Multiculturalismo, diversidade e direito LARISSA TENFEN SILVA . Resumo: O presente artigo tem por objetivo ressaltar a importância do multiculturalismo na defesa e reconhecimento da diversidade cultural, inclusive mediante o incentivo na criação de direitos culturais. Num primeiro momento, busca-se fornecer noções sobre multiculturalismo, para em seguida, ressaltar a importância do reconhecimento da diversidade cultural enquanto objetivo das teorias multiculturais. Numa terceira etapa, trata-se de demonstrar a importância do reconhecimento da diferença para a concretização de Estados democráticos e, por fim, a importância do Direito como instrumento para efetivar o reconhecimento cultural nas sociedades democráticas contemporâneas. Ressalta-se que não será analisada nenhuma abordagem multicultural específica, mas serão levantadas apenas questões gerais importantes para incentivar o debate multicultural. 1. Considerações preliminares Refletir sobre a questão do multiculturalismo e perceber a importância da diversidade cultural presente nas sociedades contemporâneas é um ato de extrema urgência diante das graves conseqüências provenientes dos processos da formação homogênea do Estado-nação e da concretização política de uma cidadania nacional fundada nos pressupostos liberais que, em nome da afirmação de uma fictícia igualdade entre os diferentes indivíduos acarretou a exclusão de vários segmentos sociais, bem como o não reconhecimento de reivindicações culturais expostas por vários grupos coletivos. Dessa forma, a ênfase no multiculturalismo enquanto movimento teórico oposto à questão da homogeneidade se faz necessária. 2. Possibilidades de compreensão do termo multiculturalismo A noção de multiculturalismo é hoje cada vez mais utilizada, não somente nos meios acadêmicos e políticos, como no cotidiano, por uma gama variada de pessoas, estando seu significado associado a diversos sentidos, o que faz com que essa proliferação do termo não contribua para estabilizar ou esclarecer seu significado1. 1 Cf. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adellaine La Guardia Resende e outros. Belo Horizonte: Editora da UFMG/Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003, p.51. São possíveis diversas leituras do termo multiculturalismo associadas a contextos específicos e diferenciadas dos Estados, o que vem acarretando a criação de diferentes interpretações explicativas do termo. Do mesmo modo como ocorre com as abordagens teóricas da política, da moral, das instituições democráticas, das normas jurídicas etc., uma teoria “multicultural” pode tanto privilegiar uma perspectiva descritiva como também prescritiva. No primeiro caso, uma teoria multicultural descritiva pretende especialmente expor fatos e coisas que ocorrem na sociedade, explicar a realidade, chamar a atenção para determinados fenômenos, ao passo que no segundo caso, o objetivo da teoria multicultural é prescrever, determinar formas corretas ou mais razoáveis, legitimas, mediante as quais determinadas situações deveriam ser organizadas, ficando claro que as abordagens teóricas podem conjugar as duas perspectivas. Neste trabalho privilegia-se a abordagem teóricoprescritiva do multiculturalismo, mas antes de adentrar neste viés, é necessário descrever o multiculturalismo como um fato social para melhor compreender os motivos que irão justificar a necessidade do enfoque teórico. O multiculturalismo, entendido como a situação de convivência de grupos diferenciados culturalmente sob um mesmo território, não é um fato novo, mas vem ganhando expressão diante dos processos de deslocamentos humanos, principalmente nestes tempos globais, o que se pode denotar numa série de acontecimentos que ocorrem nas sociedades contemporâneas como reflexo desta situação multicultural, tais como a existência de uma pluralidade de culturas criada pelos movimentos migratórios que modificam os quadros demográficos-culturais dos paises, como exemplo, dos Estados Unidos, Canadá ; os movimentos de grupos nacionalistas que reivindicam maior autonomia ou até mesmo secessão frente a seus Estados como os Kurdos, Chechenos; a existência de novos movimentos racismos de cunho sociocultural; o crescimento de movimentos fundamentalistas que não aceitam diversidade cultural; a