A VIDA NA CORDA BAMBA O Realismo de Modesto Carone em “Resumo de Ana” Por CLÁUDIA THOMÉ Aluna do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura (Programa de Teoria Literária) Trabalho apresentado ao Simpósio da PósGraduação em Ciência da Literatura – Realismo: possibilidades e questões. Faculdade de Letras da UFRJ Setembro de 2009 “Tudo o que ouvi dizer de minha avó materna devo à insistência com que abordei o assunto”. Com esta frase, que abre o romance “Resumo de Ana” (1998), de Modesto Carone, o narrador se apresenta e antecipa para o leitor o que virá nas páginas seguintes: passagens da vida de sua avó, Ana Baldochi, pelo que lhe foi contado, em confidências, e ainda sobrevive na memória de sua mãe. São fragmentos da vida de uma mulher pobre, que é protagonista de sua trajetória familiar e também de uma outra história, não conhecida, alegórica nos termos de Arriguchi (1999), sem heroísmo ou vitórias, daqueles que viveram excluídos, à margem do processo de modernização do país. A luta pela sobrevivência e a tentativa de ser feliz marcam a trajetória de Ana, empregada doméstica que vive ainda na infância um ranço do passado escravocrata. Suas desventuras são contadas pelo neto de forma respeitosa, sempre com a preocupação de não ferir o decoro familiar. Trata-se de um resumo da vida de Ana e também da vida dela como resumo de tantas outras. Na segunda parte do livro, o narrador apresenta a história de seu tio Ciro, filho de Ana, com base também no que lhe foi contado e ainda no que presenciou no convívio familiar. Engrenagem menor do processo de modernização, Ciro tem uma vida servil e precária, marcada por sucessivas perdas e tentativas frustradas de melhorar de vida. As duas trajetórias, que se entrelaçam pelo parentesco, têm como pano de fundo cem anos da história do país e mostram dois personagens vítimas da modernização conservadora1 Como afirma Bueno, “o progresso e a modernização do capitalismo são vividos pelos personagens de fato como uma catástrofe, uma sucessão de infortúnios e derrotas, que negam a vida e deixam marcas profundas, no corpo, na mente, na alma” (BUENO, 2005, p. 177). Com “Resumo de Ana”, que ganhou o Prêmio Jabuti de 1999, Modesto Carone inaugura sua fase romancista e mergulha no realismo. A proposta deste trabalho é analisar o quanto esta narrativa dialoga com o brutalismo e o realismo feroz, definições do historiador Alfredo Bosi2 e do crítico Antônio Cândido3, respectivamente. A violência na obra não está no baixo calão nem na descrição detalhada de cenas de sexo ou de atos de tortura ou de 1 Termo usado nos tratados de economia para definir transição para a modernidade que ocorre de forma evidente e até estimulada, mas sem alterar a estrutura da desigualdade. 2 BOSI, 1997, p. 18 3 CÂNDIDO, 1987, p. 211 2 violência urbana. Pelo contrário, estes ingredientes não estão em “Resumo de Ana”. Há uma violência silenciosa na rotina dos personagens, uma realidade brutal, que ganha ênfase na narrativa pela forma como é contada. Mesmo a cena em que Ana leva uma surra do marido não ganha mais que um parágrafo, sendo resumida junto com outros acontecimentos da vida dela. O que chama a atenção é que o narrador não adjetiva nem hierarquiza os acontecimentos. Não corre, portanto, o risco de fazer julgamentos. O estranhamento fica a cargo do leitor, frente a uma narrativa enxuta que mantém o mesmo tom, a mesma linearidade, ao contar fatos rotineiros junto com outros de extrema dor. A sensação é de que o narrador naturalizou naquele contexto familiar, ou de classe social, uma vida marcada por exploração, abortos, violência e alcoolismo. O autor Tradutor da obra do tcheco Franz Kafka (1883-1924), Modesto Carone4 (1937, Sorocaba, São Paulo) tem uma narrativa freqüentemente associada ao realismo “fantástico”. Seus contos são referenciados como de influência kafkaniana. Em “Dias Melhores”, conto que dá nome ao livro publicado em 1984, o narrador em primeira pessoa revela ao leitor que não pode sair de casa porque um atirador, camuflado em seu jardim, tenta assassiná-lo disparando tiros de espingarda. São nove parágrafos, em que nada mais é acrescentado ao enredo. Ao leitor não são dadas explicações sobre as motivações do atirador. Na forma de um caleidoscópio pistas difusas são insinuadas, levando o leitor a ser engolido por um abismo. Em outro conto, intitulado “Ponto de Vista” e publicado em “Aos Pés de Matilda” (1980), a situação absurda e inverossímel vivida pelo personagem também é descrita de forma natural, remetendo ao realismo kafkaniano. Nele, o narrador-personagem é um escriturário e conta, em primeira pessoa, sua rotina de trabalho: agachado embaixo da mesa ele recebe as tarefas do dia dentro de uma cesta que desce por um cordão, por onde devolve o serviço feito. 4 Carone é jornalista e professor de literatura aposentado da Unicamp (também lecionou em Viena e USP). É o tradutor de toda a obra de F. Kafka no Brasil. 