RECURSOS PARA A CONSTRUÇÃO DE ESTILOS: O TÓPICO DISCURSIVO EM
DUAS PRODUÇÕES ORAIS DE UM RAPPER PAULISTA1
Rafaela Defendi MARIANO (G-UNICAMP/FAPESP)2
Resumo: O presente trabalho traz os resultados parciais de nossa pesquisa de iniciação
científica cujo objetivo foi analisar as diferenças estilísticas resultantes das manipulações
estratégicas de recursos linguístico-discursivos produzidas pelo rapper Mano Brown em duas
situações comunicativas: discurso de agradecimento e depoimento. Nossa hipótese é a de que
o tópico discursivo é um dos principais lócus de observação da variação estilística. Com a
descrição da organização hierárquica e da segmentação linear, pudemos concluir que há uma
tendência de ocorrer maior descontinuidade tópica na segunda situação do que na primeira,
em função tanto do tipo de audiência, como também em função dos próprios tópicos
discursivos instaurados: na primeira situação, Mano Brown agradece o prêmio que está
recebendo por meio da tematização das qualidades e defeitos do ser humano e, na segunda
situação, o rapper está discorrendo de maneira informal sobre uma experiência sua com um
determinado objeto cultural (um documentário); cada um desses tópicos discursivos parece
demandar atividades de textualização específicas (comentário & narração) que podem ser
compreendidas nos termos de um processo de iconização necessário para a caracterização do
estilo (Irvine, 2001).
Palavras-chave: Sociolinguística. Estilo. Rapper. Tópico discursivo.
Introdução
A escolha dos rappers como sujeitos de uma pesquisa sobre estilo justifica-se pelo
fato de, na produção de linguagem destes sujeitos, observada anteriormente em um projetopiloto, terem sido reveladas mudanças estilísticas significativas. Outra justificativa para o
desenvolvimento do projeto encontra-se relacionada ao fato de que sobre essa população
ainda há poucos trabalhos3 que considerem em suas análises as relações entre o fenômeno
linguístico e as práticas sociais. Sobre os integrantes da chamada “cultura hip hop”, há
trabalhos4 que enfocam suas práticas sociais e culturais, a construção de suas identidades,
mas, de fato, há uma lacuna a ser preenchida na relação entre as práticas linguísticas deste
grupo e suas práticas sociais.
Os textos orais analisados fazem parte da seção “Extra” do DVD 100% Favela. O
DVD é a gravação da festa em comemoração ao aniversário da Favela Godoy, localizada no
1
O presente artigo é resultado da pesquisa de Iniciação Científica intitulada “Recursos para a construção de
estilos: tópico e marcadores discursivos na fala de um rapper paulista”, Nº do Processo Processo no.
2010/17357-0, realizada com financiamento da FAPESP e sob orientação da Profa. Dra. Anna Christina Bentes.
2
Estudante de graduação orientada e indicada pela Profa. Dra. Anna Christina Bentes da Silva (UNICAMP).
Bolsista de Iniciação Científica- FAPESP. Licenciatura em Letras, IEL, UNICAMP. Campinas-SP, Brasil.
[email protected].
3
Os primeiros trabalhos sobre esse tema foram elaborados por Bentes (2005, 2006, 2009a, 2009b, 2011).
4
Souza (2004, 2009); Gessa (2007, 2011).
Anais do XX Seminário do CELLIP – Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná CELLIP 25 anos | Londrina, UEL | 25 a 27 de outubro de 2011 ISSN 2175-­‐2540 2 Capão Redondo em São Paulo, em setembro de 2005. Em um considerável panorama do rap
paulista, o DVD traz apresentações de diversos grupos da capital (alguns nem tão conhecidos
no cenário nacional), além do grupo Realidade Cruel, de Hortolândia, e do rapper GOG, de
Brasília. Além dos shows, nos extras, temos depoimentos de vários rappers e também do
escritor Ferréz. Há também detalhes da preparação da festa na favela; os bastidores da
gravação do CD do grupo Negredo, com a participação de Mano Brown; e a premiação do
Prêmio Cooperifa com o posterior trajeto de carro de Mano Brown em que ele dá o
depoimento à jornalista.
Primeiramente, traremos as teorias sobre as quais se baseiam nossas análises. Em
seguida, partiremos para as análises, sem antes deixar de descrever as configurações
relacionais (Goffman, 1964) de cada uma das situações comunicativas.