atuação dos novos movimentos sociais em busca de acesso a cultura, tais como os movimentos feministas, dos homossexuais etc. É diante do fato do multiculturalismo e de suas conseqüências no interior dos Estados nacionais que se realça a importância das soluções, em termos normativos, para suas questões, justificando assim, a realização de uma gama de medidas políticas e estudos acadêmicos frente à proliferação de reivindicações de caráter étnico-cultural resultantes deste convívio sócio-cultural. Nesse sentido é que o multiculturalismo pode ser compreendido sob um enfoque teórico de caráter normativo que tem por objetivo prescrever maneiras de solucionar os problemas provenientes da convivência entre as pessoas e os diferentes grupos culturais existentes nas sociedades plurais que buscam, na coexistência conjunta, manter suas pautas culturais e sociais.2 Entretanto, apesar das diferentes propostas teóricas multiculturais existentes, enfatiza-se apenas as propostas que apresentam como resposta ao gerenciamento das demandas culturais caminhos contrário as práticas assimilacionistas3, segregadoras e até mesmo genocidas postas em prática pelos Estados nacionais.4 3. Multiculturalismo e Reconhecimento O multiculturalismo, como ressalta, Costa e Werle, visa ao reconhecimento institucional mediante direitos dos diferentes valores e aspectos culturais presentes numa sociedade, ou seja, (...) o multiculturalismo é a expressão da afirmação e da luta pelo reconhecimento desta pluralidade de valores e diversidade cultural no arcabouço institucional do Estado democrático de direito, mediante o reconhecimento dos direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e o reconhecimento das ‘necessidades particulares’ dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais específicos. Trata de afirmar, como direito básico e universal que os cidadãos têm necessidade de um contexto cultural seguro para dar significado e orientação a seus modos de conduzir a vida; que a pertença a uma comunidade cultural é fundamental para a autonomia individual; que a cultura com seus valores e suas vinculações normativas, representa um importante campo de reconhecimento para os indivíduos e que, portanto, a proteção e respeito às diferenças culturais apresenta-se como ampliação do leque de oportunidades de reconhecimento.5 A idéia de reconhecimento está voltada à busca pela satisfação e valorização das necessidades particulares dos indivíduos, enquanto membros de grupos culturais específicos6, 2 É a partir desta concepção que, neste trabalho, passa-se a realizar as considerações sobre a categoria. A assimilação é o processo de absorção de uma cultura por outra, recebendo metaforicamente a designação de cadinho de raças. Já o conceito de salada mista (que designa a mistura de ingredientes separados e distinguíveis, embora não sendo menos valioso que os outros) e de mosaico étnico (integração de diferentes peças da sociedade reunidas em um arranjo) são utilizados para designar formas menos arbitrárias de integração. CASHMORE, Ellis. Verbete: Integração. Dicionário de relações étnicas e raciais, Tradução de Dinah Klevej. São Paulo: Summus, 2000, p. 271-273, p. 271-272. 4 SILVA, Larissa Tenfen. O multiculturalismo e a política de reconhecimento de Charles Taylor. Novos Estudos Jurídicos,v.11,Universidade do Vale do Itajaí/SC: Brasil, n.2,jul/dez.06, p. 313/322. 5 COSTA, Sérgio; WERLE, Denílson Luís. Reconhecer as diferenças: liberais, comunitários e as relações raciais no Brasil. In: SCHERER WARREN, Ilse et al. Cidadania e multiculturalismo: a teoria social no Brasil contemporâneo. Lisboa: Editora da UFSC e Socius, 2000, .p. 82-116, p. 82. 6 Cf. GUTMANN, Amy. Introducción. In: TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la política del reconocimiento. Tradução de Mónica Utrilla de Neira. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 1342, p. 21. 