MERCOSUL-CHILE: RE-PENSANDO A RELAÇÃO
Por
MÁRIO MARCONINI
Agosto 2001
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MERCOSUL-Chile: Repensando a Relação
RESUMO EXECUTIVO ................................................................................................................................. 3
PARTE I – MERCOSUL: RECOMPOR, REPENSANDO.......................................................................... 5
CONJUNTURA E COMPROMISSO ...................................................................................................................... 5
DEFINIÇÃO DO FUTURO .................................................................................................................................. 6
RECOMPOSIÇÃO E O NOVO EIXO .................................................................................................................... 7
OBJETIVOS: NOVOS E ANTIGOS ...................................................................................................................... 9
PARTE II – MERCOSUL-CHILE: NOVA MATRIZ, NOVO FUTURO ................................................ 11
CHILE: ESTAÇÃO PRIMEIRA ......................................................................................................................... 11
Fortalecer ou Enfraquecer o Bloco ........................................................................................................ 11
ACE-35: Tentativa Frustrada? ............................................................................................................... 12
Tarifas e Benefício Econômico ............................................................................................................... 13
TESTANDO PREMISSAS ................................................................................................................................. 16
Integração Eclética................................................................................................................................. 16
O Político ............................................................................................................................................................ 16
O Cultural............................................................................................................................................................ 18
O Econômico....................................................................................................................................................... 19
Inserção Diferenciada ............................................................................................................................ 21
Coesão: Possível ou Não? ...................................................................................................................... 23
CONCLUSÃO ................................................................................................................................................. 26
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RESUMO EXECUTIVO
Seria um erro supor que os problemas atuais do MERCOSUL advêm apenas de decisões recentes.
As políticas claramente unilaterais, disputas abertamente bilaterais e visões conflituosas sobre a
questão da inserção internacional das economias do bloco constituem o resultado de um processo
que não dá conta de suprir demandas conceituais e institucionais já há algum tempo.
A integração que se presencia no mundo atual é global e não apenas regional. Ou seja, com ou sem
MERCOSUL, com ou sem ALCA, com ou sem União Européia, blocos regionais que não
conseguirem evoluir para além do tarifário e não-tarifário dificilmente terão nas próximas décadas
um lugar no horizonte estratégico como “sistemas regionais”. cada vez mais se afigura evidente
que se a intenção de um bloco regional é sobreviver como “sistema regional”, com poder de
decisão própria para dentro e para fora, seja na área econômica como até mesmo na área política
e social, faz-se imperativo que uma definição presente do futuro do empreendimento seja dada o
quanto antes possível.
Apesar de uma relativa ausência institucional, o “MERCOSUL político” tem sido o que mais dá
provas de compromisso e consistência. Em todos os momentos mais difíceis do bloco, a vontade
política tem feito com que as coisas se resolvam da melhor forma possível, sempre injetando a
necessária determinação para manter o MERCOSUL como um bloco coeso nos mais altos níveis
decisórios, evitando assim a desagregação ou um recurso mais forte ao unilateralismo por parte de
seus Estados Partes.
Na base de tudo permanece a escolha para os Estados Partes entre agir juntos ou em separado;
entre encontrar soluções comuns ou individuais; entre buscar soluções dentro em lugar de fora do
bloco. Qualquer bloco de integração representa nesse contexto um desafio para seus integrantes,
uma permanente oscilação entre forças centrípetas e centrífugas que levam seus Estados Partes a
escolher a melhor forma de agir. O MERCOSUL passa por um momento especialmente complexo
nesse sentido, que exige uma re-avaliação de rumos e metas. Essencialmente a noção de um
regionalismo aberto se sustenta, porém requer novas ênfases.
É preciso preservar as realizações dos primeiros dez anos de existência. É necessário adequar as
ambições do bloco de forma a refletir a verdadeira condição de seus países e as novas realidades
do mundo atual, tais como a tendência à regionalização entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento – como ilustra a própria agenda externa atual do MERCOSUL. É imperativo
agregar temas onde progressos são possíveis e desejáveis, tais como a integração física, energia, a
mobilidade de fatores de produção, a coordenação de política agrícola, a coordenação
macroeconômica, as políticas “não-econômicas”. O MERCOSUL necessita sinalizar com mais
precisão e determinação o que almeja conseguir e como pretende conseguí-lo.
O aprofundamento da relação MERCOSUL-Chile nitidamente seria o melhor possível caso
implicasse no fortalecimento do bloco como um todo. Com efeito, o ideal seria que o
aprofundamento pudesse ser tal que o bloco se tornasse apenas um MERCOSUL de cinco países
(ou seis, aplicando-se o mesmo critério à Bolívia), em lugar de permanecer um acordo de
associação “4+1”. A premissa mais difícil de ser testada é a de se saber se basta aprofundar
alguns compromissos para que a relação se fortaleça ou se no fundo o que se requer é uma reforma
dos fundamentos básicos dessa relação.
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A referência histórica nesse contexto é o fato de que a hesitação do MERCOSUL (sobretudo
brasileira) em acomodar posições chilenas no ACE-35 diz respeito essencialmente à percepção de
que aprofundar pontualmente em lugar de “sistemicamente” resultaria num enfraquecimento, e
não num fortalecimento, do bloco, ao diluir preceitos cruciais à existência e identidade do
MERCOSUL.
Aparte a questão tarifária, a verdade é que as demandas chilenas no geral tendem a coincidir com
elementos da própria agenda “interna” de aprofundamento do MERCOSUL: aprimorar
disciplinas, tornar a aplicação de regras mais previsível, ampliar o horizonte normativo através da
inclusão de novos temas, tornar o sistema de solução de controvérsias mais previsível e de maior
acesso a partes interessadas, etc.
A despeito da forte motivação e reais benefícios com a adesão do Chile ao MERCOSUL constatase ainda sérias dificuldades para viabilizar a plena integração. A maior restrição para a efetiva e
plena incorporação chilena ao bloco continua sendo portanto a diferença existente entre as
políticas de tarifas de importação do MERCOSUL e do governo de Santiago. A questão que se
coloca na conjuntura que se apresenta em meados do ano 2001 é até que ponto esse elemento
continuará de fato a representar uma dificuldade bilateral. Tudo depende da própria atitude a ser
tomada pelo MERCOSUL com relação ao que o bloco percebe como um dos pilares de sua
integração.
A premissa básica em que se insere o presente estudo é que a relação MERCOSUL-Chile é
importante demais para deixar de ser repensada de forma a viabilizar um processo de integração
consistente e duradouro. Desta premissa básica decorrem outras premissas cujo teste contribuirá
para balizar o tratamento do tema, a saber:
1. Um processo de integração entre o MERCOSUL e o Chile deve fundamentar-se em
realidades políticas, culturais (no sentido mais do que nada institucional) e
econômicas; a integração econômica segue sendo a força motriz do processo porém
não pode ou deve desvincular-se de outros aspectos que possam reforçar o
empreendimento, ao relativizar prioridades e estabelecer novas estruturas de direitos e
obrigações;
2. A percepção de inserção no mundo varia entre os países membros plenos do
MERCOSUL e o Chile. Com efeito, o debate sobre inserção permanece em aberto em
cada um dos cinco países, tornando o desafio da integração especialmente ambicioso,
sobretudo dadas as pendências econômicas e sociais de cada país;
3. Um processo de integração não pode ter lugar sem que haja um considerável nível de
coesão entre os países participantes. Coesão requer objetivos comuns e compromisso
por parte dos protagonistas do processo. Um bloco coeso é um bloco que privilegia
soluções comuns para seus problemas, um bloco que olha para dentro antes de se
posicionar para fora.
Existe uma janela de oportunidade que emana da crise atual por que passa o MERCOSUL, porém
se a intenção for de aproveitá-la é imperativo que se aja rápido: as demandas externas de
negociação com o MERCOSUL, em particular as referentes à ALCA e à União Européia, exigem
uma definição antes que seja tarde demais. Tanto para o Chile como para o MERCOSUL as
chances de extrair concessões em áreas de interesse nessas negociações dependem diretamente da
capacidade do bloco de se ajustar, se unir e se projetar para fora como uma entidade coesa e firme
em seus propósitos.
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PARTE I – MERCOSUL: RECOMPOR, REPENSANDO
Conjuntura e Compromisso
Ao vasto acervo de concretas realizações do MERCOSUL, deve-se agregar um igualmente
vasto acervo de boas, porém não satisfeitas, intenções, de iniciativas horizontais e pontuais,
porém com freqüência parcialmente cumpridas, de processos sofisticados porém às vezes
em demasia complexos e de projetos ambiciosos porém em grande medida retóricos e
irrealistas ou inoportunos. Permeando esse panorama de realizações e frustrações subsistem
importantes diferenças conceituais sobre as grandes linhas do processo, sobre o próprio
significado e implicação de sua possível evolução, sobre o mapa de políticas e instituições
adequadas para alimentar o presente e dar fôlego a um futuro comum.