Pressupostos Teóricos Gerais
Bell (2001) postula que as mudanças estilísticas podem ocorrer tanto em função do
que ele denomina de design de audiência (consideração das características do interlocutor)
como do design de referência (desejo de identificação com determinado grupo). Para o autor,
estes dois tipos de design, responsáveis pela variação estilística, não se excluem, mas se
complementam de forma a possibilitar uma melhor compreensão do cenário microconversacional.
Coupland (2001, 2007) e Bell (2001) apresentam opiniões convergentes a respeito de
que a produção do estilo é uma realização situacional cujo intuito é o de alcançar
determinados propósitos comunicativos em determinadas situações sociais. Bell (2001) ao
postular que um estilo particular está normalmente associado a um grupo ou a uma situação
particular remete à discussão feita por Irvine (2001 apud Bentes, 2006) acerca da relação
entre estilo, registro e dialeto.
Para a autora, a distinção entre dialeto e registro fica mais complexa quando se analisa
o repertório de uma comunidade de fala particular, visto que há exploração criativa de
“vozes” associadas a grupos sociais. É esta exploração criativa de “vozes” que explica a chave
do estilo tanto para Bell (2001) como para Irvine (2001 apud Bentes, 2006). Ainda em relação
aos grupos sociais, pessoas típicas desses grupos são organizadas num sistema culturalideológico de forma que suas imagens ficam disponíveis como um “quadro de referência”.
Então, os indivíduos manipulam essas vozes de forma a se aproximar ou não delas de acordo
com a situação e a audiência:
Os estudos sobre registros sempre enfocaram variedades e padrões relativamente
Anais do XX Seminário do CELLIP – Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná CELLIP 25 anos | Londrina, UEL | 25 a 27 de outubro de 2011 ISSN 2175-­‐2540 3 estáveis e institucionalizados, padrões estes que inclusive eram explicitamente
nomeados no interior de suas comunidades de uso, conectados com determinadas
situações institucionalizadas, ocupações, etc. (por exemplo, a fala de locutores
esportivos). O estilo inclui isso, mas também inclui as formas mais subliminares por
meio das quais os indivíduos “navegam” entre as variedades disponíveis e tentam
encenar uma representação coerente de si mesmos (...). Talvez haja uma outra
diferença: enquanto dialetos e registros, pelo menos como a sociolinguística os define,
apontam para o fenômeno linguístico apenas, o estilo envolve princípios de distinção
que podem se estender para além do sistema linguístico, para outros aspectos do
comportamento que estão semioticamente organizados (Irvine, 2001 apud Bentes,
2006).
Em relação ao design de referência, ao defini-lo como uma mudança estilística feita
pelo falante com o intuito de identificar-se mais fortemente com o próprio grupo ou com um
terceiro grupo, Bell (2001) coloca a questão da identidade também em relação à audiência (e
consequentemente em relação às questões sociais), pois essa mudança “é essencialmente uma
redefinição feita pelo falante da sua própria identidade em relação a sua audiência”. Então,
não como uma dicotomia, design de audiência e design de referência funcionam como um
continuum em que: “Sim, nós estamos projetando nossa conversa para a nossa audiência. Mas
estamos também simultaneamente modelando-a em relação a outros grupos de referência
incluindo nosso próprio grupo” (Bell, 2001). Para eliminar essa dicotomia, Bell (2001)
formulou uma metodologia que não privilegiasse a análise quantitativa (para encontrar
padrões a serem explicados pelo design de audiência), deixando as exceções para serem
explicadas pelo design de referência (análise mais de cunho qualitativo). Essa metodologia
consiste em análises quantitativas e qualitativas complementares.
Jubran et al. (2002) a partir de uma perspectiva discursiva promoveram um estudo da
organização tópica de um discurso de natureza oral-dialogada a fim de melhor definir a
unidade de análise de estatuto discursivo, o tópico:
Tomado no sentido geral de “acerca de”, o tópico manifesta-se, na conversação,
mediante enunciados formulados a respeito de um conjunto de referentes explícitos
ou inferíveis, concernentes entre si e em relevância num determinado ponto da
mensagem. (Jubran et al, 2002: 344) (grifos nossos)
A nova definição foi uma revisão dos estudos do grupo cuja primeira definição
revelou-se de difícil operacionalização devido ao caráter vago e amplo do significado de
assunto e do grau de subjetividade na compreensão da noção: “fragmentos textuais, de
extensões variadas, recobrindo determinado assunto (tema), em pauta no segmento recortado
para análise” (Koch et al, 1990 apud Jubran et al, 2002: 343).