3 A crítica social está presente em toda sua obra. Nos contos, Carone naturaliza o absurdo inverossímel, com personagens vivendo situações nada possíveis sem estranhamento, remetendo à narrativa crítica kafkaniana. Em “Metamorfose”, Kafka conta o dilema enfrentado pelo caixeiro-viajante Gregor Samsa que de repente, ao acordar, se transforma em um inseto monstruoso. A transformação do personagem em inseto não é questionada. Não há estranhamento. O problema posto na narrativa é a impossibilidade de Samsa se levantar para pegar o trem e ir trabalhar. Este é o grande dilema. Da mesma forma, Carone naturaliza o absurdo em seus contos quando apresenta um personagem que é alvo de tiros, sem estranhar tal fato, e outro que trabalha em uma repartição agachado embaixo da mesa. Em “Resumo de Ana”, no entanto, o autor naturaliza o absurdo verossímel. O que chama a atenção, no romance, não é o improvável, mas exatamente aquilo que é provável, que acontece em uma classe social à margem da modernização, com personagens que não estão trabalhando embaixo da mesa, como no conto, mas que vivem também em situação rebaixada. Resumo de Ana No romance, o autor apresenta duas histórias de vida: a de Ana Baldochi (18871933), avó do narrador, e a de Ciro (1925-1990), filho de Ana e tio do narrador. Dois personagens que vivem à margem da história oficial, “seres precários da cena paulista e brasileira”, como define na contracapa do livro. O romance, baseado em fatos reais5, mostra as duas trajetórias particulares resumidas e contextualizadas histórica e geograficamente em São Paulo. A capa do livro mostra um equilibrista alemão, fazendo a travessia numa corda bamba em direção a catedral de Sorocaba, dedicada à Nossa Senhora da Ponte. A foto de 1953 foi tirada pelo pai do autor, João Carone. “É a vida na corda bamba que está contada no livro”, definiu Modesto Carone, em entrevista disponibilizada no site da Faculdade Cásper Líbero6 5 Na página que traz a ficha catalográfica do livro está explícito: “Esta obra é de ficção, a despeito de alguns fatos, pessoas, lugares e circunstâncias serem reais” (CARONE, 2005, p. 4). A inspiração em fatos reais é reafirmada na contracapa: “Resumo de Ana tem duas histórias interligadas, ambas com base em fatos reais (...)”. 6 entrevista de Modesto Carone disponível em http://www.facasper.com.br/cultura/site/entrevistas, acessado em 11 de junho de 2009. 4 Órfã aos cinco anos de idade, após os pais agricultores morrerem vítimas de uma epidemia, Ana é entregue pelos irmãos a Ernestina Pacheco. A senhora protestante, que morava em Sorocaba, a recebe como filha de criação, mas a submete a serviços domésticos diários, sem folga aos domingos. Aos seis anos de idade já cuidava de trabalhos domésticos significativos: levantava-se de madrugada, acendia o fogão a lenha, preparava a mesa do café, varria o quintal, enxaguava a roupa numa tina d’água, passava e engomava com ferro a carvão; para lavar a louça punha-se em pé sobre um caixote de madeira porque não tinha ainda altura para alcançar a pia (CARONE, 1998, p. 16 e 17). Ana teve que trabalhar duro, sem remuneração, por doze anos, em troca de “teto, comida, roupa feita em casa e instrução caseira” (CARONE, 1998, p. 17). Ela representa, alegoricamente, a filha de criação que, como afirma Vilma Arêas, “pode ser entendida como uma forma maquilada das relações escravistas” (ARÊAS, 1996, p 24). Esta exploração da mão-de-obra infantil se manteve por algum tempo, como afirma Areas, principalmente no interior, em famílias de classe média e de baixa renda: “(...) como a filha de criação não é empregada, não tem salário, e como não é filha, o trabalho é sem tréguas” (ARÊAS, 1996, p.24). Ana ainda teve que assumir outras funções que, como frisa Arêas, são próprias de um “negro de ganho”, escravo que trabalhava para fora e entregava o salário ao senhor. A menina torrava café e ia vendê-lo à família de Júlio Prestes. Para os mesmos familiares, lavava e engomava roupa. O que recebia ia para os “bolsos” de sua mãe adotiva. Aos 17 anos, Ana se liberta de Ernestina e vai trabalhar em São Paulo como doméstica para família de um professor. Dois anos depois, emprega-se na casa de um alto funcionário da Light São Paulo, multinacional canadense, onde entrou como empregada e logo chegou ao posto de governanta. Seu desejo de prosperidade era atendido, embora sua condição pudesse ser associada a das escravas de dentro da casa senhorial, longe da senzala e do trabalho pesado. Passou a acompanhar os patrões em eventos culturais e virou confidente da dona-da-casa, para quem serviu também de dama de companhia. A ilusão de prosperidade, no entanto, termina com a prisão do seu patrão, por desfalque fraudulento na Light. Resta a Ana então voltar a Sorocaba, para a casa de Ernestina, e aceitar o pedido de casamento do padeiro Balila Baldochi. Comerciante 5 próspero, cabo eleitoral de Júlio Prestes, Balila era um homem rude, bruto, avesso à etiqueta e que repudiava ópera. O casal teve três filhos após quatro abortos: Lazinha (mãe do narrador), Ciro e Zilda. A vida conjugal oscilava de acordo com os altos e baixos financeiros. Inicialmente, Ana se dedica a casa, colocando em prática as lições de etiqueta que aprendeu, e mantém seu gosto por óperas e teatro. Balila não se opunha ao que considerava um