CIÊNCIAS SOCIAIS E QUESTÃO METODOLÓGICA: fontes orais, história de
vida e memória
Marcia Senra1
Resumo: Neste artigo busca-se realizar uma reflexão acerca de alguns aspectos
relativos às características das ciências sociais e desafios do método, bem como refletir
sobre um dos métodos qualitativos de pesquisa social: as fontes orais com destaque para
a entrevista do tipo de história de vida e a relação com a questão da memória.
Palavras-chave: Ciências Sociais. Metodologia qualitativa. Fontes orais. História de
vida. Memória.
1 Introdução
A busca para dar sentido ao mundo é uma prática social inerente à própria
existência humana. Neste sentido, enquanto a atividade dos animais, em relação à
natureza, é biologicamente determinada, no homem, a ação humana é não só fixada
biologicamente como, principalmente, pela incorporação das experiências e
conhecimentos produzidos e transmitidos de geração a geração, por meio da educação e
da cultura. Por conseguinte, a atuação do homem ao alterar a natureza, por meio de sua
ação, torna-a humanizada, isto é, a natureza adquire a marca da atividade humana.
Dessa maneira, paralelamente, o homem altera a si próprio por intermédio dessa
interação e vai se construindo. A interação homem-natureza, processo social
permanente e dinâmico, é o processo de produção de existência humana.
_______________
1
Aluna do doutoramento em Ciências Sociais pela PUC Minas, mestre em Ciências Sociais (PUC
Minas), especialista em Gestão da Memória: Arquivo, Patrimônio e Museu (Escola Guignard/ UEMG),
licenciada em História. Professora do curso de Direito da Faculdade Cenecista de Varginha (CNEC/
FACECA).
2
Quaisquer que sejam as necessidades dos seres humanos, elas são criadas,
atendidas e transformadas a partir das interações sociais que estão presentes na
interdependência daqueles seres, em todas as formas da atividade humana. E, as idéias,
como produto da atividade humana, são a expressão das relações e atividades reais do
homem estabelecidas no processo de produção de sua existência. São assim, a
representação daquilo que o homem faz, de sua maneira de viver e de se relacionar com
os outros homens, do mundo no qual se insere e também de suas próprias necessidades,
num determinado contexto histórico. Logo, o conhecimento humano, em seus diferentes
matizes, exprime esse dado momento da história.
A ciência, então, como uma das formas de conhecimento produzido pelo
homem, é determinada pelas necessidades de cada momento histórico, ao mesmo tempo
em que nelas interfere. Daí que, quer sejam nas primeiras formas de organização social
quer sejam nas sociedades atuais, é possível identificar a busca do homem a fim de
compreender a si e o mundo que o circunda, e a constância da inter-relação entre
necessidades humanas e o conhecimento produzido.
Pode-se afirmar portanto que, a ciência caracteriza-se por ser uma atividade
metódica na tentativa do homem entender e explicar racionalmente a natureza, buscando
formular leis que, em última instância, permitam a atuação humana. E, o método
científico, que é historicamente determinado e só assim poderá ser compreendido,
corresponde a um “conjunto de concepções sobre o homem, a natureza e o próprio
conhecimento, que sustentam um conjunto de regras de ação, de procedimentos,
prescritos para se construir conhecimento científico” (ANDERY, 1996, p. 14). Neste
sentido, observa-se que a ciência não é uma forma desconexa e desarticulada de
conhecimentos é, pois, um paradigma1 sob o qual se vê o mundo. Ela é a concretização
do movimento e dinâmica das idéias na produção do conhecimento; ela é a
3
representação de como o homem se relaciona com si e o mundo que o rodeia. Portanto o
conhecimento científico torna-se relevante em toda a sociedade.
2 Ciências Sociais: sua gênese e a questão metodológica
Na gênese das ciências sociais, no século XIX, uma das grandes
preocupações dos pensadores à época era neutralizar o máximo possível os interesses
políticos e éticos do analista, de forma a atingir a realidade objetiva ou a verdade. De
acordo com Pires (2008, p. 46), “as ciências sociais são um produto do mundo moderno
e seu desenvolvimento se insere no contexto de um processo evolutivo de
especialização e de autonomização do saber ocidental”.
É, sobretudo, a partir do século XVI que começa a delinear uma distinção
entre o campo de um saber que veio a se chamar ciência e o dos outros saberes quando
se buscou desenvolver um conhecimento secular, sistemático do real e válido
empiricamente. Portanto, em um primeiro momento, a distinção se vinculava à
separação da ciência da não-ciência, muito embora, essa distinção, inicialmente, não
possuísse conotação pejorativa, nem hierárquica (PIRES, 2008).