Os pesquisadores procuraram estabelecer traços que pudessem definir a categoria
tópico com mais segurança e objetividade. A centração, que é uma das propriedades
Anais do XX Seminário do CELLIP – Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná CELLIP 25 anos | Londrina, UEL | 25 a 27 de outubro de 2011 ISSN 2175-­‐2540 4 definidoras de tópico, abrange, além dos traços de concernência (“relação de
interdependência entre elementos textuais, firmada nos mecanismos coesivos de sequenciação
e referenciação”) e relevância (“proeminência de elementos textuais na constituição desse
conjunto referencial”), o traço de pontualização, que se caracteriza pela “localização desse
conjunto em determinado ponto do texto”.
Segundo Maynard (1990 apud Jubran et al., 2002), os estudos mais recentes
demonstram que o tópico não é mais visto apenas como uma noção de conteúdo como os
estudos anteriores, visto que “aquilo de que se fala” não pode ser desvinculado do “como se
fala” (Maynard, 1980 apud Jubran et al., 2002). Podemos afirmar que o conceito de tópico do
Grupo de Organização Textual Interativa do Projeto de Gramática do Português Falado
(PGPF) contribui para o pressuposto de Maynard, visto que os elementos coesivos de
referenciação e sequenciação nos dão pistas para a delimitação do tópico (traço de
concernência) (Marcuschi, 2008: 141).
A partir desse pressuposto do tópico como um princípio organizador do discurso,
Jubran et al. (2002) postulam a outra propriedade do tópico: a organicidade. Esta propriedade
diz respeito às relações de interdependência tópica que pode se estabelecer em dois níveis: o
hierárquico e o linear/sequencial. O primeiro se refere ao plano vertical, em que os tópicos
podem ser descritos hierarquicamente “conforme as dependências de superordenação e
subordinação entre tópicos que se implicam pelo grau de abrangência do assunto” (Jubran et
al., 2002: 345) e o segundo se refere ao plano horizontal “de acordo com as articulações
intertópicas em termo de adjacências ou interposições na linha discursiva” (Jubran et al.,
2002: 345).
A partir dessa categoria, Jubran et al. (2002) conseguem identificar e delimitar os
segmentos tópicos, ou seja, “unidades discursivas que atualizam as propriedades de tópico”
(Jubran et al., 2002: 345); observar como esses segmentos se distribuem linearmente e se
inter-relacionam hierarquicamente no texto e caracterizar estruturalmente os segmentos, ou
seja, caracterizar a estrutura intratópica que pode vir evidenciada por marcas linguísticas na
sua abertura, meio ou saída que ajudam a delimitá-los.
A partir dessa constatação, os autores propuseram a análise a partir de Quadros
Tópicos (QT), ―noção abstrata e relacional cujo estatuto concreto é determinado pelo nível
de hierarquia selecionado pelo analista (Jubran et al., 2002), caracterizados por duas
condições necessárias (a e b) e uma possível (c):
a) centração num tópico mais abrangente (Supertópico – ST);
Anais do XX Seminário do CELLIP – Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná CELLIP 25 anos | Londrina, UEL | 25 a 27 de outubro de 2011 ISSN 2175-­‐2540 5 b) divisão interna em tópicos co-constituintes (Subtópicos – SbT);
c) subdivisões sucessivas no interior de cada tópico co-constituinte de forma que um tópico
pode vir a ser ao mesmo tempo ST e SbT.
Em relação à distribuição linear do tópico, os autores caracterizam dois fenômenos
básicos: a continuidade e a descontinuidade. A primeira se refere à abertura do tópico
subsequente com o esgotamento do anterior e a segunda à perturbação da sequência linear
seja pela suspensão de um tópico que ainda não se esgotou ou pela divisão desse tópico que
será retomado posteriormente. Segundo Jubran et al. (2002), apesar da possibilidade de
descontinuidade com a inserção de tópicos constitutivos de um quadro tópico entre tópicos de
outro quadro tópico, nos níveis hierárquicos mais elevados, há uma tendência ao
restabelecimento da linearidade. Assim, quando há dois supertópicos na conversação, um só é
iniciado quando o outro se esgota, confirmando segundo os autores a estruturação, coesão e
coerência do fenômeno conversação.