capricho da mulher, mas mantinha seu jeito rude, o que aumentava ainda mais a aversão de Ana pelo marido e o abismo entre os dois. O marido às vezes se obrigava a ir buscá-las à saída do teatro e o que parecia gentileza se transformava em dissabor; pois a despeito de conhecer os hábitos de Ana (...), ele aparecia invariavelmente de chinelos e em mangas de camisa, num desleixo afrontoso que o fazia andar, no caminho de volta, à frente da mulher e da filha sem a preocupação de reter os gases do corpo cada vez mais redondo. (CARONE, 1998, p. 38) A frustração no casamento leva Ana a fantasiar relações extraconjugais. Sente-se atraída por um motorista, dono de uma limusine, que a denuncia por assédio. O jogo de sedução não se concretiza, mas a denúncia de assédio acrescenta à rotina de Ana cenas de extrema violência, descritas em um único parágrafo, sem detalhes, deixando uma brecha para a imaginação do leitor. Quando (Ana) voltou para casa, o marido estava no armazém, onde ficou até muito tarde, as portas travadas com tranca; assim que ele surgiu na sala ela quis dizer alguma coisa e foi esbofeteada. Com o nariz sangrando Ana se refugiou no quarto do casal cuja porta Balila não teve dificuldade de arrombar com o peso do corpo. Vendo-a recolhida a um canto ele se despiu como num ritual e completamente nu surrou-a com um cinto do couro até perder o fôlego: o quarto estava escuro, mas Lazinha pode ver a cena pela porta escancarada. (CARONE, 1998, p. 41- 42) A cena brutal, presenciada pela filha, é descrita apenas neste trecho. No parágrafo seguinte, o narrador conta que o casal ainda teve mais uma filha, Zilda, o que potencializa o relato da infelicidade de Ana. Apesar da violência, ela ainda engravidou de Balila novamente. Só na segunda parte do livro, em que o narrador conta a vida de Ciro, a surra 6 volta a ser descrita, de um outro ângulo, potencializando ainda mais a brutalidade vivida por Ana. As cenas de agressão eram invariavelmente acompanhadas pelos filhos. Lazinha agarrada ao corpo da mãe para livrá-la das cintadas que zuniam, Zilda encolhida num canto escuro da sala e Ciro enxugando os olhos nas mangas de um macacão de flanela. O choro tornou-se uma segunda natureza para Ciro. (CARONE, 1998, p. 59) A partir daí, a trajetória de Ana entra total em declínio. Deprimida, sem entusiasmo para nada, nem perspectivas, ela mergulha no alcoolismo o que, como afirma ARÊAS (1997), é uma nova referência à escravidão “crua ou disfarçada”, no contexto de nossa modernização conservadora, que ainda manteve esse ranço escravocrata. A autodestruição de Ana dá ao enredo contornos dramáticos. Primeiro ela furta bebida no armazém do marido. Mas, em função da crise econômica de 1929, o padeiro passa a controlar os estoques. Ana recorre então aos filhos. Primeiro, pede à Lazinha que compre bebida diariamente no bar próximo de casa. Depois, passa a tarefa à Ciro, que tinha menos de cinco anos de idade. O menino saía todos os dias de casa com uma garrafa vazia, atravessava a rua Morros e, prestando atenção nos bondes que subiam a ladeira, andava até um botequim onde pedia ao empregado que a enchesse de qualquer marca de aguardente; enquanto acompanhava com o olhar a bebida que escorria no pequeno funil de zinco até o gargalo e caía espumando em silêncio no fundo da garrafa, ele ficava na ponta dos pés e depositava o dinheiro contado em cima do balcão de mármore. (CARONE, 1998, p. 43 e 44) O vício destrói o que restou de vida familiar. Ana deixa de cuidar da casa e se afasta de vez do marido que, falido, torna-se caixeiro viajante. Alcoolismo, doença e abandono marcam sua trajetória até maio de 1933, quando morre, aos 45 anos de idade. Resumo de Ciro A história de Ciro foi escrita depois, acrescentando fragmentos que dão nova dimensão à trajetória da mãe. Era a sexta gravidez de Ana: quatro filhos morreram por doença. Lazinha, mãe do narrador, foi a primeira a vingar, seguida de Ciro, em 1925. 7 Coube à irmã, que ainda ia completar seis anos, participar o nascimento do menino às relações sociais: “Tem um criadinho às suas ordens” (CARONE, 1998, p 55) – era a frase que teve que decorar, por ordem da mãe, e repetir a cada visita. A vida precária marcou logo cedo o menino, vítima de diversas formas de violência, desde a infância à fase adulta: ficou com o rosto desfigurado ainda bebê depois que uma mosca varejeira o picou na nuca várias vezes, abrindo uma ferida na base do crânio, e não teve assistência médica que deveria ter. O mormaço estava forte e deve ter sido aí que uma varejeira picou várias vezes a nuca descoberta da criança. O ferimento foi sério e a mãe só se deu conta dele alguns dias depois que o menino começou a chorar de exaspero: a bicheira havia se alastrado por toda a base do crânio. Sem querer consultar um médico, Ana cuidou de Ciro a sua maneira, enfiando uma pena de galinha embebida em arsênico nos pontos em que a pele estava perfurada. Ao contato do veneno diluído as larvas subiam à tona com os vermes de uma fruta estragada. (CARONE, 1998, p.56) Violência, abandono e alcoolismo. O vício de Ana precarizou ainda mais sua rotina e, com