Entretanto, já no século XVIII, o sucesso das ciências da natureza deu a ela
o título de modelo ideal da ciência. Enquanto isso as ciências sociais nasceram no
interior de um domínio que se denominou filosofia ou letras. Contudo, ainda nesse
mesmo século, se assiste a emergência de um saber social vinculado a uma exigência
metodológica a fim de obter um caráter de ciência. E será somente no século seguinte
que as ciências sociais nascerão como ciência.
Porém, desde seu nascedouro, as ciências sociais têm seu reconhecimento de
forma ambígua. Se por um lado, desmembrada da filosofia e das letras fazia-se mister
atender à exigência metodológica segundo, preferencialmente, o modelo de ciência
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vigente para que pudesse obter um conhecimento objetivo - descobrir a verdade do
mundo social, de outro lado, do ponto de vista histórico, as ciências sociais e, em
especial a sociologia, devido suas diversas origens e objetos, geraram debates que
tangenciaram tanto o plano epistemológico, quanto o metodológico.
Assim, no plano epistemológico a discussão ligava-se às estratégias de
conhecimento a serem adotadas, ou seja, posição, ponto de vista, atitude do pesquisador
para se produzir um conhecimento objetivo (PIRES, 2008). E, dessa discussão
resultaram três grandes tradições2, com variações significativas, que inspiraram e
influíram de algum modo o pensamento e a conduta do presente nessas áreas de saber: o
olhar do exterior, o olhar do interior e o olhar de baixo (PIRES, 2008; TARRÉS, 2004).
A primeira tradição, na qual se pretende uma neutralidade científica valorizada por Comte e Durkheim, é o olhar exterior e vai de encontro às ciências
naturais, cujo modelo de ciência é concebido como uma tarefa racional e objetiva,
orientada para a formulação de leis e princípios gerais que objetivam explicar com base
na empiria os fenômenos sociais ou naturais. Ainda que, no caso da sociologia o método
deva ser estritamente sociológico, uma vez que essa ciência tem como objeto de estudo
os fatos sociais e, estes, só devem ser explicados por outro fato social (TARRÉS, 2004).
O olhar interior, a segunda tradição, prende-se às tradições interpretativas de
Max Weber e cuja tradição estabelece uma rígida fronteira entre o cientista, homem do
saber e o político, homem de ação comprometido com as questões práticas da vida. E,
dado que o objeto das ciências sociais, de acordo com a sociologia weberiana, é a ação
social, argumenta-se que suas metodologias devam conduzir à compreensão dos
significados da ação e das relações sociais em sociedade, isto é, a experiência vivida
pelos homens que são sujeitos portadores e produtores de significados sociais ou
culturais, mesmo em que pese a influência das estruturas (TARRÉS, 2004).
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E, por fim, o olhar de baixo da escala social que deu um passo a mais ao
estabelecer uma ligação entre teoria e prática, ciência e interesse de classe. É a tradição
marxista do materialismo dialético. Aqui, tem-se uma concepção de um sujeito ativo
que constrói os seus próprios esquemas de observação, verificação e transformação da
realidade. Logo, o estudo da sociedade deve se situar pelas relações sociais de produção.
Isto porque, o conjunto dessas relações constitui a estrutura econômica da sociedade e, o
modo de produção da vida material, condiciona o desenvolvimento da vida social,
política e intelectual de maneira geral (TARRÉS, 2004).
Entretanto, as origens múltiplas e a diversidade dos problemas que a
sociologia se propõe ocasionaram uma série de falsas questões de método que convém
sejam dissipadas (BOUDON, 1989). Essas querelas ligam-se às discussões da: (i)
relação sujeito e o objeto do conhecimento sociológico; (ii) subjetividade e (iii)
totalidade. A primeira dessas querelas tem sua questão central atrelada a dois
procedimentos de atuação para a sociologia: compreensão e explicação. Neste sentido,
se todo o conhecimento é sempre um processo, uma transformação e, não um dado
pronto e definitivo, o conhecimento científico e as suas produções são pois sempre
objetivo-subjetivo, isto é, objetivos em relação ao objeto e subjetivos em razão do papel
ativo do sujeito que conhece. Assim, “explicar um fenômeno social qualquer é sempre
fazer dele o resultado de ações de comportamento que é preciso compreender”
(BOUDON, 1989, p. 17).
