Universidade
Católica de
Brasília
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Direito
A TRADIÇÃO CULTURAL E A PROTEÇÃO AMBIENTAL: O
CASO DA FARRA DO BOI E A COLISÃO DE PRINCÍPIOS
Autora: Neslita da Costa Silva
Orientador: Dr. Arnaldo Sampaio Moraes Godoy
BRASÍLIA
2008
NESLITA DA COSTA SILVA
A TRADIÇÃO CULTURAL E A PROTEÇÃO AMBIENTAL: O CASO DA FARRA
DO BOI E A COLISÃO DE PRINCÍPIOS
Monografia apresentada ao curso de
Graduação em Direito da Universidade
Católica de Brasília, como requisito
parcial para a obtenção do Título de
Bacharel em Direito.
Orientador: Dr. Arnaldo Sampaio Moraes
Godoy
Brasília
2008
Monografia de autoria de Neslita da Costa Silva, intitulada "A TRADIÇÃO
CULTURAL E A PROTEÇÃO AMBIENTAL: O CASO DA FARRA DO BOI E A
COLISÃO DE PRINCÍPIOS", apresentada como requisito parcial para obtenção do
grau de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, em , defendida e
aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:
_______________________________________________
Dr. Arnaldo Sampaio Moraes Godoy
Orientador
Direito - UCB
_______________________________________________
Prof. (titulação). (nome do membro da banca)
(curso) - (sigla da instituição)
_______________________________________________
Prof. (titulação). (nome do membro da banca)
(curso) - (sigla da instituição)
Brasília
2008
Dedico este trabalho ao professor Godoy.
AGRADECIMENTO
A todos que colaboraram em mais uma etapa de minha vida.
RESUMO
SILVA, Neslita da Costa. A tradição cultural e a proteção ambiental: o caso da
farra do boi e a colisão de princípios. 2008. 79 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em Direito)-Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2008.
A sociedade é organizada numa estrutura de normas que rege as suas relações
sociais. A estrutura de normas é o ordenamento jurídico e em seu vértice está a
Constituição. Neste contexto, os direitos fundamentais fazem parte deste sistema de
imbricamento com função axiológica que coaduna com os princípios. É inevitável a
colisão entre os princípios. Como não há hierarquia entre os princípios, a solução
mais propícia é a ponderação de interesse. Assim há permissão da coexistência
simultânea dos princípios em determinadas questões fáticas que mantém a unidade
da Constituição. A flexibilidade constitucional consolida sua coesão para adequação
das mutações da sociedade e preservação da dignidade humana.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Colisão de Princípios. Ponderação de
Interesses.
ABSTRACT
SILVA, Neslita da Costa. A tradição cultural e a proteção ambiental: o caso da
farra do boi e a colisão de princípios. 2008. 79 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em Direito)-Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2008.
The company is organized into a framework of rules governing their social
relationships. The structure of standards is the legal system and its apex is the
Constitution. In this context, fundamental rights are part of this system of overlapping
with that function axiological line with the principles. It is the inevitable collision
between the principles. Because there is no hierarchy among the principles, the
solution is more conducive to balancing of interest. Thus there allowed the
coexistence of both the principles on certain issues fáticas that maintains the unity of
the Constitution. The constitutional flexibility to consolidate their cohesion adequacy
of changes in society and preservation of human dignity.
Keywords: Fundamental rights. Principles of collision. Balance of interest.
SUMÁRIO
1 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA TRADIÇÃO CULTURAL E DO MEIO
AMBIENTE ............................................................................................................8
1.1 EVOLUÇÃO DO DIREITO ..................................................................................8
1.2 PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA TRADIÇÃO CULTURAL ........................15
1. 3 PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE..................................20
2 COLISÃO DE PRINCÍPIOS .................................................................................25
2.1 A NORMA .........................................................................................................25
2.2 OS PRINCÍPIOS E REGRAS ............................................................................26
2.3 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA.............................................................33
2.3 POSTULADOS NORMATIVOS.........................................................................37
2.4 COLISÃO DE PRINCÍPIOS...............................................................................39
3 O CASO DA FARRA DO BOI .............................................................................62
4 CONCLUSÃO......................................................................................................74
REFERÊNCIAS.........................................................................................................76
8
1 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA TRADIÇÃO CULTURAL E DO MEIO
AMBIENTE
1.1
EVOLUÇÃO DO DIREITO
A Constituição é a supremacia da positivação de normas importantes que
regulam uma sociedade. Na dialética histórica os direitos aperfeiçoam-se cada vez
mais sem exclusão dos existentes. Vale destacar que o rol de direitos fundamentais
não está restrito a tão-somente a um artigo e sim disseminado por toda Constituição.
A responsabilidade de tutelar a vida é tanto do Estado como da sociedade. E
assim:
O avanço que o direito constitucional apresenta hoje é resultado, em boa
medida, da afirmação dos direitos fundamentais como núcleo da proteção
da dignidade da pessoa e da visão de que a Constituição é o local
adequado para positivar as normas asseguradoras dessas pretensões.
Corre paralelos no tempo o reconhecimento da Constituição como norma
suprema do ordenamento jurídico e a percepção de que os valores mais
raros da existência humana merecem estar resguardados em documento
jurídico com força vinculativa máxima, indene às maiorias ocasionais
formadas na efervescência de momentos adversos ao respeito devido ao
homem. 1
É de extrema importância os direitos fundamentais, assim Daniel Sarmento
assevera: “[...] os direitos fundamentais incorporam uma relevante dimensão moral à
ordem jurídica, exigindo do Estado e da sociedade em geral a adoção de um
tratamento digno em relação a cada pessoa humana.” 2
Os direitos fundamentais asseguram à sociedade uma especial atenção
valorativa à dignidade da pessoa humana bem como restringem a atuação do
Estado.
O limite do poder do Estado está inserto nos direitos fundamentais e,
portanto: “Assim, os direitos fundamentais surgiram para limitar o poder do Estado.” 3
Não há uma limitação específica dos direitos fundamentais, pois estão
disseminados por toda a Constituição, eis como salienta Gilmar Mendes: “O catálogo
1
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Direito
constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 231.
2
SARMENTO, Daniel. Colisões entre direitos fundamentais e interesses públicos. In: SARMENTO,
Daniel; GALDINO, Flávio (Org.). Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor
Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 268.
3
COUTO, Lindajara Ostjen. Os direitos fundamentais e seus limites. Disponível em:
<http://www.ostjen.com.br/conteudo.php?TID=202>. Acesso em: 4 jun. 2008.
9
dos direitos fundamentais vem-se avolumando, conforme as exigências específicas
de cada momento histórico.” 4
A evolução dos direitos passou por várias etapas conforme as mutações da
sociedade:
[...] Os direitos fundamentais de terceira dimensão, em que, na condição de
direitos de solidariedade e fraternidade, de titularidade coletiva e difusa,
desprendem-se da figura do indivíduo, destinando-se à proteção de grupos
humanos. 5
A evolução das constituições retrata gerações de direitos pertinentes a cada
tempo em mutação e exprime-se da seguinte forma:
[...] As Constituições começam a se ocupar de uma nova tipologia de
direitos de natureza transindividual, relacionados à qualidade de vida do
homem [...] de terceira geração, não possuem titular certo, mas pertencem a
uma série indeterminada de sujeitos, caracterizando-se pela indivisibilidade
do seu objeto. Entre eles avultam, pela importância, o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado e à preservação de valores culturais e
espirituais, tais como os relacionados à proteção do patrimônio cultural e
artístico. 6
O foco da Constituição reflete na preservação do meio ambiente para sua
própria proteção. Uma vez que sem cuidar do ambiente não estimulará a qualidade
de vida.
Alexandre de Moraes continua: “[...] protege-se, constitucionalmente, como
direitos de terceira geração os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade,
que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado.” 7
A Revolução Francesa destaca-se nas mudanças de paradigmas de direito na
tríade de liberdade, igualdade e fraternidade. Com a revolução de idéias, também a
o reflexo na revolução do direito. Enfatiza-se que:
Em rigor, o tema revolucionário do século XVIII, [...] exprimiu em três
princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais,
profetizando até mesmo a seqüência histórica de sua gradativa
institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade. 8
4
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 236.
SBROGIOBALIA, Susana. Mutações constitucionais e direitos fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 127.
6
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2003. p. 65.
7
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 27.
8
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 562.
5
10
O paradigma de proteção dos direitos fundamentais evoluiu como as
mutações da sociedade. Nesta evolução, vale destacar, segundo a maioria da
doutrina há três gerações ou dimensões.
Em concordância com estas palavras:
Os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se
em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo
cumulativo e qualitativo, o qual, segundo tudo faz prever, tem por bússola
uma nova universalidade: a universalidade material e concreta, em
substituição da universalidade abstrata e, de certo modo, metafísica
daqueles direitos [...]. Enfim, se nos deparam direitos da primeira, da
segunda e da terceira gerações, a saber, os direitos da liberdade, da
igualdade e da fraternidade [...]. 9
As marcas das dimensões dos direitos existentes cumulam sempre com os
novos e destacam os ideais da Revolução. Corroborando esta afirmação Gilmar
Mendes diz: “[...] situa a evolução dos direitos fundamentais em três gerações.” 10
Na primeira geração não há a preocupação com as diferenças sociais. Assim,
para Gilmar Mendes: “[...] são direitos em que não desponta a preocupação com
desigualdades sociais. O paradigma de titular desses direitos é o homem
individualmente considerado.” 11
A sociedade viveu muito tempo acorrentada e com os direitos da primeira
dimensão conquistou a liberdade individual.
Os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a
contarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis
e políticos [...].
Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o
indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou
atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais
característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o
Estado. [...] valorizam primeiro o homem-singular, o homem das liberdades
abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada
sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual. 12
Os de segunda geração, ao contrário da primeira geração apontam a questão
de igualdades sociais e conforme Gilmar Mendes: “[...] são direitos de segunda
geração, por meio dos quais se intenta estabelecer uma liberdade real e igual para
todos, mediante a ação corretiva dos Poderes Públicos. Dizem respeito a assistência
social, saúde, educação, trabalho, lazer etc.” 13
9
BONAVIDES, 2007, p. 563.
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 233.
11
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 233.
12
BONAVIDES, 2007, p. 563-564.
13
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 233.
10
11
Vale destacar, portanto, que as características marcantes dessa geração são
os direitos sociais e Gilmar Mendes: frisa que: “[...] direitos sociais, não porque
sejam direitos de coletividade, mas por se ligarem a reivindicações de justiça social
– na maior parte dos casos, esses direitos têm por titulares indivíduos
singularizados.” 14
Os direitos de segunda dimensão frisam a igualdade e os direitos sociais e
em consonância com esta passagem:
Os direitos de segunda geração [...] dominam o século XX do mesmo modo
como os direitos da primeira geração dominaram o século passado. São
direitos sociais, culturais e econômicas bem como os direitos coletivos ou
de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de
Estado social [...]. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual
não se podem separar [...].
[...] tão importante quanto salvaguardar o indivíduo [...] era proteger a
instituição, uma realidade social muito mais rica e aberta à participação
criativa e à valoração da personalidade que o quadro tradicional da solidão
individualista. [...]. 15
Vale ressaltar, que com a geração de novos direitos, não significou a exclusão
dos já existentes e sim a coligação aos demais alargando mais o leque da
diversidade dos direitos fundamentais:
Se na fase da primeira geração dos direitos fundamentais consistiam
essencialmente no estabelecimento das garantias fundamentais da
liberdade, a partir da segunda geração tais direitos passaram a
compreender, além daquelas garantias, também os critérios objetivos de
valores, bem como os princípios básicos que animam a lei maior,
projetando-lhe a unidade e fazendo congruência fundamental de suas
regras. 16
Os princípios da igualdade e liberdade assumem o novo papel de garantia em
prol dos direitos individuais:
A concepção de objetividade e de valores relativamente aos direitos
fundamentais fez com que o princípio de igualdade tanto quanto o da
liberdade tomassem também um sentido novo, deixando de ser mero direito
individual [...] para assumir [...] uma dimensão de garantia contra atos de
arbítrio do Estado. 17
Enfim, os direitos de terceira geração enfocam a coletividade como se
destaca em:
Já os direitos chamados de terceira geração peculiarizam-se pela
titularidade difusa ou coletiva, uma vez que são concebidos para a proteção
14
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 234.
BONAVIDES, 2007, p. 564.
16
BONAVIDES, 2007, p. 568.
17
BONAVIDES, 2007, p. 568-569.
15
12
não do homem isoladamente, mas da coletividade, de grupos. Tem-se, aqui,
o direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à
conservação do patrimônio histórico e cultural. 18
Em consonância com a preservação da paz, meio ambiente e patrimônio
comum com a preocupação do desenvolvimento, a globalização tem-se que:
Os direitos da terceira geração [...] não se destinam especificamente à
proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um
determinado Estado. Têm primeiro por destinatários o gênero humano [...].
Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento à
paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da
humanidade. 19
Em harmonia com um ambiente ecologicamente equilibrado para satisfação
da proteção da coletividade, o Poder público é distribuído equitativamente entre os
entes federados brasileiros e neste sentido:
Consagra a nova Constituição o direito (de 3ª geração) de todos a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida.
Coloca-o sob a proteção da coletividade e do Poder Público. A este atribui
numerosas incumbências, que evidentemente deverão ser exercidas dentro
da esfera de competências próprias a cada um. Quer dizer, ao Poder
Público federal segundo a competência federal, ao estadual segundo a
competência dos Estados etc. 20
Novos direitos marcam momentos e exigências de adaptações da sociedade
às novas realidades e necessidades, eis a dialética. Isto significa que os novos
direitos unem-se com os já existentes, como se observa que:
[...] falar em sucessão de gerações não significa dizer que os direitos
previstos num momento tenham sido suplantados por aqueles surgidos em
instante seguinte. Os direitos de cada geração persistem válidos juntamente
com os direitos da nova geração, ainda que o significado de cada um sofra
o inflluxo das concepções jurídicas e sociais prevalentes nos novos
momentos. Assim, um antigo direito pode ter o seu sentido adaptado às
novidades constitucionais. 21
Em síntese, os direitos adaptam-se conforme as mudanças de novos
paradigmas da sociedade, Gilmar Mendes conclui: “Pode ocorrer, ainda, que alguns
chamados novos direitos sejam apenas os antigos adaptados às novas exigências
do momento.” 22
18
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 234.
BONAVIDES, 2007, p. 569.
20
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2007. p. 374.
21
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 234.
22
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 234.
19
13
O Direito ambiental coaduna com a responsabilidade de todos para
preservação do homem e da vida no planeta. Assim assevera-se que:
[...] direitos de solidariedade [...] estão na Lei Magna o direito ao meio
ambiente [...] Estes direitos são difusos, na medida que não têm como titular
pessoa singularizada, mas “todos indivisamente sem direitos pertencentes
ao uma coletividade enquanto tal.” 23
A proteção ambiental enfoca a responsabilidade e consciência da coletividade
com o meio ambiente equilibrado para agora e para o futuro.
No que se refere aos princípios fundamentais do direito ambiental [...] a
maioria dos autores converge na indicação dos seguintes: princípio do
ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa
humana, princípio da natureza pública da proteção ambiental, princípio do
controle do poluidor pelo Poder Público, princípio da consideração variável
ambiental no processo decisório de políticas de desenvolvimento; princípio
da participação comunitária, princípio do poluidor-pagador, princípio da
prevenção, princípio da função sócio-ambiental da propriedade, princípio do
direito ao desenvolvimento sustentável e princípio da cooperação entre os
povos. 24 (grifo do autor).
Também, Gilmar Mendes frisa: ”[...] o problema ecológico tornou-se questão
de consciência para a maioria dos habitantes do planeta Terra [...]” 25
A preocupação com ambiente e qualidade de vida sustentável é foco atual de
todo o planeta:
[...] a necessária correlação entre ambiente e qualidade de vida,
preocupação de resto refletida na constitucionalização e na legalização da
ecologia, do que resultou uma nova atitude diante dessa problemática, tanto
no plano das ações individuais, quanto no das decisões comunitárias e no
da adoção de políticas públicas, inspiradas, todas elas, nos exemplos que
nos vêm das nações que despertaram mais cedo para a importância e a
gravidade das questões ecológicas. 26
A possibilidade de dizimar a qualidade de vida do ser humano revelou-se na
importância de protegê-la constitucionalmente e assim José Afonso da Silva destaca
que: “[...] o problema da tutela jurídica do meio ambiente manifesta-se a partir do
momento em que sua degradação passa a ameaçar não só o bem-estar, mas a
qualidade da vida humana, se não a própria sobrevivência do ser humano.” 27
Ainda é tempo de fazer algo pela sobrevivência da vida humana que ocupa
parte do espaço do ambiente e neste sentido:
23
FERREIRA FILHO, 2007, p. 315.
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 1371.
25
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 1371.
26
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 1371
27
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 28.
24
14
A questão ecológica é um dos temais mais importantes de nosso século. O
desenvolvimento científico e tecnológico deu aos homens enorme poder de
destruição, que atinge a qualidade de vida de milhões de pessoas. [...]
Como defesa da sociedade, diante dos males e ameaças provocados pelas
diversas modalidades de poluição do ar, das águas, do solo, da flora, e da
fauna, estão sendo elaboradas novas normas em quase todos os campo do
direito. [...] Entre essas normas, ocupam lugar destacado aquelas que
definem o direito das pessoas a um ambiente sadio. 28
Na evolução das constituições brasileiras a que primeiro destacou a questão
ambiental foi a de 1988 e conforme José Afonso da Silva: “[...] ela é uma
Constituição eminentemente ambientalista. Assumiu o tratamento da matéria em
termos amplos e modernos. Traz um capítulo específico sobre o meio ambiente,
inserido no título de ‘Ordem Social’ (Capítulo VI, do título VIII).” 29
Também se constata que para o homem sobreviver no planeta, ele antes de
tudo precisa conservar a natureza não só no momento presente de uma geração,
mas em todas as outras gerações futuras:
[...] o homem não vive sem a natureza, pois esta é indispensável para a sua
sobrevivência, e a percepção da própria vinculação da defesa de meio
ambiente à equidade entre as gerações e à necessidade de um
desenvolvimento sustentável, retira a força da posição antropocêntrica
tradicional. 30
As questões ambientais refletem na economia, cultura e outros que
interligados não possibilitam o desenvolvimento sustentável:
[...] uma ética de aliança entre o homem e a natureza, percebe-se,
atualmente, uma mudança de paradigma que tende a situar, cada vez mais,
diversos problemas humanos, de cunho econômico, cultural e social como
questões ambientais. Trata-se da concepção do desenvolvimento humano
sustentável, que, ao enfatizar que os problemas sociais e ambientais estão
interligados, serve como reforço para a idéia da interdependência entre o
homem e a natureza e fundamenta a adoção de um conceito abrangente de
meio ambiente. 31
Cançado Trindade refere-se ao futuro das próximas gerações com o cuidado
especial em relação ao homem: “Outra inovação introduzida pela dimensão do
desenvolvimento humano sustentável diz respeito à proteção dos interesses das
28
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 27. ed. rev. e atual. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008. p. 20.
29
SILVA, 2005, p. 46.
30
AYALA, 2001, p. 67 apud BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas
manifestações culturais e na proteção da fauna. Curitiba: Juruá, 2006. p. 107.
31
BAHIA, 2006, p. 107.
15
futuras gerações, o que invoca a idéia de igualdade de acesso aos recursos do
planeta para todas as gerações.” 32
1.2
PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA TRADIÇÃO CULTURAL
A positivação do meio ambiente cultural encontra-se respaldada no
ordenamento jurídico e principalmente na Constituição e assim:
A constitucionalização do patrimônio cultural está inserta no art. 216 da
Constituição de 1988, verbis:
Art. 216. “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações, e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§1º O Poder Público, com colaboração da comunidade promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.
§2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da
documentação governamental e as providências para franquear a sua
consulta a quantos dela necessitem.
§3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens
e valores culturais.
§4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da
lei.
§5º Ficam tombados todos os documentos e sítios detentores de
33
reminiscências históricas dos antigos quilombos [...].
Não há uma única cultura que representa o Brasil com assinala Edis Milaré:
“[...] diante do direito positivo, do pluralismo cultural, isto é, o reconhecimento de que
a cultura brasileira não é única [...] é aquela que resulta da atuação e interação
dinâmica de todos os grupos e classe sociais de todas as regiões.” 34
Carolina Medeiros Bahia, professora na União Metropolitana de Educação e
Cultura - Unime e na Faculdade Ruy Barbosa bem como membro da Comissão de
32
1992, p. 55 apud BAHIA, 2006, p. 110.
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão do ambiente em foco: doutrina, jurisprudência,
glossário. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 252.