3 ou seja, de seus valores e diferenças culturais. Ressalta-se que esse tratamento diferenciado somente ocorre em virtude de serem tais indivíduos parte de uma sociedade maior, da qual necessitam serem tratados como iguais para poderem participar de maneira integral e paritária da vida social.7 Nesse sentido, é estabelecido uma idéia de reconhecimento que percebe o indivíduo enquanto membro de uma comunidade nacional e enquanto membro de um grupo cultural específico. É justamente para realização destes preceitos que o termo reconhecimento deve ser vinculado à noção de respeito à diferença indo além da mera tolerância. Isto porque a tolerância reflete a aceitação da mais vasta gama de opiniões e diferenças culturais, enquanto não ameacem e causem danos às pessoas de forma direta. Já o respeito é muito mais seletivo, embora as pessoas não tenham que estar de acordo com uma posição para respeitar, deve-se compreender que suas opiniões e diferenças refletem um ponto de vista moral defensável, que as pessoas podem ou não compartilhar, mas devem por isso respeitar, desde que sejam desacordos morais respeitáves, não incluindo o ódio racial e étnico. 8 Dessa forma, o multiculturalismo prima pela “exigência de reconhecimento da diversidade cultural e de um tratamento igualitário na convivência de várias etnias e/ou raças que edificaram e constituem o espaço público de uma sociedade multirracial (...).”9 Todavia, o tipo de diversidades culturais reconhecidas e defendidas pelas teorias multiculturais são de diferentes formas, o que inclusive acarreta o estabelecimento de diferentes concepções de multiculturalismo.10 Dessa maneira, estas teorias podem tanto abarcar reivindicações das minorias nacionais e grupos étnicos, ou ainda, um segundo tipo de reivindicação de grupos sociais desfavorecidos, que não possuem uma base étnica, política e 7 FRASER, Nancy. Repensando a questão do reconhecimento: superar a substituição e a reificação na política cultural. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direito humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 601-621, p.610-611. 8 Cf. GUTMANN, Amy. Introdução, p. 40. Uma sociedade multicultural vinculada à inclusão de uma vasta gama de respeitáveis desacordos morais, oferece a oportunidade aos indivíduos de defender suas opiniões perante as demais pessoas com seriedade moral, mesmo frente àquelas que estão em desacordo e assim ter a oportunidade de apreender com as diferenças. 9 SILVÉRIO, Roberto Valter. O multiculturalismo e o reconhecimento: mito e metáfora, p. 47. 10 Por exemplo, para Adela Cortina, os autênticos problemas multiculturais são estabelecidos quando há o enfrentamento entre distintas cosmovisões, formas de conceber o sentido da vida e da morte, diversas formas de organização moral y social. Já os problemas dos Estados multinacionais são claramente políticos e hão de resolver-se a partir de uma distribuição justa de poderes, seja na forma de autonomia, de Estados federados ou confederados, ou qualquer outra forma que se considere adequada. CORTINA, Adela. Ciudadano del mundo, p. 190-191. nacional, sendo provenientes de movimentos sociais11, tais como os gays, lésbicas e mulheres.12 Sobre esta categoria é interessante a observação realizada por Vieira, As minorias, caracterizadas por uma propriedade particular (raça, cor da pele, orientação sexual etc.) transformam sua fraqueza em força pela atuação de seus movimentos sociais (negros, mulheres, gays). Questões tradicionalmente consideradas da esfera privada – economia doméstica, relação homem-mulher – ingressam na esfera pública, tornando-se questões públicas. A relevância moral leva à fonte positiva de identificação e, daí, à representação pública, nos casos de eleição de mulheres, negros ou gays para o parlamento.13 A cultura14, enquanto elemento central à temática do multiculturalismo e à justificação da necessidade de reconhecimento, apresenta um importante papel na vida dos grupos e indivíduos presentes nas sociedades, pois, nas palavras de Geertz, ela é entendida como significados interpretativos de um contexto, ou seja, como teias de significado que o homem tece em seu meio, não sendo vista como “uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado”.15 De um modo geral, a cultura é entendida como uma maneira de um grupo social compreender a vida. Cultura é tudo aquilo que um determinado grupo social “cultua”, isto é, inclui seus valores e suas tradições. Cada grupo social detém uma determinada cultura, com diferentes características; entretanto, essa questão também diz respeito à cultura dominante dentro de um grupo.16 A cultura deve ser concebida desvinculada do mito da cultura pura, ‘autêntica’, que cria seus próprios valores, incomunicáveis para os que pertencem a outros grupos, de forma que quem trata de sair de seu grupo e viver em outro, não resta 11 Cf. SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo, p. 43-44. Todavia, embora haja significantes diferenças entre os tipos de reivindicações realizadas pelas duas categorias de diversidade cultural realizadas acima, ambas possuem em comum a luta pelo acesso à cultura e a defesa das diferenças que as constituem. 