ESCRAVIDÃO E EDUCAÇÃO: REPENSANDO ALGUMAS QUESTÕES HISTÓRICAS COSTA, Maria Luisa Furlan Universidade Estadual de Maringá RESUMO Este trabalho procura contribuir para uma reflexão sobre a escravidão como uma necessidade histórica e, ao mesmo tempo, busca refletir sobre a educação como expressão da forma como os homens estão organizados para a produção de sua sobrevivência. Para tanto, selecionamos dois autores que poderiam subsidiar teoricamente nosso estudo, sendo Condorcet e Azeredo Coutinho. O primeiro, um filósofo francês que esteve envolvido no movimento revolucionário de 1789 e, nesta condição, assumiu a defesa da abolição da escravidão como um princípio de justiça. O segundo, um bispo católico nascido no Brasil que, na virada do século XVIII para o século XIX, considerava a escravidão uma necessidade para preservar a produção de excedentes na colônia. No que diz respeito à educação, Condorcet apresentou um projeto de instrução pública à Assembléia Nacional, no ano de 1792, o qual expressa os interesses da burguesia que, via processo revolucionário, assumiu o poder político na França. Azeredo Coutinho, por sua vez, colocou em prática no Seminário de Olinda uma proposta de educação considerada avançada para sua época, cujo objetivo era formar homens para servir não só à Igreja, mas também ao Estado. Apesar de defenderem formas de trabalho distintas, os autores selecionados aproximam-se quanto a seus projetos de instrução/educação, uma vez que ambos procuram definir os conteúdos necessários para a educação do homem burguês que, pouco a pouco, vai assumindo a direção da sociedade. Partindo do pressuposto de que a educação é expressão da forma como os homens estão organizados para o trabalho é que procuramos desenvolver um projeto que, desde o início, estava vinculado a uma linha de pesquisa do Curso de Mestrado em Fundamentos da Educação.(417) Vale ressaltar que este trabalho procura, a partir dos escritos de Condorcet (1743-1794) e Azeredo Coutinho (1742-1821), contribuir para uma reflexão sobre a escravidão como uma necessidade histórica e, ao mesmo tempo, busca refletir sobre a educação como resultado da forma como os homens estão organizados para a produção de sua sobrevivência. Esta questão é determinante para que possamos entender que uma sociedade precisa definir os conteúdos que devem ser ensinados e, mais do que isso, demonstra que esses conhecimentos são resultantes da própria organização da sociedade em cada período. Assim, a proposta de instrução/educação de Condorcet e Azeredo Coutinho foram analisadas com o intuito de evidenciar que o conteúdo exigido por determinada sociedade não é fruto do acaso, mas produto da sua forma de organização e, portanto, um conteúdo histórico e necessário para o desenvolvimento da sociedade. A escolha dos autores deve-se ao fato de Azeredo Coutinho ter assumido a defesa da escravidão na virada do século XVIII para o século XIX e, Condorcet, um filósofo francês, considerar a abolição como uma forma de concretizar os princípios de justiça por ele defendidos, especialmente no momento em que a burguesia revolucionária estava empenhada no processo de luta contra a sociedade feudal. Ao contextualizar os fundamentos teóricos e as posições assumidas por Condorcet e Azeredo Coutinho diante da escravidão e da educação, acreditamos na possibilidade de comprovar a hipótese de que o Bispo de Elvas não deve ser considerado reacionário ou conservador por justificar a escravidão num momento em que ela está sendo condenada radicalmente na Europa. Mais do que isso, pensamos ser possível demonstrar que sua proposta de educação condiz com sua postura em defender uma forma histórica de trabalho, na medida em que sua preocupação, tanto num caso como no outro, é com a organização da produção de riquezas no Brasil. Assim, apesar da diferença existente no discurso, no qual ambos defendem princípios muitos distintos, tanto Azeredo quanto Condorcet lutam pela consolidação da sociedade burguesa, o que significa dizer que eles defendem princípios burgueses. Ou seja, independentemente dos argumentos utilizados por cada um destes autores para defender ou justificar suas posições, é necessário ter sempre presente que enquanto o primeiro luta pela consolidação da sociedade burguesa no Brasil, onde não existe uma sociedade anterior a ser combatida e destruída, o segundo convive com a luta entre duas formas sociais distintas, uma vez que a burguesia precisa destruir todos os princípios da velha ordem feudal para assumir a direção da nova sociedade. Contudo, é importante ressaltar que Condorcet desenvolve seu discurso em favor da abolição a partir da idéia de que a escravidão é uma injustiça, enquanto Azeredo apresenta um conjunto de justificativas que demonstram que o trabalho escravo é indispensável nas condições em que se encontram as colônias de Portugal na virada do século XVIII para o século XIX. Na verdade, Azeredo não faz uma defesa incondicional do trabalho escravo, mas se opõe a abolição porque ela se constitui numa ameaça à sobrevivência das colônias. Ele até admite que a escravidão é um mal, mas um mal menor do que a abolição. Diante disto ele afirma em sua Análise sôbre a justiça do comércio do resgate dos escravos da Costa da África que o homem deve guiar-se sempre pelo seguinte princípio: "entre dois males escolha sempre o menor e o menos prejudicial à sua vida e à sua existência".