A TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA NO ENSINO SUPERIOR: UMA EXPERIÊNCIA COM O RESUMO ACADÊMICO E A RESENHA CRÍTICA Ms. Rosane de Mello Santo Nicola ( PUCPR ) Ms. Sandra Batista da Costa ( PUCPR) RESUMO Neste artigo, apresenta-se uma proposta de seqüência didática para o ensino dos gêneros resumo acadêmico e resenha crítica. Fundamenta-se este trabalho nos modelos didáticos propostos por Dolz e Schneuwly (2004). Os estudos desses pesquisadores destinam-se a orientar as intervenções docentes, para instrumentalizar o aluno quanto aos meios de atuação mais efetiva nas interações verbais. Conforme Bakhtin, todo texto está organizado de acordo com um gênero, socialmente constituído em função das intenções comunicativas e determinado pelos usos sociais da linguagem. Os enunciados (orais ou escritos), produzidos por interlocutores numa dada situação verbal, caracterizam-se por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal, isto é, pela seleção operada nos recursos da língua, mas também e principalmente, por sua estrutura composicional. Esses três elementos compõem um conjunto de enunciados relativamente estáveis e elaborados por uma determinada esfera de utilização da língua. Tais enunciados constituem, portanto, os gêneros discursivos. Ao solicitar-se a graduandos e pós-graduandos que leiam e produzam textos técnicocientíficos, a intenção é iniciá-los numa comunidade de prática discursiva específica. Para tanto, precisam desenvolver, dentre outras habilidades, a capacidade de fazer análise e síntese, inscritas nos gêneros investigados. Dessa forma, considera-se a Academia um lugar de interação que favorece as mais variadas situações de recepção e produção de textos e deseja-se que o acadêmico tenha ferramentas para atuar nesse espaço. A partir de um relato de experiência, propõe-se um encaminhamento metodológico para se trabalhar com resumo acadêmico e resenha crítica. Observam-se, nas propostas desenvolvidas, indicativos que podem instrumentalizar o acadêmico à produção desses gêneros textuais. PALAVRAS-CHAVE : RESUMO ACADÊMICO; RESENHA CRÍTICA; SEQÜÊNCIA DIDÁTICA; GÊNEROS DISCURSIVOS INTRODUÇÃO Resumo e resenha são dois gêneros discursivos amplamente explorados nas mais diversas áreas acadêmicas. É comum ouvir-se no meio universitário que este ou aquele docente solicitou um resumo ou uma resenha de um livro, artigo, filme ou de uma palestra. Em princípio, supõe-se que o acadêmico domine esses gêneros e que o professor, por sua vez, mesmo não sendo da área de Letras, domine seu funcionamento em situações que (re) criam as práticas de linguagem de referência na sociedade. Ou seja, quando é solicitada uma atividade dessa natureza, descortina-se ampla oportunidade de se vivenciar situações de comunicação o mais próximas das verdadeiras e atingir objetivos que superam as fronteiras particulares da sala de aula. Promovem-se aprendizagens significativas que ultrapassam o conhecimento de um gênero e são transferíveis para outros gêneros. Esse é o 1915 caso do resumo acadêmico, cujo domínio transpõe-se para a resenha, visto que esse gênero se compõe também daquele. Nesse sentido, considerando a Academia um lugar de interação que favorece as mais variadas situações de recepção e produção de textos, neste artigo, pretende-se contribuir para esse processo, por meio de um relato de experiência em que as autoras propõem o ensino de resumo acadêmico e resenha crítica, respectivamente, organizado na forma de seqüências didáticas. SEQÜÊNCIA DIDÁTICA: O QUE É E COMO SURGIU Considera-se que todo texto esteja organizado de acordo com um gênero, socialmente constituído em função das intenções comunicativas determinadas pelos usos sociais da linguagem (Bakhtin, 1997). Assim, os enunciados (orais ou escritos) produzidos por interlocutores numa atividade de linguagem caracterizam-se por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal, isto é, pela seleção operada nos recursos da língua – lexicais, gramaticais e sintáticos -, mas também e principalmente, por sua estrutura composicional. Esses três elementos são indissolúveis no todo do enunciado, porém são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. A esse conjunto de enunciados relativamente estáveis e elaborados por uma determinada esfera de utilização da língua denominam-se gêneros discursivos. Essa concepção bakhtiniana influenciou muitos estudiosos, dentre eles o grupo de professores e pesquisadores da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, dando