13 VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania, p. 235. 14 Neste trabalho não se fará um estudo sobre a cultural cuja função fica a cargo da antropologia, mas somente serão levantadas breves considerações para visualizar a importância da cultura para os indivíduos e grupos e sua relação com o multiculturalismo, até mesmo porque neste trabalho se enfatiza o enfoque normativo, no qual cada teoria trabalhada apresentará seu conceito próprio de cultura e a justificativa em sua defesa. 15 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 4. 16 MACHADO, Cristina Gomes. Multiculturalismo: muito além da riqueza e da diferença. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 25. 12 mais solução a não ser abandonar sua visão de mundo e abraçar a do grupo de destino. Ao contrário: não há cultura se não como diversidade.17 Assim sendo, o enfoque dado pelo multiculturalismo não deve se associar somente a uma cultura dominante, mediante a qual proporciona a identidade social e estabelece o ordenamento político, jurídico, mas valoriza outros vários tipos de culturas, ou pelos menos, os aspectos positivos existentes nas diversas culturas existentes dentro de uma sociedade, pois nem todas as diferenças culturais são dignas de proteção. 18 4. Multiculturalismo, diversidade cultural e democracia A questão da diversidade cultural enquanto elemento principal de constituição do multiculturalismo acaba por se vincular ao debate sobre a transformação da democracia19, constituindo-se num desafio à própria democracia, já que “como valor universal a ser defendido e garantido”,20 deve dar respostas ao reconhecimento das diferenças culturais. O que se pretende alcançar com o desenvolvimento da prática democrática é a inclusão da diferença que, mediante o viés multicultural, passa a ser vista de forma positiva, contrariamente à defesa da diferença realizada pelos grupos fundamentalistas, que buscam o fechamento de seus grupos em si mesmo, utilizando para isto de atos violentos. Desta forma devem somente ser asseguradas pelo Direito as diferenças culturais que auxiliem no estabelecimento da igualdade em face das desigualdades. É justamente o “reconhecimento da condição de diferença que permite uma profícua reflexão sobre a democracia, através da busca de modelos capazes de manter o princípio de igualdade entre todos e, ao mesmo tempo, de acolher as diferenças e necessidades específicas de cada um.”21 17 “(...) crea sus propios valores, incomunicables para quienes pertenecen a otro grupo, de forma que a quienes tratan de sali de su grupo social y vivi en otro, no les queda más remedio que abandonar su visión del mundo y abrazar la del grupo de destino. Al contrario: no hay cultura sino como diversidad.” DE LUCAS, Javier. El futuro de la ciudadanía en la UE: ¿Es posible hablar de ciudadanía multicultural? In: DÍAZ, E. M. Y; SIERRAS, S. O. (Edits.). Repensando la ciudadania. Sevilha: El Monte, 1999, p48-75, p. 65. 18 Nesses termos, a cultura deve ser vista como fato social na qual é produto de comunicação, intercâmbio e de dinamismo do grupo, tanto em seu interior, como em relação com outros, sendo um fator em construção. Idem, ibidem. 19 Cf. ROSALES, José Maria. Multiculturalismo e igualdad de oportunidades: um ensayo sobre el coste de los derechos, Revista Anthropos: huellas Del conocimiento, Barcelona, n 191, 2001, p.79-92, p. 79. 20 PINTO, Celi R. J. A democracia desafiada: presença dos direitos multiculturais. Revista da Usp (Pósmodernidade e multiculturalismo), n. 42, 1999. p.56-69, p. 56. 