados por atletas mais broncos. Nos anos 90, um atacante que jogava no Corinthians, Mirandinha, tornou-se célebre com a frase "Ou corro ou penso", em resposta a um repórter que questionou sua falta de objetividade na definição das jogadas. Em 2007, o então técnico do Palmeiras, Caio Júnior, lamentava a limitação de Valmir, um lateral esquerdo: "Ele não entende orientação tática". Seria como no xadrez, em que conhecer a movimentação das peças é insuficiente para a compreensão dinâmica do jogo. Essa espécie de analfabetismo funcional dos boleiros atrapalha treinadores que tenham dificuldade em adequar-se a um linguajar familiar aos atletas. Polivalência Técnico brasileiro na Copa do Mundo de 1978, Claudio Coutinho estava convencido de que a característica histórica do nosso futebol, o talento individual, estava superada. Por isso, introduziu inovações de inspiração europeia que valorizassem o jogo coletivo e, para tal, evocou termos que soavam ininteligíveis, como overlapping (jogada em que o lateral avança à linha de fundo), ponto futuro (posição em que o atleta deve projetar-se numa troca de passes) e polivalência (a capacidade de um atleta desempenhar funções diversas). Assim como Carlos Alberto Parreira, Coutinho não tivera carreira como jogador. Foi um teórico da bola, um estudioso, e fracassou na seleção. Mesmo Parreira nunca foi unanimidade. A seleção que comandou na Copa de 1994 é tida como a mais fraca das brasileiras que venceram o torneio. Em 2005, passou pelo constrangimento de ver seu livro Evolução Tática e Estratégias de Jogo apontado como plágio de obra inglesa. Elaborado Técnico do Corinthians, atual campeão do Campeonato Brasileiro e da Libertadores, o gaúcho Adenor Leonardo Bachi, o Tite, gosta de mostrar um português mais elaborado que a média. Um dos seus livros de cabeceira é A Arte da Guerra, de Sun Tzu. Mas diz que o sucesso na carreira tem a ver com a capacidade de adequar seu repertório mais denso a um discurso menos pretensioso: sabe que pouco comunicará se recorrer a referências sofisticadas numa preleção. Por isso, prefere citações que encerram mensagens motivacionais. Em 2000, Tite comandava o time do Caxias na final do campeonato gaúcho. Antes do jogo decisivo, distribuiu aos atletas camisetas com uma frase da biografia de Diego Maradona, Yo Soy el Diego: "Eles podem até nos vencer, mas terão de arrancar o título de dentro do nosso coração". O azarão e pouco badalado Caxias venceu a final, batendo Grêmio, do o então favoritíssimo ascendente Ronaldinho Gaúcho. Tite, técnico do Corinthians, gosta de lançar mão de discursos motivacionais Já Vanderlei Luxemburgo, hoje no para falar com o time Grêmio, sempre preferiu a austeridade do discurso como pressuposto de comando. Em 2008, quando técnico do Palmeiras, vazou na internet um vídeo da preleção que fizera antes da final do campeonato paulista, contra a Ponte Preta. Motivações Numa verborragia histérica, marcada por palavrões, Luxemburgo ordenava aos comandados que vestissem a faixa de campeão. "Sempre trago a faixa porque sempre acredito que vou ganhar", bradava. "A Ponte Preta pode ter escondido o time, pode ter feito o que for, que nós fizemos melhor [para chegar até ali], nós somos melhores", vociferava aos atletas. Perplexos, os jogadores pareciam constrangidos ante a cena de arrogância. Mas arrebataram o título numa goleada por 5 a 0. Houve quem atribuísse a conquista não a Luxemburgo, mas ao goleiro Marcos, que passara parte da temporada recuperando-se de lesões. Em discurso aos companheiros, o goleiro disse que se "lesionaria de novo, quebraria o pescoço se preciso, mas que não perderia a partida". Contagiou a todos. Muitos treinadores não têm a sensibilidade de perceber o que deve ser dito em público. Andrade conduziu o Flamengo ao título de campeão brasileiro de 2009. Na primeira passagem pelo clube em 2004, como interino, seu jeito de falar monocórdio e titubeante era ridicularizado pelo próprio elenco. Em 2009, chegou a anunciar em coletiva que o atacante Adriano não seria escalado "por ordem administrativa": o jogador tivera outro de seus problemas pessoais. Querendo blindar o clube (e mostrar que liberar Adriano não era regalia), um diretor corrigiu Andrade em público, dizendo que o veto era, na verdade, "de ordem médica". O ruído de comunicação, justificou o diretor, se deu em razão "do conhecido problema de dicção de Andrade". Uma frase ou uma palavra equivocada pode comprometer a carreira. Em 2008, o técnico Roberto Fernandes, do Náutico (PE), ministrava palestra sobre os mecanismos táticos do futebol. Uma de suas premissas era que um time precisa fazer falta para impedir que o adversário tenha sucesso diante de um contra-ataque. Foi massacrado pelos comentaristas esportivos, por apologia à violência. Algo parecido ocorrera em 2003, quando Geninho era técnico do Corinthians. Contra o River Plate, pela Libertadores, ele orientava o time à beira do campo quando seus gritos foram captados pelos microfones. Com o time atrás no placar, ordenou: "Pega, pega, pega!". Seu lateral Roger não teve dúvida: deu bico no melhor jogador argentino. Foi expulso. Depois da partida, Geninho tentou amenizar: expressões do futebol não devem ser entendidas ao pé da letra. "Pegar" seria acirrar a marcação, diminuir o espaço de movimentação do adversário. Não colou. Em 2000, Corinthians e Palmeiras nas semifinais da Libertadores. Após a primeira partida, vencida pelo Corinthians por 4 a 3, o técnico palmeirense, Luiz Felipe Scolari, ainda nos vestiários, deu uma dura nos atletas. Pela brecha de uma janela, foi ouvido cobrando: "Tenho um time rodado, mas que na hora do bem bom [jogo decisivo] não sabe dar um pontapé, não sabe dar um cascudo, não sabe irritar o cara!". Referia-se ao insolente meia corintiano Edílson. Ali mesmo, Scolari já instigava os palmeirenses para a segunda partida entre os times. "Quero ver vocês sentirem raiva no próximo jogo. E comerem a orelha do cara!". Dividida À frente das câmeras, no entanto, Felipão tergiversou. Disse considerar Edílson inteligente, e sua orientação aos comandados era apenas que fossem mais inteligentes que Edílson. Outra situação recorrente é a contradição do discurso conforme a conveniência. Na reta final do Campeonato Brasileiro de 2010, se o Palmeiras vencesse um jogo contra o Fluminense, ajudaria o rival Corinthians a aproximar-se do título. Felipão resolveu escalar um time reserva. "Faço com os outros o que gostaria que fizessem comigo", disse Tite, em resposta. Mas Tite tivera procedimento idêntico em 2008, no Internacional. Escalou time reserva numa partida contra o São Paulo, e perdeu. O resultado fez com que o time paulista ultrapassasse o Grêmio no topo da tabela. Em 2011, Tite e Felipão acabariam travando áspera discussão. A "acusação" do primeiro era que o segundo "fala muito". No futebol, o confronto verbal é a metáfora de uma boa dividida em campo. Fonte: Fábio Fujita, REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA, n.82, p.24-5, ago/2012