34
MILARÉ, 2007, p. 252.
33
16
Meio Ambiente da Ordem dos Advogados, seção Bahia conclui sobre a limitação de
conservação da cultura que:
[...] verificou-se que, apesar da Constituição acolher uma concepção
abrangente de cultura, só preserva os bens e valores culturais que portem
uma referência à identidade, à ação ou à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira. 35
Conservar o meio ambiente cultural é de responsabilidade não só do Poder
Público bem como da sociedade. A transmissão de valores na memória de um povo
destaca sua história e identificação no tempo.
Neste sentido:
A solução, portanto, parece estar na atuação da comunidade, que deve
participar da preservação do patrimônio cultural em conjunto com o Poder
Público, como recomendado pelo § 1º do art. 216 da Constituição. De fato, a
atuação da comunidade é fundamental, pois ela, como legitima produtora e
beneficiária dos bens culturais, mais do que ninguém tem legitimidade para
identificar um valor cultural [...]. 36
A competência na questão do patrimônio cultural é concorrente e agasalhada
na Constituição:
No plano executório ou do zelo, a matéria vem inserida no âmbito da
competência comum, conforme se vê do art. 23 da Carta da República,
verbis:
É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios:
[...]
III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico,
artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os
sítios arqueológicos;
IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte
e de outros bens de valor histórico e cultural;
[...].
Ainda neste sentido, Edis MILARÉ: “No plano legislativo, a matéria é
considerada objeto de competência concorrente, a teor do disposto no art.
24 do mesmo Estatuto:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre:
[...]
VII – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e
paisagístico;
VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens
e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
37
[...].
Proteger o patrimônio é mais que conservá-lo, é garantir o patrimônio em
valores éticos, e confirma-se no seguinte trecho:
35
BAHIA, 2006, p. 209.
RODRIGUES, 2001, p. 179 apud MILARÉ, 2007, p. 254.
37
MILARÉ, 2007, p. 255.
36
17
quando a Constituição se reporta à proteção do patrimônio cultural nos art.
215 e 216, e garante o pleno exercício dos direitos culturais, o faz no
sentido de resguardar práticas e manifestações condizentes com os valores
éticos universais. 38
A prática de crueldade dos animais é proibida pela Constituição como
confirma Edis Milaré: “Quanto às práticas que submetem os animais a crueldade,
estas estão vedadas, segundo critérios do legislador infraconstitucional.” 39
A Constituição veda expressamente a submissão de animais à crueldade,
portanto esta prática é inconstitucional.
O significado de cruel é esmiuçado por Edis Milaré que acrescenta: “Nesses
casos, o conceito de cruel condiz com a idéia de submeter o animal a um mal
desnecessário.” 40
A Cultura é a forma de viver e comportar-se de um povo em sociedade que
passa para gerações futuras pela memória de seus costumes e melhora-se a cada
geração:
[...] é o que caracteriza...o modo de ser, de viver, de se relacionar, de se
comportar de determinada sociedade. Ao mesmo tempo, ela é uma herança
histórica, que vai sendo aprimorada a cada nova geração. Nesse sentido
costuma-se dizer que o homem é a única espécie de ser vivo que possui
história: a evolução de seus costumes. A cultura é o que melhor define a
nacionalidade de cada povo. 41 (grifo do autor).
Os bens culturais de uma sociedade merecem ser protegidos pelo
ordenamento jurídico para referência da identidade e memória de um povo na
história e neste sentido:
[...] os bens culturais merecedores de proteção constitucional e
infraconstitucional devem [...] portar algum tipo de referência à identidade, à
ação ou à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, haja vista que assim o requer o próprio Texto Maior. 42
Tutelar a natureza é apenas parte da qualidade do ambiente para garantia do
equilíbrio ecológico bem como do direito à dignidade humana e em concordância
com estas palavras:
A proteção ambiental, abrangendo a preservação da Natureza em todos os
seus elementos essenciais à vida humana e à manutenção do equilíbrio
ecológico, visa a tutelar a qualidade do meio ambiente em função da
38
BECHARA, Erika. A proteção da fauna sob a ótica constitucional. São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 2003. p. 133.
39
MILARÉ, 2007, p. 168.
40
MILARÉ, 2007, p. 168.
41
BECHARA, 2003, p. 9.
42
BECHARA, 2003, p. 11.
18
qualidade de vida, como uma forma de direito fundamental da pessoa
humana. 43
Saber viver equilibradamente com o meio ambiente trará benefícios não só
para a natureza, mas principalmente para a qualidade de vida do ser humano. E
Edis Milaré destaca que: “[...] a consciência de que é preciso aprender a conviver
harmoniosamente com a natureza [...].” 44
A busca pelo desenvolvimento sustentável para gerações vindouras abarca
fatores econômicos, sociais, culturais e políticos e Carolina Medeiros Bahia
concorda e conclui que:
[...] o novo paradigma tem como principais méritos: [...] (a) todos os
aspectos do direito ao desenvolvimento (econômicos, sociais, culturais, civis
e políticos) são indivisíveis e interdependentes, (b) [...] na busca pelo
desenvolvimento econômico, cultural e social deve-se preservar os
interesses das gerações vindouras e [...]. 45
A visão do grupo que defende a tradição cultural na crueldade dos animais
não pode prosperar em virtude dos reflexos negativos da violência e destruição das
espécies animais na memória da história de uma sociedade como bem aponta - se
em:
[...] percebe-se o equívoco que muitas vezes acontece, consistente em
acobertar perversidades ou violências sob um manto antropocentrista,
sustentado sobre o valor cultural ou recreativo que possa representar
determinada atividade humana em relação aos animais. 46
Uma das conseqüências desta crueldade são o desequilíbrio no ecossistema
e a possível extinção das espécies humanas e não humanas:
Historicamente se sabe que o homem exerceu despotismo cruel sobre o
reino animal. Os espetáculos do Coliseu Romano, as touradas, a “farra-doboi”, as brigas de galo manifestam um senso lúdico perverso. [...] A
conseqüência são as espécies extintas e aquelas ameaçadas de extinção. 47
Embora os animais sejam diretamente e barbaramente afetados pela
violência, a grande prejudicada desta prática é a dignidade da pessoa humana:
Com efeito, as vítimas da crueldade contra animais não são, para a Lei
Maior, esses seres, apesar de serem eles o “alvo” da violência física ou
43
SILVA, 2005, p. 58.
MILARÉ, 2007, p. 147.
45
BAHIA, 2006, p. 111.
46
MILARÉ, 2007, p. 169.
47
MILARÉ, 2007, p. 246.
44
19
psíquica. As vítimas dessa prática, sob a ótica constitucional, são todas as
pessoas integrantes da coletividade, estas sim sujeitos de direito. 48
A imagem da violência e crueldade dos animais afeta o próprio ser humano
que se coloca na posição e sofrimento excessivo do animal: "[...] ao vislumbrar um
bicho inofensivo ser chicoteado, o homem acaba por conjecturar que o animal está
sofrendo em demasia, pois ele, ser humano, se estivesse sendo alvo da mesma
investida, assim o sofreria." 49
Um bem jurídico tutelado pela norma é bastante valioso para uma sociedade,
e precisa também ser garantido assim:
A norma constitucional que veda a submissão dos animais à crueldade,
vimos, tem por objetivo resguardar bens jurídicos por demais valiosos para
a coletividade, a saber: sentimentos comuns de piedade e compaixão de
afetividade para com os seres irracionais, de respeito a todos os seres
vivos e de repúdio e não banalização da violência.
Cultura. O que dizer, porém, quando uma determinada prática que envolva
animais não ferir tais bens jurídicos?Teremos, então, por assim dizer, uma
prática cultural e socialmente consentida, ou seja, uma prática que, pelas
mais variadas razões não ofende o bom senso comum, não instiga a
violência, enfim, não agride e nem fere valores importantes da
coletividade. 50
A prática de crueldade contra os animais atinge diretamente a coletividade
que repete comportamentos não saudáveis e indesejáveis uns com os outros.
[...] tem-se que a submissão dos animais à crueldade estimula a violência
entre as próprias pessoas, que não apenas passam a encará-la como
manifestação (de conduta e sentimento) normal, mas também como
manifestação (de conduta e sentimento) interessante, desejável, por que
não dizer “necessária” [...]. 51
É importante não estimular a crueldade contra os animais, pois a vítima de
tudo isto é o ser humano e sua dignidade humana.
De acordo com isso:
As práticas violentas contra os animais não podem ser enaltecidas como se
práticas saudáveis fossem. O fomento, o incentivo da crueldade acaba por
deturpar os valores vigentes numa sociedade, valores esses que, em nome
do bem comum, devem pugnar pelo convívio pacífico entre as pessoas. 52
A cultura não pode ser de um pequeno grupo, pois não representa a
totalidade de uma sociedade, portanto nas palavras de Bechara: “Não podemos
48
BECHARA, 2003, p. 77.
BECHARA, 2003, p. 79.
50
BECHARA, 2003, p. 82.
51
BECHARA, 2003, p. 79.
52
BECHARA, 2003, p. 79.
49
20
dizer que é cultural ou socialmente consentido um comportamento que, de um lado,
agrada a parcos grupos, mas, de outro, repugna a um número infinitamente maior de
pessoas.” 53
A cultura insere-se, destarte, na dignidade da pessoa humana, o que reflete
no seguinte de trecho de Bechara: “Ferir a dignidade humana em nome da
integridade dos seres irracionais é subverter toda a política ambiental estabelecida
ao nível principiológico e constitucional.” 54
Preservar a integridade dos animais em detrimento da dignidade humana é
atacar toda a essencialidade do sistema constitucional.
Apesar da divisão de responsabilidade entre as entidades autônomas, a
Constituição não delimitou claramente o que cada parte faria:
[...] o artigo 215 da Constituição Federal [...] em momento algum definiu os
meios e critérios pelos quais os poderes públicos deverão realizar as
finalidades ali estabelecidas [...] (por exemplo, apoiar e incentivar as
manifestações culturais) podendo apenas ter-se como certo que não poderá
em hipótese alguma, atuar no sentido contrário. 55
As entidades autônomas consistem na União, nos Estados, Municípios e
Distrito Federal e como detalha José Afonso da Silva: “Os limites dessas
competências encontram-se nos arts. 21 a 24 [...]” 56
1. 3
PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE
A Constituição que começou aventar as questões ambientais foi a de 1988 e
destaca, Edis Milaré que: “A Constituição de 1988 pode muito bem ser denominada
“verde”, tal o destaque (em boa hora) que dá à proteção do meio ambiente.” 57
O tema do meio ambiente esculpe-se no artigo 5º da Constituição de 1988,
como se aponta em:
A primeira referência expressa ao meio ambiente ou a recursos ambientais
na Constituição vem logo no art. 5º, LXXIII, que confere legitimação a
53
BECHARA, 2003, p. 82.
BECHARA, 2003, p. 83.
55
SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. rev., atual. e ampl. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 311.
56
SILVA, 2005, p. 75.
57
MILARÉ, 2007, p. 147.
54
21
qualquer cidadão para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao
meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. 58
Para Anízio Pires Gavião Filho, professor-palestrante da Fundação Escola
Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul e Procurador da Justiça no
Ministério Público do Rio Grande do Sul, as normas de direitos fundamentais não
estão adstritas apenas ao catálogo da Constituição: “[...] normas de direitos
fundamentais não são apenas os enunciados das disposições de direitos
fundamentais contidas no catálogo da Constituição.” 59
E mais, para Anízio Pires Gavião Filho, o direito fundamento do ambiente
encontra-se especificamente no art. 225, da Constituição do Brasil: “[...] a disposição
do art. 225 da Constituição é um enunciado de direito fundamental que expressa a
norma do direito fundamental ao ambiente.” 60
Segundo o aresto do Supremo Tribunal Federal, a titularidade do direito
ambiental é de cada um e também de todos:
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, reconhecendo o direito ao
ambiente como sendo um verdadeiro direito fundamental considera o
“direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, como um “direito de
terceira geração” de “titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de
afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder
atribuído não ao indivíduo identificado na sua singularidade, mas num
sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. 61
Portanto, é imprescindível a constitucionalização de partes do meio ambiente
sem que haja a extinção de espécies animais bem como para propiciar um ambiente
equilibrado não para um, mas para todos da sociedade:
A Constituição da República, no afã de proporcionar um meio ambiente
ecologicamente equilibrado para a coletividade, atribui ao Poder Público a
incumbência, entre outros deveres, de “proteger a fauna e a flora, vedadas,
na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais a crueldade”
(art. 225, §1º, inciso VII). 62
Há na Constituição de 1988, um capítulo exclusivo do meio ambiente, embora
não seja taxativo apenas exemplificativo:
[...] o Direito Ambiental encontra seu núcleo normativo destacado no
Capítulo VI do Título VIII, que só contém o art. 225, com seus parágrafos e
58
SILVA, 2005, p. 47.
GAVIÃO FILHO, Anízio Pires. Direito fundamental ao ambiente. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005. p. 36.
60
GAVIÃO FILHO, 2005, p. 37.
61
GAVIÃO FILHO, 2005, p. 37.
62
BECHARA, 2003. p. 45.
59
22
incisos. A Constituição o tem como parte da “Ordem Social”; logo, trata-se
de direito social do Homem. 63
Em concordância a este aspecto, a seguinte passagem enfatiza que todos se
beneficiarão com estes cuidados:
[...] ‘o bem de uso comum do povo’ gera a sua felicidade e,
simultaneamente, é produzido por ele – o mesmo povo -, porquanto esse
bem difuso deve ser objeto da proteção do Estado e da própria sociedade
para usufruto de toda a nação. 64
Não restam dúvidas que o interesse ecológico é objetivo de todos e Edis
Milaré corrobora isto: “Ora, o social constitui a grande meta de toda ação do Poder
Público e da sociedade.” 65
A tutela do Estado não consiste em abarcar o meio ambiente e sim a
qualidade de vida para o ser humano. Nas palavras de José Afonso da Silva: “O
objeto de tutela jurídica não é tanto o meio ambiente considerado nos seus
elementos constitutivos. O que o Direito visa a proteger é a qualidade do meio
ambiente em função da qualidade de vida.” 66
A competência para legislar sobre a matéria ambiental incumbe ao Poder
Público, assevera-se na seguinte passagem:
O art. 225 da Constituição impõe ao Poder Público o dever de defender e
preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. A ele
incumbe também tomar todas as providências e medidas indicadas nos
incisos do § 1º do mesmo art. 225 para assegurar a efetividade do direito de
todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 67
E, ainda, há a repartição do Poder Público na responsabilidade de garantir um
ambiente sadio para todos o que se demonstra no seguinte trecho:
[...] uma das características do Estado Federal, como o nosso, consiste
precisamente em distribuir o Poder Público por todas as entidades
autônomas que o compõem, para que cada qual o exerça nos limites das
competências que lhe foram outorgadas pela Constituição. 68
O espaço é único e requer especiais cuidados tanto para o ser humano,
quanto para os que nele estejam. A qualidade de vida do homem é extremamente
dependente das condições favoráveis dos recursos ambientais. Neste aspecto:
63
SILVA, 2005, p. 50.
MILARÉ, 2007, p. 149.
65
MILARÉ, 2007, p. 149.
66
SILVA, 2005, p. 81.
67
SILVA, 2005, p. 75.
68
SILVA, 2005, p. 75
64
23
[...] o ambiente é único, indivisível e de titulares indetermináveis, devendo
se justa e distributivamente acessível a todos.
Quando todas as pessoas realmente compreenderem que a sua saúde e
bem-estar são absolutamente dependentes da biodiversidade, das espécies
vegetais e animais, da pureza do ar, dos rios e do solo, do patrimônio
cultural, histórico paisagístico, enfim, dos mais variados recursos
ambientais, terão mais critério e apuro quando estiverem a aplicá-las ou,
principalmente, quando estiveram prestes a adotar alguma conduta que
venha, por acaso, a comprometer os bens em questão. 69
A fauna é propriedade estatal, com confirma José Afonso da Silva e conceitua
o termo: “[...] refere-se ao conjunto de todos os animais de uma região [...].” 70
A legislação sobre a matéria ambiental é inquestionavelmente concorrente,
pois compete à União, Estados e Distrito Federal:
O art. 24, VI, declara competir à União, aos Estados e ao Distrito Federal
legislar concorrentemente sobre caça, pesca e fauna. Assim, pondo fauna
ao lado de caça e pesca, pode-se deduzir que quis empregar o termo no
seu sentido abrangente. Do mesmo modo deve ser entendido o seu
emprego nos arts. 23, VII, e 225, § 1º, VII. 71
A descentralização da legislação ambiental é característica do Brasil e,
segundo Edis Milaré: “[...] o Estado brasileiro adotou um modelo de ampla
descentralização administrativa, cujo espírito perpassa toda a Constituição.” 72
Os cidadãos têm legitimidade e fundamental importância para tutelar o meio
ambiente das diversas agressões sofridas por diversos instrumentos como se
demonstra em:
Diversos instrumentos de garantia foram previstos para as hipóteses de
agressões ao ambiente, impondo-se, agora, a abertura de espaço e de
canais aos grupos sociais intermediários (associações civis de defesa do
meio ambiente, de moradores de bairro, sindicatos etc.), para que, em
constante mobilização, pudessem permitir a adequação necessária da ação
dos detentores do Poder às exigências e necessidades populares. 73
A fauna como parte do meio ambiente é fator importante para manter o
equilíbrio do ecossistema e da qualidade de vida. Neste ponto destaca-se que:
[...] ao vedar as práticas que coloquem em risco a função ecológica tanto da
fauna quanto da flora, a Constituição estende a proteção para além do ser
vivo, abrangendo suas relações ecossistêmicas. E visto a extinção de
espécies representa perda da biodiversidade e da qualidade das relações
69
BECHARA, 2003, p. 175
SILVA, 2005, p. 194.
71
SILVA, 2005, p. 195.
72
MILARÉ, 2007, p. 180.
73
MILARÉ, 2008, p. 184.
70
24
ecossistêmicas, a Constituição veda também as práticas potencialmente
exterminadoras. 74
O art. 225 protege a fauna por ser essencial para a qualidade de vida
humana. Como se aponta em:
[...] o solo, a água, o ar atmosférico, a flora, a fauna, o patrimônio genético
do País, o patrimônio cultural brasileiro, a saúde, as ruas, praças, áreas
verdes e demais assentamentos com reflexos urbanísticos são alguns
exemplos de bens ambientais. 75
Tutelar o ambiente é preservar a vida do homem. Corroborando isto está
Erika Bechara, Professora de Direito Ambiental e Direito do Consumidor da
Faculdade de Direito de Sorocaba, Coordenadora e professora do Curso de
Introdução ao Direito Ambiental da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP e
Coordenadora da especialização em Direito Ambiental quando afirma que: “[...] A
qualidade de vida do homem está necessariamente atrelada ao equilíbrio ambiental,
ao equilíbrio do Ecossistema.” 76
A Constituição abarcou na proteção jurídica o meio ambiente equilibrado,
tendo em vista a sobrevivência do homem neste espaço. Em concordância com
estas palavras, Álvaro Luiz Valery Mirra assevera que: “Não é buscada propriamente
em razão deles mesmos, individualmente considerados, mas sobretudo como
elementos indispensáveis à preservação do meio ambiente como um todo, em
função da qualidade de vida humana.” 77 (grifo do autor).
Enfim, a evolução histórica dos direitos fundamentais aprimorou mais e mais
a preocupação com a dignidade humana que se retrata em partes reflexivas tanto na
cultura como no meio ambiente. A degradação do espaço onde o ser humano habita
é devastador para a vida e, portanto, faz-se necessária a proteção de todas as
formas possíveis.
74
MILARÉ, 2007, p. 166.
FIORILLO, 2002, p. 9 apud BECHARA, 2003, p. 25.
76
Bechara, Erika 2003, p. 38.
77
2002, p. 11 apud BECHARA, 2003, p. 75.
