João Hélio, Ronaldo, Carlos Henrique, Daniele, Romenique, Tiago, Diego, Patrícia, Wanderson... O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária. Portanto, é dever também das igrejas, como parte da sociedade, antes mesmo que do poder público, assegurar a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes quando a família não consegue fazê-lo. Este pequeno artigo tentará demonstrar como a igreja pode assegurar a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes a partir da realidade brasileira atual em uma perspectiva de missão integral. João Batista, enquanto pregava no deserto o arrependimento e o perdão, à multidão que lhe perguntava o que deveriam fazer para livrarem-se da condenação, respondeu que deveriam repartir o que tinham. Aos publicanos que lhe fizeram a mesma pergunta, respondeu: “não peçais mais do que o que vos está ordenado.” E aos soldados disse: “a ninguém trateis mal nem defraudeis, e contentai-vos com o vosso soldo.”1 Em outro exemplo, registrado no evangelho de Lucas, capítulo 10, um doutor da lei pergunta a Jesus o que é preciso fazer para herdar a vida eterna. Jesus manda que ele cumpra o que diz as Escrituras: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo.” Não é possível amar alguém sem conhecê-lo. Não é possível conhecer alguém sem relacionar-se com ele. João conhecia e relacionava-se com as pessoas que lhe perguntaram o que fazer para serem batizadas. Por isso, pôde responder a cada um de uma forma diferente para que todos pudessem chegar ao mesmo lugar. Conhecer as pessoas para saber como testemunhar o evangelho a cada uma delas não é a estratégia mais utilizada pela maioria das igrejas. O propósito do paradigma de missão ainda dominante2 nas igrejas brasileiras atualmente é salvar almas.3 Este paradigma tradicional de missão resulta em algumas dicotomias que têem um efeito negativo sobre a igreja. Dentre eles, a pouca importância dada aos leigos da igreja e assim à sua atuação na igreja local. De acordo com este paradigma cabe à igreja local sustentar os missionários, especialmente em missões transculturais. Desta forma a igreja local não dispensa os mesmos esforços para conhecer a realidade de sua própria comunidade. 1 Fundación Kairós. Iglesia, comunidad y cambio – Manual de Atividades. Buenos Aires: Kairós Ediciones, 2002, p. 33. 2 Ainda que esta predominância venha perdendo força atualmente, esta ainda têm sido a prática das igrejas, especialmente aquelas instaladas no Brasil a partir da intervenção das sociedades missionárias da Europa e Estados Unidos. 3 Padilla, René. What is integral mission? In: http://integral-mission.org, 15/02/2007, p. 2. O paradigma da missão integral privilegiará testemunhar o Reino de Deus a partir da realidade daqueles para os quais está sendo dado o testemunho.4 De acordo com este paradigma, a missão da igreja é testemunhar o evangelho para um homem ou mulher que vive em um dado lugar, em um dado contexto histórico e social. No Brasil de hoje, especialmente nos grandes centros urbanos, vivemos um clima de medo em razão da violência. A igreja de Cristo precisa refletir sobre esta situação para encontrar formas de levar o evangelho a quem vive diante de tanta violência. No início deste ano, o principal assunto do Rio de Janeiro, e talvez do Brasil, foi a morte brutal do menino João Hélio. Todos discutimos como evitar outras mortes como aquela. Melhora da polícia e da justiça, endurecimento da lei, etc, etc. É verdade que o poder público (executivo, judiciário e legislativo) precisa reformar-se para ter maior efetividade no enfrentamento desta questão. Mas a sociedade também precisa fazer a sua parte, não apenas reinvidicando melhorias por parte do poder público ou formulando soluções para serem executadas pelo próprio poder público, mas desenvolvendo ações que promovam uma cultura de paz e diminua a violência. Claro que muitos grupos, organizações, associações e igrejas já cumprem este papel, mas todos concordamos que é preciso avançar já que ainda vivemos o horror de mortes como a do menino João. O título deste artigo apresenta alguns nomes de crianças e adolescentes que vivem ou viveram nas ruas, com exceção do João Hélio. São meninos e meninas que eu tive a oportunidade de atender algum dia e que precisam ter garantidos os seus direitos ao respeito, à saúde, à educação, à convivência familiar e comunitária e a tantos outros. São meninos e meninas iguais aos seus filhos e filhas, iguais a João Hélio, mas que pelas circunstâncias que vivem podem algum dia tornarem-se como os assassinos de João. A igreja de Cristo precisa (e, claro, muitos já o fazem) testemunhar o evangelho de modo a atingir o coração, a alma, as forças e o entendimento de Ronaldo, Carlos Henrique, Daniele, Romenique, Tiago, Diego, Patrícia, Wanderson e tantos outros, milhares de outros, que sem um teto no Brasil. Nenhuma destas crianças e adolescentes amará a Deus acima de todas as coisas se apenas ouvirem que Jesus pode salvar sua alma. Todas já ouviram isso em dezenas de igrejas pelas quais já passaram e que alguns deles até mesmo freqüentam regularmente. Não nos absolve dizer que já fizemos nossa parte e agora cabe ao Espítiro Santo completar a obra. Como fazer para que entendam o evangelho? João Batista conhecia os soldados e por