Já a segunda querela, tema ligado ao tema anterior, consiste na dicotomia
subjetividade e objetividade, ou seja, a especificidade do humano. A sociologia, como
prediz Boudon (1989), tanto quanto outra ciência utiliza de uma linguagem cujo
vocabulário básico constitui-se de variáveis e que a sintaxe é elaborada a partir das
relações entre essas variáveis e, essas, se fundam na interpretação que o observador
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propõe sobre o comportamento dos atores. Por conseguinte, prossegue o autor
supramencionado, a especificidade do humano afeta o conteúdo das variáveis e,
eventualmente, as dificuldades lógicas vinculadas a sua observação e mensuração. Em
outras palavras, os fatos não falam por si mesmos, logo, não afetam a forma da
linguagem.
No caso da querela da totalidade, a especificidade das sociedades como
objeto de estudo é o ponto central. E, neste sentido, a idéia de totalidade é desprovida de
qualquer significado operacional, pois, na verdade, essa idéia é uma noção de limite.
Assim seja, para um conjunto de pesquisas a idéia de totalidade pode ter um significado
relativamente preciso em função de o objeto poder ser considerado exaustivamente
inventariável ou concebido como um sistema e, já em outros casos, essa idéia não
desempenha qualquer papel e não tem nenhuma serventia (BOUDON, 1989). O objeto
do conhecimento é infinito, quer se trate do objeto considerado como totalidade quer se
trate como fragmento ou como aspecto. Em suma, tanto na sua totalidade como cada um
de seus fragmentos todos são infinitos na medida em que é infinita a quantidade das
suas correlações e das suas transformações no tempo.
Com efeito, com vistas a explicar e compreender o mundo social pode-se
dizer que existe um relacionamento constante entre a teoria e a pesquisa social, isto
porque, os dados não são coletados mas sim, produzidos (MAY, 2004). A questão então
não é somente o que se produz, mas como o faz. E, é nessa perspectiva que se colocam
as discussões metodológicas cujo debate recaiu sobre a natureza dos dados. Duas visões
principais das ciências sociais somar-se-iam às estratégias epistemológicas na busca da
objetividade: (i) baseado no primado dos números, o quantitativo significaria a
matematização sobre o saber social a fim de que esse pudesse ter uma abordagem
científica e; (ii) priorizando os dados primários, para reduzir a parte do viés introduzida
7
pelo pesquisador; esta segunda visão atribuía uma maior importância aos dados
qualitativos e à pesquisa histórica (PIRES, 2008).
O método quantitativo (que não é propósito deste artigo) de acordo com
Richardson,
[...] representa, em princípio, a intenção de garantir a precisão dos resultados,
evitar
distorções
de
análise
e
interpretação,
possibilitando,
conseqüentemente, uma margem de segurança quanto às inferências. [Nas
ciências sociais] é freqüentemente aplicado nos estudos descritivos, naqueles
que procuram descobrir e classificar a relação entre variáveis, bem como nos
que investigam a relação de causalidade entre fenômenos (RICHARDSON,
1999, p. 70).
O método qualitativo não tem como pretensão numerar, medir unidades e
categorias homogêneas, pois além de ser uma opção do pesquisador, ele se justifica,
sobremaneira, por ser uma forma adequada para entender a natureza de um fenômeno
social (RICHARDSON, 1999). À priori, pode-se afirmar que, as investigações que se
voltam à análise qualitativa têm como objeto situações complexas ou estritamente
específicas.
Atento à pluralidade de construções de sentidos, o procedimento qualitativo
leva, preferencialmente, a adquirir uma percepção mais holística dos
problemas e das questões, e a proceder a um “requadramento
socioantropológico”, a fim de ter em conta o contexto sociocultural de cada
situação-problema e de compreender a especificidade e a complexidade dos
processos em jogo. [...] De um ponto de vista qualitativo, os sujeitos sociais
interpretam sua situação, concebem estratégias e mobilizam recursos
(GROULX, 2008, p. 97; 98; grifo do autor).
Então, de maneira geral, pode-se dizer que a pesquisa qualitativa se
caracteriza pelos seguintes itens: (i) por sua flexibilidade de adaptação durante seu
desenvolvimento e construção progressiva do próprio objeto de investigação; (ii) por
sua capacidade de se ocupar de objetos complexos; (iii) por sua capacidade de englobar
dados heterogêneos; (iv) por sua capacidade de descrever em profundidade diversos
aspectos importantes da vida social, tanto pelo ponto de vista do interior quanto de
baixo; (v) por sua abertura para o mundo empírico a qual se expressa muitas vezes, por
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sua abertura da descoberta daquilo que se tornou invisível por excesso de visibilidade
(PIRES, 2008).