75
25
2
2.1
COLISÃO DE PRINCÍPIOS
A NORMA
O ordenamento jurídico é um sistema estruturado, completo, dinâmico e não
permite antinomias que afetem a sua coerência e unidade. A organização da
sociedade pauta-se não só por normas isoladamente e assevera Montoro: “As
normas [...] regem o comportamento social dos homens [...]” 78
A norma existe para manter a convivência social entre os seres humanos e
assim Montoro acrescenta mais: “A norma jurídica é, [...], uma regra de conduta
social. Seu objetivo é regular a atividade dos homens em suas relações sociais.” 79
A Constituição está no ápice do ordenamento jurídico e prima por sua unidade
por intermédio da coligação de suas normas:
A Constituição é um corpo lógico cujos elementos (as normas de natureza
constitucional) se agrupam segundo uma ordem determinada de relações. A
estrutura da Constituição consiste nessa ordem abstrata de relações, que
se estabelece a partir de sua existência, e princípios estruturais são aqueles
que a compõem. Os elementos são o corpo físico da Constituição, a
estrutura é a trama lógica correspondente à sua essência ou identidade. O
sistema é o corpo lógico, composto pelos elementos e pela estrutura, e
operante segundo suas funções. 80
Apesar da rigidez constitucional há normas de sentido vago e aberto com
possibilidade de adaptações e neste aspecto afirma Eros Grau: “[...] As normas de
direitos fundamentais são dotadas de considerável grau de abertura e dinamicidade
ao se apresentarem para sua concretização social.” 81
Como a Constituição não admite imperfeições conta com a sua plasticidade e
conseqüentemente dinamicidade para ajustar as normas conflitantes. Neste mesmo
sentido está Sarmento: “A Lei Fundamental deve ser adotada de elasticidade
material suficiente para abrigar, sob o seu manto, ideologias e cosmovisões
diferentes, sem optar de modo definitivo por nenhuma delas.” 82
78
MONTORO, 2008, p. 352.
MONTORO, 2008, p. 352.
80
CUNHA, 2001, p. 274.
81
GRAU, Eros Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo (Org.). Estudos de direito constitucional em
homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 232.
82
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2003. p. 136.
79
26
Há uma parte essencial na Constituição em que não pode ser extirpada e
Sarmento frisa: “[...] existe um conteúdo mínimo destes direitos, que não pode ser
amputado [...] Assim, o núcleo essencial traduz o ‘limite dos limites’, ao demarcar um
reduto inexpugnável, protegido de qualquer espécie de restrição.” 83
A norma é o gênero que se divide nas espécies princípios e regras e se
confirma no seguinte trecho:
[...] não há distinção entre princípios normas, os princípios são dotados de
normatividade, as normas compreendem regras e princípios, a distinção
relevante não é, como nos primórdios da doutrina, entre princípios e
normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as
regras e os princípios a espécie. 84
2.2
OS PRINCÍPIOS E REGRAS
O alicerce de sustentação da Constituição encontra-se respaldado em seus
princípios que refletem os valores da sociedade.
As normas dividem-se em princípios e regras e em consonância com
Sarmento: “[...] as normas jurídicas que compõem o ordenamento positivo podem
assumir duas configurações básicas: regras (ou disposições) e princípios.” 85
Os princípios constitucionais são normas que fundamentam e sustentam o
sistema jurídico constitucional, são os valores supremos e basilares do
ordenamento normativo de uma dada sociedade. Não se constituem em
meros programas ou linhas sugestivas da ação do Poder Público ou da
iniciativa privada, mas sim vinculam e direcionam essa atividade, uma vez
que dotados de eficácia jurídica vinculante.
A constitucionalização dos princípios jurídicos e a consolidação de uma
cultura de eficácia vinculante dos princípios constitucionais ensejam uma
estruturação dos mecanismos de resolução das colisões entre os valores
constitucionais, bastante correntes em uma Constituição aberta e prolixa
como a brasileira, que alberga um sistema jurídico constitucional
extremamente dinâmico. Os métodos clássicos de resolução de antinomias
entre regras jurídicas não conseguem dar resposta às situações em que
colidem dois ou mais princípios constitucionalmente válidos, já que a
solução de conflitos entre princípios deve vencer o prisma da validade e
alcançar a idéia de densidade e de peso dos valores em choque.
A idéia de princípios está intimamente ligada à noção de fundamento, base,
pressuposto teórico que orienta determinado sistema. Os princípios são
linhas mestras sobre as quais se arrima todo um sistema de conhecimento
humano. Os princípios constitucionais, portanto, são normas que sustentam
todo o ordenamento normativo, tendo por função principal conferir
83
SARMENTO, 2003, p. 111.
BONAVIDES, 2007, p. 288.
85
SARMENTO, 2003, p. 43.
84
27
racionalidade sistêmica e integralidade ao ordenamento constitucional.
Podem ser expressos mediante enunciados normativos ou figurar
implicitamente no texto constitucional. São, pois, orientações e
mandamentos de natureza fundamental e geral, tomados a partir do sistema
constitucional vigente, da racionalidade do ordenamento normativo e
capazes de evidenciar a ordem jurídico-constitucional reinante em um dado
momento.
Os princípios jurídicos, normas impositivas de otimização, podem ser
realizados ou concretizados em diferentes graus, variando segundo
condições fáticas e jurídicas. O mesmo princípio, deste modo, terá
diferentes graus de aplicação na resolução de situações da vida cotidiana.
O valor conferido a determinado princípio, em uma dada situação fática,
poderá ser diverso em outro caso, podendo até, por vezes, ter sua
86
aplicação afastada naquela situação.
Na verdade os princípios estão coligados com os valores de suas normas:
[...] os princípios são oxigênio das Constituições na época do póspositivismo. É graças aos princípios que os sistemas constitucionais
granjeiam a unidade de sentido e auferem a valoração de sua ordem
normativa. 87
A importância dos princípios insere-se na harmonia e vitalidade do
ordenamento jurídico:
Fazem eles a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema
jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se,
portanto, ao grau de norma das normas, de fonte das fontes. São
qualitativamente a viga-mestra do sistema, o esteio da legitimidade
constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma
Constituição. 88
Os princípios estão direcionados a um fim:
Princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma
possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os princípios
não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de <<tudo ou nada>>;
impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta
a <<reserva de possível>>, fáctica ou jurídica. 89
Os princípios instituem não só valores bem como delineiam comportamentos
de uma sociedade:
[...] os princípios não apenas explicitam valores, mas, indiretamente,
estabelecem espécies precisas de comportamento; e, de outro, que a
instituição de condutas pelas regras também pode ser objeto de
ponderação, embora o comportamento preliminarmente previsto dependa
do preenchimento de algumas condições para ser superado. Com isso,
86
CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. A resolução das colisões entre princípios constitucionais. Jus
Navigandi,
Teresina,
ano
7,
n.
62,
fev.
2003.
Disponível
em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3682>. Acesso em: 6 set. 2008.
87
BONAVIDES, 2007, p. 288.
88
BONAVIDES, 2007, p. 294.
89
ALEXY, 1986, p. 91 apud CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da
Constituição. 7. ed. Portugal: Almedina, 2005. p. 1255.
28
ultrapassa-se tanto a mera exaltação de valores sem a instituição de
comportamentos, quanto a automática aplicação de regras. Propõe-se um
modelo de explicação das espécies normativas que, ademais de inserir uma
ponderação estruturada no processo de aplicação, ainda inclui critérios
materiais de justiça na argumentação, mediante a reconstrução analítica do
uso concreto dos postulados normativos, especialmente da razoabilidade e
da proporcionalidade. 90
Alexy detalhou ainda mais o conceito de princípio com base em Dworkin e
apontou que sua aplicabilidade está no suporte fático:
Para ele os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie de
normas jurídicas por meio da qual são estabelecidos deveres de otimização
aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas.
[...] Alexy demonstra a relação de tensão ocorrente no caso de colisão entre
os princípios: nesse caso, a solução não se resolve com a determinação
imediata da prevalência de um princípio sobre outro, mas é estabelecida em
função da ponderação entre os princípios colidentes, em função da qual um
deles, em determinadas circunstâncias concretas, recebe a prevalência. 91
A adequação de princípios está intrinsecamente associada aos fatos e se
confirma na seguinte passagem:
[...] princípios como deveres de otimização aplicáveis em vários graus
segundo as possibilidades normativas e fáticas; fáticas, porque o conteúdo
dos princípios como normas de conduta só pode ser determinado quando
diante dos fatos. Com as regras acontece algo diverso. ‘De outro lado uma
regras são normas, que podem ou não podem ser realizadas. Quando uma
regra vale, então é determinado fazer exatamente o que ela exige, nada
mais ou nada menos.’ 92
Detalhando melhor, os princípios têm um conceito aberto amplo e buscam um
fim a ser alcançado e nesta linha de pensamento:
[...] o fim estabelece um estado ideal de coisas a ser a atingido, como forma
geral para enquadrar os vários conteúdos de um fim. A instituição do fim é
ponto de partida para a procura pelos meios. Os meios podem ser definidos
como condições (objetos, situações) que causam a promoção gradual do
conteúdo do fim. Por isso a idéia de que os meios e os fins são conceitos
correlatos. 93
Os princípios exigem a adoção de comportamentos para que seus fins sejam
atingidos, eis como afirma:
Os princípios instituem o dever de adotar comportamentos necessários à
realização de um estado de coisas ou, inversamente instituem o dever de
efetivação de um estado de coisas para adoção de comportamentos a ele
necessários. Essa perspectiva de análise evidencia que os princípios
implicam comportamentos, ainda que por via indireta e regressiva. Mas,
ainda, essa investigação permite verificar que os princípios, embora
90
ÁVILA, 2008, p. 25.
ALEXY, 1979, p. 77 e ss apud ÁVILA, 2008, p. 37.
92
ALEXY, 1985, separata 25/21 apud ÁVILA, 2008, p. 38.
93
WEINBERG,1989, p. 283 apud ÁVILA, 2008, p. 79.
91
29
indeterminados, não o são absolutamente. Pode até haver incerteza quanto
ao conteúdo do comportamento a ser adotado, mas não há quanto à sua
espécie: o que for necessário para promover o fim é devido. 94
As regras são [...] como normas imediatamente descritiva, primariamente
retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e a abrangência para cuja
aplicação exige a avaliação da correspondência entre a construção
conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. 95
Os princípios são normas genéricas para atingirem determinados fins e assim
descreve Ávila:
[...] os princípios instituem fins a realizar, os comportamentos adequados à
sua realização e a própria delimitação dos seus contornos normativos
dependem as regras – de atos do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e
do Poder Executivo, sem os quais os princípios não adquirem
normatividade. 96
O suporte das normas está nos princípios e se confirma na seguinte
passagem:
Os princípios representam as traves-mestras do sistema jurídico, irradiando
seus efeitos sobre diferentes normas e servindo de balizamento para a
interpretação e integração de todo o setor do ordenamento em que radicam.
Revestem-se de um grau de generalidade e de abstração superior ao das
regras, [...] menor determinabilidade do seu raio de aplicação. [...] possuem
um colorido axiológico mais acentuado do que as regras, desvelando mais
nitidamente os valores jurídicos e políticos que condensam. 97
Enquanto os princípios são indetermináveis, as regras são as concretizações
destes e assim tem-se que:
[...] outra distinção entre princípios e regras jurídicas relaciona-se ao fato
dos primeiros [...] não permitirem, pela insuficiência do seu grau de
concretização, a subsunção. [...] no plano de fluidez, os princípios situam-se
entre os valores e as regras jurídicas. Excedem os valores, em termos de
concretização, por já delinearem indicações sobre as suas conseqüências
jurídicas, mas ainda não alcançam o grau de densidade normativa das
regras, pois não têm delimitadas, com a precisão necessária, as respectivas
hipóteses de incidência e conseqüências jurídicas. 98
E reforça estes conceitos em:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente
retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e a abrangência, para cuja
aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na
finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são
axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição
normativa e a construção conceitual dos fatos.
94
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8.
ed. São Paulo: Malheiros, 2008a. p. 80.
95
ÁVILA, 2008, p. 81.
96
ÁVILA, 2008, p. 78
97
SARMENTO, 2003, p. 42.
98
CANARIS, 1989, p. 86-87 apud SARMENTO, 2003, p. 43.
30
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente
prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade,
para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado
de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como
necessária à sua promoção.
As regras podem ser dissociadas dos princípios quanto ao modo como
prescrevem o comportamento. As regras são normas imediatamente
descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, permissões e
proibições mediante a descrição da conduta a ser cumprida.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, já que etabelem um
estado de coisas cuja promoção gradual depende dos efeitos decorrentes
da adoção de comportamentos a ela necessários. Os princípios são normas
cuja qualidade frontal é, justamente, a determinação da realização de um
fim juridicamente relevante, ao passo que característica dianteira das regras
99
é a previsão do comportamento.
Os princípios por serem normas abstratas almejam fins determinados e para
serem alcançados necessitam da configuração de comportamentos. As regras, uma
sua vez que são normas de como fazer, exigem determinados comportamentos.
Portanto, enquanto os princípios traçam o que deve ser, as regras ditam como deve
ser feito.
Os princípios têm flexibilidade enquanto as regras não e Sarmento confirma
isto com as seguintes palavras: “Os princípios, pela plasticidade que lhes é inerente
tem como acomodar com maior facilidade, alterações no seu sentido, o que não
ocorre com as regras.” 100
A composição da Constituição é feita de normas e estas se dividem em
princípios e regras. É necessária a presença de interligação das duas normas para
que a Constituição exista e resista.
Vale enfatizar trechos de Sarmento tais como:
[...] a presença, tanto de regras como princípios, é fundamental à vitalidade
da Constituição. [...] um sistema constitucional que se alicerçasse
exclusivamente sobre princípios carrearia ao ordenamento uma dose
inaceitável de incerteza e insegurança, já que a aplicação dos princípios
opera-se do modo mais fluido e menos previsível do que a das regras. 101
[...] um modelo que se fundasse unicamente sobre regras, não daria conta
da crescente complexidade das situações que a Constituição propõe-se a
tutelar [...] subtraindo-lha a maleabilidade necessária à acomodação dos
conflitos que naturalmente se estabelecem, em casos concretos, entre
diversos interesses constitucionais concorrentes. 102
99
ÁVILA, 2008, p. 180-181.
SARMENTO, 2003, p. 49.
101
SARMENTO, 2003, p. 52.
102
SARMENTO, 2003, p. 52.
100
31
Em concordância com isto está Canotilho: “[...] conseguir-se-ia um sistema de
segurança, mas não haveria espaço para complementação e desenvolvimento a de
um sistema, como o constitucional, que é necessariamente um sistema aberto.” 103
A estrutura da Constituição é embricada de valores atinentes a uma
sociedade, como bem aponta Sarmento: “[...] A Constituição representa um sistema
aberto, onde devem se refletir os valores fundamentais partilhados por determinada
comunidade ao lado das decisões políticas capitais de Nação.” 104
Em concordância, Paulo Bonavides: “[...] os valores supremos ao redor dos
quais gravitam os direitos, as garantias e as competências de uma sociedade
constitucional.” 105
Princípios são normas imediatamente finalísticas, já que estabelecem um
estado de coisas para cuja realização é necessária a adoção de
determinados comportamentos – determinam a realização de um fim
relevante.
Princípios estabelecem um estado ideal de coisas a ser atingido. Estado de
coisas é uma situação qualificada para determinadas qualidades.
Transforma-se enfim quando alguém aspira conseguir, gozar ou possuir as
qualidades presentes naquela situação.
Possuem caráter deôntico - teleológico: deôntico, porque estipulam razões
para a existência de obrigações, permissões e proibições; teleológico,
porque as obrigações, permissões e proibições decorrem dos efeitos de
determinado comportamento que preservam ou promovem determinado
estado de coisas. São normas do que deve ser.
Regras são normas mediatamente finalísticas e estabelecem indiretamente
fins e maior exatidão para o comportamento devido. Daí depende menos da
sua relação com outras normas.
Regras são normas imediatamente descritivas que estabelecem obrigações,
permissões e proibições mediante a descrição de conduta a ser adotada –
há a previsão de comportamento.
Possuem caráter deôntico – deontológico – deôntico porque estipula razões
para a existência de obrigações, permissões ou proibições; deontológico,
porque indica o que deve ser feito. São normas do que fazer. [...] princípios
e regras fazem referência a fins e condutas: regras a fins devidos, princípios
106
a condutas necessárias.
As regras perfilham comportamentos desejáveis para o alcance de
determinado princípio e assim:
Já as regras jurídicas, normas que prescrevem uma dada situação ou
impõem um determinado comportamento, quando válidas, devem ser
103
1998, p. 1036 apud SARMENTO, 2003, p. 52.
SARMENTO, 2003, p. 52.
105
1999, p. 254 apud SARMENTO 2003, p. 54.
106
ARAÚJO, Eugênio Rosa de. Recensão de “Teoria dos Princípios”, de Humberto Ávila.
Disponível em: <www.jfrj.gov.br/Rev_SJRJ/num20/resenha/resenha.pdf>. Acesso em: 7 set.
2008.
104
32
cumpridas na exata medida de suas prescrições, não deixando margem à
graduação de aplicação. 107
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, ao contrário das
regras, que são imediatamente descritivas; as regras, pois, delimitam
comportamentos de maneira frontal, mas que poderão ser descumpridos em
virtude da finalidade – mais adequada ao caso – que deriva de outras
normas, sejam elas princípios ou regras.
Explorada em demasia pela teoria jurídica das últimas três décadas, a
identificação da aplicabilidade normativa dos princípios proposta com base
na sua apodíctica distinção face às regras cede espaço para reformulações
conceituais acerca de seu caráter argumentativo. Com efeito, a maneira
como é implicado em um determinado contexto normativo consistiria em
uma ponderação (Atienza, 2002: 267), por meio de um exame da
proporcionalidade ou razoabilidade dos comportamentos exigidos
(componente deontológico) e dos valores adotados (componente axiológico)
com vista às finalidades buscadas (componente teleológico). Por outro lado,
é preciso considerar a existência dos postulados normativos aplicativos,
entendidos como normas estruturantes da aplicação das regras e princípios.
A sua inclusão metodológica é extremamente proveitosa, levando-se em
conta a atual situação do pensamento jurídico, em que o viés crítico
sinaliza, cada vez mais, a necessária reformulação da idéia de norma de
direito e sua interface com o discurso moral. Acertos e erros fazem parte da
construção do conhecimento. Até aqui, parece que muito foi escrito sobre o
tema. Com o aporte de novas concepções que redirecionam o presente
debate, fica evidente que o assunto avulta incipiente. Os influxos de bases
teóricas como as que foram singelamente apontadas no texto, ainda em
proemial desenvolvimento, assinalarão grande propriedade para a teoria
jurídica fundamental e para a dogmática hermenêutica, especialmente se
conjugados com outros importantes marcos do pensamento jusfilosófico do
atual quadrante evolutivo, como, à guisa de exemplo, o primado da
108
argumentação jurídica.
As regras são caminhos exigíveis para determinados comportamentos
definitivos e nas palavras de Alexy: “Regras [...] são normas que, verificados
determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos
definitivos, sem qualquer excepção (direito definitivo).” 109
Para entendimento do Direito é importante a compreensão da interpretação à
luz dos princípios, das regras, dos postulados normativos e, sobretudo, dos critérios
normativos associados ao liame dos valores de uma sociedade
[...] por detrás da proposta aqui defendida está a compreensão do Direito
como um conjunto composto de normas (princípios, regras) cuja
interpretação e aplicação depende de postulados normativos (unidade,
coerência, hierarquização, supremacia da Constituição, etc.), critérios
normativos (superioridade, cronologia e especialidade), topoi (interesse
público, bem comum, etc.) e valores. Todos esses elementos que se
107
CRISTOVAM, 2008.
GUERRA, Gustavo Rabay. Estrutura lógica dos princípios constitucionais. Pós-positivismo jurídico
e racionalidade argumentativa na reformulação conceitual da normatividade do direito. Âmbito
Jurídico, Rio Grande, n. 46, 31 out. 2007. Disponível em:
<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2326>.
Acesso em: 7 set. 2008.
109
1986, p. 91 apud CANOTILHO, 2005, p. 1255.
108
33
conjugam às normas possuem sua normatividade relacionada em boa
medida a atos institucionais de aplicação. 110
A adoção da busca do direito da coletividade tem como conseqüência o
afastamento dos direitos individuais.
Normalmente, um meio é adotado para atingir uma finalidade pública
relacionada ao interesse coletivo (proteção do meio ambiente, proteção dos
consumidores), e sua adoção causa, como efeito colateral, restrição aos
direitos fundamentais do cidadão. 111
A Constituição está encrustada e fundada em todo seu cerne em valores e
entre os mais importantes deles está o da dignidade da pessoa humana e Sarmento
retrata bem isto:
[...] O arcabouço da ordem constitucional brasileira está alicerçado em
princípios altamente abstratos, portadores de um acentuado conteúdo
axiológico, como o do Estado Democrático de Direito, da dignidade da
pessoa humana e da igualdade. 112
2.3
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
A base axiológica de toda a Constituição brasileira está primordialmente no
princípio da dignidade humana.