Análise da primeira situação comunicativa
Na primeira situação comunicativa, o discurso público, apesar de ter uma plateia
formada por pessoas fisicamente presentes, Mano Brown age da mesma forma como Goffman
propôs que ocorre aos comunicadores televisivos: “os comunicadores são pressionados a
modular suas falas como se fossem dirigidas a um único ouvinte” (Goffman, 1964 apud
Azanha, 2008). O termo plateia se faz adequado à fala que vem da tribuna, segundo Goffman
(1964 apud Ribeiro; Garcez, 2002: 125-26), pois as plateias escutam de uma maneira “que
lhes é peculiar”, afinal, não constituem um conjunto de companheiros de conversa e podem
ter “o direito de examinar o falante diretamente com uma franqueza que seria ofensiva numa
conversa”.
Além disso, “o papel de uma plateia é o de apreciar as observações feitas e não o de
responder de forma direta”, apesar de serem testemunhas ao vivo (“co-participantes numa
mesma ocasião social”) e de poderem dar sinais de concordância, atenção etc. No caso do
discurso proferido por Mano Brown, o principal efeito discursivo produzido é o de certo grau
de proximidade com os interlocutores, em virtude dos próprios tópicos abordados pelo
rapper. Mano Brown, por exemplo, critica a si mesmo e aos membros da sua comunidade e,
além disso, exemplifica trazendo cenas do cotidiano da periferia. Isso contribui para a
aproximação dele com a plateia e diminui possíveis apreciações negativas sobre ele em seu
discurso.
Anais do XX Seminário do CELLIP – Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná CELLIP 25 anos | Londrina, UEL | 25 a 27 de outubro de 2011 ISSN 2175-­‐2540 6 Em termos de organização tópica de natureza hierárquica (Jubran et al., 2002; Jubran,
2006; Bentes e Rio, 2006), a primeira situação comunicativa apresenta, a nosso ver, o
supertópico Qualidades e defeitos do ser humano e dois quadros tópicos co-constituintes:
(1) Humildade x arrogância e (2) Comentários sobre si mesmo.
Essa delimitação foi possível graças a duas etapas: a primeira consistiu na
segmentação do texto em suas menores porções (segmentos tópicos), identificáveis
fundamentalmente pelo princípio de centração e a segunda no agrupamento desses segmentos
tópicos, conforme o grau de associação entre eles e o enquadramento sucessivo dos grupos em
níveis mais elevados (quadros tópicos) conforme o princípio de organicidade.A partir do
agrupamento, foi possível identificar os quadros tópicos e os seus segmentos tópicos coconstituintes.
O quadro tópico (1) envolve cinco subtópicos: Definição de pobreza; Definição de
sabedoria; Crítica sobre a situação da favela; Crítica sobre tratar o playboy com
arrogância e Crítica sobre a ostentação de bens materiais.
O quadro tópico (2) envolve seis subtópicos: Sinceridade; Ter a proteção de Deus;
Honra de receber o prêmio; Falha de não estar sempre presente; Fama e Solidão.
A partir do segundo gráfico, podemos observar que há nesse texto oral uma tendência
à não perturbação da linearidade, ou, em outras palavras, Mano Brown introduz um novo
tópico apenas depois de concluí-lo. No texto todo, só há uma exceção: o subtópico Definição
de sabedoria que é retomado duas vezes, uma inclusive quando outro quadro tópico já havia
sido introduzido. Mano Brown retoma esse subtópico, para fazer conclusões.