Com relação à contribuição da metodologia qualitativa à pesquisa social
duas teses se opõem. A primeira afirma que o qualitativo no campo da pesquisa social
modifica esta última, rompe ou recoloca em questão categorias de percepção e análise
dos problemas sociais, introduz um novo olhar e acarreta novas leituras dos problemas e
serviços, ao mesmo tempo, favorece novos mecanismos de ajuda e ações sociais
(GROULX, 2008). Contrariamente à primeira posição, para a segunda tese, a relação
qualitativo-pesquisa social produz um saber cuja validade permanece frágil e incerta,
pois, a orientação à prática e à ação introduz um viés que pode transformar a pesquisa
num discurso ideológico (GROULX, 2008).
Dessa maneira, apesar de as pesquisas qualitativas terem conquistado certa
respeitabilidade frente ao quantitativo, o embate em torno do método ainda persiste.
Nesta perspectiva, as pesquisas qualitativas passam a buscar uma ressignificação de
seus métodos e de sua identidade no confronto entre métodos, uma vez que não há
método na sociologia, mas sim, métodos evidenciando o caráter processual da pesquisa
- seu dinamismo, historicidade e contextualidade implícita do nosso conhecimento sobre
o mundo e, também, a dialogia e intersubjetividade intrínseca ao processo de pesquisa
(SPINK, 2000).
Neste aspecto, é importante frisar que a pesquisa ética configura-se pelo
compromisso e aceitação de quesitos imprescindíveis, tais como, não só ter a pesquisa
como prática social, mas também, a garantia da visibilidade dos procedimentos para
produção e análise dos dados e, ainda, a relação dialógica entre pesquisador-participante
(SPINK, 2000). Contudo, uma observação se faz pertinente: a realidade social não é
nem qualitativa e nem quantitativa. Isto porque, segundo Tarrés (2004), são os valores,
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as definições e convenções implícitas nos pressupostos paradigmáticos, nas perspectivas
teóricas ou ainda nas maneiras de se encarar o conhecimento do social que, em última
instância, definem a opção entre o qualitativo ou quantitativo. Afinal, a pesquisa é uma
prática social cruzada por questões de poder que têm como consequência a
hierarquização de categorias e a cristalização da diferença (SPINK, 2000).
Não obstante, a ampliação do leque de possibilidades de escolhas
metodológicas, que por um lado, proporcionam “uma riqueza de possibilidades de
realização” no campo investigativo, por outro lado, resulta em um aumento da
responsabilidade em face dessas escolhas, que por sua vez, envolve o discernimento
necessário frente aos fundamentos epistemológicos que embasam a metodologia
(SPINK, 2000). A reflexão sobre rigor e validação exige que a pesquisa seja regida por
condutas regradas que objetivam superar o hiato entre nossas representações e a
realidade. Esse hiato se apresenta sobre três formas: (i) a indexicalidade que se refere à
situacionalidade ou vinculação com o contexto, ou seja, o sentido muda à medida que a
situação muda; (ii) a inconclusividade que se aplica à complexidade dos fenômenos
sociais e à impossibilidade de controlar todas as variáveis e, por último; (iii) a
reflexividade que diz respeito à espiral da interpretação e aos efeitos da presença do
pesquisador nos resultados da pesquisa (SPINK, 2000).
Se, por um lado, as ciências sociais são ciências dinâmicas, com vários
paradigmas e sujeitas às disputas de poder sobre quem controla as regras, as relações e
os recursos que constituem seus objetos em primeira instância, por outro, “a pesquisa
envolve a interpretação de situações, eventos ou processos sociais, levando em conta os
significados que as pessoas já deram àquelas situações ou processos” (MAY, 2004, p.
53). E, na pesquisa qualitativa, a fonte oral é um dos procedimentos metodológicos
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utilizado desde que os cientistas sociais começaram a considerar os objetos de
investigação como sujeitos ativos.
3 Fontes Orais, História de Vida e Memória
A fonte (história) oral aparece como forma prevalente de fazer pesquisa,
pois, encerra a “vivacidade dos sons, a opulência dos detalhes, a quase totalidade dos
ângulos que apresenta todo fato social” (QUEIROZ, 1988, p. 14), portanto, é via
privilegiada para a humanização das percepções nas ciências sociais, apesar dos
contextos inibidores quer de natureza política, quer de natureza acadêmica. O termo
fonte oral recobre uma grande gama de relatos a respeito de fatos não registrados por
outro tipo de documentação, ou cuja documentação se quer complementar e; colhida por
meio de entrevistas, a fonte oral registra a experiência de um só indivíduo ou ainda de
vários indivíduos de uma mesma coletividade (QUEIROZ, 1988). Tem-se então que,
A história oral [que se insere em um terreno multidisciplinar] é um
procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e
documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas,
testemunhos, versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas
dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais. Não é,
portanto, um conhecimento da história vivida, mas sim, o registro de
depoimentos sobre essa história vivida (DELGADO, 2006, p. 15-6; grifo do
autor).