isso pôde dizer o que eles precisavam fazer para serem salvos. Jesus conhecia o coração do jovem rico que também procurava a salvação, mas não estava disposto a se desfazer dos seus muitos bens (Lucas 18). O que conhecemos da vida das crianças e dos adolescentes que vivem na rua para que lhes demos testemunho 4 Rocha, Alessandro Rodrigues. Teologia protestante latino-americana: um olhar a partir da teologia de missão integral. In: http://ftlrj.blogspot.com, 06/02/2007, p. 16. do evangelho? O que conhecemos da vida dos assassinos de João Hélio para que lhes demos testemunho do evangelho? O que conhecemos da vida de brasileiros e brasileiras amedrontados com a violência para que lhes demos testemunho do evangelho? Claro, para conhecermos esses meninos e meninas precisamos ir até eles. Não apenas para dizer o que têm que fazer, mas verdadeiramente para entendermos suas angústias e prazeres, para que possamos amá-los de modo que esse amor – o amor de Deus – possa transformá-los. Precisamos ir até as ruas para nos aproximarmos deles. Precisamos recebê-los com amor, respeito e carinho nas igrejas (casa de Deus e não nossa). Precisamos ajudálos a terem um lar. Um projeto social desenvolvido originalmente pela Associação Brasileira Terra dos Homens5 tem se mostrado muito eficiente na garantia de um lar para crianças e adolescentes que vivem nas ruas. O projeto em questão chama-se Família Acolhedora. Esse projeto poderia ser abraçado por muitas igrejas como uma forma de promover o retorno de crianças e adolescentes aos seus lares de origem. Também contribuiria para que as igrejas se aproximassem e conhecessem melhor a realidade das crianças e adolescentes que vivem nas ruas e desta forma serem capacitadas para lhes testemunhar o evangelho. Quando uma criança ou adolescente vive na rua é porque seus pais não tiveram condições de lhes prover tudo o que é necessário ao seu desenvolvimento. Assim, garantir seu direito à convivência familiar e comunitária passa necessariamente pelo atendimento à sua família. Acontece que em algumas situações a incapacidade da família em garantir o desenvolvimento de seus filhos representa um risco para essas crianças e adolescentes. Nesses casos não é prudente manter sob a guarda desta família seus próprios filhos. O Projeto Família Acolhedora prevê que uma outra família – chamada família acolhedora – acolha estas crianças e adolescentes por um certo período, enquanto que um(a) assistente social e um(a) psicólogo(a) trabalham com a família de origem, os filhos e a família acolhedora de modo a garantir que as crianças e adolescentes possam voltar à família de origem. Esse projeto costuma ser desenvolvido pelo poder público, que normalmente paga uma ajuda de custo às famílias acolhedoras. Isto é um limitador para que haja mais vagas para as crianças e adolescentes que vivem nas ruas; ainda que o custo do projeto seja inferior ao custo de manutenção de um abrigo. É certo que muitas famílias que congregam nas igrejas pelo Brasil afora poderiam acolher essas crianças e adolescentes sem precisar receber qualquer ajuda de custo. As igrejas poderiam contratar profissionais (assistente social e psicólogo) devidamente capacitados para esse trabalho e ajudar a retirar dezenas de crianças e adolescentes das ruas de nosso país. Meu objetivo aqui não é detalhar como funciona o projeto, mas simplemente encorajar as igrejas a conhecê-lo melhor6 e refletir sobre a possibilidade de adotá-lo 5 Para conhecer melhor o projeto Família Acolhedora, acesse o site http://www.terradoshomens.org.br 6 Qualquer iniciativa para implantar este projeto ou qualquer outro que envolva a guarda de crianças como uma ferramenta importante no cumprimento de sua missão. Outros projetos têm sido desenvolvidos por igrejas e organizações evangélicas para atenderem crianças e adolescentes em situação de rua com bons resultados. Aproveito para destacar o Projeto Calçada da Lifewords Brasil7. Contudo, preferi apresentar o Projeto Família Acolhedora em razão da sua efetividade, da capacidade que as igrejas têm de popularizá-lo, do seu potencial para aproximar as igrejas das crianças e adolescentes que vivem nas ruas e por ainda ser desconhecido da maioria das igrejas. Que a igreja no Brasil reflita sobre a realidade das pessoas em seu redor e encontre formas criativas de testemunhar o evangelho todo, para todo o homem, mulher, criança e adolescente, integralmente. Para que o mundo e, em especial o Brasil ouça a voz de Deus. Marcelo Jaccoud da Costa assistente social e criador do Blog da Rua Referências bibliográficas Associação Brasileira Terra dos Homens. Trabalho social com Família. Booklink, 2002. Fundación Kairós. Iglesia, comunidad y cambio – Manual de Atividades. Buenos Aires: Kairós Ediciones, 2002. Lei Federal 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Padilla, René. What is integral mission? In: http://integral-mission.org, 15/02/2007. Rocha, Alessandro Rodrigues. Teologia protestante latino-americana: um olhar a partir da teologia de missão integral. In: http://ftlrj.blogspot.com, 06/02/2007. e adolescentes precisará passar por uma articulação com o juizado da infância e juventude de sua cidade. 7 Para conhecer melhor o Projeto Calçada, acesse o site http://www.lifewords.info/brasil/acaoglobal_pc.php