Num primeiro momento as tendências centrífugas assustam, dando a impressão que o bloco
está à deriva, ameaçado de perder seu centro de gravidade e conseqüentemente seu poder
de aglutinação. Políticas claramente unilaterais, disputas abertamente bilaterais, visões
conflituosas sobre a questão da inserção internacional das economias do bloco realçam os
sintomas de um momento difícil. Existem, no entanto, razões e soluções que se associam ao
momento atual e que demonstram que os indícios atuais de falta de coesão podem ser
passageiros. As razões nos ajudam a compreender que o MERCOSUL não passa por um
período tão sui generis quanto normalmente se supõe: existem elementos “naturais” do
processo de integração que se desenlaçam, assim como novos desafios decorrentes de
novas circunstâncias. As soluções nos ajudam a vislumbrar um futuro para o MERCOSUL
que necessariamente implicará em meios e fins comuns ao mesmo tempo em que guardam
pouca relação de afinidade ou semelhança com os esquemas lineares dos cronogramas de
desgravação tarifária característicos do processo até o presente.
Se presentemente existe uma "crise" do MERCOSUL, ela não surgiu do nada, nem
tampouco de medidas recentes tomadas por um ou outro governo. No mínimo, ela é
coincidente com, e não causadora de, um momento novo na vida do bloco, momento este
caracterizado por uma clara exigência de re-definição de objetivos. A verdade é que depois
de uma fase de moeda sobre-valorizada no Brasil que foi responsável por aumentos
significativos no comércio intra-regional, o bloco encontra-se em face de desafios que se
estendem por todo o espectro de medidas de política comercial - a começar pela própria
Tarifa Externa Comum, e que dizem respeito à própria coesão do bloco - o que por sua vez
diz respeito ao nível individual de satisfação de cada parceiro comercial com os benefícios
derivados da integração.
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Definição do Futuro
A premissa básica à toda outra premissa é a de que o MERCOSUL encontra-se na hora
certa para definir seu próprio futuro e que a falta de definição pode ser nociva dadas as
urgências da agenda externa e do próprio processo de globalização.
A verdade é que o mundo evolui rapidamente para uma integração econômica global e não
apenas regional. Sem adentrar o debate sobre multilateralismo vs. regionalismo, o que se
constata é que o mundo naturalmente caminha para a liberalização comercial através da
eliminação tarifária e não-tarifária. Ou seja, com ou sem MERCOSUL, com ou sem ALCA,
com ou sem União Européia, o fato é que blocos regionais que não conseguirem evoluir
para além do tarifário e não-tarifário, dificilmente terão, como “sistemas regionais”1, lugar
no horizonte estratégico no espaço de uma ou duas décadas. É lógico que protecionismos
localizados, sobretudo em setores da velha economia, sobreviverão e se transformarão da
forma que os parceiros econômicos mais poderosos conseguirem transformá-los, impô-los
ou negociá-los com o resto do mundo. No entanto, cada vez mais se afigura evidente que se
a intenção de um bloco regional é sobreviver como “sistema regional”, com poder de
decisão própria para dentro e para fora, seja na área econômica como até mesmo na área
política e social, faz-se imperativo que uma definição presente do futuro do
empreendimento seja dada o quanto antes possível.
Onde estará o MERCOSUL daqui cinco anos? Dez anos? Quinze anos? Essas perguntas
não deveriam ensejar meros ensaios futurísticos e sim projetos concretos de como encarar
cenários em grande medida previsíveis. É lógico que o imprevisível deverá sempre ter seu
lugar reservado em qualquer esquema de ação que se projete para o futuro. No entanto, o
que deveria nos preocupar é justamente o previsível, aquilo que não só se espera aconteça
como já está acontecendo em outras partes do mundo e requer ações pró-ativas daqueles
que ainda não se prepararam.
A verdade é que o grande trunfo e triunfo do MERCOSUL é ter conseguido, no espaço de
uma década, transformar-se num símbolo de sucesso e progresso nos mais variados círculos
das sociedades da sub-região. Ou seja, o “símbolo MERCOSUL” vai além dos círculos
governamentais e alcança os povos. Apesar de uma gritante falta de representatividade, de
um “déficit democrático” bastante óbvio, o MERCOSUL manifestamente conta com apoio
nas sociedades de seus Estados Partes, não por que as sociedades entenderam a essência do
bloco; o nível de confusão sobre o que envolve o MERCOSUL é evidente, a começar pela
própria imprensa de cada país. O apoio que se constata nessa mesma imprensa e em outras
demonstrações de setores da sociedade vem da percepção pela sociedade da cooperação,
coordenação, fraternidade, a paz e a união dos povos, e de outros elementos que compõem
o complexo mosaico do “símbolo MERCOSUL”.
O MERCOSUL não pode perder esse “atout”. Cultivá-lo no entanto requer visão e
definição. O golpe fatal para o MERCOSUL seria que o símbolo de sucesso fosse
substituído pelo símbolo de indecisão e mesmice. A sociedade então se encarregaria de
destruí-lo naturalmente ao não prestar o apoio que mais do que nunca se faz necessário. A
1
A expressão é de Hélio Jaguaribe (1999).
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chave para manter o bloco vivo e vivaz é ter clareza sobre o futuro. Nada alimenta mais um
símbolo como o que se tornou o MERCOSUL na visão de seus povos do que uma visão
clara de seu futuro. Nesse contexto, definir o que se quer e depois perseguí-lo é a melhor
forma de restaurar a confiança e a credibilidade perdida.
Recomposição e o Novo Eixo
Atitudes e medidas recentes não constituem a principal causa das dificuldades do bloco.
Constituem no entanto a comprovação de que o empreendimento já andava mal e que na
falta de instrumentos e soluções comuns o apelo unilateral se tornava não apenas atrativo
como também virtualmente inevitável. O questionamento da tarifa externa comum ou as
próprias tendências centrífugas demonstradas pelos países membros em grande medida
revelavam carências internas ao bloco, uma falta de compromisso e orientação que tinham
por efeito a busca de estratégias individuais. Essa busca, no contexto de insuficiência
institucional e estratégica comum, seria agravada pelas demandas advindas de uma
conjuntura internacional cada vez mais complexa e imediatista. O vínculo que se faz
ocasionalmente entre a situação argentina e a atitude brasileira no período pósdesvalorização do Real em 1999, apesar de exagerar na relação causa/efeito, serve para
manter viva a crítica à inadequação do aparato disciplinar do MERCOSUL na medida em
que põe em questão a capacidade do bloco de introduzir flexibilidade sem alterar rumos ou
adulterar objetivos.
A recente tomada de posição pelo governo argentino expôs a urgência da necessidade de
que um novo equilíbrio seja encontrado. Ao colocar em cheque várias premissas
econômicas do processo de integração, o que se logrou foi apontar para o fato de que o
futuro do bloco passa não apenas por uma restruturação de prioridades como também por
uma reavaliação da conveniência de manter o volet econômico, quase que de forma isolada,
no centro do universo integracionista. A nova realidade do bloco evoca a necessidade de repensar o peso e a medida de vários elementos, dentre eles o político-social e o institucionalcultural.
O lado econômico da equação é claramente o de mais fácil aferição. São os fluxos
comerciais e de investimento que constituem o mais claro e transparente atestado do
sucesso da aproximação dos povos, podendo ser detectados através de dados concretos das
transações envolvidas. Temas de teor político, cultural, social e/ou institucional “passam
desapercebidos” com maior facilidade, já que seus parâmetros não são tão facilmente
mensurados. Além disso, quanto maior é a aproximação real dos povos em termos de seus
regimes político/cultural/sócio/institucional, menor isto chama a atenção: as verdadeiras
saliências, infelizmente, tendem a surgir com muito mais clareza no contexto de problemas
pontuais; a consistência positiva nesses assuntos não chama muito a atenção, não “dá
manchete”.
Para o MERCOSUL, a opção de gradativamente promover o deslocamento do eixo de seu
vigor integracionista na direção de compromissos de natureza política, cultural ou social, de
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forma a melhor relativizar a importância econômica de suas realizações passadas e
ambições futuras, pode constituir elemento central na reformulação de suas prioridades
estratégicas. É algo não desprezível o fato de que os Estados Partes do MERCOSUL
compartem hoje em dia uma mesma visão sobre importantes elementos de suas próprias
agendas políticas, tais como o valor da democracia, do pluralismo, do valor da cultura, da
necessidade de melhorar condições sociais de suas populações, assim como sobre temas de
grande importância da agenda internacional (segurança, narcotráfico, países emergentes,
etc.). O grande desafio seria no entanto o de lograr transformar essas coincidências de
posicionamento em instrumentos comuns que possam implicar direitos e obrigações, numa
rede de interesses mútuos cuja projeção para o resto do mundo seja comum e positiva.
Essencialmente o que se coloca é como evoluir para além da diplomacia presidencial
atualmente reinante no bloco para algo menos altivo porém mais institucional, previsível e
de fácil acesso para as partes interessadas. Maior representatividade, por exemplo, é um
objetivo que reflete os interesses individuais dos Estados Partes na medida em que um
“déficit democrático” não só não ajuda o processo de integração como pode prejudicá-lo.
Um compromisso sobre um tema como esse (que poderia envolver desde um maior
envolvimento da Comissão Parlamentar do MERCOSUL até a sua substituição por algo
mais “permanente” e representativo, por exemplo) constituiria uma forma de firmar o
compromisso comum de todos os Estados Partes a favor da democracia – a começar, nesse
caso, pelo próprio processo interno do MERCOSUL. Esse é um exemplo e existem outros.
Porém, vale ressaltar que compromissos de natureza puramente política se nutrem da
própria dinâmica política e sempre dependerão dos humores dos Estados envolvidos e da
conjuntura em que se encontram. Esse tipo de lógica explica a dificuldade da solução de
controvérsias no contexto das Nações Unidas comparada à relativa banalidade que se
tornou o “entrar e sair” do sistema de solução de controvérsias da OMC. Disciplinas sobre
temas políticos raramente conseguem passar de declarações políticas e alcançar algum rigor
jurídico efetivo perante Estados que, por opção pontual ou estratégica, decidem não
respeitá-las.