A moderna fonte oral nasceu somente após a Segunda Guerra Mundial, em
1947, na Universidade de Colúmbia, em New York. Nesta Universidade, Allan Nevins
organizou um arquivo e oficializou o termo - história oral - que passou a ser indicativo
de uma postura diante do uso e divulgação de entrevistas (MEIHY, 1996). “De início a
história oral combinou três funções complementares: registrar relatos, divulgar
experiências relevantes e estabelecer vínculos com o imediato urbano, promovendo
assim um incentivo à história local e imediata” (MEIHY, 1996, p. 28).
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Dos primeiros anos do século passado ao início dos anos de 1950, a fonte
oral fora utilizada por sociólogos e antropólogos em suas pesquisas, tais como: W.
Thomas e F. Znaniecki, E. Burgess, C. Shaw, J. Dollard e Franz Boas, dentre outros,
que a encaravam como um instrumento fundamental de suas disciplinas. Não obstante,
o grande desenvolvimento alcançado pelos métodos quantitativos nos anos 40 ter
deixado na penumbra a fonte oral, paulatinamente, se observou que mesmo a despeito
da matematização dos dados e ou problemas ocorria uma transposição da percepção e
dos pré-conceitos do pesquisador (QUEIROZ, 1988).
E, nos anos de 1960, o desenvolvimento da tecnologia pôs a serviço dos
cientistas sociais novos meios para se captar o real - o gravador; reavivando o relato
oral. As fitas pareciam, naquele momento, o meio para se preservar na narração a
vivacidade dos sons que as anotações no papel não possuíam. Desta forma, os anos 60
operaram uma decisiva mudança na prática e na teoria dos cientistas sociais. A
subjetividade tornou-se, então, objeto legítimo de investigação científica. “Nesta
valorização da subjetividade se desenvolvem outras tendências chamadas de
Hermenêutica do Presente, isto é, uma leitura radical redimensionando as ações, o ser,
os saberes, as existências, os discursos, que conduzirão a uma outra reflexão” (ROSA,
[200-], p. 3; grifo do autor). A fonte oral, mais do que tratar sobre eventos, trata sobre
seus significados, memória, discurso e diálogo - ela fala do indizível; é o diálogo do
presente com o passado.
A fonte oral é um método que abarca um duplo ensinamento: sobre a época
enfocada pelo depoimento - o tempo passado -, e sobre a época na qual o depoimento é
produzido - o tempo presente - e mais, no processar da memória há duas dimensões do
tempo - o tempo individual e o tempo coletivo (DELGADO, 2006). A fonte oral “situase no terreno da contrageneralização e contribui para relativizar conceitos e
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pressupostos que tendem a universalizar e a generalizar as experiências humanas”,
continua Delgado (2006).
Como procedimento, a fonte oral apresenta inúmeras potencialidades
metodológicas bem como cognitivas, tais como: (i) revelar novos campos e temas de
pesquisa; (ii) apresentar novas abordagens sobre processos já analisados e conhecidos;
(iii) recuperar uma diversidade de memórias sob diferentes óticas e versões; (iv)
possibilitar evidências via cruzamento de depoimentos; (v) recuperar informações sobre
acontecimentos e processos não constantes em outras fontes de pesquisa ou mesmo
disponíveis; (vi) possibilitar a redefinição de cronologias históricas frente a informações
anteriores; (vii) contemplar o registro de vocalização de sujeitos sociais até então não
considerados pela história predominante; (viii) possibilitar o registro de versões
alternativas às versões da história oficial; (ix) possibilitar a associação entre
acontecimentos da vida pública e da vida privada por meio das narrativas individuais e;
(x) ser uma alternativa ao caráter estático do documento escrito (THOMPSON3, 1992
apud DELGADO, 2006).
Porém, se por um lado, há inúmeras possibilidades na fonte oral, por outro
lado, trabalhar com este tipo de fonte é um desafio, pois:
[...] um trabalho como este, com fontes orais, está na possibilidade de
apreender as tensões entre os grupos sociais e os sujeitos individuais nos
contextos em que elas são produzidas. As fontes orais fornecem,
potencialmente, elementos que permitem, de uma forma muito orgânica,
apreender as dinâmicas dos grupos e sujeitos em seus afazeres, valores,
normas, comportamentos, etc. Apreender tudo isso significa trabalhar com a
complexidade da realidade social (SILVA4, 2000 apud ROSA [200-], p. 4).