cinco anos de idade, Ciro teve um torcicolo por não se agasalhar no inverno. Foi novamente tratado em casa, pelo pai, sem a assistência médica devida. Quando as dores cederam, Ciro não podia mover a cabeça sem virar também o corpo: do fim da infância à metade da adolescência seu apelido em casa e na rua foi pescoço duro. Na mesma ocasião uma epidemia de catapora se espalhou entre as crianças do bairro e as irmãs não tiveram seqüelas porque estavam protegidas por urucum em volta dos olhos. Solto pelo quintal, em Ciro ela arrebentou na córnea e para evitar o sol ele desencavou do baú de roupas velhas um boné de brim que tapava a testa. Mas o olho esquerdo ficou lesado e a visão prejudicada acentuou sua necessidade de fazer meia-volta para enxergar de lado. (CARONE, 1998, p. 61) Ana morreu quando ele tinha apenas oito anos. Apresentado como “criadinho” ao nascer, Ciro não conseguiu, ao longo da vida, revolucionar esse destino. A luta pela sobrevivência começou cedo, assim como o ingresso no “mundo do trabalho alienado”. Deixou a escola para acompanhar o pai, que então era caixeiro-viajante. Com saúde frágil e pouca instrução, aos 16 anos assumiu uma vaga de balconista na farmácia mais próspera da cidade. Depois trabalhou como operário da Estrada de Ferro Sorocabana, símbolo da modernização da cidade: 8 Conseguiu um emprego mais sólido, ganhava mais que na farmácia, mas isso não fez diferença em seu poder aquisitivo, já que o custo de vida era maior no pós-guerra. Demitido da Estrada de Ferro, conseguiu uma vaga de garçom em um bar, onde trabalhava de dia e de noite. Mas dependia das gorjetas para completar o salário e não recebia por horas extras nem o adicional noturno. Foi dono de uma gráfica, contratou três empregados, mas o aumento de cem por cento no salário mínimo inchou sua folha de pagamentos e colocou um ponto final em sua intenção de ser pequeno empresário. Trabalhou então informalmente como jardineiro e como vendedor ambulante de aguardente clandestina para bares da cidade, uma ironia de seu destino. A princípio o cheiro de álcool revoltava o seu estômago e o fazia chorar, mas com o tempo ele foi se acostumando, como a tudo o mais. Anos depois admitia que o que mais incomodava naquela atividade era a consciência que abastecia bares que visitava com a mãe na infância, vendendo a mesma bebida que havia contribuído para matá-la. (CARONE, 1998, p. 96) A vida amorosa também foi repleta de frustrações. Na adolescência, Ciro se apaixona por uma mulher loira. O início de sua vida amorosa, no entanto, não dá ao relato ingredientes que seriam esperados em um folhetim romântico. Em uma frase, Carone pontua para o leitor a dureza daquela vida marcada desde o nascimento. Escreve o autor: “A experiência era desconhecida porque não havia nela sofrimento ou mal-estar(...)” (CARONE, 1998, p. 66). O relato continua e Ciro descobre que a loira era prostituta e havia sido presa. Na fase adulta, casa-se com Teresinha, filha de operários, que depois é internada com tuberculose. Namora Norma, garçonete ligada à prostituição, que enlouquece e é presa depois de matar o pai a facadas. Em seguida conhece Anita, com quem viverá o resto da vida e terá seis filhas. Ela sonhava em ser professora, mas será operária em fábricas de tecido e empregada doméstica. Sentindo o peso da idade, que o deixa em desvantagem no trabalho como carregador, só resta a Ciro sonhar com um futuro melhor para suas filhas. Sem herança material para deixar, tenta elevar a auto-estima das meninas, “descrevendo em detalhes as escolas de balé e medicina que ela iam freqüentar” (CARONE, 1998, p. 104). Aos poucos as 9 filhas perceberam que os sonhos eram delírios e, diante das promessas não cumpridas, sentiram-se lesadas. Ciro ficou isolado dentro da família, mais uma vez rejeitado. Herdeiro de um passado escravocrata, cujo ranço pautou a vida de sua mãe, Ciro choca-se ao saber que o noivo de sua filha é mulato. Explorado por toda vida, vivendo à margem de uma modernização que não teve a chance de conhecer, e sem consciência de tal condição, Ciro protagonizou uma série de ausências – foi uma trajetória marcada pela perda da mãe, pela falta de saúde pública, falta de estudo, ausência total de oportunidades. Em 1990, em decorrência de uma pressão alta não tratada, Ciro enfarta ao voltar do trabalho como revendedor de bebida. Velado pela família, acaba sendo enterrado em cova errada. Fragmentos de uma realidade brutal Modesto Carone publica a primeira parte de “Resumo de Ana” em 1989, na revista Novos Estudos CEBRAP, número 25. A segunda parte, sobre Ciro, foi escrita posteriormente e anexada à primeira para dar origem ao livro, publicado em 1998. O romance data, então, da década de 90, período em que o foco temático já não era mais o da repressão política, das décadas anteriores, mas sim o das “fraturas sociais” do país, nas palavras do professor João Roberto Maia: Um tipo de romance com muito destaque no presente é aquele que se volta para nossas fraturas sociais, a vida apartada dos pobres, a barbárie bem instalada no cotidiano brasileiro, os resultados catastróficos, enfim, de nossa modernização conservadora. (...) Talvez aqui possamos falar em captação literária de uma situação de desagregação social, de precarização das condições de vida para a maioria no Brasil (...) (MAIA, 2007, p. 151152) A necessidade de retratar o Brasil, e sua desagregação social, com olhar crítico, é fortemente presente em “Resumo de Ana”. Carone ambienta o romance no Estado de São Paulo, descreve a cidade de Sorocaba, seu processo de industrialização, contextualiza a falência do personagem em crise de nossa economia, retrata aspectos da modernização conservadora no Brasil. O autor não foge do estilo crítico que caracteriza Kafka, de quem é tradutor, nem deixa de lado o projeto nacional de olhar para o Brasil, seguindo a trilha de seus antecessores. 