Vale ressaltar que apesar de uma relativa ausência institucional, o “MERCOSUL político”
tem sido o que mais dá provas de compromisso e consistência. Em todos os momentos mais
difíceis do bloco, a vontade política tem feito com que as coisas se resolvam da melhor
forma possível, sempre injetando a necessária determinação para manter o MERCOSUL
como um bloco coeso nos mais altos níveis decisórios, evitando assim a desagregação ou
um recurso mais forte ao unilateralismo por parte de seus Estados Partes. De uma certa
forma, não faltam disciplinas para que o bloco avance com uma orientação política comum.
Isto não deixa de ser um paradoxo: que no tema onde existem menos disciplinas formais, os
avanços sejam os mais consistentes.
Sejam quais forem os elementos que integrarão a nova configuração de direitos e
obrigações entre os Estados Partes do MERCOSUL, a verdade é que existem certos
objetivos de natureza “horizontal” que, se cumpridos, poderiam ajudar o MERCOSUL a
sair do impasse estrutural que vem se criando desde a entrada em vigor do Protocolo de
Ouro Preto em 1995.
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Objetivos: Novos e Antigos
O próprio Tratado de Assunção fez referência à importância da globalização como
fenômeno, “em especial a consolidação de grandes espaços econômicos, e a importância
de lograr uma adequada inserção internacional...”, assim como apontou ao processo de
integração do MERCOSUL como “uma resposta adequada...” a esse fenômeno. A
preocupação com a inserção internacional pressupõe uma capacidade do bloco de se
adaptar aos acontecimentos. De fato, o Tratado em seu Preâmbulo também se refere aos
princípios de “gradualidade, flexibilidade e equilíbrio” como fontes de orientação para o
trabalho a ser desenvolvido. Esses princípios talvez sejam mais relevantes no presente do
que em qualquer outro momento da curta história do MERCOSUL.
Na base de tudo permanece a escolha para os Estados Partes entre agir juntos ou em
separado; entre encontrar soluções comuns ou individuais; entre buscar soluções dentro em
lugar de fora do bloco. Qualquer bloco de integração representa nesse contexto um desafio
para seus integrantes, uma permanente oscilação entre forças centrípetas e centrífugas que
levam seus Estados Partes a escolher a melhor forma de agir. O MERCOSUL passa por um
momento especialmente complexo nesse sentido, que exige uma re-avaliação de rumos e
metas. Essencialmente a noção de um regionalismo aberto se sustenta, porém requer novas
ênfases. A necessidade de re-orientação, tanto no contexto presente quanto em termos de
ações futuras, poderia se resumir ao cumprimento de quatro objetivos básicos condizentes
com os princípios fundacionais do bloco:
Preservação – é preciso preservar as realizações dos primeiros dez anos de existência.
Muito comércio foi criado e com ele muitas relações entre seus países membros.
Persistir para lograr avançar no processo de integração apesar de seus altos e baixos é
imperativo e o primeiro passo é preservar o que já se fez evitando dissoluções de
compromissos;
Adequação – o MERCOSUL tem se caracterizado por metas às vezes demasiadamente
ambiciosas. O próprio Tratado de Assunção se referia à conformação de um mercado
comum em quatro anos, o que está longe de ser cumprido dez anos depois de sua entrada
em vigor. É necessário adequar as ambições do bloco de forma a refletir a verdadeira
condição de seus países e as novas realidades do mundo atual, tais como a tendência à
regionalização entre países desenvolvidos e em desenvolvimento – como ilustra a
própria agenda externa atual do MERCOSUL;
Agregação – o MERCOSUL deveria evitar de perder muito tempo com temas de difícil
solução no curto e médio prazo (como a própria questão da TEC) e buscar progressos
em áreas onde progressos são possíveis e desejáveis, tais como a integração física,
energia, a mobilidade de fatores de produção, a coordenação de política agrícola, a
coordenação macroeconômica, as políticas “não-econômicas” (saúde, cultura, educação,
etc.);
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Sinalização – o MERCOSUL necessita sinalizar com mais precisão e determinação o
que almeja conseguir e como pretende conseguí-lo. A flexibilidade que poderá ser
exigida em momentos de sua evolução não deveria impedir que haja clareza sobre seus
objetivos a médio e longo prazo. O momento atual é bastante fértil para a consideração
do futuro do bloco.
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PARTE II – MERCOSUL-CHILE: NOVA MATRIZ, NOVO FUTURO
Chile: Estação Primeira
Fortalecer ou Enfraquecer o Bloco
O aprofundamento da relação MERCOSUL-Chile nitidamente seria o melhor possível caso
implicasse no fortalecimento do bloco como um todo. Com efeito, o ideal seria que o
aprofundamento pudesse ser tal que o bloco se tornasse apenas um MERCOSUL de cinco
países (ou seis, aplicando-se o mesmo critério à Bolívia), em lugar de permanecer um
acordo de associação “4+1”. A premissa mais difícil de ser testada é a de se saber se basta
aprofundar alguns compromissos para que a relação se fortaleça ou se no fundo o que se
requer é uma reforma dos fundamentos básicos dessa relação. A referência histórica nesse
contexto é o fato de que a hesitação do MERCOSUL (sobretudo brasileira) em acomodar
posições chilenas no ACE-35 diz respeito essencialmente à percepção de que aprofundar
pontualmente em lugar de “sistemicamente” resultaria num enfraquecimento, e não num
fortalecimento, do bloco, ao diluir preceitos cruciais à existência e identidade do
MERCOSUL. O exemplo histórico aqui relevante é a percepção de que uma
“incorporação” do Chile à união aduaneira constituía fator divisor entre os Estados Partes
ao forçar a discussão de rebaixas tarifárias nem sempre bem-vindas por todos.
Na medida em que o MERCOSUL se re-pensa e premissas básicas à sua existência, tais
como a manutenção da TEC, são revisadas em favor de soluções firmes em seu propósito
porém flexíveis em sua aplicação, a questão de uma inclusão do Chile ao MERCOSUL em
lugar de um simples aprofundamento pontual ganha novo teor e vigor conceitual e prático.
A partir do momento em que flexibilizar regras básicas se torna atrativo no contexto do
objetivo maior de preservar realizações ao mesmo tempo em que se adequa, agrega e
sinaliza (ver Parte I acima), um aprofundamento da relação atual que resulte no
fortalecimento de um bloco único de cinco países se torna por sua vez plenamente viável.
Ou seja, a flexibilidade que por vezes exigem conjunturas como a atual cria oportunidades
para os processos de integração. No caso específico da relação MERCOSUL-Chile, o fato
de que o MERCOSUL necessite dar uma “freada de arrumação” e reformular normas e
posturas representa uma nova oportunidade tanto para o Chile quanto para o próprio
MERCOSUL de explorar alternativas comuns que desemboquem num bloco fortalecido em
sua relação com o mundo.
Aparte a questão tarifária, a verdade é que as demandas chilenas no geral tendem a
coincidir com elementos da própria agenda “interna” de aprofundamento do MERCOSUL:
aprimorar disciplinas, tornar a aplicação de regras mais previsível, ampliar o horizonte
normativo através da inclusão de novos temas, tornar o sistema de solução de controvérsias
mais previsível e de maior acesso a partes interessadas, etc. De uma certa forma, então, ao
admitir a necessidade de uma certa flexibilização tarifária, o MERCOSUL estaria abrindo
uma nova janela de oportunidade para o aprofundamento não-tarifário e normativo do
12
acordo atual entre o MERCOSUL e o Chile, o que por sua vez resultaria de fato num bloco
mais unido - possivelmente até mesmo único, dependendo da atitude política que se
pretenda tomar uma vez aferidos os resultados desse aprofundamento.
ACE-35: Tentativa Frustrada?
A demora em acertar entendimentos com o NAFTA e o reconhecimento da relevância
econômica e política dos países do MERCOSUL para o Chile fizeram com que fosse
arquitetada uma fórmula que viabilizasse a associação chilena ao MERCOSUL, ainda que
não consubstanciasse numa integração efetiva. Assim sendo, após um processo de
negociações que se estendeu por cerca de dois anos, em junho/96, o Chile assinou um
Acordo de Complementação Econômica que prevê a criação de uma Área de Livre
Comércio com o MERCOSUL em 2004/2006, e o estabelecimento de um cronograma de
desgravação tarifária automática.
O acordo, "Acordo de Complementação Econômica" (ACE-35), que vigora desde 1º de
outubro de 1996, estabelece a conformação de uma área de livre comércio em um prazo de
dez anos, através de um Programa de Liberalização Comercial que se aplica aos produtos
originários dos territórios partes. Tal programa consiste em desgravações progressivas e
automáticas aplicáveis sobre os gravames vigentes para terceiros países no momento do
despacho das mercadorias. Cerca de 80% do universo tarifário teve uma preferência inicial
de 40% a partir do 1° de outubro de 1996, a qual se elevou para 48% em 1° de janeiro de
1997 e para 55% em janeiro de 1998, devendo chegar a sua liberação total em um prazo
de oito anos - ou seja, 1° de janeiro de 2004.