21 Idem, p. 58. Assim, enfatiza-se que é a partir deste questionamento da democracia pelo multiculturalismo que desponta a “exigência de reconhecimento da diversidade cultural e de um tratamento igualitário na convivência das várias etnias e /ou raças que edificam e constituem o espaço público de uma sociedade (...).”22 Ou seja, a necessidade de reconhecimento da diversidade cultural pelas instituições públicas das sociedades contemporâneas. No tocante ao reconhecimento da diversidade nas sociedades atuais, Gutmann argumenta que é difícil encontrar uma sociedade democrática ou democratizadora que não seja sede de uma controvérsia importante sobre se as instituições públicas devem reconhecer – e como- a identidade das minorias culturais em desvantagem.O que significa para os cidadãos com diferentes identidades culturais, baseadas na etnicidade, na raça, no sexo ou na religião, reconhecermos como iguais na forma política? (...) Reconhecer e tratar como iguais aos membros de certos grupos é algo que hoje parece requerer umas instituições públicas que reconheçam e que não passem por alto, as particularidades culturais, ao menos no que se refere aqueles cuja compreensão de si mesmos depende da vitalidade de sua cultura. Este requisito do reconhecimento político da particularidade cultural – que se estende a todos – é compatível com uma forma de universalismo que considera entre seus interesses básicos a cultura e o contexto cultural que valorizam os indivíduos. ”23 A necessidade de políticas de reconhecimento não pode ser relegada apenas à esfera da cultura, mas coadunada na esfera política, havendo assim, possibilidades diversas de tratamento político dessas demandas por diversidade cultural, além de possibilitar a abertura para a crítica às instituições políticas e mecanismos econômicos que reproduzem desvantagens.24 Neste sentido, o multiculturalismo “sugere que o momento da ‘diferença’ é essencial à definição de democracia como um espaço genuinamente heterogêneo (...)”. Para tanto, 22 SILVÉRIO, Roberto Valter. O multiculturalismo e o reconhecimento, p. 47. “(...) difícil encontrar una sociedad democrática o democratizadora que no sea la sede de alguna controversia importante sobre si las instituciones públicas debieran reconocer – y cómo – la identidad de las minorías culturales y en desventaja. ¿ que significa para los ciudadanos con diferente identidad cultural, a menudo basada nen la tenicidad, la raza, el sexo o la religión, reconocernos como iguales en la forma en que se nos trata en política?” e “(...) Reconocer y tratar como iguales a los miembros de ciertos grupos es algo que hoy parece requerir unas instituciones públicas que reconozcan, y no que pasen por alto, las particularidades culturales, al menos por lo que se refiere a aquellos cuja comprensión de sí mismos depende de la vitalidad de su cultura. Este requisito de reconocimiento político de la particularidad cultural – que se extiende a todos – es compatible con una forma de universalismo que considera entre sus intereses básicos la cultura y el contexto cultural que valoran los individuos”. In: GUTMAN, Amy. Introduccíon, p. 13 e 16. 24 Cf. COSTA, Sérgio. Complexidade, diversidade e democracia: alguns apontamentos conceituais e uma alusão à singularidade brasileira. In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje. Novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p. 461-476, p. 473. 23 Deve-se tentar construir uma diversidade de novas esferas públicas nas quais todos os particulares serão transformados ao serem obrigados a negociar dentro de um horizonte mais amplo. É essencial que esse espaço permaneça heterogêneo e pluralístico e que os elementos de negociação dentro do mesmo retenham sua différance. Eles devem resistir ao ímpeto de serem integrados por um processo de equivalência formal, como dita a concepção liberal de cidadania, o que significa recuperar a estratégia assimilacionista do Iluminismo através de um longo desvio.”25 5. Direito e reconhecimento É interessante ressaltar que as lutas pelo reconhecimento em paises democráticos trazem em seu bojo a questão da acomodação dos diversos interesses e grupos dentro dos Estados constitucionais, principalmente mediante concretização de direitos. Como explicita Rosales, “o que está em jogo no debate multicultural não é somente a tolerância26 e o respeito da diferença cultural, mas sim sua defesa como direito.”27 Assim sendo, “as demandas por reconhecimento da diferença terminam por se