origem à proposta de seqüência didática, que visa instrumentalizar o aluno para que descubra os meios disponíveis na sociedade para atuar de modo mais efetivo nas interações verbais.Dessa forma, os interlocutores, envolvidos em uma prática de linguagem, podem reconhecer a que gênero pertence o evento comunicativo em que estão inseridos e escolher conscientemente a melhor forma de participar dele. Para tanto, Dolz e Schneuwly (2004), integrantes do referido grupo, propõem a elaboração de modelos didáticos de gêneros, que permitem constituir uma síntese destinada a orientar as intervenções docentes, a saber: produção inicial feita pelos alunos para observação de suas capacidades de linguagem; delimitação da variação escolar do gênero a ser trabalhada de acordo com as capacidades e necessidades dos alunos; destaque das características relevantes do gênero; pesquisa ou elaboração de exemplos de referência; análise do inventário de exemplos; redefinição do gênero nas dimensões que podem ser ensinadas. Assim, a noção de seqüência didática parte do princípio de que as atividades propostas precisam trabalhar com as dificuldades dentro de uma ordem gradual, para que os alunos possam conscientizar-se das características lingüísticas dos textos em estudo. Portanto, faz-se necessário adaptá-la às capacidades dos alunos, aos objetivos do trabalho e às necessidades didáticas. Nesse sentido, entende-se que a produção de textos é uma competência que todos os alunos podem atingir, e não um talento inato e específico de alguns indivíduos. POR QUE TRABALHAR COM O RESUMO ACADÊMICO? A solicitação de resumos justifica-se pela necessidade de iniciar os estudantes numa comunidade de prática discursiva específica. Por conseguinte, na grade curricular de alguns cursos de graduação e pós-graduação, como Letras e Filosofia, há Programa de 1916 Aprendizagem voltados à recepção e produção de textos. Neles, orienta-se o aluno a reconhecer, analisar e produzir gêneros que circulam no meio acadêmico. O princípio que norteia a atividade de escrita e revisão de textos construídos nesses programas de aprendizagem é a perspectiva interacionista. Com efeito, o escrevente é motivado a refletir sobre o contexto de leitura e produção dos textos , assim como compreender as características temáticas, composicionais e estilísticas de alguns gêneros, a fim de adequar o texto produzido ao contexto interlocutivo. O encontro entre autor e leitor se efetiva, em princípio, via texto. Por conta disso, solicita-se ao escrevente que se coloque como autor-leitor, efetuando possíveis alterações em seus textos antes de entregá-los ao professor, que, diante do material produzido, assume o trabalho de parceiro-leitor, atividade por vezes desempenhada também por um colega de classe. Dentre os textos solicitados aos estudantes, o resumo constitui-se em uma das práticas mais recorrentes. Toma-se esse gênero não só para avaliar a competência dos estudantes na compreensão e síntese de conceitos relevantes inscritos em um texto-fonte, como também motivá-los à produção de um gênero que circula na comunidade científica. Na sociedade, recorre-se ao resumo para apresentar trabalhos em congressos, artigos, monografias, dissertações e teses. Além disso, a sumarização é uma atividade inscrita na elaboração de textos científicos. Ao proceder a elaboração de resumo, o produtor do texto precisa, entre outras habilidades, identificar, selecionar e compreender informações presentes no texto original, além de sintetizar e explicitar as relações entre as informações relevantes. Será esse gênero, portanto, um dos objetos de reflexão deste trabalho. Ao ler vários resumos produzidos por estudantes e orientar a reelaboração dessas produções, perceberam-se algumas dificuldades . Eles, muitas vezes, se limitam à cópia de fragmentos textuais, à inversão de palavras retiradas do texto-fonte ou mesmo à inversão de enunciados selecionados do texto de origem. A investigação de marcas de atividades epilingüísticas utilizadas pelos escreventes na elaboração do resumo resultou em três procedimentos: investigar as marcas composicionais que pareciam ser “a pedra no sapato dos escreventes” na produção do gênero, caracterizar o gênero e rever a metodologia utilizada no encaminhamento dessa produção. Neste artigo limita-se ao terceiro item, descrever uma seqüência didática cujo objetivo é tornar possível a apropriação das dimensões constitutivas do gênero resumo