O restante do universo tarifário está registrado em anexos que contemplam, em cada caso,
situações especiais com relação a grupos de produtos, as quais se traduzem em regimes de
desgravação com diferentes prazos. Como conseqüência, as diversas categorias de produtos
alcançarão tarifa “zero” de forma escalonada mediante regimes particulares que terão
diferentes pontos de partida no tempo em alguns casos, e graus distintos de desgravação,
com a liberação total em anos diferentes (2006; 2011; 2012 e 2014). Assim, o ACE-35
consolida as preferências negociadas na ALADI contemplando a diminuição de 40% nas
tarifas vigentes sobre 60% dos produtos comercializados entre os cinco países, sendo que
até 2004, a redução das tarifas deve alcançar 100% sobre 90% dos produtos (o chamado
patrimônio histórico). Os bens considerados “sensíveis” terão alíquota zero em 2006 e os de
“exceção” em 2011.
O acordo contém também normas de origem, salvaguardas, tratamento sobre práticas
desleais de comércio, restrições não-tarifárias, normas sanitárias e fitossanitárias, incentivos
às exportações e outros aspectos, além de conter disposições sobre facilidades de
transporte, manutenção dos acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos,
estímulo à celebração de acordos para evitar a dupla tributação, cooperação científica e
tecnológica, compromisso de avançar até a liberação do comércio de serviços e promover
pelas interconexões bio-oceânicas a integração física.
13
Decorridos quase cinco anos de implantação do Acordo, em que pesem as suas dificuldades
operacionais determinadas pela complexidade das regras, há a percepção de positivos
impactos econômicos para os países envolvidos. Do ponto de vista estratégico, vale
ressaltar:
•
O Chile se constitui na extensão natural do cone sul, mantém fortes vínculos com a
Europa e com a Orla do Pacífico, além dos Estados Unidos, o que lhe confere uma
posição de “global trader” semelhante, conceitualmente, à posição brasileira,
posições estas importantes em termos de inserção internacional dos países. Cabe
destacar também as características qualitativas de sua economia já que o país exibe
um dos maiores índices de renda per capita da região (cerca de US$ 4,8 mil), um
Produto Interno Bruto (PIB) de aproximadamente US$ 75 bilhões e uma população
de 15 milhões de habitantes.
•
É natural se supor que do ponto de vista chileno, o Acordo de Livre Comércio com
o MERCOSUL representa em primeiro lugar acesso privilegiado a um mercado
cujo PIB supera os US$ 750 bilhões de dólares, quase vinte vezes maior do que o
PIB nacional e principalmente mais uma opção de integração no mercado
globalizado. Outro aspecto a considerar é que a integração chilena ao MERCOSUL,
inegavelmente, ampliará o poder de fogo do bloco nas negociações com nos
grandes foros internacionais.
A despeito da forte motivação e reais benefícios com a adesão do Chile ao MERCOSUL
constata-se ainda sérias dificuldades para viabilizar a plena integração. A maior restrição
para a efetiva e plena incorporação chilena ao bloco continua sendo portanto a diferença
existente entre as políticas de tarifas de importação do MERCOSUL e do governo de
Santiago. O MERCOSUL tem tarifas médias hoje em torno de 14% e o Chile pratica tarifa
média de 9%, em trajetória de queda, devendo atingir 6%, em 2003. Mais relevante ainda é
que a tarifa chilena é uniforme e o modelo de política tarifária adotado pelo Chile parece
contar com um amplo consenso no país. A questão que se coloca na conjuntura que se
apresenta em meados do ano 2001 é até que ponto esse elemento continuará de fato a
representar uma dificuldade bilateral. Tudo depende da própria atitude a ser tomada pelo
MERCOSUL com relação ao que o bloco percebe como um dos pilares de sua integração.
Tarifas e Benefício Econômico
Como o modelo de política tarifária chileno conta com um amplo consenso no país, recebe
apoios de economistas de variadas tendências e tem sido aprofundado pelos diversos
governos desde o início da década de noventa, um alteração na condução desta política
parece ser um “non-starter” para o Chile. Assim sendo restaria como alternativa a revisão
da política tarifária do MERCOSUL. Entretanto , mesmo ocorrendo a revisão para níveis
mais baixos, não parece plausível no curto prazo a adoção da tarifa chilena por parte do
MERCOSUL.
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O MERCOSUL tem dado provas de sua dificuldade em promover rebaixas da TEC, a
começar pela intenção de eliminar os três porcento agregados à TEC depois de difíceis
discussões quadripartites quando da condenação da taxa de estatística argentina por um
panel da OMC. O aumento da TEC em 1997 foi implementado de acordo com a mesma
decisão que previa a eliminação do diferencial tarifário ao final do ano 2000, porém a
eliminação, consistentemente anunciada por autoridades tanto do Brasil quanto da
Argentina, deu lugar à intenção de dividí-la em duas etapas. O crescente déficit na balança
comercial brasileira e a preocupante situação macro-econômica da Argentina no último
trimestre de 2000 foram alegados como razões para evitar quaisquer rebaixas de alíquotas
de importação. Da mesma forma e no mesmo contexto causal, a intenção de substituir o
sistema de ex-tarifários no interior do bloco por uma rebaixa definitiva da TEC para
produtos não-produzidos na sub-região seria postergada indefinidamente.
As coisas mudaram um pouco com as recentes medidas adotadas pela Argentina. Tornou-se
difícil imaginar na conjuntura atual que qualquer governo do MERCOSUL possa ou deva
exigir da Argentina o cumprimento de seus compromissos originais relativos à TEC.
Tornou-se claro que a melhor política no momento talvez seja a de permitir a flexibilização
da TEC por algum tempo, de forma a sacá-la do contexto negociador para evitar a
“contaminação” de outros temas da pauta oficial do MERCOSUL. Também se tornou claro,
portanto, que com a aceitação da flexibilização de certos preceitos do MERCOSUL novas
oportunidades se apresentam.
Quanto à questão de benefícios comerciais, alguns elementos são aqui comentados com
relação a ganhos para o MERCOSUL no mercado chileno. Em primeiro lugar, a verdade é
que as alíquotas chilenas já são bastante baixas (média de 9% em 2000) e, mais importante
ainda, prometem evoluir para baixo anualmente de forma a alcançar apenas 6% na média
em 2003. Ou seja, quando 63% em valor (base 1998) do comércio bilateral MERCOSULChile estiver plenamente liberalizado, o diferencial de preferência que o MERCOSUL terá
no Chile com relação ao resto do mundo será de apenas 6%. Outros 17% em valor do
comércio bilateral só chegarão a este patamar de preferência em 2006, enquanto que 98%
desse comércio só atingirá alíquota zero em 2011.
Em segundo lugar, quando se leva em consideração que a participação do MERCOSUL nas
importações chilenas dos produtos constantes dos três cronogramas de desgravação já é
importante quando comparada com outros mercados e que a tarifa chilena já é linear,
uniforme e relativamente baixa, constata-se que não haverão grandes benefícios para o
MERCOSUL decorrentes de maiores preferências tarifárias por parte do Chile. Se o
MERCOSUL já se destaca até em mercados considerados sensíveis no Chile (aqueles
referentes aos produtos incluídos nos cronogramas de desgravação) em condições tarifárias
atuais, não há razão para crer que um diferencial de poucos pontos percentuais nos
próximos anos possa melhorar em muito esta situação.
Em terceiro lugar, o que ocorre no Chile em termos tarifários nos próximos anos não se
limita à Lei 19.589 (processo unilateral de redução de alíquotas de importação). Como
veremos abaixo, o Chile é dotado de uma política comercial cuja característica principal é a
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conformação de uma teia de acordos comerciais que não se limitam à América Latina e
portanto têm o efeito de corroer quaisquer preferências obtidas pelo MERCOSUL. De fato,
considerando os longos prazos dos cronogramas do ACE-35, o MERCOSUL, na reduzida
preferência tarifária agregada que conseguirá no mercado chileno nos próximos anos, estará
conseguindo chegar no Chile com preferências muito tempo depois que concorrentes
importantes já houverem chegado, ganhado mercado, estabelecido redes de compradores e
fornecedores e contatos de negócios e até mesmo evoluído para outros níveis de
liberalização e preferências tais como os relativos a serviços e investimentos. O caso do
México é talvez o mais explícito, dada a concorrência direta que esse país representa para
os interesses do MERCOSUL: um ACE firmado em 1992 cuja liberalização ampla teve
data e foi cumprida já em 1996 (ano em que MERCOSUL e Chile finalmente firmaram seu
próprio ACE), transformado em 1998 em Tratado de Livre Comércio com vistas à abertura
de mercados de serviços e de políticas de investimento bilaterais. Falar em 2004, 2006,
2011 e 2014 – os prazos do ACE-35, nesse contexto, indica o quanto o Chile representa e
representará para o MERCOSUL no futuro próximo em termos de acesso preferencial a
mercados.
Finalmente, vale ressaltar que a noção de benefícios comerciais no mercado chileno implica
uma percepção por parte do MERCOSUL de quanto vale ceder e conceder maiores
preferências ao Chile em seu próprio mercado. Para os países do MERCOSUL que
exportam no agregado menos do que 4% de suas exportações totais para o Chile (2% no
caso do Brasil), o valor de aprofundar preferências ou “andar mais rápido” no processo de
conformação de uma área de livre comércio parece bastante pequeno. Já a recíproca parece
de interesse inverso: o Chile atualmente exporta 10% de suas exportações totais para o
MERCOSUL e tem, sim, muito a ganhar considerando-se o que representariam maiores
preferências tarifárias por parte do MERCOSUL, cuja base tarifária é bem mais alta do que
a chilena. Nesse contexto, o interesse do Chile deveria ser muito maior do que o do
MERCOSUL em aprofundar o acordo. Como seria de se esperar, o MERCOSUL tem
resistido aprofundamentos2 e, conseqüentemente, adiantamentos em prazos para a
conformação de uma área de livre comércio parecem igualmente pouco prováveis de
aceitação consensual.