Qualidades
e defeitos
do ser
humano
Humildade
x
arrogância
Definição
de pobreza
1
Definição
de
sabedoria
2
5
12
Comentários sobre si
mesmo
Crítica
sobre a
situação
da favela
Crítica
sobre tratar
o playboy
com
arrogância
Crítica
sobre a
ostentação
de bens
materiais
3
4
6
Sinceridade
Ter a
proteção de
Deus
Honra de
receber o
prêmio
7
8
9
Gráfico 1. Organização tópica hierárquica da primeira situação comunicativa
Falha de
não estar
sempre
presente
10
Fama
Solidão
11
13
Anais do XX Seminário do CELLIP – Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná CELLIP 25 anos | Londrina, UEL | 25 a 27 de outubro de 2011 ISSN 2175-­‐2540 7 1 Definição de pobreza
Linhas 14-15
2 Definição de sabedoria
Linhas 18-22
3 Crítica sobre a situação
da favela
Linhas 22-25
4 Crítica sobre tratar o
playboy com arrogância
Linhas 25-30
5 Definição de sabedoria
Linhas 30-32
6
Crítica
sobre
a
ostentação
de
bens
materiais
Linhas 32-35
7 Sinceridade
Linhas 35-41
8 Ter a proteção de Deus
Linhas 41-43
9 Honra de receber o
prêmio
Linhas 43-47
10 Falha de não estar
sempre presente
Linhas 47-50
11 Fama
Linhas 52-56
12
Definição
sabedoria
Linhas 56-59
13 Solidão
Linhas 65-72
de
Gráfico 2. Organização tópica linear da primeira situação comunicativa
Em relação aos tópicos desenvolvidos pelo rapper, percebemos que Mano Brown
revela uma determinada percepção dos fatos do mundo e de suas próprias ações, ou seja, além
da reflexão sobre a realidade social presente em suas músicas, ele revela em seu discurso que
o ato de refletir sobre as qualidades e defeitos dos seres humanos e sobre suas próprias ações
faz parte constante de sua vida.
Sendo assim, podemos concluir que os dois quadros tópicos são de caráter reflexivo:
enquanto o primeiro, Humildade x arrogância, caracteriza a reflexão de Mano Brown sobre
a sociedade em geral, o segundo, Comentários sobre si mesmo, caracteriza a reflexão do
rapper sobre si mesmo. Apesar de falar sobre os defeitos da sociedade em geral, Mano Brown
os exemplifica com cenas do cotidiano da própria favela de forma a incitar em seus
interlocutores uma consciência crítica (cf. Bentes, 2009a).
Um recurso bastante marcante na fala do rapper é o uso constante de analogias
(inteligência = humildade = sabedoria; arrogância = burrice = revolta/ódio/neurose) e de
antíteses (humildade x arrogância; sabedoria x burrice) para falar das qualidades e defeitos
dos seres humanos.
O segundo quadro tópico, Comentário sobre si mesmo, caracteriza a reflexão de
Mano Brown sobre si mesmo. Em relação à burrice, por exemplo, o rapper se inclui também
no “erro de ser burro”; ou seja, o locutor procura demonstrar que não é perfeito e com isso,
aproxima-se de seu interlocutor. Após fazer as críticas a si mesmo, Mano Brown faz a
seguinte promessa: “eu vou tentar ser menos burro...daqui pa frente(...)”. O fato de o rapper
fazer promessas, revelar seus erros e desejos e também pedir a sua audiência que “não o
abandonem” mostra que Mano Brown, mais do que adequar sua linguagem à de seus
interlocutores (design de audiência), tenta se aproximar dos seus interlocutores através de
determinados tópicos, exibindo um discurso que promove a sua identificação com os
moradores da favela (design de referência).
Anais do XX Seminário do CELLIP – Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná CELLIP 25 anos | Londrina, UEL | 25 a 27 de outubro de 2011 ISSN 2175-­‐2540 8 Em relação aos comentários, a maioria também é de caráter reflexivo, mas em relação
à sua própria linguagem: o rapper reflete sobre a fala das pessoas que discursaram e sobre sua
própria fala, ou seja, muito das suas escolhas, em termos de tópico e de estratégias
discursivas, se deve a essa reflexão sobre a linguagem. O seu discurso, resultaria, portanto,
tanto da sua reflexão sobre a realidade como da sua reflexão sobre a linguagem (Bentes,
2009a).
Análise da segunda situação comunicativa
Na segunda situação comunicativa, temos uma interação face a face com apenas um
“participante endereçado e ratificado” (Goffman, 1964 apud Ribeiro e Garcez, 2002), ou seja,
Mano Brown endereça a sua fala a apenas um interlocutor, mesmo sabendo que podem estar
presentes outros participantes, que são denominados por Goffman (1979 apud Ribeiro e
Garcez, 2002) como “circunstantes”, que apesar de ratificados, não são os diretamente
endereçados. É importante salientar ainda que os interlocutores estão bem próximos e em um
lugar conhecido e familiar para o rapper: o seu carro. Além disso, nessa situação
comunicativa, não há uma divisão dos turnos de fala nos moldes de uma conversação. Assim,
Mano Brown faz uso de todo o turno e seus interlocutores produzem apenas backchannels5, o
que caracteriza sua produção discursiva como um depoimento.
