Multiculturalismo, diversidade e direito
LARISSA TENFEN SILVA .
Resumo: O presente artigo tem por objetivo ressaltar a importância do multiculturalismo na
defesa e reconhecimento da diversidade cultural, inclusive mediante o incentivo na criação de
direitos culturais. Num primeiro momento, busca-se fornecer noções sobre multiculturalismo,
para em seguida, ressaltar a importância do reconhecimento da diversidade cultural enquanto
objetivo das teorias multiculturais. Numa terceira etapa, trata-se de demonstrar a importância
do reconhecimento da diferença para a concretização de Estados democráticos e, por fim, a
importância do Direito como instrumento para efetivar o reconhecimento cultural nas
sociedades democráticas contemporâneas. Ressalta-se que não será analisada nenhuma
abordagem multicultural específica, mas serão levantadas apenas questões gerais importantes
para incentivar o debate multicultural.
1. Considerações preliminares
Refletir sobre a questão do multiculturalismo e perceber a importância da diversidade
cultural presente nas sociedades contemporâneas é um ato de extrema urgência diante das
graves conseqüências provenientes dos processos da formação homogênea do Estado-nação e
da concretização política de uma cidadania nacional fundada nos pressupostos liberais que,
em nome da afirmação de uma fictícia igualdade entre os diferentes indivíduos acarretou a
exclusão de vários segmentos sociais, bem como o não reconhecimento de reivindicações
culturais expostas por vários grupos coletivos. Dessa forma, a ênfase no multiculturalismo
enquanto movimento teórico oposto à questão da homogeneidade se faz necessária.
2. Possibilidades de compreensão do termo multiculturalismo
A noção de multiculturalismo é hoje cada vez mais utilizada, não somente nos meios
acadêmicos e políticos, como no cotidiano, por uma gama variada de pessoas, estando seu
significado associado a diversos sentidos, o que faz com que essa proliferação do termo não
contribua para estabilizar ou esclarecer seu significado1.
1
Cf. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adellaine La Guardia Resende
e outros. Belo Horizonte: Editora da UFMG/Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003, p.51.
São possíveis diversas leituras do termo multiculturalismo associadas a contextos
específicos e diferenciadas dos Estados, o que vem acarretando a criação de diferentes
interpretações explicativas do termo. Do mesmo modo como ocorre com as abordagens
teóricas da política, da moral, das instituições democráticas, das normas jurídicas etc., uma
teoria “multicultural” pode tanto privilegiar uma perspectiva descritiva como também
prescritiva. No primeiro caso, uma teoria multicultural descritiva pretende especialmente
expor fatos e coisas que ocorrem na sociedade, explicar a realidade, chamar a atenção para
determinados fenômenos, ao passo que no segundo caso, o objetivo da teoria multicultural é
prescrever, determinar formas corretas ou mais razoáveis, legitimas, mediante as quais
determinadas situações deveriam ser organizadas, ficando claro que as abordagens teóricas
podem conjugar as duas perspectivas. Neste trabalho privilegia-se a abordagem teóricoprescritiva do multiculturalismo, mas antes de adentrar neste viés, é necessário descrever o
multiculturalismo como um fato social para melhor compreender os motivos que irão
justificar a necessidade do enfoque teórico.
O multiculturalismo, entendido como a situação de convivência de grupos
diferenciados culturalmente sob um mesmo território, não é um fato novo, mas vem ganhando
expressão diante dos processos de deslocamentos humanos, principalmente nestes tempos
globais, o que se pode denotar numa série de acontecimentos que ocorrem nas sociedades
contemporâneas como reflexo desta situação multicultural, tais como a existência de uma
pluralidade de culturas criada pelos movimentos migratórios que modificam os quadros
demográficos-culturais dos paises, como exemplo, dos Estados Unidos, Canadá ; os
movimentos de grupos nacionalistas que reivindicam maior autonomia ou até mesmo
secessão frente a seus Estados como os Kurdos, Chechenos; a existência de novos
movimentos racismos de cunho sociocultural; o crescimento de movimentos fundamentalistas
que não aceitam diversidade cultural; a atuação dos novos movimentos sociais em busca de
acesso a cultura, tais como os movimentos feministas, dos homossexuais etc.