Se as chances de aprofundar e/ou adiantar prazos para a área de livre comércio já são
pequenas, como partir para algo mais ambicioso tal como uma União Aduaneira cujo nível
de compromisso, além de exigir implicitamente progressos intra-zona (MERCOSULChile), vai além da troca de preferências bilaterais, inserindo-se na elaboração de políticas
comerciais comuns, a começar pela própria política tarifária? O paradoxo que vale para o
MERCOSUL “a quatro” vale também para o MERCOSUL “a cinco”: para avançar no
projeto da união aduaneira (ou pelo menos para evitar de descartá-lo completamente) é
necessário por de lado por algum tempo um de seus preceitos básicos (a TEC) como forma
de evitar contratempos e atrasos em outros aspectos da agenda de integração que possam
ser factíveis no curto e médio prazo (ex.: integração física).
As negociações de aprofundamento de preferências bilaterais, mandatadas para começar em 1998, têm
demonstrado resultados praticamente nulos.
2
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Testando Premissas
A premissa básica em que se insere o presente estudo é que a relação MERCOSUL-Chile é
importante demais para deixar de ser repensada de forma a viabilizar um processo de
integração consistente e duradouro. Desta premissa básica decorrem outras premissas cujo
teste contribuirá para balizar o tratamento do tema, a saber:
4. Um processo de integração entre o MERCOSUL e o Chile deve fundamentar-se
em realidades políticas, culturais (no sentido mais do que nada institucional) e
econômicas; a integração econômica segue sendo a força motriz do processo
porém não pode ou deve desvincular-se de outros aspectos que possam reforçar
o empreendimento, ao relativizar prioridades e estabelecer novas estruturas de
direitos e obrigações;
5. A percepção de inserção no mundo varia entre os países membros plenos do
MERCOSUL e o Chile. Com efeito, o debate sobre inserção permanece em
aberto em cada um dos cinco países, tornando o desafio da integração
especialmente ambicioso, sobretudo dadas as pendências econômicas e sociais
de cada país;
6. Um processo de integração não pode ter lugar sem que haja um considerável
nível de coesão entre os países participantes. Coesão requer objetivos comuns e
compromisso por parte dos protagonistas do processo. Um bloco coeso é um
bloco que privilegia soluções comuns para seus problemas, um bloco que olha
para dentro antes de se posicionar para fora.
O teste de premissas portanto incide sobre três universos: a âmbito da integração, a visão de
inserção no mundo e a viabilidade de coesão num bloco renovado.
Integração Eclética
O Político
É indiscutível que a força motriz do processo de integração do MERCOSUL tem sido o
comércio – ou seja, a integração comercial é a que tem sido a principal responsável pela
evolução do bloco sub-regional. Isso no entanto não implica que o processo político em
torno da integração do MERCOSUL tenha sido menos importante do que o processo
econômico. É conhecido o fato que a integração que presenciamos hoje não teria sequer
sido concebida e levada a cabo sem muita vontade política dos dois principais protagonistas
sub-regionais: Brasil e Argentina. Como mencionado anteriormente no presente estudo, a
determinação política exibida em momentos cruciais da história política e econômica dos
dois países foi exemplar e evitou os piores riscos de desintegração ao mesmo tempo que
apontou caminhos para crescentes níveis de integração.
Estaríamos longe de poder afirmar que essa determinação política, seja em termos estáticos
ou dinâmicos, iguala-se à uma integração política. No entanto, essa determinação foi
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sempre vital em ditar rumos para o processo que, apesar de teor claramente econômico,
desemboca por sua vez em maior convergência política. O processo é portanto um círculo
“beneficioso” cuja gênese política requer progressos econômicos que possam perpetuar
convergências políticas.
No presente contexto, vale ressaltar elementos importantes de consideração relativos tanto à
política interna quanto externa dos países em questão.
À exceção do Paraguai, a política interna dos países do MERCOSUL e do Chile tem
importantes traços de semelhança, decorrentes da condição comum de países recémdemocratizados, dotados de instituições atuantes porém carentes de reformas e de classes
políticas relativamente pouco preparadas para enfrentar os desafios impostos tanto pela
agenda nacional como internacional. Esse diagnóstico não é tão grave quanto pode parecer,
dado o valor que representa a consolidação do regime democrático na sub-região, como
garantia de que os rumos a serem trilhados serão pelo menos resultantes de processos
pluralistas e abrangentes, ainda que complexos e de difícil manejo. Uma política interna
nos moldes democráticos deverá seguir sendo um dos fatores determinantes mais
importantes do futuro desenvolvimento dos países do MERCOSUL e do Chile e poderá
tornar-se também um dos fatores indutores mais importantes do esforço integracionista na
sub-região, dependendo do valor que esse esforço possa vir a ter na percepção do eleitorado
e de seus representantes no médio e longo prazo. Nesse contexto, a agenda de reformas
políticas nos países é também de grande relevância, de forma a capacitar regimes e agentes
políticos e sociais a assimilarem demandas e agirem sobre questões de ordem sub-regional
ou internacional.
É na política propriamente externa que os mais imediatos desafios se apresentam para o
aprofundamento da relação entre o MERCOSUL e o Chile. Em primeiro lugar, vale
ressaltar que a relação entre os três (Argentina, Brasil e Chile), ou mesmo entre os cinco
(incluindo a Uruguai e Paraguai), países participantes nunca foi tão boa, ou pelo menos tão
“equilibrada”, num contexto tão complexo como o que se configura atualmente na subregião e no mundo. Esse fato, por si só, já representa um importantíssimo atout a ser
preservado e cultivado, de forma a embasar qualquer novo esquema de relações que possa
surgir a partir da dinâmica intrazona ou do enlace bilateral MERCOSUL-Chile atual. Uma
maior explicitação de compromissos sobre temas políticos tais como a democracia, a paz ou
os direitos humanos poderia ser especialmente positiva num novo contexto bilateral,
sobretudo dada a crescente diferenciação que se estabelece entre o “eixo” MERCOSULChile e o resto da América do Sul. A possibilidade de concretizar uma posição de liderança
política sub-regional não deve ser subestimada e representa uma forma efetiva de projetar
um front comum e poderoso no contexto das presentes alianças multipolares.
É evidente que a relação com as duas maiores superpotências atuais – os Estados Unidos e
a União Européia, é central para o futuro de qualquer relação entre o MERCOSUL e o
Chile. É lógico que a vertente propriamente econômica dessa relação é talvez a mais
saliente, seja em virtude das cifras envolvidas, seja em virtude dos dois processos negociais
atualmente em curso com vistas a uma liberalização comercial bilateral. No entanto, em
temas propriamente políticos, o posicionamento que o MERCOSUL e o Chile optarem por
privilegiar será também tanto mais forte quanto mais coeso for o “novo” bloco do cone sul.
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Nos temas internacionais da atualidade, sejam eles os relativos à América do Sul, sejam
eles os relativos ao mundo, um MERCOSUL+Chile renovado representará uma voz
importante que não deixará de ser ouvida por nenhuma das duas superpotências ou por
outras nações ou blocos de nações em outras partes do mundo. A lógica de que agir
coletivamente é melhor do que agir individualmente aplica-se a países de todos os tipos e
tamanhos, sobretudo no contexto de países cujas posições de princípio (democracia, paz,
segurança, narcotráfico, meio-ambiente, normas trabalhistas, etc.) são em grande medida as
mesmas.
O Cultural
O universo do que se refere aqui ao “cultural” é entendido como um conjunto de elementos
que abrange além do cultural propriamente dito, o “social” e o “institucional”.
As semelhanças entre as culturas nacionais do MERCOSUL e do Chile são conhecidas e
são muito mais fortes do que é o caso entre os quinze atuais membros da União Européia,
por exemplo – o que em princípio deveria facilitar objetivos e compromissos comuns. O
que se constata, no entanto, é que por razões diversas, os trabalhos intra-MERCOSUL e
MERCOSUL-Chile têm sofrido traumas e paralisações e que isso decorre apenas
parcialmente de conjunturas externas. Existiria algo na própria cultura dos países,
individual ou coletivamente, que seria também responsável por parte dos fracassos na subregião? A própria tendência de optar por objetivos inatingíveis (mercado comum em quatro
anos), por exemplo, não seria prova de uma certa “falha” cultural? Ou será que a
incapacidade de internalizar normas acordadas e/ou desrespeitá-las como se o MERCOSUL
fosse apenas um detalhe diplomático não passaria de um fator conjuntural na vida de certos
governos em certos países? Existe uma cultura comum que não funciona ou será que a
cultura carece justamente de ser mais comum para poder funcionar?