converter em uma poderosa exigência de reconhecimento da diferença cultural como direito de grupo”;28 é neste sentido que “a experiência do multiculturalismo pode assim, caracterizarse como resultado de um reequilíbrio constante entre as demandas de reconhecimento que estabelecem as minorias e a capacidade integradora do sistema político, e em última instância, do sistema constitucional.”29 O que se percebe é que as demandas multiculturais vêm proporcionar uma crescente ampliação nos direitos constitucionais na maioria dos países ocidentais.30 Entretanto, não bastam somente as lutas pelo reconhecimento serem traduzidas em termos normativos 25 HALL, Stuar. A questão multicultural, p. 87. Neste sentido, “a tolerância torna a diferença possível, a diferença torna a tolerância necessária.” WALZER, Michel. Da tolerância. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. xii. Ressalta-se que a tolerância deve ser entendida como respeito aos que possuem convicções, credos, ideologias, culturas diferentes, e não somente no sentido de indulgência, de complacência ou benevolência para com a diferença do outro em virtude de uma coexistência pacífica que deve se restringir aos planos privados. Ou seja, as diferenças não devem ser apenas toleradas, pois isso pode acarretar a redução dos diferentes grupos culturais a viver em guetos isolados. Prima-se então, por uma concepção de tolerância que busca reconhecer as diferentes identidades culturais e sanar os grupos discriminados num âmbito político, inclusive mediante a concessão de direitos, embora nem todas as diferenças possam ser toleradas, especialmente, quando vão contra o instituído nas cartas constitucionais dos estados soberanos e nos direitos humanos. 27 ROSALES, José María. Multiculturalismo e igualdad de oportunidades, p. 89. 28 Idem, p. 81. 29 Idem, p. 83. 30 Tal situação pode ser vista, por exemplo, no caso brasileiro, com a inserção na Constituição de 1988 dos direitos indígenas e dos negros. 26 constitucionais, mas também em termos de ações políticas no campo institucional mediante a realização de políticas públicas que buscam afirmar e administrar as diferenças culturais, e identitárias utilizando estratégias que contemplem componentes lingüísticos, sociais, econômicos, educativos, entre outros. 31 Fica claro que a democracia contemporânea, diante do já mencionado fato do multiculturalismo, tem utilizado o Direito como meio de integração social, de pacificação de conflitos, de efetivação das muitas reivindicações por demandas ético-culturais, de respeito às diferenças, do reconhecimento das identidades etc., ocorrendo assim um deslocamento do eixo político para o jurídico. Nesse sentido, a centralidade do Direito quando relacionada às pautas multiculturais é vista não somente com um mecanismo de regulação social, mas também de simetrização das relações interpessoais, apontando para seu potencial transformador do contexto social. Como explica Semprini, “os multiculturalistas não ignoram a real dimensão da independência entre jurídico e político e à efetiva equidade da justiça”, denotando, porém, que o direito cumpre um papel ativo, pois ele viabiliza a coalização entre as esferas privada e pública, melhor dizendo, o Direito é chamado a formalizar e a regulamentar a incapacidade da esfera privada de acomodar-se à mudança sociocultural32. Entretanto, é de destacar que as políticas de reconhecimento, sendo em termos normativos constitucionais ou em termos de políticas públicas apresentam certos dilemas. As demandas particulares que transformam direitos em diferenças culturais, muitas vezes podem sobrecarregar o Estado com uma pressão social cuja legitimidade ele não tenha os instrumentos políticos para aferir33. Para Rosales, existem condições materiais que limitam a modulação dos princípios que regulam no constitucionalismo liberal o reconhecimento dos direitos, tais como, a falta de recursos para exercício dos direitos, tanto materiais quanto 31 No Brasil, estas políticas públicas começam a ser visualizadas por exemplo, nas administrações de poderes executivos, que buscam conciliar democracia e diversidade cultural, mediante institucionalização de políticas de cotas para acesso a universidades, tal como ocorrido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, após