[...] o princípio da dignidade humana, é esse princípio que inspira os típicos
direitos fundamentais, atendendo à exigência do respeito à vida, à
liberdade, à integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado da
igualdade em dignidade de todos os homens e à segurança. É o princípio
da dignidade humana que demanda fórmulas de limitação do poder,
prevenindo o arbítrio e a injustiça. 113
A parte essencial axiológica abordada na constituição brasileira está centrada
na dignidade humana. A Constituição de 1988 é rígida, por não permitir mudanças
de qualquer ordem, pois há um procedimento especial para isso. Ela retrata-se como
forma de pirâmide onde as outras normas submetem-se ao seu crivo de validade,
porém contempla a flexibilidade para determinadas situações de choques.
Em outras palavras:
110
ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e redefinição do dever de
proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, v. 1, n. 4, jul. 2001. Disponível em:
<http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 7 set. 2008.
111
ARAÚJO, 2008.
112
SARMENTO, 2003, p. 51.
113
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 237.
34
[...] no vértice superior, a Lei Fundamental, que condiciona a validade e
permeia a interpretação de todas as demais normas jurídicas, por tal razão,
é a Constituição, como fonte comum de validade de todas as normas, que
confere a necessária coesão ao ordenamento jurídico. 114
Segundo Mendes, entre valores dos princípios existentes o que se destaca é
do princípio da dignidade humana, eis suas palavras: “[...] não há dúvida de que,
também entre nós, os valores vinculados ao princípio da dignidade da pessoa
humana assumem peculiar relevo (CF, art. 1º, III).”115
É necessária a permanência do princípio de unidade da Constituição para que
não a transforme num caos:
O princípio da Constituição leva o intérprete a buscar a harmonização entre
dispositivos aparentemente conflitantes de lei maior. Caso a conciliação
plena não seja viável, ele deve procurar solução onde a restrição à eficácia
de cada uma das normas e confronto seja a menor possível, buscando a
otimização da tutela aos bens jurídicos por ela protegidos. 116
A espinha dorsal de sustentação da Constituição está no princípio da
dignidade da pessoa humana como bem traça o seguinte trecho:
[...] O princípio da dignidade da pessoa humana, em termos jurídicos, a
máxima kantiana; segunda a qual o Homem deve sempre ser tratado como
um fim em si mesmo e nunca como um meio. O ser humano precede o
Direito e o Estado, que apenas se justificam em razão dele. 117
Também em consonância à importância da pessoa humana no ordenamento
jurídico e nas palavras de Miguel Reale: “A pessoa humana deve ser concebida e
tratada como valor-fonte do ordenamento jurídico.” 118
O princípio da dignidade humana no âmago da Constituição tem
desdobramentos infinitos no ordenamento jurídico e neste aspecto:
O princípio da dignidade de pessoa humana representa o epicentro
axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o
ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também
toda a miríade de relações privadas que se desenvolve no seio da
sociedade civil e do mercado. 119
A dignidade não se limita a um grupo específico e sim a todos os seres
humanos indistintamente e estas palavras são corroboradas em:
114
SARMENTO, 2003, p. 28.
MENDES, 2007, p. 95.
116
HESSE, 1992, p. 46 apud SARMENTO, 2003, p. 29.
117
SARMENTO, 2003, p. 59.
118
1990, p. 59-69 apud SARMENTO, 2003, p. 59.
119
SARMENTO, 2003, p. 59.
115
35
A dignidade não é reconhecida apenas às pessoas de determinada classe,
nacionalidade ou etnia, mas a todo e qualquer indivíduo, pelo simples fato
de pertencer à espécie humana. Dela não se despe nenhuma pessoa, por
mais graves que tenham sido os atos que praticou. A idéia é a de que em
cada ser humano, por mais humilde e obscura que seja a sua existência,
pulsa toda a Humanidade. 120
Mesmo com as mudanças das Constituições no decorrer dos tempos, o
princípio de dignidade da pessoa humana nunca deixou de existir no arcabouço das
mesmas e neste sentido: "O princípio da dignidade da pessoa humana, embora
impregnado por inafastável carga axiológica, não é estático e perene, mas histórico,
tendo variado bastante ao sabor das mudanças que afetaram a sociedade." 121
Mesmo com todas as mudanças no decorrer da história, o princípio da
dignidade da pessoa humana nunca deixou de existir, mesmo com o advento de
novos direitos e em concordância com esta posição:
[...] as guerras quentes e frias, os genocídios e massacres, pode-se afirmar
que a evolução histórica do princípio da dignidade da pessoa humana temse caracterizado, pelo menos até aqui, pela progressiva incorporação de
novos direitos ao patrimônio dos povos, que se sucedem em gerações
complementares e não excludentes. 122
E como destaque da evolução histórica deste princípio, segundo Gilmar
Mendes: “Os direitos e garantias fundamentais, em sentido material, são, pois,
pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir da perspectiva
do valor da dignidade humana.” 123
O Homem como peça mais importante da Constituição não pode ser
desrespeitado em sua individualidade em prol da coletividade, como bem abordado
em:
O ser humano é considerado um valor em si mesmo, superior ao Estado e a
qualquer coletividade à qual se integre. Mas, [...] o homem que se tem em
vista é um ser real e palpável, histórica e geograficamente situado, que
partilha valores e tradições com seus semelhantes e que tem necessidades
reais que devem ser atendidas. É o homem que não apenas vive, mas
convive. 124
Qualquer ação, ato que infringir o princípio da dignidade da pessoa humana
não merece tutela e assim salienta-se que: "Todo e qualquer ato normativo,
administrativo ou jurisdicional que se revelar atentatório à dignidade humana será
120
SARMENTO, 2003, p. 60.
SARMENTO, 2003, p. 66.
122
CASTRO, 1989, p. 103-104 apud SARMENTO, 2003, p. 67.
123
MENDES, 2008, p. 237.
124
SARMENTO, 2003, p. 69.
121
36
inválido e desprovido de eficácia jurídica, ainda que não colida frontalmente com
qualquer dispositivo constitucional." 125
Não basta apenas o reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa
humana, mas também garanti-lo e neste mesmo sentido Torres: “O Estado tem não
apenas o dever de se abster de praticar atos que atentem contra a dignidade
humana, como também o de promover esta dignidade através de condutas ativas,
garantindo o mínimo existencial.” 126
A base da Constituição está no princípio da dignidade da pessoa humana que
perpassa o seu significado por todo seu conteúdo e neste sentido assevera-se:
Como fundamento basilar da ordem constitucional, o princípio da dignidade
da pessoa humana configura diretriz inafastável para a interpretação de
todo o ordenamento. Na qualidade de vértice axiológico da Constituição, o
cânone em pauta condensa a idéia unificadora que percorre toda a ordem
jurídica, condicionando e inspirando a exegese e aplicação do direito
positivo, em suas mais variadas manifestações. 127
O princípio da dignidade humana é o valor inerente à Constituição de 1988 e,
para Mendes: “[...] não há dúvida de que, também entre nós, os valores vinculados
ao princípio da dignidade da pessoa humana assumem peculiar relevo (CF, art. 1º,
III).” 128
O princípio preponderante na ponderação de interesses é o da dignidade da
pessoa humana que estão ligados aos valores da igualdade, liberdade, fraternidade
e justiça da sociedade e nestes termos:
A ponderação de interesses [...] não é apenas um procedimento de índole
formal para composição das tensões entre princípios constitucionais. [...]
ostenta uma irredutível dimensão substantiva, dirigindo-se à afirmação e à
concretização dos valores supremos de igualdade, liberdade, fraternidade e
justiça, em que se apóia todo ordenamento constitucional, e que estão
condensados no princípio da dignidade da pessoa humana. 129
Decotam - se informações em que o núcleo do princípio da dignidade humana
está na incolumidade do indivíduo e corrobora-se no seguinte trecho:
[...] a dignidade da pessoa humana tem a autonomia e o direito de autodeterminação como elementos nucleares e que, por isso; (a) engloba,
necessariamente a preservação da integridade física e corporal do indivíduo
(autonomia física e corporal); (b) envolve a proteção de sua identidade
pessoal (autonomia psíquica e intelectual); (c) passa pela tutela da isonomia
de todos os seres humanos, que, dessa forma, não podem ser submetidos
125
SARMENTO, 2003, p. 71.
1999, p. 262-263 apud SARMENTO, 2003, p. 71.
127
SARMENTO, 2003, p. 73.
128
MENDES, 2007, p. 95.
129
SARMENTO, 2003, p. 74.
126
37
a tratamentos discriminatórios e arbitrários; (d) têm a limitação do poder
como exigência diretamente decorrente e (e) também consiste na garantia
de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família. 130
Reforça-se que a constitucionalização do meio ambiente foi uma mudança
bastante importante para dignidade humana, já que este princípio é o cerne de toda
a constituição:
[...] a consagração do direito a um meio ambiente ecologicamente
equilibrado como direito fundamental é importante, primeiro, como forma de
preservar a via e a dignidade das pessoas núcleo essencial dos direitos
fundamentais e em segundo plano, como fator de “transformação social.” 131
Em consonância com a preservação do princípio da dignidade humana exigese tanto a participação do Estado e dos seres humanos para a prestigiosa
colaboração da garantia da integridade da pessoa humana e nestes termos:
[...] a preservação da dignidade da pessoa humana exige do Estado e dos
demais integrantes da sociedade (a) tanto ações negativa, no sentido de
não praticarem atos que atentem contra a integridade corporal ou psíquica
do indivíduo, (b) quanto ações positivas, que assegurem o pleno
desenvolvimento da personalidade individual. Por conta disso, o Estado
deve se abster da prática de atos que violem a dignidade pessoal do
indivíduo e, ao mesmo tempo, protegê-los dos atentados provenientes do
comportamento de terceiros ou oriundos da ausência de condições
materiais para o livre desenvolvimento da sua personalidade (como é o
caso do não atendimento às carências sociais, econômicas e culturais ou da
inexistência de condições ambientais adequadas para a sobrevivência). 132
Em suma, o princípio da dignidade humana é um princípio essencial para a
base axiológica da constituição na incolumidade da integridade do ser humano.
2.3
POSTULADOS NORMATIVOS
Embora haja cotejos deste conceito, os postulados são diferentes dos
princípios e regras, pois se aplicam à interpretação de adequação das duas
hipóteses e neste contexto:
Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A
uma, porque não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são
normas objeto da aplicação; os postulados são normas que orientam a
aplicação de outras. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários:
os princípios e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e
130
SARLET, 2003, p. 110-111 apud BAHIA, 2006, p. 29.
MIRRA, 1994, p. 12 apud BAHIA, 2006, p. 122.
132
BAHIA, 2006, p. 29.
131
38
aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e
aplicador do Direito. A três, porque não se relacionam da mesma forma com
outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo
nível do objeto, implicam-se reciprocamente, quer de modo preliminarmente
complementar (princípios), quer de modo preliminarmente decisivo (regras);
os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a
aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com
outras formas. 133
Os postulados normativos são considerados condições específicas para
solucionar conflitos, eis as seguintes palavras:
[...] condições são definidas como postulados normativos aplicativos, na
medida em que se aplicam para solucionar questões que surgem como a
aplicação do Direito, especialmente para solucionar antinomias contingentes
concretas e externas: contingentes, em vez de necessárias. 134
Os postulados normativos aplicativos não são princípios. Portanto, enquanto
os princípios buscam um estado ideal, os postulados buscam estruturar a
aplicabilidade das normas. A doutrina distingue-os da seguinte forma:
[...] os princípios são definidos como normas imediatamente finalísticos, isto
é, normas que impõem a promoção de um estado ideal de coisas por meio
de prescrição indireta de comportamentos cujos efeitos são havidos como
necessários àquela promoção. [...] os postulados, [...] estruturam a
aplicação do dever de promover um fim. [...] não prescrevem indiretamente
comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação
relativamente às normas que indiretamente prescrevem comportamentos. 135
Enquanto as regras detalham comportamento, os postulados fundamentam e
assim se enfatiza no seguinte trecho: “As regras, a seu turno, são normas
imediatamente descritivas de comportamentos devidos ou atributivas de poder. [...]
os postulados não descrevem comportamentos, mas estruturam a aplicação de
normas que o fazem.” 136
Para as normas há aplicabilidade, enquanto que para os postulados
aplicativos há a fixação critérios para os princípios e normas. As seguintes palavras
confirmam isto:
Enquanto os princípios e as regras são o objeto de aplicação, os postulados
estabelecem critérios de aplicação dos princípios e das regras. E enquanto
os princípios e regras servem de comandos para determinadas condutas
obrigatórias, permitidas e proibidas, ou condutas cuja adoção sejam
133
ÁVILA, 2008, p. 122.
PRIETO SANCHES, 2000, p. 472 apud ÁVILA, 2008, p. 134.
135
ÁVILA, 2008, p. 135.
136
ÁVILA, 2008, p. 136.
134
39
necessárias para atingir fins, os postulados servem com parâmetros para a
realização de outras normas. 137
E ainda, Ávila acrescenta mais: “[...] utilização dos postulados sempre há um
raciocínio de que é feito relativamente à aplicação de outras normas do
ordenamento jurídico.” 138
A proporcionalidade não é um princípio porque não se trata de uma abstração
e sim postulado, já que realiza em situações de fato, a restrição de um princípio por
outro e assim corrobora-se no seguinte trecho:
A proporcionalidade [...] não pode ser considerada uma espécie de
princípio, porque não tem elevado grau de abstração e generalidade: ela
dirige-se a situações determinadas (colisão entre princípios em razão da
utilização de um meio cuja adoção provoca efeitos que promovem a
realização de um princípio, mas restringem a realização de outro) e as
pessoas determinadas (sujeitos, normalmente autoridades públicas, que
adotam medidas com a pretensão de realizar determinados princípios).
Também não pode ser considerada regra, pois não tem uma hipótese e
uma conseqüência que permita a subsunção do conceito do fato ao
conceito da norma. Em vez de uma hipótese de fato ou de definição de um
efeito, a proporcionalidade estabelece uma estrutura de aplicação, algo bem
139
diverso.
O postulado normativo consiste em critérios que se adéquam a situações em
que os critérios usuais, de cronologia, hierarquia e especialidade não atendem
eficazmente.
2.4
COLISÃO DE PRINCÍPIOS
Nas colisões entre direitos fundamentais é importante buscar a harmonia
entre eles para não prejudicar a unidade da Constituição e tão-pouco as pessoas.
Confirma-se na seguinte passagem: "[...] uma relação de tensão entre princípios e
as regras constitucionais, especialmente entre aqueles que protegem os cidadãos e
aqueles que atribuem poderes ao Estado, deve ser buscado um equilíbrio entre
eles." 140
A compreensão da distinção entre princípios e regras colima nas situações
fáticas de choques, enquanto os princípios são humildes, permitindo o afastamento
137
ÁVILA, 2008, p. 137.
ÁVILA, 2008, p. 137.
139
ÁVILA, 2008, p. 138.
140
ÁVILA, 2008, p. 145.
138
40
de um para valer o outro, coexistindo os dois. As regras são arrogantes, pois uma
extingue e elimina a outra por critérios como hierarquia, cronologia e especialidade.
Assim a colisão de princípios é um aparente acordo e das regras não há hipótese
alguma de acordo:
[...] os princípios são compreendidos e equiparados e até mesmo
confundidos com os valores, sendo, na ordem constitucional dos
ordenamentos jurídicos, a expressão mais alta da normatividade que
fundamenta a organização do poder.
As regras vigem, os princípios valem; o valor que nele se insere se exprime
em graus distintos. Os princípios, enquanto valores fundamentais,
governam a Constituição, o regímen, a ordem jurídica. Não são apenas a
lei, mas o Direito em toda a sua extensão, substancialmente, plenitude e
abrangência. 141
Os
princípios
miram
imposições
e
mesmo
opostos
podem
existir
simultaneamente, já as regras prescrevem comportamentos e quando contrárias
eliminam-se. Em concordância com isto destaca-se o seguinte trecho:
Os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização,
compatíveis com vários graus de concretização, consoante os
condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem
imperativamente uma exigência (impõem, permitem o proíbem) que é ou
não é cumprida [...]; a convivência dos princípios é conflitual [...] a
convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem, as regras
antinômicas excluem-se. Conseqüentemente, os princípios, ao constituírem
exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e
interesses (não obedecem como as regras, à <<lógica do tudo ou nada>>),
consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente
conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois
se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das
142
suas prescrições, nem mais nem menos.
É importante distinguir regras de princípios e assim Bonavides: “[...] A
distinção entre regras e princípios desponta com mais nitidez, no dizer de Alexy, é
ao redor da colisão de princípios e do conflito de regras.” 143
As normas dividem-se em princípios e regras. Os primeiros podem ser
ponderados, enquanto os segundos são validados ou não.
Normas ou são princípios ou são regras. As regras não precisam nem
podem ser objeto de ponderação; os princípios precisam e devem ser
ponderados. As regras instituem deveres definitivos, independentes das
possibilidades fáticas e normativas; os princípios instituem deveres
preliminares, dependentes das possibilidades fáticas e normativas. Quando
duas regras colidem, uma das duas é inválida, ou dever ser aberta uma
exceção a uma delas para superar o conflito. Quando dois princípios
141
BONAVIDES, 2007, p. 288-289.
CANOTILHO, 2005, p. 1161.
143
BONAVIDES, 2007, p. 279.
142
41
colidem, os dois ultrapassam o conflito mantendo sua validade, devendo o
aplicador decidir qual deles possui maior peso. 144
Assim num conflito aparente de princípios, embora não muito pertinente estes
termos, implica na primazia do princípio de unidade da Constituição.
[...] devem ser levados em conta, em eventual juízo de ponderação, os
valores que constituem inequívoca expressão desse princípio
(inviolabilidade de pessoa humana, respeito à sua integridade física e moral,
inviolabilidade do direito de imagem e da intimidade). 145 (grifo do autor).
A conseqüência do conflito entre regras incompatíveis resultam na exclusão
em uma delas, pois são pontos controversos e indiscutíveis e Alexy relata: “Comum
a colisões e conflitos é que duas normas, cada qual aplicada de per si, conduzem a
resultados entre si incompatíveis, a saber, a dois juízos concretos e contraditórios de
dever-ser jurídico.” 146
A solução de conflito entre regras resolve-se com a invalidação de uma delas
e assim afirma-se:
Um conflito entre regras somente pode ser resolvido se uma cláusula de
exceção, que remova o conflito, for introduzida numa regra ou pelo menos
se uma das regras for declarada nula (ungültig). [...] uma norma vale ou não
vale, e quando vale, e é aplicável a um caso, isto significa que suas
conseqüências jurídicas também valem. 147
A coexistência entre dois princípios opostos é possível com o afastamento de
um deles e nas palavras de Bonavides: “A colisão ocorre, p. ex., se algo é vedado
por um princípio, mas permitido por outro, hipótese em que um dos princípios deve
recuar.” 148
Para resguardar a unidade e a coerência do ordenamento jurídico é primordial
a utilização de determinados critérios para solucionar os inevitáveis embates entre
as normas.
A distinção entre regras e princípios jurídicos se apresenta sumamente
relevante quando da resolução das tensões que se produzem dentro do
sistema normativo. Em um sistema de normas, constituído por regras e
princípios constitucionais em constante e necessária transformação, que
refletem uma sociedade dinâmica e heterogênea, inevitáveis são os
conflitos entre as espécies normativas, situação que reclama adoção de
144
ÁVILA, 2008, p. 26.
MENDES; COELHO; GONET BRANCO, 2008, p. 347.
146
1985, p. 77 apud BONAVIDES, 2007, p. 279.
147
ALEXY, 1985, p. 77 apud BONAVIDES, 277, p. 279.
148
BONAVIDES, 2007, p. 279-280.
145
42
critérios capazes de resolver o conflito e salvaguardar a unidade e a
coerência do ordenamento jurídico. 149
Na doutrina existem muitas diferenças entre princípios e regras, mas não são
unânimes. Enquanto o princípio é a diretriz, é o caminho a ser feito, a regra por sua
vez é a determinação, concretização e o caminho a fazer.
[...] duas características afastariam os princípios das regras. Em primeiro
lugar, o conteúdo axiológico: os princípios, ao contrário das regras,
possuiriam um conteúdo axiológico explícito e careceriam, por isso, de
regras para sua concretização. Em segundo lugar, há o modo de interação
com outras normas: os princípios, ao contrário das regras, receberiam seu
conteúdo de sentido somente por meio de um processo dialético de
complementação e limitação. 150
Enquanto as regras são descritivas e decisivas, os princípios são abstratos e
finalísticos. Nestes termos os conceitos de regras e de princípios são os seguintes:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente
retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangências, para cuja
aplicação se exige a avaliação de correspondência, sempre centrada na
finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhe são
axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição
normativa e a construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente
prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade,
para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o
estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta
havida como necessária à sua promoção. 151 (grifo do autor).