É diante do fato do multiculturalismo e de suas conseqüências no interior dos Estados
nacionais que se realça a importância das soluções, em termos normativos, para suas questões,
justificando assim, a realização de uma gama de medidas políticas e estudos acadêmicos
frente à proliferação de reivindicações de caráter étnico-cultural resultantes deste convívio
sócio-cultural.
Nesse sentido é que o multiculturalismo pode ser compreendido sob um enfoque
teórico de caráter normativo que tem por objetivo prescrever maneiras de solucionar os
problemas provenientes da convivência entre as pessoas e os diferentes grupos culturais
existentes nas sociedades plurais que buscam, na coexistência conjunta, manter suas pautas
culturais e sociais.2
Entretanto, apesar das diferentes propostas teóricas multiculturais
existentes, enfatiza-se apenas as propostas que apresentam como resposta ao gerenciamento
das demandas culturais caminhos contrário as práticas assimilacionistas3, segregadoras e até
mesmo genocidas postas em prática pelos Estados nacionais.4
3. Multiculturalismo e Reconhecimento
O multiculturalismo, como ressalta, Costa e Werle, visa ao reconhecimento
institucional mediante direitos dos diferentes valores e aspectos culturais presentes numa
sociedade, ou seja,
(...) o multiculturalismo é a expressão da afirmação e da luta pelo reconhecimento
desta pluralidade de valores e diversidade cultural no arcabouço institucional do
Estado democrático de direito, mediante o reconhecimento dos direitos básicos dos
indivíduos enquanto seres humanos e o reconhecimento das ‘necessidades
particulares’ dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais específicos.
Trata de afirmar, como direito básico e universal que os cidadãos têm necessidade
de um contexto cultural seguro para dar significado e orientação a seus modos de
conduzir a vida; que a pertença a uma comunidade cultural é fundamental para a
autonomia individual; que a cultura com seus valores e suas vinculações
normativas, representa um importante campo de reconhecimento para os indivíduos
e que, portanto, a proteção e respeito às diferenças culturais apresenta-se como
ampliação do leque de oportunidades de reconhecimento.5
A idéia de reconhecimento está voltada à busca pela satisfação e valorização das
necessidades particulares dos indivíduos, enquanto membros de grupos culturais específicos6,
2
É a partir desta concepção que, neste trabalho, passa-se a realizar as considerações sobre a categoria.
A assimilação é o processo de absorção de uma cultura por outra, recebendo metaforicamente a designação de
cadinho de raças. Já o conceito de salada mista (que designa a mistura de ingredientes separados e
distinguíveis, embora não sendo menos valioso que os outros) e de mosaico étnico (integração de diferentes
peças da sociedade reunidas em um arranjo) são utilizados para designar formas menos arbitrárias de
integração. CASHMORE, Ellis. Verbete: Integração. Dicionário de relações étnicas e raciais, Tradução de
Dinah Klevej. São Paulo: Summus, 2000, p. 271-273, p. 271-272.
4
SILVA, Larissa Tenfen. O multiculturalismo e a política de reconhecimento de Charles Taylor. Novos Estudos
Jurídicos,v.11,Universidade do Vale do Itajaí/SC: Brasil, n.2,jul/dez.06, p. 313/322.
5
COSTA, Sérgio; WERLE, Denílson Luís. Reconhecer as diferenças: liberais, comunitários e as relações raciais
no Brasil. In: SCHERER WARREN, Ilse et al. Cidadania e multiculturalismo: a teoria social no Brasil
contemporâneo. Lisboa: Editora da UFSC e Socius, 2000, .p. 82-116, p. 82.