A base da existência da fonte oral é o depoimento gravado e, portanto, três
elementos lhe são constitutivos: o entrevistador, o entrevistado e o aparelho de
gravação. E ainda, há três tempos principais e nítidos, embora eventualmente
complementares: o da gravação (materialização do documento inicial), o do fazimento
do documento escrito e da análise, se for este o caso (MEIHY, 1996).
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A fonte oral como procedimento metodológico obedece a determinadas
normas, “é uma ação específica, sistemática e consciente e visa alcançar fins
específicos. Toda técnica é mecanismo de captação do real, em [...] [ciências sociais], e
não pode ser confundida com o material reunido, isto é, com os dados” (QUEIROZ,
1988, p. 29). A captação dos dados, pelo pesquisador, nas ciências sociais se destina a
resolver questões propostas por relações existentes no interior de coletividades
(QUEIROZ, 1988). E um aspecto importante na fonte oral, que é sempre apresentada na
primeira pessoa do singular, é a definição do eu narrador (MEIHY, 1996).
A fonte oral expressa uma aparente duplicação de identidade; a primeira, a
do narrador que ao relatar sua vida ou sua versão de um fato, torna-se o agente condutor
da história pessoal e até a finalização da entrevista é a razão do trabalho. A segunda, a
do eu do pesquisador, responsável pela criação do produto final e que deve manter-se o
mais oculto possível para que possa obter um melhor resultado. Entretanto,
essa dupla identidade é aparente, pois o poder de quem deu o testemunho
prevalece sobre o de quem o colheu até a conclusão de sua história, da qual,
contudo, é, em face do resultado final, o autor. De uma etapa para outra há
uma passagem de responsabilidades e de direitos. Enquanto a entrevista não
está autorizada para vir a público, o eu dominante é o do narrador; depois,
graças ao trabalho de edição e ao acordo permitido pelo depoente, a autoria
passa a ser do [pesquisador] (MEIHY, 1996, p. 41).
Como o trabalho de fonte oral, que deve integrar vozes diferentes e não tratar
os depoimentos como se fossem iguais, envolve uma complexidade de fatores, entre os
quais, com certeza, uma forte dose de subjetividade, deve-se atentar para que a técnica
de se recolher depoimentos não fique submetida a modelos rigorosamente pré-fixados.
A partir da definição dos objetivos a serem alcançados, deve-se levar em conta as
especificidades de cada indivíduo ou grupo com os quais está trabalhando. Isto porque,
alguns necessitam de roteiros mais formais e, outros, se expressam melhor através de
sutilezas e roteiros mais fluidos. Esta dinâmica, no entanto, deve ser trabalhada pelo
pesquisador, tendo seu roteiro de indagações previamente elaborado, e o qual o aplicará
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segundo as condições de relação com o entrevistado. A flexibilidade e a sensibilidade,
que não implica no abandono da objetividade, devem integrar as condições de
relacionamento que facilitem ao entrevistado (que rememora) e ao entrevistador (que
estimula o rememorar), as melhores condições de interação (DELGADO, [19--]). E, se
lembrar é agir sobre a recordação, deve-se levar em consideração também a natureza da
entrevista.
Em relação aos procedimentos da fonte oral, usualmente, tem-se dois tipos
de entrevistas mais utilizadas: a entrevista temática e a história de vida, muito embora
Delgado (2006) identifique ainda outro tipo de entrevista: a trajetória de vida. De acordo
com Delgado ([19--]), as trajetórias de vida se constituem por depoimentos de história
de vida mais sucintos e menos detalhados. A escolha por essa natureza de depoimento
dá-se em face do depoente dispor de pouco tempo para a entrevista e o pesquisador
julga relevante para seus objetivos aquele depoimento. Por outro, a situação inversa
também é aplicável, ou seja, o entrevistador, por razões várias, não possui
disponibilidade de muitos dias para recolher um depoimento mais pormenorizado de
história de vida ([19--]).
A entrevista temática, por partir de um assunto específico ou préestabelecido, se compromete com o esclarecimento ou opinião sobre experiências,
evento definido ou processos específicos vividos ou testemunhados pelo entrevistado
(MEIHY, 1996). A objetividade, então, é mais direta e, detalhes da história pessoal do
narrador, só interessam na medida em que revelam aspectos úteis à informação temática
central (MEIHY, 1996). Na fonte oral do tipo temática, o uso do questionário (diretos
ou indutivos) torna-se peça fundamental para a aquisição dos detalhes procurados.