10 Seu romance está inserido no sistema literário brasileiro, de tradição realista, e, portanto, se articula com obras anteriores, inserido no que Antônio Cândido denomina literatura empenhada (CÂNDIDO, 2006, p. 28-32). Partindo desse pressuposto, Carone dialoga com toda a tradição e segue uma trilha deixada por autores que optaram por ficcionalizar a vida precária brasileira. Seguindo a tradição literária brasileira de retratar o país, “Resumo de Ana” traz a luz histórias de anônimos, vidas que ficaram à margem dos registros da História, que por muito tempo privilegiaram o discurso dos vencedores. Ana carrega o passado escravocrata e Ciro a marca desta modernização que prevê uma classe proletária “escravizada” pela indústria, uma classe servil. Quando mostra as desventuras da menina órfã que trabalha como empregada da mãe de criação, porque precisa sobreviver, e não tem outra alternativa, o romance registra uma situação vivida por tantas outras Anas, em uma sociedade que manteve um ranço escravocrata marcante na vida de muitas filhas de criação. A protagonista de Carone vive a mesma escravidão disfarçada que as crias de Sinhá Rita, do conto “O Caso da Vara”, de Machado de Assis (1937). No conto, a única “cria” que tem nome é Lucrécia, “negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda”, como é descrita. Com apenas onze anos, ela era castigada pela viúva, assim como as outras crias, caso não terminasse a tarefa até o fim do dia. As meninas tinham que fazer almofadas de renda, em ritmo de produção controlado pela viúva, sob ameaça constante de Sinhá Rita. A vida de maus tratos de Lucrécia, no entanto, aparece apenas como pano de fundo da trama central. “Resumo de Ana”, no entanto, coloca a “filha de criação” escravizada no lugar de protagonista, e deixa o relato a cargo de seu neto, com base nas memórias da mãe. O romance está todo ancorado na História do Brasil contemporâneo, retratando, mesmo que indiretamente, em referências, as relações de trabalho na transição do regime escravocrata para o capitalista, seu processo de industrialização, fatos políticos e mudanças na economia. Mas não se trata de um relato histórico: aqui, é a vida do país que serve de pano de fundo para as histórias de vida de Ana e Ciro – “seres precários da cena paulista e brasileira”7. 7 Definição para os dois personagens apresentada na contra-capa do livro “Resumo de Ana” 11 É preciso analisar as características desta narrativa que, segundo Arêas, é uma narrativa inaugural, em função do tratamento do tema. Para a autora, o romance de Carone “é uma ficção de corte realista, sem qualquer relação entretanto com o puro documentário” (ARÊAS, 1996, p. 32). Apesar do contexto e da inspiração em fatos reais, e da linguagem direta, próxima a do jornalismo e do documentário, o romance de Carone, afirma Arêas, é ficção. “Talvez a qualidade do narrador seja uma das chaves de diferenciação entre ficção e história” (ARÊAS, 1996, p. 32), afirma a pesquisadora. A narrativa histórica, argumenta a autora, trabalha o conteúdo com base em formulações teóricas e hipóteses. Já a ficção permite o deslizamento do foco narrativo a partir da memória como matéria-prima, em que o narrador pode selecionar o que quer contar, mesmo que tenha por base fatos reais. O resumo da vida de Ana é construído com base na memória, de modo particular, em fragmentos transmitidos oralmente e selecionados seguindo critérios individuais e familiares. A diferença em Resumo de Ana é que não há narrador externo selecionando os fatos que considera mais relevantes. Trata-se de contar a história dos vencidos pela voz de um narrador que não é indiferente ao cotidiano daquela classe social. A seleção dos fatos é feita pela mãe do narrador – filha de Ana - e por ele próprio, com base no que foi passado em histórias contadas oralmente, em família, e no que viveu. A narração é, portanto, um diferencial importante em “Resumo de Ana”. O romance apresenta um relato em terceira pessoa, baseado na conversa entre mãe e filho, mas em algumas vezes o narrador se inclui e utiliza a primeira pessoa, como no trecho a seguir: Minha mãe hesitava à medida que o relato tomava corpo diante de mim: as pausas e digressões se tornavam freqüentes e a disposição para recompor as falhas com novas reminiscências se acentuava. Embora difícil de definir, o gesto não era