6
Cf. GUTMANN, Amy. Introducción. In: TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la política del
reconocimiento. Tradução de Mónica Utrilla de Neira. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 1342, p. 21.
3
ou seja, de seus valores e diferenças culturais. Ressalta-se que esse tratamento diferenciado
somente ocorre em virtude de serem tais indivíduos parte de uma sociedade maior, da qual
necessitam serem tratados como iguais para poderem participar de maneira integral e paritária
da vida social.7 Nesse sentido, é estabelecido uma idéia de reconhecimento que percebe o
indivíduo enquanto membro de uma comunidade nacional e enquanto membro de um grupo
cultural específico.
É justamente para realização destes preceitos que o termo reconhecimento deve ser
vinculado à noção de respeito à diferença indo além da mera tolerância. Isto porque a
tolerância reflete a aceitação da mais vasta gama de opiniões e diferenças culturais, enquanto
não ameacem e causem danos às pessoas de forma direta. Já o respeito é muito mais seletivo,
embora as pessoas não tenham que estar de acordo com uma posição para respeitar, deve-se
compreender que suas opiniões e diferenças refletem um ponto de vista moral defensável, que
as pessoas podem ou não compartilhar, mas devem por isso respeitar, desde que sejam
desacordos morais respeitáves, não incluindo o ódio racial e étnico. 8
Dessa forma, o multiculturalismo prima pela “exigência de reconhecimento da
diversidade cultural e de um tratamento igualitário na convivência de várias etnias e/ou raças
que edificaram e constituem o espaço público de uma sociedade multirracial (...).”9
Todavia, o tipo de diversidades culturais reconhecidas e defendidas pelas teorias
multiculturais são de diferentes formas, o que inclusive acarreta o estabelecimento de
diferentes concepções de multiculturalismo.10 Dessa maneira, estas teorias podem tanto
abarcar reivindicações das minorias nacionais e grupos étnicos, ou ainda, um segundo tipo de
reivindicação de grupos sociais desfavorecidos, que não possuem uma base étnica, política e
7
FRASER, Nancy. Repensando a questão do reconhecimento: superar a substituição e a reificação na política
cultural. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direito humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 601-621, p.610-611.
8
Cf. GUTMANN, Amy. Introdução, p. 40. Uma sociedade multicultural vinculada à inclusão de uma vasta
gama de respeitáveis desacordos morais, oferece a oportunidade aos indivíduos de defender suas opiniões
perante as demais pessoas com seriedade moral, mesmo frente àquelas que estão em desacordo e assim ter a
oportunidade de apreender com as diferenças.
9
SILVÉRIO, Roberto Valter. O multiculturalismo e o reconhecimento: mito e metáfora, p. 47.
10
Por exemplo, para Adela Cortina, os autênticos problemas multiculturais são estabelecidos quando há o
enfrentamento entre distintas cosmovisões, formas de conceber o sentido da vida e da morte, diversas formas
de organização moral y social. Já os problemas dos Estados multinacionais são claramente políticos e hão de
resolver-se a partir de uma distribuição justa de poderes, seja na forma de autonomia, de Estados federados ou
confederados, ou qualquer outra forma que se considere adequada. CORTINA, Adela. Ciudadano del
mundo, p. 190-191.
nacional, sendo provenientes de movimentos sociais11, tais como os gays, lésbicas e
mulheres.12 Sobre esta categoria é interessante a observação realizada por Vieira,
As minorias, caracterizadas por uma propriedade particular (raça, cor da pele,
orientação sexual etc.) transformam sua fraqueza em força pela atuação de seus
movimentos sociais (negros, mulheres, gays). Questões tradicionalmente
consideradas da esfera privada – economia doméstica, relação homem-mulher –
ingressam na esfera pública, tornando-se questões públicas. A relevância moral
leva à fonte positiva de identificação e, daí, à representação pública, nos casos de
eleição de mulheres, negros ou gays para o parlamento.13
A cultura14, enquanto elemento central à temática do multiculturalismo e à justificação
da necessidade de reconhecimento, apresenta um importante papel na vida dos grupos e
indivíduos presentes nas sociedades, pois, nas palavras de Geertz, ela é entendida como
significados interpretativos de um contexto, ou seja, como teias de significado que o homem
tece em seu meio, não sendo vista como “uma ciência experimental em busca de leis, mas
como uma ciência interpretativa, à procura do significado”.15
De um modo geral,
a cultura é entendida como uma maneira de um grupo social compreender a vida.