acadêmico. RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA COM O RESUMO ACADÊMICO Resumir é produzir um novo texto, por conseguinte, demanda uma elaboração própria. Nessa atividade, é preciso ser fiel aos conteúdos do texto original, mas também lançar mão de procedimentos que caracterizem a autoria. Embora essa noção seja requisitada na produção do resumo, ela é por vezes intuitiva. É preciso, pois, tornar mais clara a noção de autoria na elaboração do resumo e inserir procedimentos metodológicos que atentem para essa questão. A autoria inscreve-se no trabalho de composição parafrástica. Essa atividade passa necessariamente pela interpretação e reformulação do texto de origem. O escrevente deve 1917 agenciar as proposições relevantes do outro, dando-lhe uma voz, mas também se manter distante da forma de enunciar do outro. Compreender esse processo de agenciamento da voz do outro parece ser um problema relevante a ser analisado com o acadêmico. Entretanto, não é objeto deste artigo analisar as marcas de autoria; por hora, pretende-se estabelecer alguns procedimentos introdutórios à caracterização de marcas composicionais do gênero. Para produzir o resumo do artigo científico, o escrevente deve adquirir determinados conhecimentos que serão desenvolvidos ao longo de alguns módulos. O objetivo do primeiro módulo é motivar o acadêmico a elaborar um planejamento do texto a ser produzido, isto é, um pré-texto. Para tanto, prepara-se, primeiramente o aluno para que reconheça as características do texto-fonte e antecipe, por meio de hipóteses, o tema do texto e sua função discursiva. O escrevente deve, então, perceber alguns índices e descrevêlos: Quadro 1 a) b) c) d) e) autor do artigo, a sua formação profissional; o gênero da obra e área ou domínio a que se filia; a temática, o objetivo do artigo e os possíveis interlocutores; o período em que o artigo foi escrito; onde o texto foi publicado. Para reconhecer os elementos presentes no quadro 1, deve-se atentar para o título do artigo, que pode indicar a temática. Na introdução, na conclusão e até mesmo no abstract do artigo, pode-se detectar não só o tema, como também o objetivo do texto. Esses elementos normalmente se inserem nessas partes do texto, mas também podem estar ao longo dele. Se o texto estiver inserido em um livro, essas informações devem ser selecionadas da apresentação, da contra-capa ou das orelhas do livro. Para elaborar o pré-texto, é preciso selecionar informações básicas inscritas em cada item do artigo, isto é, do texto-fonte. Alguns artigos apresentam a seguinte estrutura: i Quadro 2 a) no início do artigo aparece o título, o nome do autor, seguido do resumo e do abstract; b) na introdução, apresentam-se o objetivo, a justificativa, o problema, a hipótese e, por vezes, a síntese de tópicos apresentados ao longo do texto; c) na metodologia, descreve-se o contexto de coleta do corpus; d) na fundamentação teórica, apresentam-se os pressupostos desenvolvidos por alguns autores; e) na análise de dados, examinam-se os dados, aplicando os pressupostos teóricos e elaboram-se sínteses parciais. na conclusão, retomam-se o objetivo e a hipótese do artigo, a fim de avaliar as metas estabelecidas, apresentar as contribuições do trabalho e outros temas que poderão ser objeto de uma outra pesquisa. 1918 Antes de elaborar o pré-texto, é preciso localizar no texto-fonte as informações descritas no quadro 2, selecioná-las, compreendê-las e sintetizá-las. Para tanto, deve-se perceber a hierarquia entre as informações básicas e as acessórias, sendo que as últimas devem ser apagadas. Ao elaborar o planejamento do texto, recorre-se às palavras ou idéiaschave e realizam-se as substituições lexicais necessárias. Aconselha-se que os termos específicos sejam substituídos por gerais, e nesse momento, o dicionário presta uma grande ajuda. A produção do pré-texto pode ser feita coletiva ou individualmente. Mas, os conceitos destacados no planejamento textual precisam ser compreendidos, pois a paráfrase, elemento nuclear da composição do resumo, é uma atividade de reformulação; estabelece-se entre o enunciado fonte e o enunciado reformulado uma certa equivalência semântica, decorrente de deslocamentos de sentidos. O escrevente deve atentar para o fato de que, embora a sumarização demande uma certa fidelidade ao texto original, ela exige do produtor um trabalho de interpretação e identificação do significado. Em um segundo módulo, os escreventes são motivados a produzir resumos. Para tanto, é importante