(418) Enquanto Azeredo defende a escravidão por considerá-la um mal menor de que a abolição, Condorcet apresenta a escravidão como uma "triste causa contra a qual se tem reunido todos os que não tem interesse pessoal em sustentá-la...".(419) A defesa do trabalho livre leva Condorcet a fazer uma condenação quase que moral da escravidão. Em vista disto, no decorrer de suas Reflexões sobre a escravidão dos negros ele procura demonstrar que a escravidão é uma injustiça, um crime social que deve ser considerado ainda pior de que o roubo. Seguindo sempre na perspectiva de que a escravidão é, no seu entender, injustificável, Condorcet combate também a alegação daqueles que consideram o trabalho escravo necessário para a menutenção da produção. Para ele, mesmo que isso fosse verdadeiro, ainda assim a escravidão não deixaria de ser um crime. Se nas Reflexões de Condorcet a condenação da escravidão tem como fundamento os preceitos de justiça, nos escritos de Azeredo Coutinho o trabalho escravo aparece sempre como uma necessidade histórica para preservação da produção colonial, tanto que ele até admite que a escravidão já não é necessária para as nações mais desenvolvidas da Europa, mas considera a impossibilidade de emancipação dos escravos em determinadas nações, como no caso da Ásia, as África e da América. Ao admitir a possibilidade de utilização do trabalho livre na maior parte da Europa e, ao mesmo tempo, reconhecer a dificuldade de preservar a produção colonial sem a escravidão em determinados continentes, Azeredo justifica com muita coerência sua posição, alegando ser impossível convencer o homem livre a vender a sua força de trabalho quando existe uma grande de terras devolutas e uma quantidade pequena de trabalhadores. Ao apontar para o fato de que a escravidão se acha estabelecida como justa nas regiões do globo em que existem muitas terras devolutas e poucos trabalhadores, ou seja, onde cada um pode ser proprietário, Azeredo demonstra que não se trata tão somente de condenar o trabalho escravo por princípios de justiça, mas de criar condições reais para que o escravo liberto possa ser convertido em trabalhador assalariado. Por estarem inseridos num contexto histórico tão distinto, Condorcet e Azeredo Coutinho assumem posições contrárias quanto a defesa de uma forma de trabalho, pois um defende a escravidão e, o outro, a abolição de todas as instituições que, até então, sustentavam a antiga ordem feudal. Condorcet tem diante de si a França em processo revolucionário e, nesta condição, defende o trabalho livre como essência da ordem burguesa. Azeredo Coutinho, por sua vez, convive com as condições do sistema colonial escravista, onde não estão dadas as condições reais para que o homem possa adquirir a liberdade e vender sua força de trabalho. Tomando os acontecimentos pelo seu lado absoluto e considerando as tendências abolicionistas da época, o fato de Azeredo Coutinho considerar a escravidão necessária para as colônias de Portugal e, Condorcet, defender a abolição da escravidão por princípios de justiça, nos levariam a considerar o primeiro um reacionário e o segundo um revolucionário. Entretanto, os elementos detectados na análise dos escritos de cada um não nos permitem fazer uma afirmação desta natureza. Pelo contrário, ao que tudo indica, ambos estão defendendo os mesmos princípios de organização social, que se traduzem nos fundamentos que possibilitam a consolidação da sociedade burguesa, especialmente quando tomamos como objeto de análise as propostas de educação de Condorcet e Azeredo Coutinho. Condorcet entende que a educação é a via pela qual irão se consolidar os ideais estatuídos como bandeira de luta da Revolução Francesa, os quais se traduzem, principalmente, na busca da igualdade de direitos entre os homens. A tentativa de reorganização da instrução pública não é um projeto particular de Condorcet, mas da burguesia que, em 1789, assume o poder político na França. Ao assumir a direção da sociedade francesa, a burguesia passa a repensar a organização da instrução pública. Em vista disto, vários relatórios com propostas educacionais são apresentados, neste período, procurando contribuir para a organização da nova sociedade(420). As