Esses são os tipos de perguntas do entorno socio-culturo-institucional que deveriam compor
o cardápio de indagações fundamentais cujo esclarecimento poderia ajudar o processo subregional a progredir na direção de mais integração e mais disciplina. Claramente existem
razões históricas que podem explicar uma série de diferenças e distinções entre as culturas
nacionais da sub-região. Brasil, Argentina e Chile são países de origem ibérica, judeocristã, antigas colônias longínquas de suas metrópoles que em determinado momento
tiveram a pretensão de se tornar independente e buscar um futuro próprio. Seus povos têm
em comum uma ética que certamente não é em nada “weberiana” e conheceram durante
muito tempo o que representa ser cidadão de um país que integra a “periferia” e não o
“centro” do herdado sistema de nações-estado. Poder aproximar-se desse centro é uma
aspiração cultural expressa e irreversível, restando hoje em dia apenas um poder de
manobra em muitos aspectos limitado, com relação ao grau de aproximação que se pode
desejar e/ou lograr.
A verdade é que semelhanças ou distinções culturais, e suas conseqüências em nível
nacional, não podem determinar por si só a vocação comum que uma região pode ter ou
deixar de ter. Em outras palavras, a vocação integradora de um ou outro bloco não é algo
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natural que emana sem restrições de atributos ou características consideradas favoráveis,
condizentes ou indutoras. Vocação integradora é algo que se constrói com base em
objetivos explicitados e compromissos cumpridos. Existe algo de extrema importância
cultural em empreendimentos de integração que diz respeito à capacidade de se criar
cultura: incitar nações-estado a se integrar requer a criação de uma cultura integracionista
entre si e no seio de seus povos. O grande desafio do MERCOSUL e do Chile segue sendo
lograr alcançar essa vocação e essa cultura – sem o que, qualquer esforço de aproximação
ou aprofundamento permanecerá exposto a riscos de reversão e até mesmo deturpação.
O Econômico
O grande sucesso comercial representado pelo MERCOSUL está plenamente refletido nos
dados sobre os fluxos de comércio de bens. No entanto, o fluxo só poderia aumentar já que
o comércio era ínfimo e a própria geografia conspirava a favor de um crescimento natural
das trocas sub-regionais. A anomalia era ter esse comércio reprimido por tanto tempo e por
razões tão políticas. O volet investimento, no entanto, ainda não reflete o potencial que
decorre da previsibilidade de disciplinas transparentes características de um acordo
regional. A área automotiva se destaca não por um comércio livre que atraiu a presença de
montadoras mundiais e sim por um comércio fundamentalmente administrado porém em
grande consonância com as estratégias e necessidades de racionalização global das
empresas investidoras.
O livre comércio intra-zona seguiu grosso modo seu cronograma e hoje não existem tarifas
aduaneiras entre os quatro Estados Partes. No entanto, o processo interno segue ameaçado
por medidas não-tarifárias, unilateralismo, falta e "excesso" de instrumentos e suas
conseqüentes controvérsias, o que historicamente encontra paralelos no processo de
conformação da União Européia - em particular, durante as décadas de 70 e 80 quando o
bloco europeu encontrava-se praticamente paralisado, em grande parte por inércia e inação
própria. Nesse sentido, o MERCOSUL nos últimos anos parece ter claro a conveniência do
objetivo máximo de conformar um mercado comum e até mesmo uma união econômica e
monetária, porém na ausência de punho político forte o suficiente para forçar
entendimentos em todas as áreas específicas que, juntas, permitirão a realização de tal
objetivo. Seria diferente talvez se o MERCOSUL como um todo não soubesse o que quer.
No entanto, dos quatro cantos da região afloram reiteradas confirmações de seguir no
processo de integração e das benesses daí decorrentes. O que falta é uma visão e um plano
comum de como projetar o bloco no futuro. O desafio é saber como enquadrar tarefas
difíceis e delicadas num projeto que aponte para um futuro comum.
Em relação ao comércio extra-zona, o objetivo fundamental de criar-se uma "barreira"
externa comum como pedra angular de uma política comercial comum cumpriu-se, ainda
que com grande hesitação e instabilidade, no que diz respeito a uma tarifa externa comum.
O estabelecimento de uma TEC desde 1995, com cronograma de convergência para itens
inicialmente excetuados até no máximo onze anos mais tarde (2006), foi uma grande
realização e certamente sinalizou para o mundo que o MERCOSUL caminhava para uma
política comercial comum. Seis anos mais tarde, testemunhamos uma política comercial
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pouco coesa e certamente pouco comum em todos os aspectos que a deveriam compor,
sendo sua maior saliência a negociação 4+ com vasta gama de países e de blocos regionais.
Nesse contexto, uma das maiores façanhas do MERCOSUL tem sido sua presença como
bloco ao lado de trinta outros países nas negociações para a conformação de uma Área de
Livre Comércio para as Américas (ALCA). A façanha é tanto maior quanto é ausente uma
política comercial verdadeiramente comum entre os quatro Estados Partes - seja em termos
de medidas aduaneiras, de defesa comercial, ou da própria forma de "manusear" a TEC
permitindo importantes perfurações (drawback, admissão temporária, zonas francas, etc.).
Falta de clareza sobre temas como o próprio Chile, por exemplo, também não pressagia
claros horizontes comuns, o que, no entanto, não impediu que compromissos nos mais altos
níveis políticos fossem assumidos.
Se existe um problema fundamental no MERCOSUL no presente momento, esse problema
tem pouco a ver com as recentes demonstrações de discórdia e conflitos comerciais e muito
a ver com o fato que a integração na sub-região está rapidamente atingindo um nível que
requer uma nova visão de como proceder. O que se torna cada vez mais claro é que não
basta cumprir as regras atuais ou mesmo flexibilizá-las – como é o caso com a barreira
externa do MERCOSUL par excellence, a TEC; que não basta agregar assuntos à pauta
negociadora e estabelecer prazos para a eliminação de barreiras entre os quatro países.; que
não basta confirmar a cada seis meses nos mais altos níveis o compromisso de integração,
anunciando a cada vez medidas pontuais que demonstram que o processo está meramente
vivo, ainda que sem uma clara definição de como mantê-lo vivo no médio e longo prazo; e,
certamente, que não basta falar em compromissos em demasia ambiciosos tais como a
moeda única sem antes disso traçar caminhos para criar as condições necessárias tanto para
a integração dos mercados propriamente dita como para a convergência macroeconômica.
A questão de aprofundar a relação com o Chile surge portanto num momento especialmente
fértil para novas estratégias e empreendimentos. Como é sabido, a relutância inicial por
parte do Chile em associar-se ao MERCOSUL encontrava explicação na possibilidade de
adesão ao NAFTA e na instabilidade econômica do Brasil e da Argentina, fatores que
poderiam influenciar negativamente o comportamento e a qualificação da economia chilena
e afetar o avançado grau de abertura econômica consolidado no país. Entretanto, o relativo
sucesso do Plano Real na estabilização de preços, a dificuldade de associação ao NAFTA, o
restrito tamanho do mercado chileno e a sua dependência do comércio exterior levariam o
Chile a empenhar-se na busca da formação de acordos bilaterais ou de complementação
econômica com os países membros da ALADI Associação Latino-Americana de
Integração. Sem dúvida destacar-se-ia dentre todos seus esforços de integração a decisão de
se associar aos países do MERCOSUL para formar uma zona de livre comércio ao mesmo
tempo em que pleiteava sua inclusão no NAFTA.
Seis anos mais tarde, a adesão plena do Chile ao MERCOSUL depende ainda em grande
medida da estratégia que os quatro Estados Partes resolverem adotar para o bloco no médio
e longo prazo. Se houver um reconhecimento de que elementos da política comercial do
MERCOSUL tais como contemplados na prática até agora devam ser revistos, aprimorados
ou, em alguns casos, descartados, a incorporação do Chile pode se tornar factível ou até
mesmo atraente, dependendo dos novos objetivos acordados. Se, por exemplo, a estrutura
tarifária chilena puder contribuir para tornar a estrutura da TEC mais condizente com as
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realidades produtivas e de competitividade do MERCOSUL como um todo, talvez a
negociação de uma barreira externa comum não seja tão difícil quanto possa levar a crer um
exame mais detalhado do acordo já existente entre o MERCOSUL e o Chile – o ACE-35.
Talvez o incentivo de reformular prioridades seja tão grande que novos quid-pro-quo’s
possam ser estabelecidos entre os diversos temas de negociação, de forma a agilizar a
conformação da área de livre comércio entre o MERCOSUL e o Chile ao mesmo tempo em
que se viabiliza uma estratégia comum de inserção nos mercados internacionais para as
duas partes.
Nesse sentido, a adesão plena do Chile ao MERCOSUL só será viabilizada caso as
negociações intra-MERCOSUL avancem – em particular, com relação ao futuro da união
aduaneira e da estratégia do bloco perante países terceiros. A participação do próprio Chile
nesse processo não deveria ser subestimada, sendo de especial utilidade na esfera da
coordenação macroeconômica e dos demais temas institucionais.
Inserção Diferenciada
O Chile é o único país da América Latina que consolidou, desde meados da década de
oitenta, as reformas estruturais necessárias à estabilização da economia. A robusta estrutura
econômica do Chile transparecia desde 1991, ano de assinatura do Tratado de Assunção:
um crescimento da ordem de 5%, com oito anos de crescimento ininterrupto, 18% de
inflação anual e coeficiente de abertura comercial dos mais altos (40%) representado pela
relação entre comércio internacional e PIB.