Cultura é tudo aquilo que um determinado grupo social “cultua”, isto é, inclui seus
valores e suas tradições. Cada grupo social detém uma determinada cultura, com
diferentes características; entretanto, essa questão também diz respeito à cultura
dominante dentro de um grupo.16
A cultura deve ser concebida desvinculada do mito da cultura pura, ‘autêntica’,
que cria seus próprios valores, incomunicáveis para os que pertencem a outros
grupos, de forma que quem trata de sair de seu grupo e viver em outro, não resta
11
Cf. SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo, p. 43-44.
Todavia, embora haja significantes diferenças entre os tipos de reivindicações realizadas pelas duas categorias
de diversidade cultural realizadas acima, ambas possuem em comum a luta pelo acesso à cultura e a defesa
das diferenças que as constituem.
13
VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania, p. 235.
14
Neste trabalho não se fará um estudo sobre a cultural cuja função fica a cargo da antropologia, mas somente
serão levantadas breves considerações para visualizar a importância da cultura para os indivíduos e grupos e
sua relação com o multiculturalismo, até mesmo porque neste trabalho se enfatiza o enfoque normativo, no
qual cada teoria trabalhada apresentará seu conceito próprio de cultura e a justificativa em sua defesa.
15
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 4.
16
MACHADO, Cristina Gomes. Multiculturalismo: muito além da riqueza e da diferença. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002, p. 25.
12
mais solução a não ser abandonar sua visão de mundo e abraçar a do grupo de
destino. Ao contrário: não há cultura se não como diversidade.17
Assim sendo, o enfoque dado pelo multiculturalismo não deve se associar somente a
uma cultura dominante, mediante a qual proporciona a identidade social e estabelece o
ordenamento político, jurídico, mas valoriza outros vários tipos de culturas, ou pelos menos,
os aspectos positivos existentes nas diversas culturas existentes dentro de uma sociedade, pois
nem todas as diferenças culturais são dignas de proteção. 18
4. Multiculturalismo, diversidade cultural e democracia
A questão da diversidade cultural enquanto elemento principal de constituição do
multiculturalismo acaba por se vincular ao debate sobre a transformação da democracia19,
constituindo-se num desafio à própria democracia, já que “como valor universal a ser
defendido e garantido”,20 deve dar respostas ao reconhecimento das diferenças culturais.
O que se pretende alcançar com o desenvolvimento da prática democrática é a
inclusão da diferença que, mediante o viés multicultural, passa a ser vista de forma positiva,
contrariamente à defesa da diferença realizada pelos grupos fundamentalistas, que buscam o
fechamento de seus grupos em si mesmo, utilizando para isto de atos violentos. Desta forma
devem somente ser asseguradas pelo Direito as diferenças culturais que auxiliem no
estabelecimento da igualdade em face das desigualdades.
É justamente o “reconhecimento da condição de diferença que permite uma profícua
reflexão sobre a democracia, através da busca de modelos capazes de manter o princípio de
igualdade entre todos e, ao mesmo tempo, de acolher as diferenças e necessidades específicas
de cada um.”21
17
“(...) crea sus propios valores, incomunicables para quienes pertenecen a otro grupo, de forma que a quienes
tratan de sali de su grupo social y vivi en otro, no les queda más remedio que abandonar su visión del mundo
y abrazar la del grupo de destino. Al contrario: no hay cultura sino como diversidad.” DE LUCAS, Javier. El
futuro de la ciudadanía en la UE: ¿Es posible hablar de ciudadanía multicultural? In: DÍAZ, E. M. Y;
SIERRAS, S. O. (Edits.). Repensando la ciudadania. Sevilha: El Monte, 1999, p48-75, p. 65.