que leiam, primeiramente, alguns resumos de artigos científicos e percebam as características temáticas, composicionais e estilísticas do gênero. Normalmente, no resumo de artigos: Quadro 3 1º. mencionam-se o nome do autor do texto lido, o título, o local de publicação e a data; 2º. faz–se referência à temática e aos objetivos do artigo; 3º. descrevem-se as informações relevantes de forma objetiva, buscando-se a correlação entre elas; 4º. respeita-se a ordem em que as informações aparecem no texto-fonte; 5º. utiliza-se a 3º pessoa ou a forma impessoal (O autor considera; considera-se); 6º. não se apresenta juízo valorativo ou crítico; 7º. não se recortam frases para serem coladas no resumo do texto de origem; 8º. dispensa-se, a princípio, a consulta ao texto original, pois o leitor do resumo deve ter uma idéia geral do artigo, portanto o resumo deve ser compreensível por si mesmo. Os escreventes devem reconhecer em alguns resumos as características do gênero, analisando as marcas composicionais e estilísticas, relacionando-as com a função interlocutiva de cada resumo. É preciso que observem, por exemplo, as diversas formas de construção de menção ao autor e à obra, analisando a presença de alguns verbos, tais como: aborda, trata, enfatiza, indica, inicia, conclui e outros. Após a elaboração da primeira versão do texto ou mesmo durante a produção, recomenda-se que releiam o texto produzido e façam uma auto-avaliação, observando-se os itens descritos anteriormente e o pré-texto, organizado na primeira etapa. O professor pode 1919 também, durante a elaboração da primeira versão do resumo, alertar os escreventes para alguns problemas, motivando-os a assumirem a posição de autores-leitores de seus textos durante o processo de escrita. O terceiro módulo tem por objetivo realizar a análise lingüística dos textos produzidos e a reelaboração textual. Após a correção dos textos realizada pelo professor, apresenta-se aos alunos um roteiro para que, em duplas, realizem a análise lingüística e a reelaboração de um resumo escolhido pela dupla. Com isso, os escreventes são levados a assumir o papel de revisores do texto escolhido e a perceber que escrever é um trabalho de reflexão sobre a linguagem. Como sugestão, pode-se apresentar aos alunos uma ficha para orientar a autoavaliação do texto. Destacam-se nela os critérios básicos para a produção do texto, inseridos nos quadros 1 e 2 e apresentam-se também alguns problemas recorrentes nos textos. Essas questões são exemplificadas a seguir. a) Compreendo os conceitos básicos inseridos no texto-fonte? b) Percebo se o meu texto está adequado ao gênero e à situação de produção? c) Substituo expressões ou construções, tornando o texto mais claro, objetivo e bem estruturado? d) Troco os termos ou expressões presentes no texto fonte por outros elementos lexicais? e) Copio fragmentos do texto-fonte? f) Realizo o apagamento de informações acessórias? g) Incluo elementos no texto deixando-o mais adequado? h) Uso a norma padrão? Para exemplificar o item “c”, recorre-se a trechos de textos produzidos por alunos que cursavam no primeiro semestre de 2005 o programa Recepção e Produção de Texto II. Embora cada trecho apresente mais de um problema, só um deles será destacado. a) A menção ao autor e à obra No capítulo ”Texto e textualidade” do livro “Redação e textualidade da autora Maria da Graça Costa Val, apresenta o que é um texto, textualidade e fatores. Texto de C. G. É comum os alunos predicarem a partir do advérbio “no capítulo...apresenta”. É importante atentar para o tema e o rema,ii ou seja, observar que a predicação relaciona-se com o tema, o sujeito; portanto, faz-se necessário substituir o termo destacado no enunciado por “O capítulo ...apresenta”. 1920 Ao fazer uma referência detalhada ao autor da obra, o escrevente torna, por vezes, o período extenso, então, a percepção do tema escapa aos olhos do produtor do texto, que acaba por não fazer a predicação, o que caracteriza um problema de coesão. Observe que no texto a seguir não se predica a partir do tema “Os autores”, não há um verbo que explicite o que se quer falar sobre esses autores, e o período fica incompleto. Os autores, Ingedore Villaça Koch, docente do Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL, da Unicamp; e Luiz Carlos Travaglia, professor titular de Lingüística e Língua portuguesa da Universidade Federal de Uberlândia. Texto de M. B. Para exemplificar o item “e” do último quadro, recorre-se ao texto de