Uma das distinções entre princípios e regras não pode ser firmada no tudo ou
nada, já que para manter a unidade da Constituição, os princípios precisam conviver
pacificamente no limite de fronteiras. As regras são invalidadas e os princípios são
ponderados:
A distinção entre princípios e regras – segundo Alexy – não pode ser
baseada no tudo ou nada. [...] deve resumir-se, sobretudo, a dois fatores:
diferença quanto à colisão, na medida em que os princípios colidentes
apenas têm sua realização normativa limitada reciprocamente, ao contrário
dar regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de
uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a antinomia;
diferença quanto à obrigação que instituem, já que as regras instituem
obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, enquanto
os princípios instituem obrigações prima facie, na medida e, que podem ser
superadas ou derrogadas em função dos outros princípios colidentes. 152
Uma das diferenças entre regras e princípios é que a primeira é determinável,
enquanto que a segunda é indeterminável e assim:
149
CRISTÓVAM, 2008.
CANARIS, 1983, p. 50, 53, 55 apud ÁVILA, 2008, p. 36.
151
ÁVILA, 2008, p. 78-79.
152
ALEXY, 1985, separata 25/20 apud ÁVILA, 2008, p. 38-39.
150
43
Em primeiro lugar [...] enquanto as regras descrevem objetos determináveis
(sujeitos, condutas, matérias, fontes, efeitos jurídicos, conteúdos), os
princípios descrevem um estado ideal de coisas a ser promovido. Em
segundo lugar, as regras diferenciam-se dos princípios pela natureza da
justificação que exigem para serem aplicadas: as regras exigem um exame
de correspondência entre a descrição normativa e os atos praticados ou
fatos ocorridos, ao passo que os princípios exigem uma avaliação da
correlação positiva entre os efeitos da conduta adotada e o estado de
coisas que deve ser promovido. Em terceiro, as regras distinguem-se dos
princípios pela natureza da contribuição para a solução do problema:
enquanto as regras têm pretensão de decidibilidade, pois visam
proporcionar uma solução provisória para um problema conhecido ou
antecipável, os princípios têm pretensão de complementariedade, já que
servem de razões a serem conjugadas com ouras para a solução de um
153
problema.
Os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade colaboram na solução do
postulado ponderação em situações conflituosas como assevera - se em:
Nem a ponderação nem a concordância prática indicam [...], os critérios
formais ou materiais por meio dos quais dever ser feita a promoção – das
finalidades entrelaçadas. [...] são os postulados da razoabilidade e da
proporcionalidade que permitem estruturar a realização das normas
constitucionais. 154
Para atingir finalidades, não existe um caminho sem barreiras, pois há
restrições que esbarram no postulado da proibição de excesso e onde aplica-se o
postulado da proporcionalidade e observa-se no seguinte trecho:
A promoção de finalidades constitucionalmente postas possui, porém, um
limite. Esse limite é fornecido pelo postulado da proibição de excesso. [...]
denominado pelo Supremo Tribunal Federal como uma das facetas do
princípio da proporcionalidade, o postulado [...] proíbe a restrição excessiva
de qualquer direito fundamental. A proibição de excesso está presente em
qualquer contexto em que um direito fundamental esteja sedo restringido. 155
A aplicabilidade do postulado da razoabilidade está contextualizada em casos
concretos em que se procura preservar a individualidade e as normas do sistema
constitucional como afirma - se em:
A razoabilidade estrutura a aplicação de outras normas, princípios e regras
notadamente das regras.
[...] à razoabilidade, dentre tantas acepções, três se destacam. Primeiro, [...]
como diretriz que exige a relação das normas gerais com as
individualidades do caso concreto. [...] Segundo, [...] como diretriz que exige
uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem
referência. [...] Terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a
relação de equivalência entre duas grandezas. 156
153
ÁVILA, 2008, p. 83-84.
ÁVILA, 2008, p. 145.
155
ÁVILA, 2008, p. 145.
156
ÁVILA, 2008, p. 152.
154
44
O postulado da proporcionalidade para alcançar determinados fins requer
imprescindível maneiras, formas para atingi-lo e não há como o Poder público estar
ausente destas circunstâncias, uma vez que tem que escolher meios suficientes
para alcançar determinados objetivos e coaduna nas seguintes palavras:
O postulado de proporcionalidade exige que o Poder Legislativo e o Poder
Executivo escolham, para a realização de seus fins, meios adequados,
necessários e proporcionais. Um meio adequado se promove o fim. Um
meio é necessário se, dentre todos aqueles meios igualmente adequados
para promover o fim, for o menor restritivo relativamente aos direitos
fundamentais. E um meio é proporcional em sentido estrito, se as vantagens
que promove superam as desvantagens que provoca. A aplicação da
proporcionalidade exige a relação de causalidade entre meio e fim, de tal
sorte que, adotando-se o meio, promove-se o fim. 157
Aplicar a razoabilidade é imprescindível a presença de uma situação
concreta, real e está bem abordada em:
A razoabilidade como dever de harmonização do geral com o indivíduo
(dever de equidade) atua como instrumento para determinadas que as
circunstâncias de fato devem ser consideradas com a presunção de
estarem dentro da normalidade, ou para expressar que a aplicabilidade de
regra geral depende do enquadramento do caso concreto. 158
Com a aplicabilidade da proporcionalidade não poderá haver a nulidade de
um princípio pelo outro:
Se a proporcionalidade em sentido estrito for compreendida como amplo
dever de ponderação de bens, princípios e valores, em que a promoção de
um não pode implicar a aniquilação de outro, em proibição de excesso será
incluída no exame da proporcionalidade. 159
Com a ponderação de interesses é necessária, também, a utilização do
postulado da proporcionalidade:
Se a proporcionalidade em sentido estrito compreender a ponderação dos
vários interesses em conflito, inclusive dos interesses pessoais dos titulares
dos direitos fundamentais restringidos a razoabilidade como equidade será
incluída no exame da proporcionalidade. 160
O postulado de proporcionalidade é usado quando existe uma situação
concreta para um determinado fim e aponta-se em:
Ele se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade
entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal
sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da
adequação (o meio promove o fim?), o da necessidade (dentre os meios
157
ÀVILA, 1999, RDA 215/151-199 apud ÁVILA, 2008, p. 159.
ÁVILA, 2008, p. 159.
159
MENDES, 1988, p. 67 e ss apud ÁVILA, 2008, p. 160.
160
ÁVILA, 2008, p. 160.
158
45
disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro
meio menos restritivo do (s) direito (s) fundamentais afetados?) e o da
proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção
do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do
meio?). 161
Assim:
Sua aplicabilidade depende de elementos sem os quais não pode ser
aplicada. Sem um meio, um fim concreto e uma relação de causalidade
entre eles não há aplicabilidade do postulado da proporcionalidade em seu
caráter trifásico. 162
O postulado da proporcionalidade exige adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito de uma medida havida como meio para
atingir um fim empiricamente controlável. O postulado da proporcionalidade
não se identifica com o da ponderação de bens: esse último exige a
atribuição de uma dimensão de importância a valores que imbricam, sem
que contenha qualquer determinação quanto ao modo como dever ser feita
essa ponderação. [...]. 163
Os postulados normativos são normas imediatamente metódicas, que
estruturam a interpretação e aplicação de princípios e regras mediante a
exigência, mais ou menos específica, de relações entre elementos com
base em critérios.
Alguns postulados aplicam-se sem pressupor a existência de elementos e
de critérios específicos: ponderação de bens consiste num método
destinado a atribuir pesos a elementos que se entrelaçam, sem referência a
pontos de vista materiais que orientem esse sopesamento; a concordância
prática exige a realização máxima de valores que se imbricam; a proibição
de excesso proíbe que a aplicação de uma regra ou de um princípio
restrinja de tal forma um direito fundamental que termine lhe retirando seu
mínimo de eficácia. 164
A ponderação é a solução mais propícia da colisão entre princípios, eis que
inexiste incompatibilidade de dois princípios concomitantemente e os critérios de
hierarquia, cronologia e especialidade não se encaixa nestas circunstâncias e
corrobora isto o seguinte trecho:
Apela-se ao método de ponderação de bens como via adequada à
promoção de solução justa nas colisões entre direitos fundamentais e entre
estes e outros bens protegidos constitucionalmente. [...] a busca para
soluções ajustadoras às colisões de direitos fundamentais perpassa pelo
manuseio, concomitante, do princípio da proporcionalidade e da técnica de
ponderação de bens. 165
Para
solução
de
colisão
é
importante
considerar
o
postulado
da
proporcionalidade como se depreende das palavras de Eros Grau: “Na análise do
161
ÁVILA, 2008, p. 161-162.
ÁVILA, 2008, p. 162.
163
ÁVILA, 2008, p. 165.
164
ÁVILA, 2008, p. 181.
165
GRAU, 2003, p. 231.
162
46
princípio da proporcionalidade como critério necessário para a harmonização e
adequação dos direitos fundamentais em situação de conflito.” 166
Embora Eros Graus identifique a proporcionalidade como princípio refuta-se
esta idéia uma vez que não é diretriz para um fim e sim o como aplicar o princípio,
portanto um postulado normativo.
Entre os princípios dos direitos fundamentais são inevitáveis os choques wm
que solução adequada:
Os direitos fundamentais podem entrar em conflito em situações especiais:
nas hipóteses de concorrência de direitos fundamentais e colisões de
direitos fundamentais ou envolvendo direitos fundamentais e bens jurídicos
de estatura constitucional. [...] Os conflitos dentre direitos fundamentais e
bens jurídicos de estatura constitucional ocorrem quando o exercício de
direito fundamental ocasiona prejuízo da um bem protegido pela
Constituição. 167
Existem determinados critérios para soluções propícias entre os conflitos dos
direitos fundamentais:
[...] utilização do método hermenêutico constitucional concretista aliado ao
princípio da proporcionalidade e ao método da ponderação de bens, como
critérios necessários a oferecer solução adequada aos conflitos de direitos
fundamentais ocasionados no caso concreto. 168
Embora estes autores descrevam a proporcionalidade não há aplicabilidade,
pois a proporcionalidade é um critério para a ponderação de interesses.
A hermenêutica constitucional está em transformação da lógica formalpositivista para o raciocínio levando em consideração a ponderação e a
proporcionalidade. Vale frisar que os choques são resolvidos pela interpretação em
que prevalece o preceito mais adequado.
No bojo da normatividade dos princípios constitucionais, o estudo das
formas de resolução dos conflitos entre princípios constitucionais ganha
considerável relevância, sobretudo se analisados a partir de uma moderna
teoria da argumentação jurídica. Tal empreitada exige a rediscussão e a
redefinição da hermenêutica constitucional clássica, pautada pela lógica
formal-positivista,
avançando-se
para
uma
nova
hermenêutica
constitucional, vivificada pelo raciocínio tópico e pela aplicação da máxima
da proporcionalidade.
Inexistem normas constitucionais inconstitucionais, o enfrentamento da
questão pode vir a constatar que, ou o caso vertente implica a ocorrência de
uma antinomia constitucional, e diante disso, devermos, através da
equidade, buscar a sua solução dentro da própria Constituição, sem que se
tenha que excluir qualquer dos dispositivos em apreço ou que, na verdade,
166
GRAU, 2003, p. 231.
CARA, 1994 apud CLÉVE; FREIRE apud GRAU, 2003, p. 232-233.
168
CLÉVE; FREIRE apud GRAU, 2003, p. 234.
167
47
os artigos não são incompatíveis e, mediante uma adequada interpretação,
o impasse desaparece.
Em verdade, deve ser avaliado, no caso concreto, qual dos princípios em
colisão tem maior peso; segundo as circunstâncias e condições da situação,
qual dos direitos deve ser efetivado, em uma relação de precedência
condicionada. Fica conferido ao Judiciário o dever de examinar a situação
concreta e decidir se o direito efetivado não afrontou um direito que deveria
prevalecer naquele caso, precedendo ao direito respaldado.
Pelo princípio da ponderação dos resultados, deve-se examinar o grau de
satisfação e efetivação do mandamento de otimização que a decisão
procurou atender. Quanto mais alto for o grau de afetação e afronta ao
princípio limitado pelo meio utilizado, maior deverá ser a satisfação do
princípio que se procurou efetivar.
Na resolução da colisão entre princípios constitucionais deve - se levar em
consideração as circunstâncias que cercam o caso concreto, para que,
pesados os aspectos específicos da situação, prepondere o preceito mais
adequado. A tensão se resolve mediante uma ponderação de interesses
opostos, determinando qual destes interesses, abstratamente, possui maior
169
peso no caso concreto.
A doutrina e a jurisprudência optaram pela ponderação de interesses na
solução de colisões.
Segundo Carolina Medeiros Bahia: “A doutrina e a jurisprudência têm optado
por modelos que privilegiam a ponderação de direitos, partindo da concepção de
que, a priori, nenhum direito fundamental vale mais do que o outro.” 170
A oposição entre princípios não redundam em invalidade e sim em
ponderação de interesses e proporcionalidade para cada situação concreta como
parte dos requisitos dos postulados normativos.
[...] se um princípio mostra-se incompatível com outro, ambos continuarão
válidos, pois haverá apenas a ponderação de funcionalidade dos valores
contrapostos, no sentido de equalizar o referencial normativo a ser
empregado, de modo que toda colisão entre princípios pode expressar-se
como uma colisão de valores, ao passo em que o choque de valores
antagônicos também redunda em um choque de princípios (Alexy, 1998:
14).
[...]
Em verdade, nota-se hoje, ainda que incipientemente, uma preocupação
com os rumos da principiologia, em que o enfoque crítico de autores como
Ávila avulta imprescindível. Como se passa em toda teoria crítica, o
caminho é despensar o modelo teórico atual, para repensá-lo (Boaventura
Santos) em melhor grau conceitual. Desde Esser, passando por Larenz e
Canaris, a questão dos critérios e métodos associados ao conhecimento
jurídico está em visível transição de paradigmas; com os influxos da teoria
da argumentação jurídica e mesmo da aproximação entre direito e
linguagem, as bases compreensivas da epistemologia jurídica sofreram
profunda reorientação. Mais que compreender os princípios, se faz
necessário estudá-los por um prisma fenomenológico, da pré-compreensão
de conteúdos particulares à metodologia de sua aplicação judicial.
169
170
CRISTÓVAM, 2008
BAHIA, 2006, p. 199.
48
É nesse contexto que a investigação de Ávila se insere: uma investigação
densa, em que se privilegia o exame da estrutura lógica dos princípios, bem
assim, sua aplicabilidade, especialmente no que concerne à sua
fundamentação, de sorte a permitir a especificação dos comportamentos
necessários à concreção dos valores por eles focalizados (Ávila, 2004: 56).
A crítica formulada por Ávila ao padrão teórico predominante traz ao chão
grandes laudatórios imunizantes da teoria principiológica convencional. De
tal sorte, ao instituir-se uma construção teorética de maior densidade, as
indagações e perplexidades conduzirão, obrigatoriamente, a uma
necessária revaloração dos fundamentos qualificadores (justificantes) das
decisões.
[...]
Sucede que, na visão de Ávila, o princípio da proporcionalidade não
consiste num princípio, mas num postulado normativo aplicativo: em sua
aplicação, o dever de proporcionalidade indica qual norma deverá
prevalecer, a independer da situação concreta se houve ou não violação do
conteúdo que representa a noção de proporcionalidade [...]
Os postulados normativos, portanto, correspondem a normas articuladoras
de regras e princípios, cujo funcionamento difere dessas espécies
normativas, consideradas de 1º grau. São deveres estruturais de
aplicabilidade das normas em geral, cuja determinabilidade consiste na
própria metodologia de decisão de um caso.
O problema de sua aplicação consiste exatamente na sua determinação:
não se poderá especificar, em todos os casos, quais os elementos e
critérios de sua utilização. Daí, a opção de Ávila em dividi-los em duas
espécies: (i) postulados inespecíficos, dos quais se protraem a
‘ponderação’, a ‘concordância prática e a proibição de excessos’; e (ii)
postulados específicos, tais como a ‘igualdade’, a ‘razoabilidade’ e a
‘proporcionalidade’ (Ávila, 2004: 93ss).
Sem imergir no detalhamento da classificação e em seus desdobramentos
lógicos, a proposta de qualificação dos postulados normativos consagra a
pré-compreensão na argumentação e hermenêutica do direito, em uma
ampla cobertura de inferências lógicas postas à atividade decisional;
enquanto alguns postulados aplicam-se sem pressupor a existência de
elementos e critérios específicos, outros dependem de certas condições e
prévios acertos de finalidade, para, enfim, dirigirem-se a seu consentâneo
funcionamento.
[...]
Assim, para além da mera dicotomização das normas jurídicas em regras e
princípios, o viés argumentativo conduz a adoção de “metanormas” ou
normas de segundo grau, simplesmente denominadas postulados
normativos aplicativos; a terminologia – diz Ávila, pouco importará – o
decisivo passa a ser a análise, fundamentação e operacionalidade desse
fenômeno (Ávila, 2004: 90).
Postulados normativos são tratados como normas estruturantes da
aplicação de regras e princípios. A sua formulação oportuniza a
identificação de três modos de aplicabilidade aos quais estaria uma norma
jurídica sujeita: (i) a regra, que especifica um comportamento imediato; (ii) o
princípio, que se revela como um fim adequado à situação jurídica; e (iii) o
postulado normativo, enquanto método para a aplicação das espécies
171
normativas em prospecção.
As situações de conflitos encontram soluções viáveis em vários critérios para
equilibrar
171
o
GUERRA, 2007.
ordenamento
jurídico
que
não
comporta
incoerências
e
49
incompatibilidades entre as normas. O critério mais propício para a resolução de
princípios que se encontram no mesmo nível de hierarquia é verificar o maior peso
entre eles. Assim consiste na ponderação de interesses na concretização de um
fato.
Entre os princípios constitucionais não há conflitos e sim colisões e, portanto,
é necessário sopesar o princípio mais preponderante na situação concreta em
escopo e Canotilho destaca que: “[...] colisão entre direitos individuais quando se
identifica conflito decorrente do exercício de direitos individuais por diferente
titulares.” 172
As colisões entre princípios não são reais, já que não existem princípios
inconstitucionais e Rüfner assevera que: “[...] questões tratadas como relações
conflituosas de direitos individuais configuram conflitos aparentes [...]” 173
Enquanto as regras resolvem-se no plano da validade, os princípios
solucionam-se no critério de sopesamento e detalhando mais:
Alexy considera que os princípios jurídicos enquadram-se na condição de
mandado de otimização incluindo-se na espécie das normas, uma vez que
constem em proposições deônticas que encerram um “dever-ser”. Estes
mandados de otimização, contudo, depende de condições reais e jurídicas,
assim, serão aferidas no confronto dos princípios e regras opostos. Ao
contrário, as regras não contemplam seu cumprimento em vários graus,
mas contêm determinações no âmbito do que seja fática ou juridicamente
possível. Portanto, em sendo válida a regra, somente pode ser cumprida ou
não. Com efeito, enquanto o conflito entre regras se resolve no plano de
validade, o conflito entre princípios somente poderá ser resolvido pela
aferição da respectiva prevalência de um dos princípios envolvidos em meio
174
às circunstâncias reais (de fato).
Na colisão de princípios há o comparativo de pesos entre eles numa
determinada situação fática e nas palavras de Alexy: “[...] os princípios têm um peso
diferente nos casos concretos, e que o princípio de maior peso é o que
prepondera.” 175
Já a questão do conflito das regras é completamente diferente eis que uma
exclui a outra e assim demonstra a seguinte passagem:
[...] se desenrolam na dimensão da validade, ao passo que a colisão de
princípios, visto que somente princípios válidos podem colidir, transcorre
172
1993, p. 643 apud MENDES, 2007, p. 77.
1976, v. II, p. 452 apud MENDES, 2007, p. 77.
174
ALEXY, 1997, p. 86 et-seg. apud SBROGIOBALIA, 2007, p. 132.
175
1985, p. 79 apud BONAVIDES, 2007, p. 280.
173
50
fora da dimensão da validade, ou seja, a dimensão do peso, isto é, do
valor. 176
A ponderação é uma forma de solução adequada entre situações de tensão
em que os critérios usuais não adéquam para a solução entre colisão de princípios e
Canotilho assevera-se isto na seguinte passagem: “As idéias de ponderação
(Abwägung) [...] surge em todo o lado onde haja necessidade de ‘encontrar o direito’
para resolver ‘casos de tensão’ (Ossenbühl) entre bens juridicamente protegidos.” 177
A harmonia é importante para resolução dos choques, coerência e unidade do
sistema constitucional e assim Canotilho acrescenta mais: “[...] no momento de
ponderação está em causa [...] equilibrar e ordenar bens conflituantes [...] num
determinado caso.” 178
Ainda sobre esta questão de ponderação que busca a solução adequada para
o choque existente, Canotilho afirma: “[...] a ponderação visa elaborar critérios de
ordenação para, em face dos dados normativos e factuais, obter a solução justa
para o conflito de bens.” 179
Portanto, a ponderação de interesses é a harmonização das colisões dentro
da unidade e dinâmica da Constituição.