18
Nesses termos, a cultura deve ser vista como fato social na qual é produto de comunicação, intercâmbio e de
dinamismo do grupo, tanto em seu interior, como em relação com outros, sendo um fator em construção.
Idem, ibidem.
19
Cf. ROSALES, José Maria. Multiculturalismo e igualdad de oportunidades: um ensayo sobre el coste de los
derechos, Revista Anthropos: huellas Del conocimiento, Barcelona, n 191, 2001, p.79-92, p. 79.
20
PINTO, Celi R. J. A democracia desafiada: presença dos direitos multiculturais. Revista da Usp (Pósmodernidade e multiculturalismo), n. 42, 1999. p.56-69, p. 56.
21
Idem, p. 58.
Assim, enfatiza-se que é a partir deste questionamento da democracia pelo
multiculturalismo que desponta a “exigência de reconhecimento da diversidade cultural e de
um tratamento igualitário na convivência das várias etnias e /ou raças que edificam e
constituem o espaço público de uma sociedade (...).”22 Ou seja, a necessidade de
reconhecimento da diversidade cultural pelas instituições públicas das sociedades
contemporâneas.
No tocante ao reconhecimento da diversidade nas sociedades atuais, Gutmann
argumenta que é
difícil encontrar uma sociedade democrática ou democratizadora que não seja sede
de uma controvérsia importante sobre se as instituições públicas devem reconhecer
– e como- a identidade das minorias culturais em desvantagem.O que significa para
os cidadãos com diferentes identidades culturais, baseadas na etnicidade, na raça,
no sexo ou na religião, reconhecermos como iguais na forma política? (...)
Reconhecer e tratar como iguais aos membros de certos grupos é algo que hoje
parece requerer umas instituições públicas que reconheçam e que não passem por
alto, as particularidades culturais, ao menos no que se refere aqueles cuja
compreensão de si mesmos depende da vitalidade de sua cultura. Este requisito do
reconhecimento político da particularidade cultural – que se estende a todos – é
compatível com uma forma de universalismo que considera entre seus interesses
básicos a cultura e o contexto cultural que valorizam os indivíduos. ”23
A necessidade de políticas de reconhecimento não pode ser relegada apenas à esfera
da cultura, mas coadunada na esfera política, havendo assim, possibilidades diversas de
tratamento político dessas demandas por diversidade cultural, além de possibilitar a abertura
para a crítica às instituições políticas e mecanismos econômicos que reproduzem
desvantagens.24
Neste sentido, o multiculturalismo “sugere que o momento da ‘diferença’ é essencial à
definição de democracia como um espaço genuinamente heterogêneo (...)”. Para tanto,
22
SILVÉRIO, Roberto Valter. O multiculturalismo e o reconhecimento, p. 47.
“(...) difícil encontrar una sociedad democrática o democratizadora que no sea la sede de alguna controversia
importante sobre si las instituciones públicas debieran reconocer – y cómo – la identidad de las minorías
culturales y en desventaja. ¿ que significa para los ciudadanos con diferente identidad cultural, a menudo
basada nen la tenicidad, la raza, el sexo o la religión, reconocernos como iguales en la forma en que se nos
trata en política?” e “(...) Reconocer y tratar como iguales a los miembros de ciertos grupos es algo que hoy
parece requerir unas instituciones públicas que reconozcan, y no que pasen por alto, las particularidades
culturales, al menos por lo que se refiere a aquellos cuja comprensión de sí mismos depende de la vitalidad de
su cultura. Este requisito de reconocimiento político de la particularidad cultural – que se extiende a todos –
es compatible con una forma de universalismo que considera entre sus intereses básicos la cultura y el
contexto cultural que valoran los individuos”. In: GUTMAN, Amy. Introduccíon, p. 13 e 16.