F. T. Y., analisado em seguida. a) O recorte de fragmentos retirados do texto-fonte Ao ler o trecho do texto de F. T. Y., tem-se a impressão de que é um bom texto, mas consultando-se o texto original, observa-se que alguns trechos do texto-fonte foram justapostos. Realizou-se um trabalho de seleção de informações básicas, mas não se elaborou a reformulação textual, a paráfrase. Os elementos destacados no trecho a seguir foram recortados do texto-fonte. No capítulo 1 do livro “Redação e textualidade” de Maria da Graça C. Val, - “texto e textualidade -” define-se texto ou discurso como ocorrência lingüística falada ou escrita, de qualquer extensão dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal, podendo ser compreendido quando avaliado sob três aspectos: o pragmático, que tem a ver com seu funcionamento enquanto atuação informacional e comunicativa; o semântico, conceitual, de que depende sua coerência e o formal, que diz respeito a sua coesão . Texto produzido por F. T. Y. No primeiro capítulo do livro Redação e textualidade de VAL (1991), há o seguinte trecho: “Pode-se definir texto ou discurso como ocorrência lingüística falada ou escrita, de qualquer extensão, dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal” (VAL, 1991, p.3). Há um outro trecho selecionado pelo aluno de uma outra página do livro de Val: De acordo com o conceito adotado, um texto será bem compreendido quando avaliado sob três aspectos: a) o pragmático, que tem a ver com seu funcionamento enquanto atuação informacional e comunicativa; b) o semântico-conceitual, de que depende sua coerência; c) o formal, que diz respeito à sua coesão (VAL, 1993, p.4-5). Comparando-se o trecho do resumo produzido pelo acadêmico e o texto de Val, observam-se o recorte e a colagem realizados. É possível que o escrevente utilize esse 1921 recurso por não compreender o conteúdo inscrito no enunciado. Por conseguinte, não consegue fazer a atualização do sentido, necessária à reformulação textual. Neste trabalho, apresentou-se uma proposta preliminar de seqüência didática para se trabalhar com o gênero resumo. Caberia ainda, uma outra seqüência que pudesse objetivar a explicitação de marcas de autoria no resumo acadêmico. Essas propostas devem inserir-se em um projeto cuja meta seja desenvolver as competências necessárias à elaboração dos gêneros que circulem no meio acadêmico, tais como a resenha, o artigo científico, o ensaio e outros. RELATO DE EXPERIÊNCIA DIDÁTICA COM A RESENHA CRÍTICA O gênero resenha se constitui como um objeto de estudo pertinente, visto que seus usos sociais, tanto em contexto acadêmico como não acadêmico, são os mais diversos; dentre seus subgêneros, destacam-se a resenha descritiva e a crítica. O objeto de estudo deste relato será a última, pois no campo didático, especificamente, caracteriza-se como essencial não só para o desenvolvimento da compreensão da leitura, mas também para a formação do leitor crítico, visto apresentar em sua estrutura composicional, as bases descritiva (dados gerais do produto cultural a ser resenhado), narrativa (apresentação concisa dos conteúdos desse produto cultural) e argumentativa (apreciação crítica do referido produto). Portanto, no ensino de língua para fins acadêmicos, há que se considerar uma ordem gradativa em que se faz necessário o estudo do resumo antes da resenha, pois ele representa parte constitutiva do plano global dela, sendo também, condição fundamental para a mobilização de conteúdos pertinentes à produção de outros gêneros, como a reportagem, por exemplo. Desse modo, considere-se neste relato, a seqüência didática exposta anteriormente para o ensino de resumo como pré-requisito para esta nova seqüência. Assim, também no gênero resenha crítica, tem-se uma seqüência didática que parte do estudo do texto-fonte, por meio do planejamento do texto ou da construção de um prétexto – o esquema -, para então fazer a elaboração da resenha. Para Andrade (1995:60), resenha é um tipo de trabalho que "exige conhecimento do assunto, para estabelecer comparação com outras obras da mesma área e maturidade intelectual para fazer avaliação e emitir juízo de valor". Portanto, na sociedade, um resenhista é um especialista na área de seu objeto de análise, o que não ocorre com o acadêmico, exigindo não só dele um esforço para se iniciar nessa prática discursiva, mas também do professor o desenvolvimento de uma seqüência didática capaz de permitir o acesso a esse gênero. A mesma autora (1995:61) define resenha