Em termos de organização tópica de natureza hierárquica, a segunda situação
comunicativa apresenta, a nosso ver, um supertópico predominante e desenvolvido:
Documentário. Esse supertópico apresenta dois quadros tópicos co-constituintes: (1)
História da vida de um ladrão e (2) Descrição do contexto. Um outro tópico não
desenvolvido é o Sonhar em estar preso, que só aparece no final quando Mano Brown faz a
seguinte revelação: “eu já sonhei eu preso várias vez/tipo...já me imaginei várias vez/cê
acredita?...várias vezes... morto nem tanto...”. A emergência desse outro tópico, considerando
que essa fala de Mano Brown é bem curta, apesar de indicar uma mudança na direção e na
natureza do tópico, relaciona-se com a sua fala anterior, que discorria sobre a História da
vida de um ladrão e a Descrição do Contexto dessa história.
Essa delimitação foi possível graças a duas etapas já citadas anteriormente, também
empreendidas na primeira situação comunicativa.
A partir do agrupamento, foi possível identificar os quadros tópicos e os seus
5
A fim de demonstrar que está prestando atenção na fala do outro, uma pessoa pode emitir o que Duncan (1972),
denomina backchannel, normalmente realizadas por meio de indicações vocais, como “hum-hum”, em
português, ou por meio do olhar ou de acenos com a cabeça.
Anais do XX Seminário do CELLIP – Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná CELLIP 25 anos | Londrina, UEL | 25 a 27 de outubro de 2011 ISSN 2175-­‐2540 9 segmentos tópicos co-constituintes.
O quadro tópico (1) envolve quatro subtópicos: Gostos; Assassinatos cometidos pelo
ladrão; Fama do ladrão e Amigos do ladrão.
O quadro tópico (2) envolve quatro subtópicos: Apresentação geral; Favela; Casa de
detenção e Linguagem dos ladrões.
Assim como na primeira situação comunicativa, no depoimento, não há
desdobramento dos subtópicos para um terceiro nível inferior. Acreditamos também que isso
se deva ao menor detalhamento em decorrência do curto tempo de fala.
Em termos sequenciais, Mano Brown inicia o seu texto com um tópico de natureza
interacional:
MB
vô(u) fazê(r) o seguinte... põe essas revista...daqui ó... nóis (es)tá de teto
solar mano... o negócio (es)tá foda
Documentário
Descrição
do contexto
Favela
Apresentação geral
1
6
10
História da
vida de um
ladrão
Casa de
detenção
Linguagem
dos ladrões
7
8
Gostos do
ladrão
2
Assassinatos
cometidos
pelo ladrão
11
3
Fama do
ladrão
4
Amigos do
ladrão
9
5
Gráfico 3 - Organização tópica hierárquica da segunda situação comunicativa: primeiro supertópico
1 Apresentação geral
Linhas 4-9
6
Linha 16
Favela
2 Gostos
Linhas 9-10
7 Casa de Detenção
Linhas 16-18
3 Assassinatos cometidos
pelo ladrão
Linhas 10-11
8 Linguagem dos
ladrões
Linhas 21-26
4 Fama do ladrão
Linhas 13-14
9 Fama do ladrão
Linhas 26-28
10 Favela
Linhas 29-34
5 Amigos do ladrão
Linhas 14-15
11 Gostos
Linhas 34-37
Gráfico 4 - Organização tópica linear da segunda situação
Segundo Jubran et al. (2002:366), isso caracterizaria uma digressão baseada na
interação. Segundos os autores, “tais digressões, por serem baseadas sensivelmente na
interação, são perfeitamente identificáveis e demarcáveis, embora nem sempre apresentem
estruturas claras e definidas”. Nesse caso, Mano Brown começa a interação com uma
Anais do XX Seminário do CELLIP – Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná CELLIP 25 anos | Londrina, UEL | 25 a 27 de outubro de 2011 ISSN 2175-­‐2540 10 preocupação em deixar o interlocutor mais confortável (“vô(u) fazê(r) o seguinte... põe essas
revista...daqui ó”) e depois faz um comentário sobre o carro onde estão (“nóis (es)tá de teto
solar mano... o negócio (es)tá foda”). Apesar de não constituírem digressões propriamente
ditas, pois não interrompem nenhum tópico em andamento, não podemos deixar de considerar
a importância desse início como uma espécie de convite à interação.