deliberativo, parecendo refletir a fórmula de compromisso entre o fascínio de narrar e o medo de tratar as confidências de Ana como quem fere o decoro familiar (CARONE, 1998, p. 39) Não existe aqui, portanto, um tratamento paternalista nem um olhar de superioridade direcionado aos personagens populares, mas sim a preocupação de ser fiel àquela história de vida, para não ferir o decoro familiar. Como afirma Arêas, há um 12 “tratamento raro do humilde”, um distanciamento em sinal de respeito à história de vida daquelas pessoas, sem o olhar folclórico, de estranhamento ou de superioridade: “A forma lisa é que multiplica a violência do conflito” (ARÊAS, 1996, p. 39). Como parte do sistema literário, portanto, pode-se questionar aqui o quanto esta narrativa de Carone dialoga com o realismo feroz e com o brutalismo, definições apresentadas pelo crítico Antônio Cândido (1987) e pelo historiador Alfredo Bosi (1997), respectivamente, frente à literatura dos anos 70, principalmente à obra de Rubem Fonseca. O realismo feroz a que se refere Cândido está presente no que chamou de “literatura do contra” – “contra a escrita elegante (...); contra a convenção realista (...); contra a lógica narrativa” (p. 212) -, em um contexto de violência urbana em diversos níveis: Guerrilha, criminalidade solta, superpopulação, migração para as cidades, quebra do ritmo estabelecido de vida, marginalidade econômica e social – tudo abala a consciência do escritor e cria novas necessidades no leitor, em ritmo acelerado. (CÂNDIDO, 1987, p. 212) Sem correr o risco de rotular o romance de Carone, com conceitos criados antes de sua publicação, vale questionar como “Resumo de Ana” dialoga com o momento literário que o antecedeu, de um “realismo feroz” que teve Rubem Fonseca como expoente. “Resumo de Ana” foi escrito em outro momento histórico. Não trata de criminalidade nem apresenta uma narrativa “do contra”. Enquanto Fonseca mostra o homem reduzido às suas paixões, Carone apresenta personagens reduzidos à luta pela sobrevivência, sem alternativas, sem horizontes, e sem consciência disso. Trata, no entanto, da marginalidade econômica e social, citada por Cândido, e apresenta uma realidade feroz, que devora os sonhos de quem nasce e morre para servir, à margem da modernização do país. Se Rubem Fonseca agride com sua “literatura do contra”, Carone apresenta ao leitor uma realidade “do contra” vivida por seus personagens: Ana e Ciro parecem fadados a um destino e, a cada tentativa de mudança, são puxados de volta para a vida de exclusão. No contexto atual, vale questionar se Carone não estaria apresentando uma nova vertente do que o crítico chamou de realismo feroz. 13 Narrativa com traços jornalísticos “Cada frase traz uma sensação premente, uma experiência doída, uma angústia a mais”. A afirmação de Alfredo Bosi (1997, p.19) refere-se ao conto “Frio”, de João Antônio, em Malaguetas, Perus e Bacanaço (1963), mas bem que poderia ser dirigida ao romance de Carone. “Resumo de Ana” apresenta ao leitor o relato de vidas sem perspectivas, em que para cada sonho há uma frustração, uma dura realidade contada de forma rápida e crua, sem rodeios. A força do romance está na estratégia narrativa que, sem hierarquizar, sem criar “manchetes jornalísticas” a cada fato, surpreende o leitor a cada momento com uma frustração, um sonho interrompido, uma imensa falta de perspectiva. A força da narrativa (...) não deriva de um infindável jogo de fundos falsos, de falsas pistas, de misturas constantes entre realidade e ficção (...) Muito menos se trata de jogar na cara do leitor, sem mediação e montagem, os dados crus da realidade bruta, com a intenção rasteira de chocar e, acrescente-se, bloquear o pensamento crítico. (...) O resultado é forte, porque a concisão condensa o efeito estético e amplia o campo imaginativo do leitor, que não precisa se desvencilhar dos excessos emotivos ou da exposição nua e crua ´da vida como ela é ´” (BUENO, 2005, p.176) É uma narrativa tão direta que deixa o fato vir à tona com toda força, sem emitir juízos explicitamente, principalmente quando não detalha. Os momentos de silêncio, de ausência de informação, dão ainda mais dramaticidade, pois estão na ordem daqueles relatos dos quais a linguagem não dá conta. A linguagem direta, sem adjetivos, e com economia de palavras é semelhante à linguagem utilizada pelo jornalismo, submetido a um processo industrial de produção do texto, com limitação de espaço, e seguindo um mito de imparcialidade, em que precisa simular uma isenção a todo tempo. O romance de Carone não se enquadra neste caso, e nem é este o propósito, mas se aproxima do relato jornalístico em determinados aspectos: apresenta uma história baseada em fatos reais, como frisa na abertura do livro, narrada por alguém que tenta reconstruir os fatos a partir do que lhe foi contado oralmente. A narrativa de “Resumo de Ana” também contém alguns traços do relato jornalístico que garantem a verossimilhança do que está sendo contado. Em primeiro lugar, o depoimento de quem presenciou o fato, o testemunho, mesmo que com base nas 14 memórias da filha da protagonista. Em segundo