Também sobre este aspecto, é importante salientar a flexibilidade dos
princípios na Constituição que não aceita normas inconstitucionais e Canotilho
afirma: “[...] a ponderação reconduz-se [...] à criação de uma hierarquia axiológica
móvel entre princípios conflituantes.” 180
A ponderação como critério de solução de colisão é buscada tendo em vista
que os outros critérios não se adéquam a colisões de princípios em situações reais:
A ponderação se realiza entre princípios em conflito, que se encontram em
uma relação de antinomia não dirimível pelos critérios usuais destinados a
solução dos conflitos entre regras (quais sejam os critérios hierárquico,
cronológico ou de especialidade), porquanto se tem uma superposição
parcial de supostos de fato para solução da questão será necessário
identificar uma hierarquia axiológica ou móvel na relação valorativa
estabelecida pelo intérprete, com base em um juízo de valor. 181
Na ponderação é inevitável o afastamento de um dos princípios para solução
de colisões.
176
ALEXY,1985, p. 79 apud BONAVIDES, 2007, p. 280.
CANOTILHO, 2005, p. 1236-1237.
178
CANOTILHO, 2005, p. 1237.
179
CANOTILHO, 2005, p. 1237.
180
CANOTILHO, 2005, p. 1240.
181
GUASTINI, 1999, p. 167-171 apud SBROGIOBALIA, 2007, p. 156.
177
51
“O juízo de ponderação não atribui hierarquia absoluta entre um princípio
sobre outro, ao contrário deve assegurar a aplicação das normas em colisão, sendo
que uma delas fatalmente será preterida ou atenuada em prol da melhor justiça.” 182
Os estados de tensão momentâneos são passíveis de ser resolvidos pela
ponderação de interesses.
No campo da aplicação dos princípios, ao contrário, [...] por sua própria
natureza, finalidade e formulação como que não se prestam a provocar
conflitos, criando apenas momentâneos estados de tensão ou de mal-estar
hermenêutico, que o operador jurídico prima facie verifica serem
passageiros e plenamente superáveis no curso do processo de aplicação do
direito.
Daí esta precisa observação de Humberto Bergmann Ávila sobre a natural
inapetência dos princípios para entrar em conflito quando manejados pelos
seus intérpretes e aplicadores: A própria idéia de ‘conflito’ deve ser
repensada. Ora, se o conteúdo normativo de um princípio ‘depende’ da
complementação (positiva) e limitação (negativa) decorrente da relação
dialética que mantém com outros princípios, como conceber a idéia de
‘colisão’? Tratar-se-ia de um conflito aparente e não-uniforme, já que a idéia
de conflito pressupõe a identidade de hipóteses e campos materiais de
aplicação entre as normas que eventualmente se contrapõem, o que no
caso dos princípios é previamente inconcebível: os princípios são definidos
justamente em função de não possuírem uma hipótese e uma conseqüência
abstratamente determinadas. O problema que surge na aplicação reside
muito mais em saber qual dos princípios será aplicado e qual a relação que
183
mantêm entre si.
No caso de choques entre princípios não há nulidade de um deles tãosomente o afastamento de um deles. Existe sim a ponderação em situações fáticas.
No caso de tensão ocorrente no caso de colisão entre princípios, a solução
não é de prevalência de um sobre o outro, mas de ponderação entre
princípios colidentes em função da qual um deles, em determinadas
circunstâncias concretas, recebe a prevalência.
A ponderação diz respeito tanto aos princípios quanto às regras, na medida
em que qualquer norma possui um caráter provisório - decorrente do caso
concreto – que poderá ser ultrapassado por razões havidas como mais
relevantes pelo aplicador. O tipo de ponderação é que é diverso. 184
A doutrina é controversa em relação ao princípio da proporcionalidade quanto
aos princípios e as regras e nas palavras de Ávila: “[...] a doutrina, em geral, entende
haver interpretação das regras e ponderação dos princípios [...]” 185
Há não tão-somente o postulado de ponderação bem como existem outros
postulados normativos aplicativos e nas palavras de Ávila: “[...] a doutrina refere-se à
182
COUTO, 2008.
COELHO, Inocêncio Mártires. Repensando a interpretação constitucional. Revista Diálogo
Jurídico, Salvador, v. 1, n. 5, ago. 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>.
Acesso em: 17 ago. 2008.
184
ARAÚJO, 2008.
185
ÁVILA, 2008, p. 26.
183
52
proporcionalidade ora como princípios, ora como regras, este trabalho critica essas
concepções e, aprofundando trabalho anterior, propõe uma nova categoria dos
postulados normativos aplicativos.” 186
Para garantir o princípio da segurança jurídica são necessários alguns
requisitos e Ávila assevera que: “Pelo exame dos dispositivos que garantem a
legalidade, a irretroatividade e a anterioridade chega-se ao princípio da segurança
jurídica.” 187
A interpretação não é feita a partir do nada e sim com base em algo:
[...] interpretar é construir a partir de algo, por isso significa reconstruir: a
uma, porque utiliza como ponto de partida os textos normativos, que
oferecem limites à construção de sentidos; a duas, porque manipula a
linguagem, à qual são incorporados núcleos de sentidos, que são, por assim
dizer, constituídos pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo
individual. 188
O significado do ordenamento jurídico é manter não só os valores de uma
sociedade bem como a organização da mesma. Ávila diz que: “O ordenamento
jurídico estabelece a realização de fins, a preservação de valores e a manutenção
ou a busca de determinados bens jurídicos essenciais à realização daqueles fins e à
preservação desses valores.” 189
Na colisão de princípios há o sopesamento deles e um não anula o outro. Já
no caso da colisão das regras, uma é válida e a outra não. E se enfatiza estas
palavras com o seguinte trecho:
No caso de colisão entre regras, uma delas dever considerada inválida. Os
princípios, ao contrário, não determinam absolutamente a decisão, mas
somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros
fundamentos provenientes de outros princípios. Daí a afirmação de que os
princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso
(dimension of weight), demonstrável na hipótese de colisão entre os
princípios, caso em que o princípio com peso relativo maior se sobrepõe ao
outro, sem que este perca sua validade. 190
A aplicação dos princípios só acontece em virtude de situações fáticas:
É só a aplicação dos princípios diante dos casos concretos que os
concretiza mediante regras de colisão. Por isso, a aplicação de um princípio
186
ÁVILA, 2008, p. 27.
ÁVILA, 2008, p. 31.
188
ÁVILA, 2008, p. 34.
189
ÁVILA, 2008, p. 34-35.
190
ÁVILA, 2008, p. 37.
187
53
deve ser vista sempre com uma cláusula de reserva, a ser assim definida:
‘Se no caso concreto um outro princípio não obtiver maior peso’. 191
Enquanto que no conflito de regras, há a subsunção, ou seja, uma é válida e
a outra não. Na questão de colisão entre princípios não há que se verificar a
validade e sim a ponderação de interesses e assim confirma-se que:
Essa espécie de tensão e o modo como ela é resolvida é o que distingue os
princípios das regras: enquanto no conflito entre regras é preciso verificar se
a regra está dentro ou fora de determinada ordem jurídica (problema do
dentro ou fora), o conflito entre princípios já se situa no interior desta
mesma ordem (teorema da colisão). 192
Não há meio termo para aplicação da colisão entre as regras, pois é tudo ou
nada, ou seja, não existem duas regras conflitantes vigentes, mas apenas uma. Já
em relação aos princípios, na colidência entre eles é possível a existência de ambos
e Ávila corrobora com as seguintes palavras: “[...] as regras são ou não aplicadas,
de modo integral, enquanto os princípios podem ser aplicados mais ou menos.” 193
E em relação aos princípios há o equilíbrio a ser observado na unidade da
Constituição, portanto, Ávila: “[...] não são os princípios que são aplicados de forma
gradual, mais ou menos, mas é o estado de coisas que pode ser mais ou menos
aproximado, dependendo da conduta adotada como meio.” 194
Para alguns autores a diferença entre princípios e regras está na
funcionalidade:
[...] os princípios poderiam ser distinguidos das regras pelo modo como
funcionam em caso de conflito normativo. [...] a antinomia entre as regras
consubstancia verdadeiro conflito, a ser solucionado com a declaração de
invalidade de uma das regras ou com a criação de uma exceção, ao passo
que o relacionamento entre os princípios consiste num imbricamento, a ser
decidido mediante uma ponderação que atribui uma dimensão de peso a
cada um deles. 195
Nas palavras de Dworkin, os princípios podem têm uma dimensão de peso
nas situações fáticas e corrobora no seguinte trecho: “[...] sustenta que os princípios,
ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso que se exterioriza na
hipótese de colisão, caso em que o princípio com peso relativo maior se sobrepõe
ao outro, sem que este perca sua validade.” 196
191
ALEXY, 1985, p. 18 apud ÁVILA, 2008, p. 37.
ALEXY, 1985, separata 1/70 apud ÁVILA, 2008, p. 38.
193
ÁVILA, 2008, p. 50.
194
ÁVILA, 2008, p. 50.
195
ÁVILA, 2008, p. 51.
196
1977, p. 26 apud ÁVILA, 2008, p. 51.
192
54
O critério mais apropriado para resolver a tensão entre princípios colidentes
em situações concretas é a ponderação:
No caso de colisão entre os princípios a solução não se resolve com a
determinação imediata de prevalência de um princípio sobre outro, mas é
estabelecida em função da ponderação entre os princípios colidentes, em
função da qual um deles, em determinadas circunstâncias concretas,
recebe a prevalência. Essa espécie de tensão e o modo com ela é resolvida
é o que distingue os princípios das regras: enquanto no conflito entre regras
é preciso verificar se a regra está dentro ou fora de determinada ordem
jurídica, naquele entre princípios o conflito já se situa no interior dessa
mesma ordem. 197
Decidir o peso de uma dos princípios numa situação, não é tarefa muito fácil e
assim afirma Ávila: “[...] Quando o aplicador atribui uma dimensão de peso maior a
um dos princípios ele se decide pela existência de razões maiores para a aplicação
de um princípio em detrimento do outro, que, então, pode deixar de irradiar efeitos
sobre o caso objeto da decisão.” 198
Há alternativas viáveis para solucionar conflitos entre princípios e uma delas é
o sopesamento dos princípios em questões fáticas e Ávila aponta: “Na hipótese de
relação entre princípios, quando dois princípios determinam a realização de fins
divergentes, deve-se escolher um deles, em detrimento do outro, para a solução do
caso.” 199
A proporcionalidade não é um princípio e sim um postulado e confirma-se em:
[...] que define a proporcionalidade como princípio confunde a balança com
os objetos que ele pesa. E ao fazê-lo, perde de vista a diferença entre o que
deve ser realizado (princípio/regra) e o que serve de parâmetro para a
realização (postulados). 200
Alguns critérios são adotados para a análise dos postulados normativos
aplicativos, como mencionado em:
Os postulados normativos estruturam a aplicação de outras normas. [...] é
de todo imprescindível verificar quais normas foram aplicadas, e como o
foram.
Os postulados são deveres que estruturam aplicação de normas jurídicas, é
importante examinar não só quais foram as normas objeto de aplicação,
como, também, a fundamentação de decisão. Destaca-se em resumo que é
necessário: [...] (a) verificar os elementos ou grandezas que foram
manipulados; (b) encontrar os motivos que levaram os Julgadores a
entender existentes ou inexistentes determinadas relações entre eles. 201
197
ALEXY, 1985, separata 25/19 e 1/70 apud ÁVILA, 2008, p. 51-52.
ÁVILA, 2008, p. 55.
199
ÁVILA, 2008, p. 56.
200
ÁVILA, 2008, p. 139.
201
ÁVILA, 2008, p. 139, 140-141.
198
55
Os postulados normativos foram definidos como deveres estruturais, isto é,
como deveres que estabelecem a vinculação entre elementos.
O postulado da ponderação é a busca do equilíbrio entre os pesos dos
princípios e o texto de Àvila destaca isto: “[...] a ponderação exige sopesamento de
qualquer elemento (bens, interesses, valores, direitos, princípios e razões) e não
indica como deve ser feito esse sopesamento.” 202
Para que o postulado da razoabilidade seja aplicado é necessário colisão
entre geral e individual e Àvila retrata muito bem isto em: “A razoabilidade somente é
aplicável em situações em que se manifeste um conflito entre o geral e o individual,
entre norma e a realidade por ela regulada, e entre um critério e uma medida.” 203
Portanto, existem alguns requisitos para que este postulado seja aplicado e
mostra-se nas seguintes palavras: “[...] é condicionada à existência de elementos
específicos (geral e individual, norma e realidade, critério e medida).” 204
Os postulados estão divididos em inespecíficos e específicos.
Entre os inespecíficos estão o de ponderação, concordância prática e
proibição de excesso.
A ponderação é um método de atribuir pesos aos princípios e insere-se no
seguinte trecho: “A ponderação de bens consiste num método destinado a atribuir
pesos a elementos que se entrelaçam sem referência a pontos de vista materiais
que orientem esse sopesamento.” 205
Não há análise da ponderação sem também associar a razoabilidade e
proporcionalidade reflete-se muito bem em:
[...] procuram estruturar a ponderação com os postulados de razoabilidade e
de proporcionalidade e direcionar a ponderação mediante utilização dos
princípios constitucionais fundamentais.
Para verificar a ponderação é preciso levar em consideração os elementos.
Entre eles estão os bens jurídicos, interesses, valores e princípios.
Os bens jurídicos são situações, estados ou propriedade essenciais à
promoção dos princípios jurídicos. 206
Também, quando a ênfase é dada a um princípio em detrimento de outro
significa que o destaque recai mais a um determinado valor que outro e Alexy
202
ÁVILA, 2008, p. 142.
ÁVILA, 2008, p. 142.
204
ÁVILA, 2008, p. 143.
205
ÁVILA, 2008, p. 142.
206
STEINMETZ, 2001, p. 143 apud ÁVILA, 2008, p. 143.
203
56
conclui que: “Os valores constituem o espelho axiológico das normas, na medida em
que indicam que algo é bom e, por isso, digno de ser buscado ou preservado.” 207
Quando um valor está em foco enfatiza o estado de coisa a ser almejado o
que fica claro nas palavras de Ávila: “Os princípios constituem o aspecto
deontológico dos valores, pois, além de demonstrarem que algo vale a pena ser
buscado, determinam esse estado de coisas deve ser promovido.” 208
O postulado da concordância prática tem como escopo de tutelar os valores
bem como direcionar a ponderação:
Este postulado surge da coexistência de valores que aponta total ou
parcialmente para sentidos contrários. [...] dever de harmonizar os valores
de modo que eles sejam protegidos ao máximo. [...] com a finalidade que
deve direcionar a ponderação: o dever de realização máxima de valores que
se imbricam. 209
Não há consenso na conceituação de princípios e normas na doutrina e
Manoel Gonçalves aponta que: “[...] não há acordo entre os adeptos dessa tese [...]
O que ensina Dworkin não é subscrito por Alexy; o que ensina Eros Grau não é o
que entende Humberto Ávila” 210
Há soluções?
Vários critérios podem ser propostos: O primeiro [...] conciliação [...].
Pertinência [...]. Aponte - se mais um - o “do peso”. Entretanto presume uma
valoração – qual o princípio mais importante. [...] a Constituição não
estabelece tal escala. 211
Para resolver os conflitos entre os princípios existem alguns critérios que não
enquadram nesta tensão, como retrata Sarmento: “[...] indagar-se se os critérios
tradicionais de resolução de antinomias são suficientes para equacionamento de
todas as tensões entre normas constitucionais.” 212
Os critérios mais comuns para resolver os conflitos são: o cronológico,
hierárquico e de especialidade, como verifica – se em:
estes critérios são o cronológico, hierárquico e de especialidade. [...]
cronológico postula que, duas normas incompatíveis, deve prevalecer a
posterior [...] hierárquico, [...] determina que, no confronto entre normas
jurídicas inconciliáveis, deve ser aplicada a de estatura superior. [...]
207
1985, separata 25/24 apud ÁVILA, 2008, p. 144.
ÁVILA, 2008, p. 144.
209
ÁVILA, 2008, p. 145.
210
FERREIRA FILHO, 2007, p. 395.
211
FERREIRA FILHO, 2007, p. 397.
212
SARMENTO, 2003, p. 29.
208
57
especialidade impõe que, na colisão entre duas normas prevaleça a mais
especial, em detrimento da mais geral. 213
Para resolver a questão de colisão de princípios é necessário equilibrar o
peso preponderante para determinada situação fática e se ratifica em:
[...] os princípios são dotados de uma dimensão de peso. Tal característica
revela-se quando dois princípios diferentes incidem sobre determinado caso
concreto, entrando em colisão. [...] é solucionado levando em consideração
o peso relativo assumido por cada princípio dentro das circunstâncias
concretas presentes no caso, a fim de que se possa precisar em que
medida cada um cederá espaço ao outro. 214
Também nas palavras de Alexy: “Não há uma hierarquia, a priori, entre os
princípios, pois a prevalência de cada um deles na solução do problema jurídico
dependerá das circunstâncias específicas do caso concreto.” 215
E Alexy acrescenta mais: “[...] enquanto as regras, quando incidentes sobre
um determinado caso, têm de ser aplicadas, os princípios podem ser afastados em
razão da sua ponderação com outros princípios.” 216
“[...] Atua o princípio da dignidade da pessoa humana como elemento inserto
na atividade de ponderação [...]” 217
E ainda mais a diferença entre regras e princípios:
O ponto decisivo para distinção entre regras e princípios é que os princípios
são normas que ordenam que algo seja realizado na melhor medida
possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os
princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato
de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida de seu
cumprimento depende não só das possibilidades reais mas também das
jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos
princípios e regras opostos. De outro lado, as regras são normas que só
podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então deve fazer-se o
que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras contém
determinações no âmbito do fático e juridicamente possível. Isto significa
que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda
218
norma ou é uma regra ou é um princípio. (grifo do autor).
Dois princípios convivem pacificamente e as regras não:
Enquanto os princípios coexistem e sobrevivem à solução da controvérsia,
ainda que entrem em testilha de difícil ou impossível superação, a antinomia
intransponível entre as regras de preceito conduz à forçosa exclusão de
uma delas, pelo método da subsunção do tipo fático à norma jurídica de
maior hierarquia ou mais nova pela precedência.
213
BOBBIO, 1996, p. 92 e seguintes apud SARMENTO, 2003, p. 29.
SARMENTO, 2003, p. 45.
215
1993, p. 89 apud SARMENTO, 2003, p. 46.
216
1993, p. 89 apud SARMENTO, 2003, p. 47.
217
SARLET, 2001b, p. 118 apud SUSANA, 2007, p. 167.
218
ALEXY, 1993, p. 86-87 apud SARMENTO; GALDINO, 2006, p. 168-169.
214
58
Os princípios apresentam uma dimensão de peso. Isto quer dizer que,
mediante uma atividade de ponderação dos interesses em questão, eles
são realizados numa maior ou menor medida, conforme as possibilidades
matérias do caso, e sem que um princípio exclua ou elimine outra norma
congênere. Portanto, sempre que dois ou mais princípios, aplicáveis a um
mesmo caso, entrem em conflito [...] um deles deverá ceder em face do
outro, sem exclusões absolutas ou de índole invalidatória. Assim, na
dimensão principiológica, quando duas ou mais normas de princípio entrem
em rota de colisão para a regência de terminada situação fático-jurídica, o
que está em jogo não é a idéia de validade, mas, sim, a idéia de valor e
supervalia. 219
Os princípios só são avaliados em pesos quando em situações fáticas e como
bem explicita Sarmento: “[...] só diante do caso concreto pode ser atribuído o peso
específico de cada princípio, e, por conseqüência, estabelecida a solução da
controvérsia, [...]” 220
A ponderação de interesses está traçada para priorizar valores de
Constituição e neste contexto:
Estes valores estão sintetizados no princípio da dignidade da pessoa
humana, que confere unidade teleológica a todos os demais princípios e
regras que compõem o ordenamento jurídico constitucional e
infraconstitucional. 221
Passar por cima dos princípios constitucionais é o mesmo que ignorar a
Constituição e assim:
[...] sendo os princípios manifestação de primeira dos valores
constitucionais é certo que estão carregados de sentimentos e emoções.