A história de vida se distingue dos demais tipos de entrevistas por sua
definição e características. Juridicamente, história de vida significa um conjunto de
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depoimentos cujo objetivo é estabelecer a verdade dos fatos (QUEIROZ, 1988).
Entrementes, nas ciências sociais, história de vida se define como o relato de um
narrador sobre algo que efetivamente tenha presenciado, experimentado ou mesmo que,
de alguma maneira tenha conhecido, logo, podendo certificar (QUEIROZ, 1988).
O crédito com relação ao que foi narrado é averiguado pelo cotejo do relato
com dados obtidos por meio de outras fontes de pesquisa. Até porque, todo registro de
fonte oral, mesmo com o emprego de toda tecnologia disponível para a gravação dos
depoimentos, desliga-a do contexto em que seu deu a entrevista. De fato, nem a
transcrição do depoimento, nem a gravação são capazes de encerrar detalhes
primordiais, em relação a elementos circundantes do entrevistado, os quais muito
poderiam contribuir para maior compreensão e análise do objeto da pesquisa. Por sua
vez, o número de entrevistados deve ser tal permitindo acumular uma quantidade de
material que possibilite fazer comparações, realizar cruzamentos, a fim de se
destacarem conteúdos, divergentes ou convergentes, contribuindo para construção de
evidências (DELGADO, 2006).
Ademais, nas ciências sociais, o pesquisador sempre necessita lançar mão de
outras e, as mais variadas, fontes de pesquisa quando pretende abarcar de forma mais
ampla a realidade que estuda (QUEIROZ, 1988). Nesta perspectiva, tem-se a imagem
de um mosaico no qual nenhuma das peças tem uma função maior a cumprir e, se não
há contribuição, existe ainda outras maneiras de se chegar a uma compreensão do todo
(BECKER, 1997). A história de vida é
narrativa linear e individual dos acontecimentos que nele considera
significativos, através dela se delineiam as relações com os membros de seu
grupo, de sua profissão, de sua camada social, de sua sociedade global, que
cabe ao pesquisador desvendar. Desta forma, o interesse deste último está em
captar algo que ultrapassa o caráter individual do que é transmitido e que se
insere nas coletividades a que o narrador pertence. [...] Avanços e recuos
marcam as histórias de vida; e o bom pesquisador não interfere para
restabelecer a cronologia [...] (QUEIROZ, 1988, p. 20; grifo nosso).
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Na história de vida quem conduz o colóquio é o narrador e, o pesquisador,
por meio das entrevistas, busca captar o que se passa no interior do grupo, da sociedade
em que se insere o entrevistado ou entrevistados. O indivíduo não é mais o único, ele é
indeterminado e, somente, unidade dentro da coletividade, não obstante o fato de que,
em seu anonimato, contêm em um microcosmo as configurações que sua coletividade
abrange. “A história de vida é portanto técnica que capta o que sucede na encruzilhada
da vida individual com o social”, é assim, então, revelador desse social (QUEIROZ,
1988, p. 36).
Por outro, se a história de vida não propicia per si prova definitiva de uma
proposição, ela pode ser um exemplo negativo que nos force a decidir que a teoria em
questão é inadequada, portanto, imputando análises mais acuradas e sugerindo a direção
que a pesquisa deve tomar (BECKER, 1997). Neste sentido, “a história de vida é útil
como pedra de toque teórica”, isto é, em função de sua riqueza de detalhes, contribui
para o propósito de verificar pressupostos e lançar luz sobre áreas de estudo e
organizações que tenham se tornado estagnadas (BECKER, 1997, p. 108).
A própria história dos atores da história de vida, segundo Becker (1997, p.
111), “é uma mensagem viva e vibrante que vem de „lá‟, que nos conta o que significa
ser um tipo de pessoa que nunca encontramos face a face”. Por ser uma técnica cuja
aplicação demanda tempo, na história de vida as entrevistas devem ser realizadas com
intervalos, porque cansativas, logo, não podem ultrapassar certo lapso de tempo. E,
desta forma, uma de suas dificuldades é por um ponto final nas entrevistas.
A história de vida, como qualquer outra técnica empregada na produção de
dados, é somente um instrumento de pesquisa, o qual recolhe um material bruto que
precisa ser analisado. A análise desse tipo de documento envolve três etapas: (i) a
transcrição das entrevistas - busca reproduzir, com fidelidade, tudo o que foi dito,
17
evitando alterar o sentido das palavras e das frases; (ii) conferência de fidelidade - a
escuta do depoimento simultaneamente à leitura da transcrição a fim de corrigir
possíveis erros e, por último; (iii) a análise propriamente das entrevistas - que deve ser
segundo às questões propostas pela pesquisa que as motivou. Neste processo, deve-se
atentar para a carta de cessão assinada pelo depoente para o uso público das entrevistas,
integral ou parcial (DELGADO, 2006; MEIHY, 1996).