Em relação à linearidade, podemos dizer que ao contrário da primeira situação
comunicativa, há maior descontinuidade tópica. Mano Brown apenas inicia o primeiro quadro
tópico (Descrição do contexto) para fazer uma apresentação geral do documentário visto. Em
seguida, ele inicia outro quadro tópico (História da vida de um ladrão) e depois retoma o
quadro tópico Descrição do contexto mesmo sem ter concluído o tópico o anterior. Dessa
forma, ele volta ao quadro tópico História da vida de um ladrão com os subtópicos Fama
do ladrão e Gostos do ladrão e, entre eles, insere o subtópico do outro quadro tópico:
Favela. Podemos concluir, então, que apesar de haver continuidade em determinado ponto da
conversa, no início e no fim, há tendência para a descontinuidade, ou seja, ocorre “introdução
de um tópico, por abandono do anterior, antes que os interlocutores o dessem por encerrado.
Nessa situação, ocorre um corte do tópico que estava em pauta” (Jubran et al., 2002: 350).
Nessa situação comunicativa, não há uma divisão dos turnos de fala nos moldes
convencionais, como já foi dito, caracterizando a produção discursiva do rapper como um
depoimento, bastante próximo de uma narrativa de experiência pessoal. Concluímos, a partir
da identificação dos tópicos, que a forma como o rapper organiza os conteúdos e finaliza seu
depoimento revela que ele não apenas reconta o que viu, mas também explicita o impacto
daquele produto cultural sobre si mesmo. Isto é evidenciado também pela quantidade relativa
de comentários: linhas 15-16 (“pô achei lo(u)co pa carai”); linha 18 (“INCRÍVEL COMO
LADRÃO NÃO MUDA”); linha 39 (“eu falei pÔ::rra lo(u)co lo(u)co lo(u)co lo(u)co”).
Conclusão
A partir dos nossos estudos iniciais sobre a relação entre as atividades de estilização e
o tópico discursivo, podemos dizer que nossa hipótese - de que o tópico discursivo
contribuiria fortemente para a mudança de estilo operada por Mano Brown - encontra-se
comprovada.
A partir da análise comparativa entre as duas situações comunicativas, pudemos
observar uma tendência a maior descontinuidade tópica na segunda situação comunicativa do
que na primeira. Podemos concluir que isso ocorre tanto em função tanto do tipo de audiência,
como também em função do próprio tópico discursivo mobilizado pelo locutor: se na primeira
situação comunicativa, Mano Brown agradece o prêmio que está recebendo por meio da
Anais do XX Seminário do CELLIP – Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná CELLIP 25 anos | Londrina, UEL | 25 a 27 de outubro de 2011 ISSN 2175-­‐2540 11 tematização das qualidades e defeitos do ser humano e se na segunda situação comunicativa o
rapper está discorrendo de maneira informal sobre uma experiência sua com um determinado
objeto cultural, então podemos dizer que a mobilização desses diferentes tópicos discursivos
demanda atividades de textualização específicas (comentário & narração) que acabam por
resultar em processos de iconização recorrentes e observáveis (Irvine, 2001 apud Bentes,
2006), necessários para a caraterização do estilo. Este trabalho é apenas o primeiro passo para
o desenvolvimento de análises desses processos de iconização presentes nas falas dos sujeitos
que estilizam seus modos de comunicação e de ser e estar no mundo.
Referências Bibliográficas:
AZANHA, E.F.S. Gêneros televisivos na escola: a co-construção dos sentidos nas interações
de alunos do ensino médio. Campinas, 2008. Dissertação de Mestrado em Lingüística.
Orientador: Anna Christina Bentes. IEL, Unicamp.
BELL, A. “Back in style: reworking audience design”. In: Penelope Eckert and John Rickford
(eds.), Style and sociolinguistic variation. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p.
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Scisci; Marjorie Mari Fanton.
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