24
Cf. COSTA, Sérgio. Complexidade, diversidade e democracia: alguns apontamentos conceituais e uma alusão
à singularidade brasileira. In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje. Novos desafios para a teoria democrática
contemporânea. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p. 461-476, p. 473.
23
Deve-se tentar construir uma diversidade de novas esferas públicas nas quais todos
os particulares serão transformados ao serem obrigados a negociar dentro de um
horizonte mais amplo. É essencial que esse espaço permaneça heterogêneo e
pluralístico e que os elementos de negociação dentro do mesmo retenham sua
différance. Eles devem resistir ao ímpeto de serem integrados por um processo de
equivalência formal, como dita a concepção liberal de cidadania, o que significa
recuperar a estratégia assimilacionista do Iluminismo através de um longo
desvio.”25
5. Direito e reconhecimento
É interessante ressaltar que as lutas pelo reconhecimento em paises democráticos
trazem em seu bojo a questão da acomodação dos diversos interesses e grupos dentro dos
Estados constitucionais, principalmente mediante concretização de direitos. Como explicita
Rosales, “o que está em jogo no debate multicultural não é somente a tolerância26 e o respeito
da diferença cultural, mas sim sua defesa como direito.”27
Assim sendo, “as demandas por reconhecimento da diferença terminam por se
converter em uma poderosa exigência de reconhecimento da diferença cultural como direito
de grupo”;28 é neste sentido que “a experiência do multiculturalismo pode assim, caracterizarse como resultado de um reequilíbrio constante entre as demandas de reconhecimento que
estabelecem as minorias e a capacidade integradora do sistema político, e em última instância,
do sistema constitucional.”29
O que se percebe é que as demandas multiculturais vêm proporcionar uma crescente
ampliação nos direitos constitucionais na maioria dos países ocidentais.30 Entretanto, não
bastam somente as lutas pelo reconhecimento serem traduzidas em termos normativos
25
HALL, Stuar. A questão multicultural, p. 87.
Neste sentido, “a tolerância torna a diferença possível, a diferença torna a tolerância necessária.” WALZER,
Michel. Da tolerância. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. xii. Ressalta-se que a
tolerância deve ser entendida como respeito aos que possuem convicções, credos, ideologias, culturas
diferentes, e não somente no sentido de indulgência, de complacência ou benevolência para com a diferença
do outro em virtude de uma coexistência pacífica que deve se restringir aos planos privados. Ou seja, as
diferenças não devem ser apenas toleradas, pois isso pode acarretar a redução dos diferentes grupos culturais a
viver em guetos isolados. Prima-se então, por uma concepção de tolerância que busca reconhecer as diferentes
identidades culturais e sanar os grupos discriminados num âmbito político, inclusive mediante a concessão de
direitos, embora nem todas as diferenças possam ser toleradas, especialmente, quando vão contra o instituído
nas cartas constitucionais dos estados soberanos e nos direitos humanos.
27
ROSALES, José María. Multiculturalismo e igualdad de oportunidades, p. 89.
28
Idem, p. 81.
29
Idem, p. 83.
30
Tal situação pode ser vista, por exemplo, no caso brasileiro, com a inserção na Constituição de 1988 dos
direitos indígenas e dos negros.
26
constitucionais, mas também em termos de ações políticas no campo institucional mediante a
realização de políticas públicas que buscam afirmar e administrar as diferenças culturais, e
identitárias utilizando estratégias que contemplem componentes lingüísticos, sociais,
econômicos, educativos, entre outros. 31
Fica claro que a democracia contemporânea, diante do já mencionado fato do
multiculturalismo, tem utilizado o Direito como meio de integração social, de pacificação de
conflitos, de efetivação das muitas reivindicações por demandas ético-culturais, de respeito às
diferenças, do reconhecimento das identidades etc., ocorrendo assim um deslocamento do
eixo político para o jurídico.