a criação de uma lei estadual do ano de 2001; a instalação de mecanismos de maior participação popular e de redistribuição de riquezas como a instalação do orçamento participativo na gestão do ex-prefeito Olívio Dutra em Porto Alegre (1989-1992), ou ainda como no exemplo da Prefeitura de São Paulo, que no ano de 1992 realizou duas exposições que pretenderam desmistificar a questão indígena e a homogeneidade cultural presente no discurso da nação: Índio no Brasil: alteridade, diversidade e diálogo cultura e Pátria Amada Esquartejada, sob o comando da Prefeita Luiza Erundina e da Secretária da Cultura Municipal Marilena Chauí.Cf. MONTEIRO, Paula. Cultura e Democracia no processo da globalização. Novos Estudos, São Paulo, n. 44, 1996, p. 89-114, p. 111. Cf. KRISCHE, Paulo. Governo Lula: políticas de reconhecimento e de redistribuição. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Disponível em: < http//www.cfh.ufsc.Br/~dich/Textocaderno47.pdf> Acesso em 13 nov. 2004. 32 Cf. SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo, p. 164-165. 33 Idem, p.112. cognitivo; a má distribuição dos direitos no mundo real, além do problema de sua sustentação, já que requerem custos monetários para práticas políticas34. Outra questão é o fato da integração via normativa pode acabar por minimizar a diferença, transformando-a num pressuposto abstrato que não valora a diferença por ela mesma, o que faz com que a diferença seja tolerada neste sistema democrático liberal e não valorizada mediante a concretização de direitos, ou ainda receba uma valorização num sentido superficial e comercial ou de caráter folclórico e pitoresco. O diferente passa a ser visto como aquele que não tem direito, fazendo com que a cultura seja dissolvida em propostas abstratas e identificações universalizantes, o que faz perder a dimensão da diferença. Assim, não basta resolver os problemas somente na base da igualdade de direito, faltando solução no plano de valoração das diferenças culturais35. Por fim, como lembra Celi, é necessária para uma real inclusão uma mudança de poder para que de fato haja maior possibilidade de inclusão social das minorias desfavorecidas36. Apesar destes dilemas, não se pode olvidar a necessidade de conceber políticas de reconhecimento dentro de uma teoria crítica do reconhecimento, que albergue a um só tempo reconhecimento e redistribuição, ou seja, uma teoria que identifique e defenda políticas culturais da diferença que possam ser combinadas com a política social de igualdade37 . Isto porque “no mundo real, cultura e economia política estão sempre imbricadas e virtualmente toda luta contra a injustiça, quando corretamente entendida, implica demandas por redistribuição e reconhecimento.”38 Ademais as lutas pelas identidades estão presentes em contextos de crescentes desigualdades sociais, sendo que nas sociedades contemporâneas se encontram presentes tanto injustiças sócio-econômicas como injustiças culturais, estando ambas enraizadas em processos e práticas que prejudicam alguns grupos, devendo por isto serem remediadas.39 Para fazer frente a esta situação, Nancy Frazer coloca como necessária uma noção de justiça social, que por um lado não se restrinja ao eixo da classe, pois “a contestação abarca agora outros eixos de subordinação, incluindo a diferença sexual, a raça, a etnicidade, a 34 Cf. ROSALES, José María. Multiculturalismo e igualdad de oportunidades: um ensayo sobre el coste de los derechos, p. 89. 35 Cf. MONTEIRO, Paula. Cultura e democracia no processo da globalização, p.111-112. 36 Cf. PINTO, Celi R. J. A democracia desafiada, p. 61. 37 Cf. FRASE, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje. Novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p.245- 282, p. 246. 38 Idem, p. 248. 