Ignorá-los seria desconsiderar a importância simbólica da constituição e seu
significado histórico enquanto projeção de expectativas de comunidade. Vai
daí que é impossível uma compreensão exclusivamente intelectual dos
princípios: eles também são sentidos (experimentados no plano dos
afetos). 222
Não há escalonamento entre os princípios e no conflito entre eles, a solução
mais adequada e viável é procurar equilibrá-los sem excluir nenhum deles.
Para corroborar isto:
Não há uma hierarquia formal entre princípios constitucionais, de modo que
a resolução de colisões que se verifiquem em hipóteses concretas depende
sempre de uma ponderação de interesses, cujo resultado poderá variar em
razão das especificidades fáticas do caso. 223
219
SARMENTO; GALDINO, 2006, p. 170.
SARMENTO, 2003, p. 55.
221
SARMENTO, 2003, p. 57.
222
ROTTEMGU, 1999, p. 65 apud SARMENTO, 2003, p. 59.
223
SARMENTO, 2003, p. 75.
220
59
As regras de uma sociedade estão implícitas na Constituição e em algumas
situações fáticas entram em choque, contradição e neste contexto:
O pluralismo de idéias existente na sociedade projeta-se na Constituição,
que acolhe, através dos seus princípios, valores e interesses dos mais
diversos matizes. Tais princípios [...] entram às vezes em tensão na solução
de casos concretos. 224
E ainda nas palavras a seguir:
A contradição principiológica é um fenômeno inevitável, na medida em que
constitui reflexo natural das desarmonias que surgem numa ordem jurídica
pelo facto de, na constituição desta, tomarem parte diferentes idéias
fundamentais entre as quais se pode estabelecer conflito. 225 (grifo do autor).
Para resolver as questões conflituosas não se podem deixar de lado as
normas, como bem explica Sarmento: “[...] não pode jamais implicar na
desconsideração ao dado normativo, que também se revela absolutamente vital para
a resolução das tensões entre princípios constitucionais.” 226
O postulado da proporcionalidade é uma verdadeira análise entre o peso de
interesses de um lado e do outro os bens jurídicos, segundo:
[...] o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito convida o
intérprete à realização de autêntica ponderação. Em lado da balança devem
ser postos os interesses protegidos com a medida, e no outro, os bens
jurídicos que serão restringidos ou sacrificados por ela. Se a balança pender
para o lado dos interesses tutelados, a norma será válida, mas, se ocorrer o
contrário, patente será a sua inconstitucionalidade. 227
Também detalha - se a proporcionalidade no equilíbrio de peso dos princípios:
[...] é ele que permite fazer ‘sopesamento’ (Abwägung, balacing) dos
princípios e direitos fundamentais, bem como dos interesses e bens
jurídicos em que se expressam, quando se encontrem em estado de
contradição, solucionando-a de forma que maximize o respeito de todos os
envolvidos no conflito. 228
Um método a ser utilizado nestas circunstâncias é o de ponderação de
interesses em que o peso de um princípio sobrepõe ao do outro tão-somente em
determinada situação fática como bem expõe Sarmento: “[...] A ponderação de
interesses consiste [...] no método utilizado para a resolução destes conflitos
constitucionais.” 229
224
SARMENTO, 2003, p. 97.
ENGLISH, 1983, p. 318 apud SARMENTO, 2003, p. 97.
226
SARMENTO, 2003, p. 97.
227
SARMENTO, 2003, p. 89.
228
GUERRA FILHO, 1999, p. 39 apud SARMENTO, 2003, p. 96.
229
SARMENTO, 2003, p. 97.
225
60
A ponderação consiste em equilibrar os pesos dos interesses contraditórios:
[...] caracteriza-se pela sua preocupação com a análise do caso concreto
em que eclodiu o conflito, pois as variáveis fáticas presentes no problema
enfrentado afiguram-se determinantes para a atribuição do ‘peso’ específico
a cada princípio em confronto, sendo, por conseqüência, essenciais à
definição do resultado da ponderação. 230
A ponderação de interesses está significativamente baseada nos valores
constitucionais:
A ponderação de interesses constitucionais não representa uma técnica
amorfa e adjetiva, já que está orientada em direção a valores substantivos.
Estes valores que não são criados mas apenas reconhecidos e
concretizados pela ordem constitucional (dignidade humana, liberdade,
igualdade, segurança, etc.) guiam o processo de ponderação, imprimindolhe uma irrecusável dimensão axiológica. 231
A ponderação está refletida em três pontos: fato, norma e valor parafraseando
Sarmento: “A ponderação de interesses [...] ostenta uma estrutura tridimensional,
pois compreende os três elementos em que se compõe o fenômeno jurídico: fato,
norma e valor.” 232
Só há ponderação de interesses quando existe colisão entre princípios, uma
vez que os outros critérios não se enquadram para uma solução eficiente:
A ponderação de interesses só se torna necessária quando, de fato, estiver
caracterizada a colisão entre pelo menos dois princípios constitucionais
incidentes sobre um caso concreto. [...] uma possível ponderação é a de
proceder à interpretação dos cânones envolvidos, para verificar se eles
efetivamente se confrontam na resolução do caso, ou se, ao contrário, é
possível harmonizá-los. 233
A Constituição não é simplesmente um amontoado de normas isoladas e sem
nexo, sem sentido. Seu significado é mais axiológico e faz-se necessária
compreensão da parte no todo e com o todo:
[...] dando cumprimento ao princípio da unidade da Constituição, que lhe
demanda o esforço de buscar a conciliação entre normas constitucionais
aparentemente conflitantes, evitando as antinomias e colisões. [...] A
Constituição não representa um aglomerado de normas isoladas, mas um
sistema orgânico, no qual cada parte tem de ser compreendida à luz das
demais. 234
Ainda, em concordância, com esta tese está Canotilho: “O princípio da
unidade obriga o intérprete a considerar a Constituição em sua globalidade e a
230
SARMENTO, 2003, p. 97.
SARMENTO, 2003, p. 98.
232
SARMENTO, 2003, p. 98-99.
233
SARMENTO, 2003, p. 99.
234
SARMENTO, 2003, p. 99.
231
61
procurar harmonizar os espaços de tensão entre as normas constitucionais a
concretizar.” 235
Para que configure a colisão de princípios, é necessário que estes mesmos
princípios estejam albergados constitucionalmente e assim Sarmento destaca:
“determinada hipótese é de fato tutelada por dois princípios constitucionais, que
apontam para soluções divergentes.” 236
E acrescenta mais: “[...] impor ‘compreensões’ recíprocas sobre os interesses
protegidos pelos princípios em disputa, objetivando lograr um ponto ótimo, onde a
restrição a cada interesse seja a mínima indispensável à sua convivência com o
outro.” 237
O critério para harmonizar os princípios consiste na verificação de seus pesos
e Sarmento considera: ”[...] o intérprete terá de comparar o peso genérico que a
ordem constitucional confere, em tese, a cada uma dos interesses envolvidos.” 238
Verificar o equilíbrio dos princípios depende da situação em concreto:
[...] o peso genérico é apenas indiciário do peso específico que cada
princípio vai assumir na resolução do caso concreto. Este só pode ser
aquilatado em face do problema a ser solucionado. Ele dependerá da
intensidade com que estiverem afetados, no caso, os interesses tutelados
por cada um dos princípios em confronto. [...] deve buscar um ponto de
equilíbrio entre os interesses em jogo, que atenda aos seguintes
imperativos: (a) a restrição a cada um dos interesses deve ser idônea para
garantir a sobrevivência do outro; (b) tal restrição deve ser a menor possível
para a proteção do interesse contraposto e (c) o benefício logrado com a
restrição a um interesse tem de compensar o grau de sacrifício imposto ao
interesse antagônico. 239
Enfim existem as normas que se dividem em princípios e regras. Estas por
sua vez distinguem - se bastante, enquanto uma é a diretriz, a outra é o
comportamento. Inevitável é o choque destas normas que encontram soluções
viáveis na validade bem como na ponderação de interesses e a proporcionalidade
onde desencadeiam respectivamente na invalidade ou sopesamento. Em todas as
alternativas aventadas o que sempre deve permanecer é o princípio da dignidade
humana.
235
1992, p. 232 apud SARMENTO, 2003, p. 100.
SARMENTO, 2003, p. 102.
237
SARMENTO, 2003, p. 102.
238
SARMENTO, 2003, p. 103.
239
SARMENTO, 2003, p. 104.
236
62
3
O CASO DA FARRA DO BOI
A farra do boi foi trazida pelos açorianos na colonização do Estado de Santa
Catarina e acontece mais comumente na Semana Santa, onde o boi representa o
Judas.
Os açorianos estavam habituados com gados bravos e, portanto:
Rituais açorianos como a “espera de gado”, onde a população espera, num
local previamente reservado para o rito, a soltura de vários bois, que
passam a ser objeto de várias “brincadeiras”, a “tourada à corda”, na qual o
animal, amarrado pelo pescoço por uma corda, passa a ser objeto de
touromaquia por parte da população; e a “festa brava”, em que o gado
bravio sofre perseguições e é posteriormente sacrificado. 240
A farra do boi, praticada no sul do país, no Estado de Santa Catarina, consiste
em que diversas pessoas persigam um boi, chutando-o, ferindo-o e maltratando-o,
para lembrar, em data religiosa específica, a malhação de Judas.
É indiscutível que o boi é violentamente agredido por um prazer insano. Assim
confirma Bechara em descrição detalhada deste evento: “Nesta prática, é patente o
sofrimento do animal, que se contorce todo, procura fugir, dá coices, solta mugidos,
tudo isso desesperada e gritantemente.” 241
É uma história de horrores sem dimensão:
[...] não podem fechar os olhos para esse esdrúxulo “espetáculo” e, mais
grave ainda, não podem subtrair seus filhos da “apreciação” desse
verdadeiro “show de horrores”, que acontece nas ruas, à luz do dia, num
“saudável” clima de festa. 242
A farra do boi pode ser definida, ao lado do bumba-meu-boi, do boi-demamão, das vaquejadas nordestinas e dos rodeiros gaúchos, como uma
manifestação folclórica pertencente à cultura do Boi no Brasil. 243
Contudo, apesar destas finalidades comuns, as práticas da cultura do boi
apresentam origens e contornos bastante diferenciados, que foram sedimentados
historicamente. Neste quadro, pode-se afirmar que a farra do boi distingue-se das
demais, primeiro, porque, diversamente do que ocorre com os autos nordestinos, ela
apresenta como traço característico o comparecimento do boi, não de forma
240
BASTOS, 1993, p. 17 apud BAHIA, 2006 p. 166.
BECHARA, 2003, p. 131.
242
BECHARA, 2003, p. 134.
243
LACERDA, 1990, p. 14 apud BAHIA, 2006, p. 165.
241
63
alegórica, mas in natura 244 e segundo, por implicar num combate ou de
tauromaquia 245 entre os praticantes e o animal.
A farra do boi é descrita da seguinte forma:
Um boi-de-campo (ou vários bois), necessariamente bravo, arisco e
corredor, é escolhido e comprado por um grupo de farristas, mediante uma
lista de sócios. A escolha do melhor animal subentende algumas de
intensas negociações com os fazendeiros até chegar a um bom termo, i. é,
o melhor preço para as partes e o boi mais bravo para os farristas. [...]
Escolhido o boi, o animal é transportado para a comunidade e solto em
locais previamente decididos pelos sócios. A soltada do boi reveste-se de
uma euforia inigualável. São centenas de pessoas aguardando a chegada
do animal, anunciada por foguetes e buzinas durante o trajeto. A partir daí,
passa a ser objeto de brincadeiras – pegas, correrias, lides, procuras,
ataques e fugas – em lugares os mais diversos: normalmente onde há mato,
pastos, morros e praias; também se dá em áreas marcadas e cercadas
(mangueirões); em bairros, praças e ruas centrais das cidades e vilarejos.
Cria-se uma atmosfera imprevisível, pois a expectativa dos farristas é
brincar com a fúria do boi. Atravessa-se a noite toda atrás do animal quando
246
este não se perde mato adentro [...] (grifo do autor).
É abominável a crueldade empregada com o boi, pois além do desfecho ser a
morte do boi, sua carne é dividida entre os sócios que contribuíram para a farra.
Para que exista a farra do boi há uma verdadeira organização para tal evento.
As fases para realizar esta festa são: levantamento da verba entre sócios para
compra do boi, a escolha do boi em uma fazenda, a soltada do boi e por fim o
sacrifício do animal. Segundo Monteiro: “Constituição da lista de sócios. [...] que se
reúnem para levantar verba para aquisição do boi. [...] Após o sacrifício, a carne do
animal é repartida entre o grupo de farristas.” 247
Em síntese a farra do boi consiste em algumas etapas:
Primeira etapa: “Constituição da lista de sócios. A farra do boi tem início com
a elaboração de uma lista de sócis, que se reúnem para levantar verba para
aquisição do boi.” 248
Segunda:
Escolha do boi. Elaborada a lista, um grupo de farristas dirige-se a fazendas
para a escolha do animal. O boi adequado para a farra é o boi bravo, aquele
que desafia os homens a enfrentá-lo, criando uma atmosfera de perigo e
medo [...]. Em virtude de terem pouca intimidade com o boi, às vezes, os
244
LACERDA, 1990, p. 27 apud BAHIA, 2006, p. 165.
A palavra pode ser como a arte de tourear, ou seja, de duelar com o touro. Vide: HOUAISS,
Antônio; VILLAR, Mauro Sales. Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001. p. 424, 434.
246
LACERDA, 1994, p. 27-28 apud BAHIA, 2006, p. 175.
247
1990, p. 17-18 apud BAHIA, 2006, p. 175.
248
FILHO, 1990 apud BAHIA, 2006, p. 175.
245
64
sócios são enganados pelos vendedores, levando bois mansos para o
rito. 249
Terceira:
Soltada. Depois de ajustado o preço e o transporte, a caravana retorna ao
local da farra. Buzinas e foguetes anunciam a chegada do animal, que é
recebido com festa pela comunidade. No local determinado pelos farristas,
ocorre a soltada do boi [...] tornando-se alvo de correrias, pegas, lides,
provocações com gritos e varas, perseguições pela mata adentro. A
intenção é deixar o animal em fúria, despertando um ambiente de temor e
de tensão entre os participantes. [...] 250
A quarta e última etapa afirma Bastos é o: “Sacrifício. O mais comum é que o
boi seja morto no sábado à tarde, sinalizando o encerramento da farra.” 251
Em outras palavras há um rito que desencadeia na morte do animal e
concordância:
A morte do animal aponta para o caráter eminentemente sacrificial do rito,
onde, depois de ser submetido a um processo de estranhamento e elevado
ao máximo da sua fúria, tem a sua carne repartida comunitariamente, como
uma espécie de hóstia sacrifeita. 252
Como se não fosse suficiente a perseguição do boi, os participantes
extrapolam, extravasam e ultrapassam os limites da responsabilidade e entregam-se
a todo tipo de extravagância como bem retrata Bastos: “Durante a farra, os excessos
tornam-se possíveis e os farristas, pouco alimentados, entregam-se à bebida, à folia
e transgressões sexuais, permanecendo em jejum e ébrios.” 253
A crueldade da população não tem escrúpulos que se utiliza de paus, pedras
e facas e assevera isto da seguinte forma:
Munidos de paus, pedras e facas, participam da farra homens, mulheres,
velhos e crianças. Assim que o boi é solto, a multidão o persegue e o agride
incessantemente. O primeiro alvo são os chifres, quebrados a pauladas. Em
seguida, os olhos são perfurados. A tortura só termina quando o animal,
horas depois, já com vários ossos quebrados, não tem mais forças para
correr às cegas, sendo definitivamente abatido e carneado para um
churrasco. 254 (grifo do autor).
249
BAHIA, 2006, p. 175.
BASTOS, 1990, p. 44 apud BAHIA, 2006, p. 176; MONTEIRO FILHO, 1990, p. 20 apud BAHIA,
2006, p. 176.
251
1990, p. 44 apud CAROLINA, 2006, p. 176.
252
BASTOS, 1993, p. 23 apud BAHIA, 2006, p. 176; LACERDA, 2003, p. 110 apud BAHIA, 2006, p.
176.
253
1993, p. 23 apud BAHIA, 2006, p. 176.
254
DIAS, 2000, p. 206 apud BAHIA, 2006, p. 186.
250
65
Outro autor Lacerda: “[...] conclui que o problema central é que a farra
do boi possui uma lógica dos sentidos que se contrapõem a imperativos éticos,
políticos e sociais já tidos como legítimos pela sociedade envolvente.” 255
Com esta festa o que se propaga é a violência e em concordância Bastos
assevera: “[...] Trata-se de uma violência que constitui o próprio rito e que muitas
vezes serve para conter a agressividade disseminada no meio social." 256
Outro autor destaca:
[...] a farra do boi serve como mecanismo para que a violência difusa
mantenha-se em níveis irrelevante durante períodos normais da vida
coletiva, na medida em que opera um deslocamento, onde um objeto
substituto investido de baixo valor social e de alto poder simbólico é
vitimizado em lugar de entidades que devem ser preservadas e que
despontariam como evidência disto seriam os índices irrelevantes de
criminalidade constatados nas comunidades que a praticam. 257
Outro aspecto a ser abordado é a aprendizagem da violência e assim
assevera Bechara: “[...] a submissão dos animais à crueldade estimula a violência
entre as próprias pessoas [...]” 258
E continua Bechara: “O fomento, o incentivo da crueldade acaba por deturpar
valores vigentes numa sociedade, valores esses que, em nome do bem comum,
devem pugnar pelo convívio pacífico entre as pessoas.” 259
O exemplo é a mola propulsora da aprendizagem:
Não seria de causar espécie que [...] crianças não passassem a achar
natural a aplicação de maus-tratos a seres vivos como também, guiadas
pelo comportamento imitativo que lhes é peculiar na tenra idade,
começassem a impingir, elas próprias, agressões ao animal indefeso. Ora,
se aqueles jovens e adultos que merecem a admiração da criança e em
cujas atitudes ela se baseia para formar, ainda que desavisadamente, o seu
caráter, põem-se a cometer atos os mais escabrosos, é claro que vai lhe
parecer que os atos escabrosos são aceitos e, porque não dizer, desejados
pela sociedade. 260
A questão farra do boi foi levada ao Judiciário em 1989 pela APANDE –
Associação Amigos de Petrópolis – Patrimônio, Proteção aos Animais, defesa da
Ecologia), LDA (Liga de Defesa dos Animais), SOZED (Sociedade Zoológica,
Educativa) e APA (Associação Protetora dos Animais) numa Ação Civil Pública.
255
2003, p. 53 apud BAHIA, 2006, p.176.
1993, p. 23 apud BAHIA, 2006, p. 177.
257
BRAGA, 1993, p. 80 apud BAHIA, 2006, p. 177.
258
BECHARA, 2003, p. 79.
259
BECHARA, 2003, p. 80.
260
BECHARA, 2003, p. 135.
256
66
O objetivo das associações era impedir a realização da farra de boi naquele
ano, porém apesar ganharem a liminar com afirma Chaves: “Apesar de concedida a
liminar, a decisão só foi comunicada à Secretaria de Justiça após o Domingo de
Páscoa e a farra do boi ocorreu na Semana Santa de 1989 como de costume.” 261
Inconformados com a decisão, as entidades:
[...] propuseram ação civil pública, requerendo a condenação do Estado de
Santa Catarina na obrigação de proibir a farra de boi e as manifestações
assemelhadas mediante atos e medidas práticas. Em sentença prolatada
em março de 1990, [...] considerando que, naquela época, a crueldade
infligida nos animais configurava contravenção penal e que a farra do boi,
enquanto manifestação cultural, encontrava proteção de nível constitucional,
julgou as autoras carecedoras da ação face à “manifesta impossibilidade
jurídica do pedido.” 262 (grifo do autor).
Mas uma fez insatisfeitos com o resultado interpuseram o recurso de
apelação perante o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que conforme Carolina
Medeiros Bahia: “[...] negou provimento ao recurso [...] o pedido deveria ser julgado
improcedente em face da inexistência de omissão por parte do Estado na função de
prevenir e reprimir os atentados à lei.” 263 A ementa foi assim redigida:
Ação Civil Pública. Ajuizamento contra o estado de Santa Catarina.
Pedido consistente na proibição da prática, nos municípios, distritos,
subsdistritos e outras localidades da faixa litorânea catarinense. Da
denominada farra do boi. Presença marcante do estado através da polícia
civil e militar, com a finalidade de disciplinar o folguedo popular, sem maustratos aos animais. Solicitação, ademais, por parte da administração do
concurso de cientistas sociais para estudo e solução do problema que se
localiza apenas em segmento da população de origem açoriana.
Inconfiguração de omissão do estado na área em que cumpre atuar.