No entanto, uma condição imprescindível para que a história de vida, então,
relatos orais sobre o passado, possam ser utilizados encontra-se no fato de que
comportamentos e valores são encontrados na memória dos mais velhos, mesmo quando
estes não mais vivem no grupo ou coletividade que haviam participado no passado
(QUEIROZ, 1988). Daí, poder dizer que, se se perde essa memória, a utilização da
história oral e, em particular da história de vida, para a análise de coletividades e
sociedades, se mostra então impossível.
A memória, elemento constitutivo e fundante da fonte oral, é um cabedal
infinito, no qual múltiplas variáveis dialogam entre si. O ato de memória é um ato de
poder e, o campo da memória, espaço onde atuam seus lugares - os lugares da memória
de Pierre Nora5 (1993), é um campo de conflito. Tornar-se senhor da memória e do
esquecimento é revelador desses mecanismos de manipulação da memória coletiva, isto
porque, no processo de rememorar encontram-se conjugadas tanto a dimensão do tempo
individual quanto a do tempo coletivo.
As vozes da memória são processos sociais ativos apesar do ato de recordar
ser quase sempre individual. Contudo a memória,
está sempre inserida nos quadros sociais da vida humana, uma vez que as
comunidades têm uma alma coletiva conformada por sua experiência de vida,
por sua cultura, pelos símbolos que cultiva, por seu imaginário social e pelas
crenças e valores que orientam seu cotidiano (HALBWACHS6, 1990 apud
DELGADO, 2006, p. 64).
18
A memória é a matéria-prima do reviver do outro para a nossa própria
reflexão. Ao pesquisador cabe refletir sobre a informação relembrada, trabalhá-la
contextualizando sua historicidade. Somá-la a outras informações, documentos e
análises para em seguida trabalhar sobre o conjunto de informações disponível.
4 Considerações Finais
Toda a leitura de dados obtidos por meio da fonte oral deve ser feita
levando-se em consideração a inter-relação entrevistado-entrevistador, passadopresente. Essa relação deve ser compreendida como uma relação viva, dinâmica e
pontuada por emoções e fragmentos do que foi e do que é. E mais, é permeada também
por componentes individuais e sociais que se mesclam na reconciliação do fato, do
sentir, do reviver, do refazer. Assim, cabe ao pesquisador “que trabalha com história
[fonte] oral a responsabilidade peculiar ao induzir o ato de recordar para a construção de
fontes e documentos” (DELGADO, 2006, p.64).
E por fim, ao se realizar a pesquisa social deve-se observar a especificidade
metodológica das ciências sociais a qual é norteada, sobretudo, pelos seguintes
aspectos: (i) o caráter histórico dos fenômenos sociais; (ii) a identidade parcial entre
sujeito e objeto do conhecimento; (iii) o fato de que os problemas sociais suscitam a
entrada em jogo de concepções antagônicas das diferentes vozes e atores sociais e; (iv)
as implicações político-ideológicas das teorias sociais e sua prática.
NOTAS
1
A palavra paradigma foi utilizada segundo a proposta de Khun, isto é, de uma matriz disciplinar. Ou
seja, os paradigmas representam conjuntos de conceitos fundamentais que, num dado momento,
determinam o caráter da descoberta científica.
19
2
A palavra tradição aqui usada pode ser entendida como “tradição reflexiva” que segundo Tarrés (2004,
p. 37) tem-se o seguinte: “La tradición reflexiva [...], privilegia valores, normas y crea pautas de conducta
que favorecen uma atctitud analítica y crítica encaminada a revisar y evaluar las ideas, los supuestos, las
teorias y métodos convencionales no solo alrededor de um debate abstracto, sino también em el marco de
las circunstancias históricas em que éstos se originan y desarrollan”.
3
Cf. THOMPSON, Paul. A voz do passado - História oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
4
Cf. SILVA, Acildo Leite da. Memória, tradição oral e a afirmação da identidade negra. Revista
Movimento, Niterói/EduFF, v. 1, maio 2000. 32 p.
5
Cf. NORA, Pierre. Entre Memória e História - a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo,
v. 10, dez. 1993.
6
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Rio de Janeiro: Vértice, 1990.
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20
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CIÊNCIAS SOCIAIS E QUESTÃO METODOLÓGICA