39 Idem, p.251. sexualidade, a religião e a nacionalidade”40 e por outro, “não se cinge só a questões de distribuição, abrangendo agora também questões de representação, identidade e diferença.”41 Ou seja, a nova noção de justiça social deve abarcar as preocupações da teoria da justiça distributiva e teoria cultural da justiça, que são difíceis de se relacionar. Como princípio coadunador entre redistribuição e reconhecimento, a citada autora propõe o princípio de paridade de participação, segundo o qual a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros da sociedade interagir entre si como pares. Para isso é necessário tanto uma distribuição de recursos materiais que garantam a independência e voz dos participantes como também padrões institucionalizados de valor cultural que exprimam igual respeito por todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a consideração social.42Assim, tem-se uma visão de reconhecimento que promove a interação social respeitosa entre as diferenças e não estimula os enclaves de grupo e a limpeza étnica.43 Nessa perspectiva, o que se deve reconhecer é o status de membro individual de um indivíduo pertencente a um grupo específico, enquanto parceiro integral na interação social, sendo a política de reconhecimento voltada à superação da subordinação por meio do estabelecimento da parte não reconhecida como membro integral da sociedade, capaz de participar como igual da vida social.44 Diante do que foi dito, percebe-se que a questão do multiculturalismo, contemporaneamente, constitui como um dos maiores desafios ao Estado –Nação no sentido de como gerenciar a diversidade cultural e seus conflitos dentro de um país em busca de uma unidade social, colocando à vista a necessidade da incorporação dessas diferenças pelos sistemas democráticos atuais, inclusive em seus ordenamentos jurídico-políticos, bem como de desmistificar uma pretensa homogeneidade cultural construída a partir do mito da nação, incentivando e respeitando assim, a heterogeneidade. É na seara deste contexto que surge a necessidade do debate do presente tema e o Direito servir de instrumento na luta multicultural. 40 FRASE, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, out. 2002, p. 7-20, p. 9. 41 Idem, ibidem. 42 Idem, p. 13. 43 Cf. FRASER, Nancy. Repensando a questão do reconhecimento, p. 604. 44 Idem, p. 610. 6. Bibliografia: CASHMORE, Ellis. Verbete: Integração. Dicionário de relações étnicas e raciais, Tradução de Dinah Klevej. São Paulo: Summus, 2000, p. 271-273. COSTA, Sérgio. Complexidade, diversidade e democracia: alguns apontamentos conceituais e uma alusão à singularidade brasileira. In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje. Novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p. 461-476. COSTA, Sérgio; WERLE, Denílson Luís. Reconhecer as diferenças: liberais, comunitários e as relações raciais no Brasil. In: SCHERER WARREN, Ilse et al. Cidadania e multiculturalismo: a teoria social no Brasil contemporâneo. Lisboa: Editora da UFSC e Socius, 2000, .p. 82-116. CORTINA, Adela. Ciudadano Del mundo: hacia uma teoría de la ciudadania. Madrid: Alianza Editorial, 2001. DE LUCAS, Javier. El futuro de la ciudadanía en la UE: ¿Es posible hablar de ciudadanía multicultural? In: DÍAZ, E. M. Y; SIERRAS, S. O. (Edits.). Repensando la ciudadania. Sevilha: El Monte, 1999, p48-75. FRASER, Nancy. Repensando a questão do reconhecimento: superar a substituição e a reificação na política cultural. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direito humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 601-621. FRASE, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, out. 2002, p. 7-20. FRASE, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era póssocialista. In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje. Novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p.245- 282. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. GUTMANN, Amy. Introducción. In: TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la política del reconocimiento. Tradução de Mónica Utrilla de Neira. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 13-42. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adellaine La Guardia Resende e outros. Belo Horizonte: Editora da UFMG/Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. MACHADO, Cristina Gomes. Multiculturalismo: muito além da riqueza e da diferença. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. MONTEIRO, Paula. Cultura e Democracia no processo da globalização. Novos Estudos, São Paulo, n. 44, 1996, p. 89-114, p. 111. Cf. KRISCHE, Paulo. Governo Lula: políticas de reconhecimento e de redistribuição. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. 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