especificidades do projeto de instrução pública de Condorcet estão presentes no seu Relatório e Projeto de Decreto sobre a Organização Geral da Instrução Pública, no seu Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano e, ainda, nas Cinco Memórias sobre a Instrução Pública. A terminologia utilizada por Condorcet em seus escritos já é, por si só, uma manifestação de sua concepção de instrução pública. O seu Relatório, por exemplo, é apresentado por ele "como meio de tornar realidade a igualdade de direitos". Além disso, a instrução pública é considerada necessária "para diminuir as desigualdades que nasce dos sentimentos morais" e "para aumentar na sociedade a massa de luzes úteis". Em vista disto, Condorcet deixa explícito que a instrução nacional é, para o poder público, um dever de justiça Assegurar a cada um deles a facilidade de aperfeiçoar seu engenho (habilidade), de se tornar capaz das funções sociais às quais ele tem o direito de ser chamado, de desenvolver toda a extensão de talentos (capacidade) que ele recebeu da natureza; e assim estabelecer, entre os cidadãos uma igualdade de fato, e tornar real a igualdade política reconhecida pela lei. Este deve ser o primeiro objetivo de uma instrução nacional e, sob esse ponto de vista, ela é, para o poder público, um dever de justiça.(421) Facilitar e assegurar através da instrução o desenvolvimento dos talentos significa, para Condorcet, a acumulação dos conhecimentos fundamentais para o aperfeiçoamento da humanidade, uma vez que, para ele, a transmissão de conhecimentos é a forma mais eficaz para o desenvolvimento das habilidades humanas e para o progresso do espírito hamano e, como consequência, para o estabelecimento real da igualdade. Condorcet insiste sempre na necessidade da educação ser tão igual quanto universal, mas faz algumas ressalvas que precisam ser observadas. A educação deve se estender a todos os cidadãos, mas de acordo com as condições impostas pelo desenvolvimento da sociedade burguesa. Assim, a instrução deve ser universal, quer dizer, se estender a todos os cidadãos. Ela deve ser repartida com toda a igualdade que permitem os limites necessários da despesa, a distribuição dos homens sobre o território e o tempo mais ou menos longo que as crianças podem consagrar a ela.(422) Quando Condorcet acentua a necessidade de uma educação tão igual e universal quanto as condições econômicas vigentes, parte do princípio que, para a classe trabalhadora, é suficiente as noções elementares. Divide, portanto, a organização do ensino em quatro graus: o ensino primário, as escolas secundárias, os institutos e os liceus. Enquanto nos liceus todos as ciências seriam ensinadas, aos alunos das escolas fundamentais seriam dadas as noções básicas de conduta, enfatizando as noções de gramática e aritimética, (...) Ensinar-se-á, nessas escolas, a ler, a escrever, o que supõe necessariamente algumas noções gramaticais; acrescentar-se-ão as regras de aritmética, os métodos simples de medir exatamente um terreno, de medir um edifício; uma descrição elementar das produções do país, dos processos da agricultura e das artes; o desenvolvimento das primeiras idéias morais e as regras de conduta que derivam dela; por fim, os dos princípios da ordem social que se pode colocar ao alcance da infância.(423) No que se refere às regras de conduta a serem ensinadas nas escolas fundamentais, o que dá sustentação ao discurso de Condorcet é o princípio de que, para as crianças das classes mais pobres, bastam os conhecimentos que lhes permitem prover suas necessidades básicas e, também, lhes assegurar a possibilidade de serem úteis para a nação, ou seja, exercer toda e qualquer atividade produtiva que possa contribuir para o desenvolvimento da sociedade burguesa. É este aspecto que, a nosso ver, a proposta de educação de Azeredo Coutinho aproxima-se do projeto de Condorcer e dos revolucinários da França, tendo em vista que sua maior preocupação é o desenvolvimento da produção nas colônias nos moldes burgueses. Por isso mesmo, os conteúdos indicados para serem ministrados no Seminário de Olinda, fundado por ele em 1800, destinam-se ao homem burguês, atendendo às exigências da produção colonial. Nos Estatutos do Seminário Episcopal de Nossa Senhora da Graça de Pernambuco, Azeredo Coutinho deixa evidente seus interesses, qual seja, formar homens para servir não só à Igreja, mas também ao estado. (...) E por isso nós, sem perdermos tempo (...) cuidamos de criar e estabelecer na cidade de Olinda um Colégio para nele se instruir a mocidade da nossa Diocese no conhecimento das verdades da Religião, na prática dos bons costumes, e nos estudos das artes, e ciências, que são necessárias para pulir o homem, e fazer Ministros dignos de servirem à Igreja, e ao Estado.