Nesse sentido, a centralidade do Direito quando relacionada às pautas multiculturais é
vista não somente com um mecanismo de regulação social, mas também de simetrização das
relações interpessoais, apontando para seu potencial transformador do contexto social. Como
explica Semprini, “os multiculturalistas não ignoram a real dimensão da independência entre
jurídico e político e à efetiva equidade da justiça”, denotando, porém, que o direito cumpre
um papel ativo, pois ele viabiliza a coalização entre as esferas privada e pública, melhor
dizendo, o Direito é chamado a formalizar e a regulamentar a incapacidade da esfera privada
de acomodar-se à mudança sociocultural32.
Entretanto, é de destacar que as políticas de reconhecimento, sendo em termos
normativos constitucionais ou em termos de políticas públicas apresentam certos dilemas. As
demandas particulares que transformam direitos em diferenças culturais, muitas vezes podem
sobrecarregar o Estado com uma pressão social cuja legitimidade ele não tenha os
instrumentos políticos para aferir33. Para Rosales, existem condições materiais que limitam a
modulação dos princípios que regulam no constitucionalismo liberal o reconhecimento dos
direitos, tais como, a falta de recursos para exercício dos direitos, tanto materiais quanto
31
No Brasil, estas políticas públicas começam a ser visualizadas por exemplo, nas administrações de poderes
executivos, que buscam conciliar democracia e diversidade cultural, mediante institucionalização de políticas
de cotas para acesso a universidades, tal como ocorrido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, após a
criação de uma lei estadual do ano de 2001; a instalação de mecanismos de maior participação popular e de
redistribuição de riquezas como a instalação do orçamento participativo na gestão do ex-prefeito Olívio Dutra
em Porto Alegre (1989-1992), ou ainda como no exemplo da Prefeitura de São Paulo, que no ano de 1992
realizou duas exposições que pretenderam desmistificar a questão indígena e a homogeneidade cultural
presente no discurso da nação: Índio no Brasil: alteridade, diversidade e diálogo cultura e Pátria Amada
Esquartejada, sob o comando da Prefeita Luiza Erundina e da Secretária da Cultura Municipal Marilena
Chauí.Cf. MONTEIRO, Paula. Cultura e Democracia no processo da globalização. Novos Estudos, São
Paulo, n. 44, 1996, p. 89-114, p. 111. Cf. KRISCHE, Paulo. Governo Lula: políticas de reconhecimento e
de redistribuição. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Disponível em: <
http//www.cfh.ufsc.Br/~dich/Textocaderno47.pdf> Acesso em 13 nov. 2004.
32
Cf. SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo, p. 164-165.
33
Idem, p.112.
cognitivo; a má distribuição dos direitos no mundo real, além do problema de sua sustentação,
já que requerem custos monetários para práticas políticas34.
Outra questão é o fato da integração via normativa pode acabar por minimizar a
diferença, transformando-a num pressuposto abstrato que não valora a diferença por ela
mesma, o que faz com que a diferença seja tolerada neste sistema democrático liberal e não
valorizada mediante a concretização de direitos, ou ainda receba uma valorização num sentido
superficial e comercial ou de caráter folclórico e pitoresco. O diferente passa a ser visto como
aquele que não tem direito, fazendo com que a cultura seja dissolvida em propostas abstratas e
identificações universalizantes, o que faz perder a dimensão da diferença. Assim, não basta
resolver os problemas somente na base da igualdade de direito, faltando solução no plano de
valoração das diferenças culturais35.
Por fim, como lembra Celi, é necessária para uma real inclusão uma mudança de poder
para que de fato haja maior possibilidade de inclusão social das minorias desfavorecidas36.