como "tipo de resumo crítico, contudo mais abrangente: permite comentários e opiniões, inclui julgamentos de valor, comparações com outras obras da mesma área e avaliação da relevância da obra com relação às outras do mesmo gênero". Já Motta-Roth (2001) sintetiza somente dois tipos de informação necessários em resenhas: a descrição do produto cultural (p. ex., credenciais do autor, utilidade para o leitor) e a avaliação dos pontos fortes e fracos do produto. Essa diversidade ocorre conforme as intenções do resenhista e a área de conhecimento. Por outro lado, é consenso entre lingüistas do texto e professores de redação acadêmica que informação e avaliação devem ser combinadas em porções iguais, o que parece não representar a realidade em que 1922 ocorrem as práticas discursivas científicas. Em cada esfera de atividade, o resenhista diverge quanto aos critérios de avaliação do produto resenhado e, portanto, estende-se em informações de caráter descritivo e de conteúdo, como no caso de resenhas de livros de química, por exemplo; por outro lado, um resenhista da área de lingüística tende a ampliar aspectos da avaliação. Embora as práticas sociais representem referências relevantes para as práticas acadêmicas, sendo fundamental sua recriação para garantir uma aprendizagem significativa, o foco deste relato está na seqüência didática proposta especificamente para o ensino de resenhas acadêmicas. E, nesse caso, adota-se a estrutura composicional mais completa em que se identificam três partes da resenha crítica, conforme citado no início deste relato. Propõe-se a seguir um quadro esquemático da seqüência didática para o ensino do gênero, optando-se pelo desmembramento da apreciação crítica, visto ser essa a principal característica para o exercício do senso crítico do escrevente.Evitando repetir-se quanto aos pressupostos teóricos, relacionam-se agora somente os procedimentos adotados com alunos do segundo período de Filosofia de 2005, no Programa de Aprendizagem Introdução à Leitura e Produção de Textos Filosóficos. Sugestão de seqüência 1. Apresentação da proposta de produção de resenha crítica sob a forma de projeto didático. 2. Exibição de filme (um curta ou documentário); sugestão: “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado. 3. Análise interpretativa do filme em duplas e apresentação oral. 4. Leitura de resenha jornalístico sobre o filme. de domínio 5. Leitura de resenhas científicas de diferentes profissionais sobre o mesmo filme. 6. Produção de resenha acadêmica sobre o filme, articulando-a a sua área de conhecimento. Procedimentos A apresentação garante a compreensão de todo o processo por parte do aluno, o que resulta em maior envolvimento dele nas atividades. A opção por um filme, como primeira atividade de produção de resenha crítica, parece ser mais adequada que a solicitação de leitura de livro, por exemplo, pois o livro demanda maior complexidade, além de que a duração do projeto didático deverá prever o período de leitura. A análise interpretativa, nesta fase, será livre, e os acadêmicos deverão levantar aspectos básicos percebidos no filme. Reconhecimento da estrutura composicional do gênero (identificação das partes que compõem a resenha) Reconhecimento das áreas de atividade profissional de cada autor das resenhas científicas; identificação das formas de apreciação crítica presentes nos textos: análise interpretativa, análise comparativa e análise reflexiva. Planejamento de roteiro para a produção da resenha: -dados gerais (nome do filme, produtor, diretor, credenciais do diretor, duração, 1923 7. Reelaboração da resenha etc.); - resumo do conteúdo (gênero, domínio, assunto, objetivo fixado pelo autor e idéias principais); - análise interpretativa (examina aspectos complexos do conteúdo, desvelando-os para o leitor a partir de seu conhecimento e de suas experiências profissionais); - análise comparativa (avalia o produto à luz das mais atuais concepções de sua área, compara com outros produtos semelhantes); - análise reflexiva (propõe questionamentos, extrapolando o produto e promovendo a discussão dialética) Nesta fase, o docente fará uma análise lingüística dos textos com os acadêmicos, buscando levá-los a refletir sobre suas produções com base nos fatos lingüísticos e enunciativos , por meio de perguntas como: - Há equilíbrio entre os dados informativos (dados gerais e resumo) e a apreciação crítica? -Identificam-se aspectos positivos e negativos do produto em questão? -Há algum trecho