(424) Nos Estatutos elaborados por Azeredo Coutinho apresenta-se a necessidade do estudo das primeiras letras, do canto, da gramática latina, da retórica, da filosofia, da geometria e da teologia. Esses conhecimentos são indicados como de fundamental importância para a formação de homens capazes de servir não só à Igreja como também ao Estado e, por isso mesmo, são necessários para o desenvolvimento material do Brasil. Na parte em que Azeredo trata do ensino das letras, por exemplo, ele chama atenção para a necessidade de fazer da escrita uma transcrição livre do pensamento do homem, e não, como no ensino escolástico, uma reprodução dos dogmas. Para o Bispo de Elvas, ao invés de uma camisa de força, "escrever é formar com um instrumento caracteres que são retratos do pensamento e da fala".(425) Ao definir os conteúdos dos Estatutos Azeredo manifesta o desejo de não se perder tempo com o ensino de coisas que não são úteis para os homens, pois persegue constantemente o objetivo de formar homens para as necessidades do mundo. Isto fica evidente na parte dos Estatutos em que Azeredo Coutinho trata dos principais e mais úteis conteúdos a serem ministrados pelo professor. Tal como Condorcet, ele aponta como úteis o ensino das primeiras letras, das noções gramaticais e de aritimética. Ensinará o professor aos seus discípulos a conhecer e formar os caracteres e algarismos ou números, explicando os seus diversos valores nas unidades, centenas, etc., e ensinará a somar, diminuir, multiplicar e repartir, e a regra de três, que é quanto basta por serem as principais e de maior uso na prática (...).(426) Após as noções de Aritimética, Azeredo Coutinho indica o estudo da geometria e da trigonometria, sendo que suas recomendações são sempre direcionadas para a importância prática dos conhecimentos, tanto que ele afirma nos seus Estatutos que "acabada a Geometria, passará a ensinar Trigonometria plana, que dela se deriva, e é de absoluta necessidade para a prática (...)".(427) Os excertos dos Estatutos apresentados deixam patentes os objetivos de Azeredo Coutinho, ou seja, a necessidade de transformar os métodos de ensino, tornando-os úteis ao desenvolvimento econômico do Brasil, o que revela adesão aos princípios burgueses defendidos por Condorcet. Com este trabalho procuramos, à luz do contexto histórico, comparar os princípios teóricos de cada um dos autores selecionados, demonstrando que, entre Condorcet e Azeredo Coutinho, existem não somente pontos de divergência, mas, também, pontos de convergência. Todavia, não podemos negar que os princípios que fundamentam as propostas de Condorcet e Azeredo Coutinho são extremamente distintos, em função de que a concepção teórica de cada um é diferente. Enquanto o filósofo concebe como fio condutor da História o progresso do espírito humano, posição coerente com o contexto revolucionário francês, o Bispo de Elvas parte do pressuposto de que a necessidade da existência é a suprema lei das nações e, em função disto, defende a escravidão para as colônias de Portugal não como um bem, mas como um mal menor de que a abolição. Ao desenvolver este trabalho concentramos esforços para demonstrar que se considerássemos apenas o discurso de Condorcet e Azeredo Coutinho seríamos levados a classificar o primeiro como revolucionário, tendo em vista que ele defende a igualdade, luta pela abolição universal da escravidão e apresenta uma proposta de instrução pública que deve ser ministrada com toda igualdade. Já no caso do Bispo de Elvas, o mesmo seria classificado como um conservador, uma vez que ele assume a defesa da escravidão como uma necessidade histórica na virada do século XVIII para o século XIX. Contudo, quando relacionamos o discurso destes autores com as condições reais de vida de cada um, percebemos que seus escritos correspondem a necessidades produzidas pelos homens de sua época, às quais se pretende dar respostas concretas. BIBLIOGRAFIA CONDORCET. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Campinas, Editora da UNICAMP, 1993. Reflexões sobre a escravidão dos negros. Trad. de Aarão Reis. Rio de Janeiro, Typ de Serafim José Alves, 1881. As cinco memórias sobre a instrução pública. IN: BUISSON, Ferdinand (org.). Paris, Librairie Felix Alcan, 1929. Relatório e Projeto de Decreto sobre a Organização Geral da Instrução Pública. IN: BUISSON, Ferdinand (org.). Paris, Librairie Felix Alcan, 1929. COUTINHO, José Joaquim da Cunha de Azeredo. Obras Econômicas de J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho (1794-1804). Apresentação de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1966. Concordância das Leis de Portugal e das Bulas Pontifícias. Arquivo Nacional, 1988. NOGUEIRA, Mons. Severino Leite. O Seminário de Olinda e seu fundador o Bispo Azeredo Coutinho. Recife, FUNDARPE, 1985. (Coleção Pernambucana, vol. 19)