Apesar destes dilemas, não se pode olvidar a necessidade de conceber políticas de
reconhecimento dentro de uma teoria crítica do reconhecimento, que albergue a um só tempo
reconhecimento e redistribuição, ou seja, uma teoria que identifique e defenda políticas
culturais da diferença que possam ser combinadas com a política social de igualdade37 . Isto
porque “no mundo real, cultura e economia política estão sempre imbricadas e virtualmente
toda luta contra a injustiça, quando corretamente entendida, implica demandas por
redistribuição e reconhecimento.”38
Ademais as lutas pelas identidades estão presentes em contextos de crescentes
desigualdades sociais, sendo que nas sociedades contemporâneas se encontram presentes tanto
injustiças sócio-econômicas como injustiças culturais, estando ambas enraizadas em
processos e práticas que prejudicam alguns grupos, devendo por isto serem remediadas.39
Para fazer frente a esta situação, Nancy Frazer coloca como necessária uma noção de
justiça social, que por um lado não se restrinja ao eixo da classe, pois “a contestação abarca
agora outros eixos de subordinação, incluindo a diferença sexual, a raça, a etnicidade, a
34
Cf. ROSALES, José María. Multiculturalismo e igualdad de oportunidades: um ensayo sobre el coste de
los derechos, p. 89.
35
Cf. MONTEIRO, Paula. Cultura e democracia no processo da globalização, p.111-112.
36
Cf. PINTO, Celi R. J. A democracia desafiada, p. 61.
37
Cf. FRASE, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In:
SOUZA, Jessé. Democracia hoje. Novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, 2001, p.245- 282, p. 246.
38
Idem, p. 248.
39
Idem, p.251.
sexualidade, a religião e a nacionalidade”40 e por outro, “não se cinge só a questões de
distribuição, abrangendo agora também questões de representação, identidade e diferença.”41
Ou seja, a nova noção de justiça social deve abarcar as preocupações da teoria da justiça
distributiva e teoria cultural da justiça, que são difíceis de se relacionar.
Como princípio coadunador entre redistribuição e reconhecimento, a citada autora
propõe o princípio de paridade de participação, segundo o qual a justiça requer arranjos
sociais que permitam a todos os membros da sociedade interagir entre si como pares. Para
isso é necessário tanto uma distribuição de recursos materiais que garantam a independência e
voz dos participantes como também padrões institucionalizados de valor cultural que
exprimam igual respeito por todos os participantes e garantam iguais oportunidades para
alcançar a consideração social.42Assim, tem-se uma visão de reconhecimento que promove a
interação social respeitosa entre as diferenças e não estimula os enclaves de grupo e a limpeza
étnica.43
Nessa perspectiva, o que se deve reconhecer é o status de membro individual de um
indivíduo pertencente a um grupo específico, enquanto parceiro integral na interação social,
sendo a política de reconhecimento voltada à superação da subordinação por meio do
estabelecimento da parte não reconhecida como membro integral da sociedade, capaz de
participar como igual da vida social.44
Diante do que foi dito, percebe-se que a questão do multiculturalismo,
contemporaneamente, constitui como um dos maiores desafios ao Estado –Nação no sentido
de como gerenciar a diversidade cultural e seus conflitos dentro de um país em busca de uma
unidade social, colocando à vista a necessidade da incorporação dessas diferenças pelos
sistemas democráticos atuais, inclusive em seus ordenamentos jurídico-políticos, bem como
de desmistificar uma pretensa homogeneidade cultural construída a partir do mito da nação,
incentivando e respeitando assim, a heterogeneidade. É na seara deste contexto que surge a
necessidade do debate do presente tema e o Direito servir de instrumento na luta multicultural.
40
FRASE, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista
Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, out. 2002, p. 7-20, p. 9.
41
Idem, ibidem.
42
Idem, p. 13.
43
Cf. FRASER, Nancy. Repensando a questão do reconhecimento, p. 604.
44
Idem, p. 610.
6. Bibliografia:
CASHMORE, Ellis. Verbete: Integração. Dicionário de relações étnicas e raciais, Tradução
de Dinah Klevej. São Paulo: Summus, 2000, p. 271-273.
COSTA, Sérgio. Complexidade, diversidade e democracia: alguns apontamentos conceituais e
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Multiculturalismo, diversidade e direito