Indispensável, por outro lado não confundir essa tradição, de origem
açoriana, conhecida sob a denominação de tourada à corda ou boi na vara,
com a violência descriteriosa infligida nos próprios bois. O erro aqui
praticado, configurativo de contravenção, uma vez expungido desse
contexto, por meios preventivos ou repressivos, não justifica a proibição
dessa manifestação popular, desde que se mantenha fiel à feição tradicional
do boi na vara, sem a menor violência ou inflição de malefícios à alimária.
Recurso desprovido para alterado o dispositivo da sentença, julgar
264
improcedente o pedido. (grifo nosso).
261
1992, p. 208 apud BAHIA, 2006, p.195.
BAHIA, 2006, p. 198.
263
BAHIA, 2006, p. 195.
264
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 35913. Apelantes: APANDE – Associação
Amigos de Petrópolis – Patrimônio, Proteção aos Animais, defesa da Ecologia, LDA – Liga de
Defesa dos Animais, SOZED – Sociedade Zoológica, Educativa e APA – Associação Protetora dos
Animais. Apelado: o Estado de Santa Catarina. Relator: Des. Napoleão Amarante. Florianópolis,
17.12.1991. DJJ, 19 mar. 1992. p. 12. Disponível em:
<http://www.tj.sc.gov.br/consultas/jurisprudência/jsp/jurisprudência.jsp?query=farra+do+boi>.
Acesso em: 16 out. 2008.
262
67
Assim a apelação confirmou a sentença de primeira instância e assim eis as
palavras que corroboram isto: “[...] partiram da premissa de que a farra do boi em si
não constitui uma prática cruel e, que, apenas, em situações excepcionais, os
farristas empregam meios perversos, cabendo ao Estado, nestes casos, coibir os
abusos.” 265
E esta mesma autora continua:
[...] consideraram a questão da crueldade contra os animais como uma
questão ambiental e, por isso, julgaram a ação civil pública como via
inadequada para a pretensão formulada [...]. Por conseqüência, também
desconsideraram a colisão entre o direito fundamento a meio ambiente e a
liberdade fundamental de ação cultural, reconhecendo, na hipótese, apenas
a presença da última. 266
Mas uma vez as entidades inconformadas recorreram do resultado da
apelação e interpuseram Recurso Extraordinário que foi julgado, por maioria, pela
Segunda Turma do Tribunal, que conheceu do recurso e lhe deu provimento.
Conforme Carolina Medeiros Bahia: A ementa do acórdão ficou da seguinte forma:
Costume. Manifestação cultural. Estímulo. Razoabilidade. Preservação
da fauna e da flora. Animais. Crueldade. A obrigação de o Estado garantir
a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e
a difusão das manifestações, não prescinde da observância do inc. VII do
art. 225 da Constituição Federal no que veda prática que acabe por
submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma
constitucional denominado farra do boi. 267 (grifo do autor).
O Subprocurador-Geral Paulo de Tarso Braz narra o fato e se baseia na
Súmula 279 para não conhecimento do recurso, eis o aresto:
Em que pese a atualidade e relevância do tema, inegavelmente merecedor
das mais profundas reflexões, num mundo em que a humanidade cada vez
mais se conscientiza da necessidade de inibir a sua ação predatória sobre
os demais elementos da natureza, o presente recurso não se mostra apto
ao conhecimento, já que encontra óbice insuperável no enunciado da
Súmula 279 [...] que se cristalizou no sentido de que ‘para simples reexame
de prova não cabe recurso extraordinário’.
[...] tratando-se de mera tentativa das recorrentes no sentido de que esse
Colendo Tribunal, sob o pretexto de aferir suposta vulneração ao preceito
do art. 225. § 1º, VII, da Carta Magna em vigor, revolva fatos e provas,
concluindo, em sentido oposto ao que concluiu o E. Tribunal a quo, em
primeiro lugar que a prática da ‘farra do boi’ é necessariamente cruel e
265
BAHIA, 2006, p. 196.
BAHIA, 2006, p. 196.
267
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Costume. Manifestação cultural. Estímulo razoabilidade.
Preservação da fauna e da flora. Animais. Crueldade. Acórdão em Recurso Extraordinário
153.531-8-SC. APANDE – Associação dos Amigos de Petrópolis – Patrimônio, Proteção aos
Animais, defesa da Ecologia e outros em face do Estado de Santa Catarina. Relator: Ministro
Francisco Resek. LEX: Coletânea de Legislação e Jurisprudência, São Paulo, n. 239, Nov. 1998,
p. 192 apud BAHIA, 2006, p. 197.
266
68
violenta e, em segundo, que o Poder Público estadual tem sido omisso a
respeito. Semelhante pretensão infelizmente não pode ser acolhida.
[...] pelo não conhecimento do recurso extraordinário. [...] 268
No julgamento desta questão houve duas teses opostas defendidas: uma pelo
ministro Francisco Resek, relator e a outra pelo ministro Maurício Corrêa e assim:
[...] de um lado, o ministro Francisco Resek, relator do processo, defendeu
posição favorável à proibição da farra do boi, negando-lhe o caráter de
manifestação cultural e, de outro, o ministro Maurício Corrêa, optou pela
conservação da farra do boi, compreendo-a como manifestação cultural
legítima. Ao final, a primeira tese saiu vitoriosa, sendo aprovada por maioria
e nos termos do voto do relator. 269
Para a análise, são especialmente relevantes os seguintes trechos do voto do
Ministro Francisco Resek que reflete sobre questões filosóficas como da
preocupação das entidades com os animais com problemas mais gritantes bem
como a localização destas entidades:
As duas tentações que podem rondar o julgador e que devem ser repelidas
para um correto exame da controvérsia são, primeiro, a consideração
metajurídica das prioridades: por quê, num país de dramas sociais
pungentes, há pessoas preocupando-se com a integridade física ou com a
sensibilidade dos animais? [...] Aqui estamos falando de outra coisa, de algo
que é assumido e até chamado de “manifestação cultural”. Por isso a ação
não se dirige contra marginais, mas contra o poder público, no propósito de
fazê-lo honrar a Constituição [...] Há um segunda tentação metajurídica, [...]
As entidades autoras são geograficamente situadas no Estado do Rio de
Janeiro[...] e na proximidade imediata da “farra do boi” não faltam pessoas e
instituições idôneas para reagir contra eventuais afrontas à Constituição.
Também esse argumento não me convence em absoluto [...] A qualquer
brasileiro, em qualquer ponto do território nacional, assiste o direito de
querer ver honrada a Constituição em qualquer outro ponto do mesmo
270
território.
O ministro relata que demorou a julgar o processo, pensando que esta
questão se resolveria de outra forma que não precisasse da presença da justiça,
mas ledo engano! Assim afirma:
Tardei a submeter este caso ao julgamento da Turma, na esperança de que
isso se resolvesse sem uma decisão judiciária, de que o pode público tomou
providências no sentido de coibir qualquer agressiva à lei fundamental, e de
que sobrou uma autêntica manifestação cultural [...]. A cada ano do
268
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 153.531. Segunda Turma.
Recorrente: APANDE-Associação Amigos de Petrópolis Patrimônio Proteção aos Animais e
Defesa da Ecologia e outros. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, 3 jun. 1997. Diário da
Justiça,
13
mar.
1998.
p.
13.
Disponível
em:
<http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(153531.NUME.%20OU
%20153531.ACMS.)&base=baseAcordaos>. Acesso em: 4 jun. 2008.
269
BRASIL, 1997.
270
BRASIL, 1997.
69
calendário a prática se caracterizou mais e mais como cronicamente
violenta, e não pontilhada de abusos tópicos. 271
O ministro discorda da tese do Ministério Público e do acórdão recorrido:
Não tem razão o Ministério Público cujo exame, neste caso, me pareceu
não compreensivo de todos os aspectos do processo e que virtualmente se
limitou a entender [...] que proíbe em recurso extraordinário o reexame de
prova [...]. O Tribunal reconhece que a “manifestação cultural” conduz à
crueldade dos abusos, mas o poder público está atento... [...]
Não posso ver como juridicamente correta a idéia de que em prática dessa
natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação
cultural com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel
para com animais, e a Constituição não deseja isso. [...] Claros os fatos,
como se passam a cada ano, essa prática se caracteriza como ofensiva ao
inciso VII do art. 225 da Constituição, de tal modo que a ação civil pública
deveria ter sido considerada procedente para que se determinasse às
272
autoridades do Estado de Santa Catarina as providências cabíveis. [...]
“[...] determinadas práticas lá correntes e não pifiamente minoritárias como a
farra do boi, mas abrangentes de quase toda a sociedade, dificilmente poderiam
prosseguir na sua existência, pois todos as reconhecem como práticas cronicamente
violentas.” 273
O Recurso Extraordinário não foi julgado na mesma sessão, pois o ministro
Maurício Corrêa pediu vista dos autos. No seu voto-vista, o ministro relata a tese das
manifestações culturais assim:
“[...] seria possível coibir o folclore regional “Farra do Boi” [...] É possível
coibir a prática da “Farra do Boi”, quando a Carta Federal, sem seu art. 216,
pontifica que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”? Penso que não.
Não há antinomia na Constituição Federal. Se por um lado é proibida a
conduta que provoque a extinção de espécies ou submetam os animais à
crueldade, por outro lado ela garante e protege as manifestações das
culturas populares, que constituem patrimônio imaterial do povo brasileiro.
[...]
Como ressaltado pelo aresto recorrido, se há excessos na prática da “Farra
do Boi”, cumpre ao Estado, através do seu poder de polícia exercer sua
função repressora, ao judiciário, se a tanto for provocado em razão da
inércia do Poder Público, prover a respeito, impelindo-o à prática de atos
voltados a obstar o procedimento contrário a preceito constitucional,
segundo o qual, resta terminantemente proibida a prática que submeta
animais à crueldade (art. 225, § 1º, VII).
[...] além da mobilização da Polícia Civil e da Polícia Militar, a formação de
uma “Comissão de Estudos da Farra do Boi”, que leva às várias
comunidades desse espetáculo já se encontrava arraigado “uma mensagem
de não-violência, de auto - fiscalização e de não abolição à brincadeira”.
271
BRASIL, 1997.
BRASIL, 1997.
273
BRASIL, 1997.
272
70
Essa Comissão reconheceu a “Farra do Boi” como tradição cultural de
Santa Catarina e esclareceu que a violência não é característica da
Farra do Boi em si, e não se constitui como regra e sim como exceção;
a farra do boi organizada não constitui contravenção penal. 274 (grifo do
autor).
O ministro ratifica o seu voto favoravelmente à tradição cultural e também não
conhece do Recurso Extraordinário:
“Desta forma, como costume cultural, não há como coibir a denominada
“Farra do Boi”, por ser uma legítima manifestação popular, oriunda dos
povos formadores daquela comunidade catarinense. Os excessos, esses
sim, devem ser reprimidos, para que não se submetam o animal a
tratamento cruel.
Por estes fundamentos [...] a manifestação cultural é garantida e protegida
pela Constituição Federal (art. 215 e § 1º, CF) – aí sim estar-se-ia
violentando a Constituição Federal, caso se provesse o apelo -, não
conheço do extraordinário. 275
O ministro Marco Aurélio no começo do seu voto dá impressão que concorda
com o voto-vista do ministro Maurício Corrêa, porém no discorrer do seu voto
discorda veemente desta manifestação cultural e confirma o voto do relator, assim:
[...] como ressaltou o eminente Ministro Maurício Corrêa, a Constituição
Federal revela competir ao Estado garantir a todos o pleno exercício de
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiando,
incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais – e a
Constituição Federal é um grande todo -, [...]. [...] é justamente a crueldade
o que constatamos ano a ano, ao acontecer o que se aponta como folguedo
sazonal. A manifestação cultural deve ser estimulada, mas não a prática
cruel. Admitida a chamada “farra do boi”, em que uma turba ensandecida
vai atrás do animal para procedimentos que estarrecem, como vimos, não
há poder de polícia que consiga coibir esse procedimento. [...] somente uma
media que obstaculize terminantemente a prática pode evitar o que
verificamos neste ano de 1997. O Jornal da Globo mostrou um animal
ensangüentado e cortado invadindo uma residência e provocando ferimento
em quem se encontrava no interior. [...] Não se trata, no caso, de uma
manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República. [...]
cuida-se de uma prática cuja crueldade é ímpar e decorre das
circunstâncias de que pessoas envolvidas por paixões condenáveis
buscarem a todo custo, o próprio sacrifício do animal. [...] acompanhar o
276
Ministro-Relator Francisco Resek, conhecendo e provendo o recurso. [...]
O ministro Néri da Silveira traça um paralelo entre a cultura e os princípios
constitucionais bem como conhece do recurso e deu-lhe provimento, decotado do
trecho do seu voto o seguinte:
A cultura pressupõe desenvolvimento que contribua para a realização da
dignidade da pessoa humana e da cidadania e para a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária. Esses valores não podem estar
274
BRASI, 1997.
BRASIL, 1997.
276
BRASIL, 1997.
275
71
dissociados da compreensão do exercício dos direitos culturais e do acesso
às fontes da cultura nacional. [...] vertente de entendimento da matéria sob
o ponto de vista constitucional. [...] 277
Há, sem dúvida, nesses dispositivos do art. 225, nítida integração com os
princípios e valores dos arts. 1º e 3º da Constituição, enquanto definem princípios
fundamentais da República.
[...] não só põe sob o amparo do Estado tais bens, mas dele também exige
efetivamente proíba e impeça ocorram condutas e atividades consideradas
lesivas ao meio ambiente [...] 278
[...] dessa maneira, que os princípios e valores da Constituição em vigor,
que informam essas normas maiores, apontam no sentido de fazer com que
se reconheça a necessidade de se impedirem as práticas, não só de
danificação ao meio ambiente, de prejuízo à fauna e á flora, mas, também,
que provoquem a extinção de espécies ou outras que submetam os animais
a crueldade. 279
[...] não parece que se possam conciliar determinados procedimentos,
certas formas de comportamento social, tal coma a denunciada nos autos.
Com esses princípios, visto que elas estão em evidente conflito, em
inequívoco atentado a tais postulados maiores. [...] 280
Dele conhecendo, dou-lhe provimento, para julgar a ação procedente e, em
conseqüência, determinar que o Estado de Santa Catarina, em face do que
dispõe o art. 225, § 1º, inciso VII, da Constituição, adote as providências
necessárias a que não se repitam essas práticas consideradas atentatórias
à regra constitucional aludida. 281
A farra de boi é indubitavelmente uma prática de extrema crueldade por
mutilar o animal e levá-lo inevitavelmente à morte ofendendo todos os princípios
éticos de uma sociedade:
[...] inegável que, ainda quando não são praticadas mutilações no boi, esta
prática sempre leva o animal à exaustão, submetendo-o, por muitas horas,
a estado de extrema tensão e desespero, constituindo verdadeira
manifestação de crueldade.
Esta violência imanente ao rito, sem dúvida, fere valores universais
plasmados na Constituição e contrapõe-se a tendência atual, que tenta
imprimir na sociedade princípios éticos que promovam uma verdadeira
transformação no comportamento que a humanidade tem legado à
natureza. 282
Existem outras jurisprudências de crueldade contra animais e assevera-se
nas palavras a seguir:
A despeito da farta legislação proibitiva, nossa maior aliada é a própria
Constituição Federal, pois ao proibir as práticas que submetam os animais a
277
BRASIL, 1997.
BRASIL, 1997.
279
BRASIL, 1997.
280
BRASIL, 1997.
281
BRASIL, 1997
282
BAHIA, 2006, p. 210.
278
72
lesões e sofrimentos desnecessários, proíbe lutas entre os bichos. Ou
alguém ousará sustentar que brigas de galo (e outras tantas lutas tão
estúpidas quanto) são necessárias ao bem-estar coletivo? 283
E demonstra a jurisprudência:
Corroborando este posicionamento, o Supremo Tribunal Federal, em ação
direta de inconstitucionalidade, suspendeu a eficácia da Lei n. 2.895/1998,
do Estado do Rio de Janeiro, que autorizava e disciplinava a realização de
competições entre “galos combatentes”.
O fundamento da decisão:
“O que deve ser reconhecido é que a submissão dessas espécies de
animais à luta, forma de tratá-las com crueldade. Na maioria das vezes as
aves vão até à exaustão e à morte. [...] A Lei n. 2.895, de 20.3.1998, do
Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de
competições entre ‘galos combatentes’, autoriza e disciplina a submissão
desses animais a tratamento cruel, o que a Constituição não permite” (ADIn
284
1.856-6-RJ, STF, j. 3.9.1998, re. Min. Carlos Velloso)
E mais:
EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 7.380/98, do
Estado do Rio Grande do Norte. Atividades esportivas com aves das raças
combatentes. "Rinhas" ou "Brigas de galo". Regulamentação.
Inadmissibilidade. Meio Ambiente. Animais. Submissão a tratamento cruel.
Ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes.
É inconstitucional a lei estadual que autorize e regulamente, sob título de
práticas ou atividades esportivas com aves de raças ditas combatentes, as
chamadas "rinhas" ou "brigas de galo". 285
A farra de boi não está protegida constitucionalmente pelo ordenamento
jurídico brasileiro, pois submete o animal a maus tratos desnecessários:
O máximo que se poderia sustentar é que a farra do boi não configura uma
manifestação cultural protegida jurídica e fundamentalmente, porque,
enquanto manifestação, ofende o princípio que condena a prática de maustratos contra os animais. Porém, como não se admite qualquer proteção
jurídico-fundamental definitiva, esta conclusão só poderia ser construída
tendo como base uma ponderação aberta e não uma compreensão estrita
do âmbito de proteção da liberdade de ação cultural. 286
A colisão entre tradição cultural e proteção ambiental é aparente, pois não há
exclusão de normas e nas palavras de Bechara tem-se que:
[...] não retrata uma antinomia real, mas apenas aparente. É dizer que os
dispositivos supracitados não são, na realidade, incompatíveis, mas apenas
assim nos aparece, num primeiro momento, por conta, nos dizeres de
283
BECHARA, 2003, p. 105.
BECHARA, 2003, p. 105.
285
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Constitucional. ADI n. 3776/RN. Requerente: ProcuradorGeral da República. Requerida: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Norte.
Relator: Ministro Cezar Peluso. Brasília, DF, 14 de junho de 2007. Diário da Justiça, 29 jun.
2007.
286
ALEXY, 1999, p. 76 apud BAHIA, 2006, p. 200.
284
73
Norberto Bobbio, de uma ‘interpretação ruim, unilateral, incompleta ou
287
errada uma das duas normas ou de ambas’.
Com tudo isto não se pode admitir que tal evento prospere e continue a
acontecer já que é um afrontamento ao artigo constitucional bem como ultraja a
dignidade humana. No que tange a violência não pode ser elo para a memória
cultural de futuras gerações.
287
BECHARA, 2003, p. 132.
74
4 CONCLUSÃO
A Constituição é um sistema imbricado de normas que se dividem em
princípios e regras. Mas não é só! Ela não admite contradições, pois é una e coesa.
Algumas vezes tutelar os direitos fundamentais consiste em explicar a
coexistência de princípios opostos.
Os princípios não se anulam e sim afastam espaço de um para outro em
determinadas situações fáticas. Este é o limite dos princípios.
O ser humano é a peça mais importante da Constituição e para que se
preserve precisa cuidar do espaço que ocupa e faz parte. Caso contrário, tudo está
fadado a fenecer, acabar.
A constitucionalização dos direitos fundamentais prima pela essência do
princípio da dignidade humana.
É inquestionável que a farra do boi tem nuances que afrontam a dignidade
humana, uma vez que ensina a crueldade e a violência sem dimensão. Esta
aprendizagem não é uma boa herança a ser transmitida na memória de um povo
para as futuras gerações!
A responsabilidade da qualidade de vida é de cada um e de todos.
As discussões das controvérsias são necessárias para que a sociedade
amadureça e inove suas fronteiras. Nada está totalmente pronto, tudo está se
fazendo.
Paradigmas são passageiros e, portanto, não são eles estão. A única certeza
é que tudo muda, tudo se transforma com a mutação e complexidade da sociedade.
Enfim, considerar a tradição cultural e o meio ambiente na situação da farra
do boi reflete uma antinomia aparente. Os princípios contraditórios apontam para
soluções divergentes.
A solução mais compatível resolve-se pelo sopesamento dos princípios
inerentes a estes direitos, ou seja, a coexistência de dois princípios simultaneamente
na prevalência de um valor. Eis o postulado da ponderação de interesses como
forma mais adequada para harmonização da unidade constitucional e prevalência da
dignidade humana sobre a liberdade cultural.
O julgamento do Recurso Extraordinário ratifica esse posicionamento, tendo
em vista que proibiu a farra do boi por ser inconstitucional.
75
O princípio da dignidade humana é essencial para a construção da qualidade
de um ecossistema ecologicamente equilibrado para todos.
76
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