Este cenário positivo se manteve e ressaltava a trajetória crescente das reservas estrangeiras
que não foi revertida nem mesmo diante da crise do México. Enquanto todos os países da
América Latina, especialmente a Argentina, tomavam drásticas providências para evitar a
desvalorização de suas moedas, o peso chileno valorizou-se 7% ante o dólar em 1995. O
país exibia a manutenção do crescimento ininterrupto, redução da dívida externa, acesso ao
mercado voluntário de crédito, superávit comercial em ascensão, legislação restritiva a
entrada de capitais especulativos, reforma tributária ampla, combate à sonegação, poupança
interna comparável a dos “tigres asiáticos”, dentre outros indicadores positivos.
Em processo paralelo à inserção chilena com base em uma economia de mercado aberta ao
exterior, surgem preocupações com a diversificação de mercados e a especialização
exportadora. Uma nova estratégia, então conhecida como "segunda fase exportadora",
instaura-se fundamentada na necessidade de buscar a produção de bens de maior valor
agregado, numa maior articulação dos setores produtivos com o exportador, melhoras de
qualidade, e o desenvolvimento de exportações de serviços. Nesse contexto, tornavam-se
imperativos os aumentos de produtividade, mais altos níveis de tecnologia e melhor
gerenciamento de empresas. Vale ressaltar que nesse contexto insere-se também a ênfase de
promover investimentos diretos chilenos no exterior com base nos excedentes da conta
capital da balança de pagamentos chilena.
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O restabelecimento do clima de confiança e a estabilidade da economia chilena
contrastavam com a estagflação e o desalento que caracterizam boa parte dos países da
América Latina – entre eles o Brasil e a Argentina. Entretanto, apesar do pioneirismo na
implantação bem sucedida de planos de estabilização, o Chile mantinha de certa forma uma
posição de isolacionismo no continente já que estava desde 1976 afastado do pacto Andino
e sem se integrar ao MERCOSUL.
A participação do Chile em acordos comerciais bilaterais inicia-se a partir da apreciação
pelas autoridades nacionais do valor desses arranjos como instrumentos facilitadores do
acesso de produtos chilenos a mercados protegidos ou cada vez mais definidos por
preferências acordadas entre países membros de blocos de integração. Vários elementos
justificam a mudança de posição chilena com relação a negociações sobre abertura
comercial e integração, dentre os quais as vantagens de um sistema negociado de regras e
disciplinas, inclusive sobre a solução de controvérsias, a possibilidade de inclusão de novos
temas de interesse chileno tais como serviços e investimentos e o maior peso negocial
adquirido quando membro de um novo bloco econômico.
O perfil chileno de maior abertura possível para o exterior, seja através dos acordos da
OMC, seja através de acordos bilaterais com países e/ou blocos de integração contrasta em
certa medida com as estratégias adotadas pela Argentina e pelo Brasil. Apesar dos dois
últimos países terem também adotado como estratégia geral uma abertura gradativa ao
mundo centrada num regionalismo aberto, à diferença do Chile, Argentina e Brasil
centraram seus esforços na conformação de uma união aduaneira sub-regional, negociando
sua inserção na economia mundial em grande medida (em grau menor na área financeira do
que na comercial) de forma conjunta, em acordos do tipo “4+”. O próprio Chile constituiu
um dos países com os quais o Brasil e a Argentina, através do MERCOSUL, negociaram
um acordo de livre comércio.
O Chile mostra-se agressivo e pragmático na busca de parceiros preferenciais, celebrando
uma multiplicidade de acordos bilaterais além de optar por um paradigma de disciplinas
comerciais e não comerciais GATT-plus e em certos casos NAFTA-plus. Em contrapartida
o MERCOSUL tem adotado uma postura mais cautelosa, preocupando-se com os impactos
de esquemas de liberalização preferencial sobre sua indústria e seus mercados domésticos e
tem como paradigma de disciplinas comerciais os acordos do GATT, enfrentando
dificuldades para implementar propostas GATT-plus até mesmo em suas negociações
internas. Esta diferença de paradigmas dificulta a negociação MERCOSUL-Chile pois
implica enfoques diferentes em relação aos objetivos e à metodologia das negociações.
Essa particularidade estratégica não é de pouca conseqüência e revela em grande medida
uma diferença primordial nos processos de inserção perseguidos pelos três países. Ainda
que a estratégia adotada pelo Brasil e a Argentina seja dificultada na prática por uma
considerável falta de posicionamentos de fato comuns em temas de grande importância, a
verdade é que existe e persiste entre os dois países uma vontade política significativa no
seio do MERCOSUL para avançar em conjunto apesar das dificuldades. O contraste com o
Chile tem sido bastante nítido nesse contexto. De uma certa forma, o que se coloca é até
que ponto os contrastes da perspectiva chilena face a intenção por parte do Brasil e da
Argentina de proceder em conjunto podem ser superados, assimilados ou transformados em
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algo que possa contribuir para uma melhor inserção dos três países no mercado
internacional.
Além das particularidades das economias dos três países (maior ou menor ênfase nos
setores primário, secundário e/ou terciário da economia, por exemplo), pesa muito o
elemento político no questionamento estratégico das opções de inserção que se apresentam
na conjuntura atual. A questão básica que se coloca é se os cinco países teriam a capacidade
ou a vontade política de trabalhar para a conformação de um front verdadeiramente comum
face ao mundo. Que isso seria bastante positivo para todos em termos de peso no jogo
internacional de influências parece ser ponto pacífico. Resta saber se existe o substrato
econômico que possa dar consistência a um tal empenho político. Ou ainda, resta saber se a
possibilidade de fato existe de que, na falta de razões econômicas suficientes, se substitua
um empenho político suficientemente poderoso para compensá-las.
Coesão: Possível ou Não?
Re-pensar a relação MERCOSUL-Chile implica considerar como tornar a relação mais
previsível e concreta, menos vulnerável a fatores externos e mais sensível a demandas e
oportunidades internas. Sendo a premissa básica a de que a relação pode fortalecer-se e
com ela um “novo” bloco unido e talvez até único, torna-se imprescindível a abordagem do
ingrediente central de toda integração: a coesão entre os países integrantes.
Sem coesão não há integração e coesão só se consegue com uma adequada repartição de
custos e benefícios entre os partícipes. Basta um desses partícipes não se considerar de
alguma forma ganhador no processo de integração para que sua atitude seja menos do que
comprometida com esse processo. Com tal falta de compromisso, o processo sofre como
um todo e com ele a coesão do bloco. O MERCOSUL passa sim por um momento
desafiador, e demonstrações de falta de coesão tais como as declarações individuais a favor
da antecipação da ALCA ou as negociações individuais entre Estados Partes e terceiros
países, o atestam com grande eloqüência. Coesão é uma questão de equilíbrio interno, entre
direitos e obrigações e custos e benefícios repartidos entre os Estados Partes. Qualquer
tentativa de restaurar o equilíbrio interno com compensações externas obrigatoriamente
logrará precisamente o efeito oposto: o desequilíbrio interno. Coesão requer, portanto, que
o “cálculo” do equilíbrio interno seja feito e respeitado, sem o que não existe coesão.
Coesão significa união nas ambições e nos objetivos. Sem ela, é difícil imaginar que surja
empenho político suficiente para engajar todos os protagonistas da integração num projeto
comum, com metodologias adequadas ao ritmo e à lógica econômica, no contexto de
instituições que inspirem segurança e previsibilidade nos direitos e nas obrigações. De uma
certa forma, todos os problemas atuais do MERCOSUL, inclusive sua relação com o Chile,
subordinam-se à capacidade do bloco de se auto-analisar e reestruturar o "tabuleiro" de
interesses e compromissos. Uma das premissas básicas é que existem indícios suficientes
para supor que falta coesão ao bloco e que novos quid-pro-quo’s devem ser estabelecidos.
Como toda nova iniciativa, existem riscos e oportunidades, porém pode-se supor que é
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difícil exigir cada vez maiores níveis de custos e obrigações na ausência de correspondentes
níveis de benefícios e direitos. Um “salto para frente” pressupõe solidez “para trás”.
Num processo de integração econômica que envolve a diversidade de interesses presentes
numa região como o MERCOSUL, seria ingênuo supor que coesão seja algo que possa ser
criado, forçado ou promovido apenas por esforços diplomáticos – na ausência de uma clara
reflexão, nos compromissos acordados, dos limites de tolerância de cada país participante.
Ou seja, a menos que o processo de integração aparente resultar e de fato resulte em
progressos concretos para os partícipes, esse processo correrá sempre o risco de
descarrilamento – ou, pelo menos, de falta de rumo.
A questão, portanto, que se coloca é como assegurar que o processo de integração do
MERCOSUL possa satisfazer (ou desagradar) igualmente a todos ao mesmo tempo em que
aponte para um futuro, que além de comum, seja cada vez mais promissor. Ocorre,
alternativamente, que na medida em que as relações econômicas entre os membros do bloco
se estreitam, o que se entende por futuro promissor necessariamente deve ser comum – ou
seja, um futuro comum deixa de ser uma opção e passa a ser uma necessidade. Para os
países pequenos do bloco talvez isso seja mais manifesto dado o vínculo natural que se
estabelece entre fluxos de comércio, finanças e investimento e o crescimento de seus
parceiros comerciais. Para os países grandes, além de prevalecer, ainda que num grau
menor, a mesma lógica de vinculação entre os fluxos sub-regionais, sobressai-se também a
opção de inserção no mercado internacional – seja pela maior concorrência introduzida de
forma gradativa pelo comércio intra-zona, seja pela agregação de eficiência proporcionada
pela integração física com países vizinhos e contíguos, seja pelo maior peso específico que
a sub-região logra atingir num mundo de blocos regionais.