com apreciação subjetiva, isto é, sem argumentos que a sustentem? -É possível reconhecer sua área de conhecimento nessa apreciação? - Usou a norma padrão? Para exemplificação, apresenta-se a seguir uma resenha escrita por A.F. em primeira versão. Dada a limitação deste trabalho, não serão discutidos aqui aspectos lingüísticos do texto. O documentário com o título Ilha das Flores, de Jorge Furtado, foi produzido no ano de 1989, em Belém Novo, município de Porto Alegre, no extremo sul do Brasil. Ganhou o prêmio Crítico e Público no Festival de Clermont-Ferrand (1991), Melhor Curta no Festival de Gramado (1989), Melhor Edição no Festival de Gramado (1989), Melhor Roteiro no Festival de Gramado (1989), Prêmio da Crítica no Festival de Gramado (1989), Prêmio do Público na Competição "No Budget", no Festival de Hamburgo (1991), Urso de Prata no Festival de Berlim (1990). Neste documentário, aparecem sobre fundo preto, em letras brancas, sucessivamente, as seguintes frases: “Este não é um filme de ficção” e “Deus não existe”. A primeira frase nos alerta de que, embora não seja nossa vida que está retratada ali, é um fato verídico que se apresenta diante dos nossos olhos. E na frase “Deus não existe” pode-se fazer uma analogia com Nietzsche quando ele afirmou sua crença de que Deus jamais existiu, (Além do bem e do mal, p. 23), baseando na idéia de que se Deus existisse, não haveria tanto mal no mundo, essa asserção nos leva a refletir o porque de tantas injustiças sociais, tanta ganância em um mundo onde se tem tanta riqueza, tantos recursos, contudo é triste pensar que todos esses bens sejam tão mal distribuídos: poucos com muito e muitos com pouco. 1924 No documentário é apresentada a música “O Guarani”, utilizada também no mesmo programa “A voz do Brasil”, transmitido em rede nacional e que mantém o país “informado” sobre todos os acontecimentos do dia, sobretudo aqueles do meio político. A narração é muito bem interpretada pelo ator Paulo José que ora demonstra emoção e, outras vezes é irônico ao falar de cada fato mostrado no filme, inclusive enfatizando com inúmeras repetições. O filme relata um ato verídico de hipocrisia e mediocridade capitalista. É terrível, desesperadora, a grande miséria moral produzida pelos seres humanos. A vida passa a não valer nada e a insensibilidade se processa como uma característica inerente ao nosso caráter, algo que enoja. O filme fez uma excelente abordagem da falta de respeito e constitui uma eficaz e importante crítica social. Percebe-se que o escrevente conhece a estrutura composicional da resenha, ao iniciar pela descrição do filme, apresentando dados como: gênero, direção, ano de produção, narração, prêmios recebidos etc. Isso revela a influência da leitura realizada no item 5 do quadro anterior. Também fica evidente que são poucas as referências aos aspectos do conteúdo do filme, isto é, ao resumo do roteiro apresentado, o que demonstra que o escrevente opta pela apreciação crítica, aspecto mais valorizado no encaminhamento dado à seqüência didática para o ensino da resenha. Percebe-se ainda, que a partir do terceiro parágrafo, há uma articulação com sua área de formação, o que representa uma marca importante da apreciação crítica. E, no último parágrafo, o escrevente desenvolve uma análise reflexiva, buscando identificar outros assuntos paralelos à idéia central e avaliar a contribuição do produto para a sociedade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Seguramente, muitos outras propostas de seqüências didáticas poderiam ser apresentadas para o ensino de resumo acadêmico e resenha crítica, porém o que se pretende é que este trabalho, de algum modo, sirva como ponto de reflexão e construção de uma perspectiva de prática pedagógica, capaz de conduzir o acadêmico a perceber a riqueza que envolve o uso efetivo da língua e suas possibilidades. Seja qual for sua área de formação profissional, a língua será a grande ferramenta diária da qual ele não poderá abdicar durante toda sua vida. i Recorre-se aqui a um tipo de estrutura encontrada em alguns artigos, mas é possível, dependendo do objetivo do artigo, que essa estrutura modifique-se. Cabe ao professor realizar a leitura de outros artigos, atentando para as diferenças composicionais de cada um deles. ii Rema é a parte do enunciado que “diz algo”, informa sobre o tema. Em “João correu muito”, o tema é “João”, e “comeu muito” é o rema. 1925 REFERÊNCIAS ANDRADE, M. 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