lugar, a estratégia de aproximar informações para criar uma mensagem, dando ao leitor a oportunidade e o prazer de concluir, de formar juízo, sem que este esteja explícito no texto, de forma didática ou panfletária. Após o parágrafo em que relata a violência física sofrida por Ana, por exemplo, - cena em que Balila surrou-a completamente nu até perder o fôlego - o narrador conta que “em 1926 Ana deu à luz Zilda, a última filha do casal” (CARONE, 1998, p.41-42). Ou seja, o leitor conclui que mesmo após toda aquela violência, Ana, sem alternativas, permaneceu casada com ele, e ainda engravidou mais uma vez. É, portanto, uma narrativa com alguns traços jornalísticos, mas sem oferecer o que, no jargão da imprensa, se denomina “lide”8. E sem determinar o que, naquele relato, é notícia, o que é mais inusitado. Esta noção de que só interessa contar aquilo que é inusitado, improvável, norteia o jornalismo até hoje. A partir da década de 50, a imprensa brasileira passou a formatar a notícia segundo a estrutura norte-americana, da pirâmide invertida9, com abertura direta, frases curtas e objetivas. Nesta estrutura, o fato não é contado de forma linear: o jornalista elege o que considera mais importante na história, ou mais espetacular, para a abertura da reportagem. Assim, as histórias costumam ser contadas, muitas vezes, começando por seu desfecho ou pelo que há de mais inusitado. Carone tem, ao longo do romance, notícias fortes, mas não as pontua para o leitor. Não que o romance tenha que seguir estas regras, mas é importante considerar que esta hierarquização entre o que é mais relevante contar e o que não é, não é apenas uma característica do jornalismo, mas uma forma já naturalizada de se contar algo, presente até nas conversas orais. Não seria natural, por exemplo, começar o relato de um atropelamento comentando primeiramente as condições do tempo, o perigo na via, para só depois contar que uma pessoa acabou de ser atropelada. É interessante, portanto, observar que o texto enxuto e direto de “Resumo de Ana” se aproxima da linguagem jornalística, mas não segue a estrutura narrativa que hierarquiza 8 O lide é o primeiro parágrafo da reportagem e deve apresentar as informações mais relevantes da notícia, respondendo às perguntas: O que? Quem? Quando? Onde? Por que? e Como?. Segue uma fórmula de narrativa jornalística criada nos Estados Unidos e adotada no Brasil a partir da década iniciada em 1950. 9 A técnica da Pirâmide Invertida surgiu nos Estados Unidos do fim do século XIX e consiste na redação da notícia em ordem decrescente de importância, substituindo a ordem cronológica das narrativas contadas de forma linear. 15 os fatos pelo seu grau de importância. Assim, o que seria inusitado ou absurdo para um leitor alheio àquela realidade é contado de forma linear, sem o estranhamento que impõe ao leitor um parecer prévio. A narrativa de “Resumo de Ana” se aproxima mais do chamado novo jornalismo10, uma tentativa da imprensa de criar um relato menos objetivo e dar a ele nuances próprias da literatura, passando uma “poeira de vivência” a partir da experiência do repórter ou, de forma alegórica, do que foi vivido por um personagem11. O paralelo da narrativa de Carone com o texto jornalístico serve aqui para mostrar como a obra dialoga com o momento presente a ela. Não se trata da história do passado, mas de um narrador no presente resgatando as memórias de sua família. O romance está inserido na tradição literária realista, com forte teor de crítica social, em uma literatura que poderia ser chamada de jornalística, preocupada em apurar as mazelas do país. Pode-se observar que o texto apresenta momentos de intensa dor seguidos de outros, sem alarde. Assim, aborto, violência doméstica e doença, por exemplo, surgem no meio da narrativa sem serem “noticiados”. Talvez esteja aí a chave para explicar o estranhamento ou o incômodo causado no leitor, acostumado a ter esses fatos brutais na pauta das reportagens. No romance de Carone a narrativa passa a ser brutal por não seguir esta fórmula esperada. Esses fatos brutais aparecem em frases que começam com “quando” ou com outras expressões de tempo, como marcas temporais. Aguardava com ansiedade o primeiro filho e nos momentos em que devaneava não o via tosco nem assediado pela necessidade. Quando a criança nasceu morta, enforcada no cordão umbilical depois de um parto doloroso realizado no quarto do casal, Ana caiu numa depressão grave que o marido suspeitou se tratar de uma doença incurável. (CARONE, 1998, p. 34) Foi no ano em que perderam o quarto filho (...) que ele trocou a padaria por um armazém de secos e molhados (...) (CARONE, 1998, p. 34) 10 New journalism - movimento que surgiu nos Estados Unidos na década de 60 e que também chegou ao Brasil, subvertendo a fórmula do lide clássico e inovando em reportagens que privilegiam a vivência do narrador, o testemunho, a experiência vivida. Em Comunicação Social, considera-se uma aproximação do jornalismo com a literatura. 