Assegurar a coesão implica portanto assegurar um equilíbrio de direitos e obrigações, e
custos e benefícios entre os países membros, de forma a torná-los zelosos do processo de
integração e a identificar nele sua melhor opção estratégica de inserção. Equilíbrios
resultam de um exercício de dar e receber, onde os benefícios compensam custos, e direitos
compensam obrigações. Coesão nesse sentido requer trocas entre países membros, de forma
a tornar o processo interno do bloco um atrativo maior do que uma inserção direta no
mercado internacional. Como lograr essa façanha é o grande desafio de aprofundar a
relação MERCOSUL-Chile. Os elementos de troca devem ser explicitados e um sistema de
pesos e medidas concebido num esforço de harmonizar as percepções de ganhos e perdas.
Se o conceito de troca se limitar à esfera econômica, é difícil vislumbrar um equilíbrio de
benefícios entre os Estados Partes do MERCOSUL e o Chile. Os seguintes elementos
ilustram algumas das dificuldades nesse contexto:
•
Além da questão tarifária não representar grandes ganhos para o MERCOSUL dado
o nível já reduzido da tarifa linear chilena aplicada ao resto do mundo, o tamanho
do mercado chileno contrastaria em grande medida com o tamanho do mercado de
suas contrapartes.
•
Além disso, na medida em que o Chile já se adiantou na eliminação de medidas
não-tarifárias, como resultado de seu cumprimento dos acordos da OMC ou de
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outros acordos de livre comércio, os Estados Partes do MERCOSUL, mesmo sem
negociação, já competem com o resto do mundo em condições não-discriminatórias
– ou seja, os Estados Partes do MERCOSUL já competem em condições de
igualdade com o resto do mundo no mercado chileno no tocante a medidas nãotarifárias, de forma que um aprofundamento do ACE-35 nesse aspecto não traria
nenhuma expansão de comércio para o MERCOSUL. Já a recíproca (a eliminação
de medidas não-tarifárias no MERCOSUL) seria verdadeira, tornando o Chile um
grande ganhador nesse hipotético intercâmbio de liberalização não-tarifária.
•
A situação é semelhante em serviços e compras governamentais: além das
diferenças de escala dos mercados em questão, o Chile se beneficiaria de um grande
efeito liberalizador por parte do MERCOSUL em setores que ainda exibem grandes
deficiências regulatórias, enquanto que o MERCOSUL melhoraria em muito pouco
seu atual empenho exportador, dado que o mercado chileno de serviços já se
encontra em grande medida aberto para interesses de países terceiros. Uma vez
mais, a recíproca é verdadeira, tendo o Chile muito a ganhar com uma genuína
abertura dos mercados de serviços do MERCOSUL3
Mesmo se adotando uma visão mais neo-clássica dos benefícios do comércio internacional
e da abertura comercial, visão essa que rejeita a noção de que o comércio seja um jogo de
soma zero (“zero-sum game”) ou a perspectiva de que o custo de abrir mercados para o
Chile, dada a sua dimensão econômica, não é tão alto e por isso poderia ocorrer sem
grandes custos para o MERCOSUL, a verdade é que os benefícios econômicos de um
aprofundamento da abertura comercial nos países do MERCOSUL, em particular no Brasil
e na Argentina, nitidamente seriam maiores em termos relativos para o Chile4 do que
seriam os benefícios na situação inversa para o MERCOSUL. Além disso, a teoria neoclássica deixa de incorporar o fato de que negociações, cujos benefícios econômicos são
percebidos como mal distribuídos entre os países participantes, podem encontrar
considerável resistência política nesses países e se tornarem inviáveis. O que a teoria neoclássica negligencia portanto é a economia política das negociações comerciais. A
necessidade de compensar concessões é um conceito importantíssimo nessas negociações e
independe dos ganhos reais proporcionados pela maior concorrência e previsibilidade
normativa nos mercados domésticos. A necessidade de compensar depende de percepções
da realidade, e não da realidade em si, constituindo assim um conceito por natureza político
que apesar de sua natureza não pode ser descartado da consideração de acordos de
integração.
É importante que fique claro que a verdadeira troca entre o MERCOSUL e o Chile
possivelmente deverá extrapolar o domínio econômico para adentrar o domínio político, o
fazendo de duas formas distintas:
Persistem, é claro, importantes diferenças de grau de abertura entre as quatro economias do MERCOSUL. No
agregado, no entanto, é indiscutível que o Chile tenha avançado mais na liberalização de seu setor terciário do
que o fizeram os Estados Partes do MERCOSUL.
4 É evidente que em termos absolutos a tendência é que os números sejam maiores para as exportações
chilenas do que para suas contrapartes do MERCOSUL
3
26
•
No contexto de temas de teor propriamente político, tais como defesa e segurança,
narcotráfico, direitos humanos, etc.;
•
No contexto de temas de teor propriamente econômico, onde a decisão política
pode ser determinante para alterar rumos e compor novas estratégias.
A decisão de se fazer representar como um bloco em foros internacionais políticos tais
como as Nações Unidas se insere no primeiro contexto referido acima. Já a decisão de
permitir ou não a países membros de um acordo de integração a negociação individual de
acordos com terceiros países, por exemplo, se insere no segundo contexto: teor econômico,
decisão política. Um quid-pro-quo que compensaria “desequilíbrios” econômicos, ou que
pelo menos viabilizaria a aceitação política de um aprofundamento da relação
MERCOSUL-Chile, necessariamente envolveria compromissos políticos de ambas as
naturezas. É de se esperar, portanto, que o MERCOSUL necessite de gestos políticos que
demonstrem o empenho político chileno de aprofundar a relação e viabilizar um bloco de
integração que “olha para dentro antes de se posicionar para fora”. Se esse tipo de
“compensação” não existir, é difícil imaginar que algo um pouco além do já existente ACE35 possa assegurar um bloco coeso: faltará coesão porque nas horas cruciais o risco dos
países agirem individualmente seria grande já que os desequilíbrios “internos” ao
agrupamento teriam de ser resolvidos através de ações e atitudes “externas” a ele.
Existe uma janela de oportunidade que emana da crise atual por que passa o MERCOSUL,
porém se a intenção for de aproveitá-la é imperativo que se aja rápido: as demandas
externas de negociação com o MERCOSUL, em particular as referentes à ALCA e à União
Européia, exigem uma definição antes que seja tarde demais. Tanto para o Chile como para
o MERCOSUL as chances de extrair concessões em áreas de interesse nessas negociações
dependem diretamente da capacidade do bloco de se ajustar, se unir e se projetar para fora
como uma entidade coesa e firme em seus propósitos. A decisão política que falta para que
um MERCOSUL “à cinco” seja realidade diz respeito não tanto à inserção internacional
que cada país membro privilegia e sim à inserção internacional que lhes é imposta pelas
várias formas de protecionismo localizado por parte dos países da OCDE. Mais do que um
aprofundamento da relação MERCOSUL-Chile nos moldes do acordo já existente o que se
deveria buscar é uma reforma e transformação desse acordo em algo muito mais
significativo: um bloco coeso e eficaz na defesa de seus interesses, cuja marca possa impor
respeito e assim extrair concessões dos grandes parceiros comerciais da sub-região.
Conclusão
Os eventos mais recentes presenciados no MERCOSUL representaram a culminação de
uma situação já então reinante no bloco de insuficiência conceitual e institucional.
Problemas bilaterais e atitudes unilaterais simplesmente refletiram a falta de foros,
instrumentos e objetivos estratégicos comuns, o que na conjuntura atual representa uma
oportunidade para repensar rumos e metas quadripartites. A relação com o Chile tem um
lugar especial nesse contexto, representando ao mesmo tempo um desafio talvez mais
viável do que em momentos passados assim como um elemento possivelmente facilitador e
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agregador para o MERCOSUL na medida em que contribua para uma definição do
posicionamento da sub-região perante o resto do mundo – a começar pela própria América
Latina.
Em face da possibilidade de benefícios econômicos bastante desiguais entre os
protagonistas de uma relação MERCOSUL-Chile renovada, repensar essa relação implica ir
além do âmbito econômico e buscar uma integração “eclética” onde variáveis de cunho
político e sócio-cultural possam também figurar de maneira proeminente no mosaico de
direitos e obrigações, custos e benefícios, e interesses sistêmicos e localizados,
possivelmente resultantes de um novo esforço negociador. Além dos pesos e medidas que a
premissa de “integrar ecleticamente” introduz à análise, outros elementos de valor deverão
compor o quadro analítico: as diferenças de visão de inserção no mundo entre as partes e a
viabilidade de coesão que possa exibir um “novo” bloco MERCOSUL-Chile.
Existem boas razões para se supor que seja possível e amplamente desejável aprofundar a
relação MERCOSUL-Chile, repensando matizes já existentes entre as duas partes e
projetando possíveis compromissos comuns face ao desafio da globalização e da
regionalização que se observa com muito vigor em todo o mundo. Partindo da premissa de
que existe um claro interesse estratégico por parte de ambas as partes de estabelecer uma
frente unida que possa ter mais peso no jogo de blocos característico das relações
internacionais do momento, o trabalho passa a ser rico em detalhes e demandante de grande
criatividade.
O desafio é grande, porém não pela falta de elementos com os quais compor uma nova
relação.
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