11 O termo “personagem” serve de jargão profissional para o que nas redações do Rio se define como “fulanizaçâo da notícia”, ou seja, mostrar o rosto e/ou a história de vida do anônimo atingido/interessado pelo fato. 16 (...) a aversão de Ana por Balila só se consumou quando a violência física destruiu o que ainda restava de solidariedade no casal. (CARONE, 1998, p. 38) De fato quando Ana começou a ficar seriamente debilitada pela diarréia e a dar alguns sinais de delirium tremens o único adulto que tomou a iniciativa de levá-la ao médico foi Adelaide (...). (CARONE, 1998, p. 47) Quando no mês de maio de 1933 ela leu na máscara de cera do rosto da mãe que Ana estava morrendo, o pai estava na iminência de partir (...) (CARONE, 1998, p. 49) Estavam casados fazia dois meses quando Ciro começou a sentir as dores de cabeça provocadas pelo antimônio (...) (CARONE, 1998, p. 78) Na manhã do dia em que morreu, Ciro acordou bem disposto e decidiu ir trabalhar mais cedo. (CARONE, 1998, p. 110) Nos trechos acima, cada informação precedida do “quando” estava sendo apresentada pela primeira vez ao leitor, ainda não era algo sabido. O que chama a atenção, ao ler o romance, é o não estranhamento do narrador, a forma como conta os infortúnios sem alardear, como se fossem, e de fato são, naturais na vida dessas pessoas. Certamente uma crítica social do mais alto nível, não panfletária, sem exclamar em nenhum momento o absurdo que ali existe. Esta tarefa fica a cargo do leitor. Conclusão Neste seu primeiro romance, Modesto Carone inova ao mostrar o processo de modernização conservadora pelo olhar dos vencidos. Trata-se de uma literatura empenhada, nos termos de Cândido, realista, com forte crítica social. A história dos personagens é contada pelo viés do trabalho servil e alienado, que começa na infância e marca todas as fases de suas vidas. Na trilha de seus antecessores, Carone busca na experiência vivida e nas mazelas sociais do país a matéria-prima para seu romance. “Resumo de Ana” é prova disso, como também reforça a tese de que sua narrativa sofre forte influência de Kafka, de quem é seu principal tradutor no Brasil. Ao relatar sem estranhamento ou indignação fatos absurdos, produz uma crítica social nada panfletária, que desperta estranhamento no leitor. 17 A precariedade com que os personagens vivem em “Resumo de Ana” é a expressão da violenta exclusão a que foram fadados desde o nascimento até a morte. Há violência na exploração infantil, na relação conjugal de Ana, no trabalho alienado de Ciro. É uma história brutal, mas sem explorar a estética da violência presente, por exemplo, na obra de Rubem Fonseca. A narrativa de Carone, em “Resumo de Ana”, dialoga em alguns aspectos com o realismo feroz e com o brutalismo diagnosticados por Cândido (1987) e Bosi (1997), respectivamente, na literatura dos anos 70. Herdeira de um momento histórico de censura e repressão, a literatura brasileira recente mergulhou em um realismo considerado pessimista, retratando uma realidade dura, um mundo cruel. Neste aspecto, jornalismo e literatura, que já tiveram um passado em comum, voltam a ter pontos de contato: narrativa objetiva, com linguagem acessível, registrando um mundo de crimes, traições, exploração, e demais pautas apropriadas para o noticiário policial. Representante do que Cândido chamou de “literatura do contra”, Rubem Fonseca foi contemporâneo de um jornalismo policial que ficou rotulado de “espreme que sai sangue”. No jornalismo, a década de 70 foi promissora para a editoria policial. Diante da censura rígida, que regulava mais os assuntos de política, o noticiário de polícia ganhou fôlego nas páginas dos jornais, repetindo durante a ditadura militar o que já havia ocorrido no Estado Novo (AMARAL, 1978, p. 87). Eram relatos e fotos de crimes bárbaros que chocavam o público logo na primeira página do jornal. Fazendo um paralelo com a obra de Fonseca, o jornalismo viveu nesta época seu momento feroz e brutal. O romance de Carone nasce em outro momento histórico e apresenta uma narrativa com traços jornalísticos, em uma fase em que a imprensa valoriza em suas páginas a humanização da notícia, com histórias de personagens que viveram os fatos a serem noticiados. O narrador de “Resumo de Ana”, no entanto, mantém um distanciamento respeitoso e não antecipa nenhum julgamento ou estranhamento diante de fatos marcantes na trajetória dos personagens. Não apresenta a brutalidade vivida por Ana e por Ciro, reificados por toda vida, pelo viés do absurdo, do inusitado, do estranho. As duas histórias são contadas de forma resumida, breve, objetiva, sem sentimentalismos, mas com grande sensibilidade e respeito. Em pouco mais de cem 18 páginas, Carone resume as duas vidas – de Ana e Ciro - que, juntas, compreendem cem anos da história do Brasil. São vidas resumidas à falta de perspectiva, à margem da modernização, vítimas de uma exclusão violenta. Trabalho e exploração ainda na infância, abortos sucessivos, sonhos não realizados, violência física, alcoolismo, enterro em cova errada. São tantos infortúnios nessas vidas que pode-se afirmar que. Carone não produz um realismo feroz, o real que ele retrata é que é ferozmente brutal. 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