ENTRE O FATO E A FICÇÃO: O INDIGENA NA NARRATIVA DE FUNDAÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA Maria Edith Maroca de Avelar Rivelli de Oliveira* 1- INTRODUÇÃO MEMORIAL Em primeiro lugar gostaria de agradecer aos Profs. José Luis Foureaux e Heliana Brina pelo convite e dizer de minha alegria em participar deste evento. Eu poderia me embrenhar em memórias – e não seriam poucas – dos bons e maus momentos aqui vividos, das amizades eternas e inimigos mortais, adquiridos em quase 11 anos de vida acadêmica no Instituto. Comemorar os 25 anos do ICHS - dos quais boa parte vivida por mim nesta instituição - é recordar algumas gerações de professores e alunos, conhecidos e lendários. Alguns se tornaram verdadeiros “fantasmas” como os do professor Téo Santiago, e o aluno caveira, que jamais conheci e me assombram ainda, reconheço. Afinal, aqui aprendemos a ter saudade até do que não conhecemos, uma vez que a memória do instituto era um patrimônio, passado como um tesouro pelos veteranos aos calouros, na minha época. As relações humanas no ICHS, por sinal, sempre foram mais especiais que em qualquer outro lugar. Por vezes calorosas demais – atingindo pontos extremos - mas de uma maneira extremamente peculiar: especialmente Iceagaesseanas. Convivíamos em repúblicas onde se misturavam homens e mulheres, íamos a eventos entre professores e alunos, e nos confraternizávamos entre brasileiros e estrangeiros, mineiros e paulistas, baianos, cearenses e demais. O ambiente acadêmico, por sinal, se estendia por toda a cidade e confesso ter saudades imensas de discutir Foucault com chopinho. * Doutoranda em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras - UFMG. Há ainda um aspecto que considero essencialmente Iceagaesseano e que, sem duvida, marcou minha trajetória acadêmica: foi o sentido concreto da palavra interdisciplinaridade, aqui vivenciada. Apesar dos preconceitos entre os cursos – e eles se mantêm sempre, infelizmente – O intercâmbio entre as letras e a história no ICHS sempre foi uma marca especial que levou a muitos (como eu) ao entre-lugar acadêmico, hoje tão em moda. Era relativamente fácil estabelecer a comunicação entre as áreas, num diálogo extremamente profícuo para ambas. Há que abrir um parêntesis aqui, para destacar a atuação de professores como Heloísa Helena, Dabdab Trabulsi e, principalmente, o Leopoldo Comitti que foram fundamentais, através de sua atuação interdisciplinar, em dirigir meu caminho. Se os primeiros me iniciaram nos “mistérios” da interdisciplinaridade, o professor Comitti foi o responsável pela minha transformação em ser acadêmico híbrido e bilíngüe. A todos e principalmente ao Leopoldo, minha eterna gratidão. E, principalmente, acredito eu, este diálogo constante terminou por formar uma casta de pesquisadores bastante especial. Não aprendíamos apenas história ou letras aqui, aprendíamos política, francês, teatro, música, e etc, etc. Vivíamos uma verdadeira universidade do conhecimento, no sentido exato que a palavra deveria ter. Nesse caminho eu sigo ainda hoje em minha pesquisa de doutorado sobre a qual agora, após essa “sessão saudade”, passo a discorrer. 2 - ENTRE O FATO E A FICÇÃO: O INDIGENA NA NARRATIVA DE FUNDAÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA Minha tese propõe-se a destacar a dialogia entre literatura e história, na obra indianista de José de Alencar, buscando destacar estas obras como produto de uma reflexão consistente 55 e coerente sobre o passado e o presente da época do autor. Para tanto, necessário será reinserir Alencar em seu tempo, numa perspectiva sincrônica, tentando rearticular sua produção literária ao momento de surgimento. Que demandas a literatura indianista alencariana buscava satisfazer, a que se propunha sua escrita do índio, e a inscrição do mesmo na literatura e na história brasileira? E, afinal, como compreender a insistência de Alencar na representação do índio no passado brasileiro, no exato momento em que a história do Brasil se construía como conhecimento, tendo o índio sido alijado do processo? Há que começar destacando a importância, à época, da descoberta/criação dos conceitos de povo e Nação brasileiros. Afinal, nos dizeres do contemporâneo Saint Hilaire, “havia um país chamado Brasil: mas absolutamente, não havia brasileiros!” Portanto, em decorrência da necessidade de fundação da nacionalidade, o índio foi escolhido como fundante da diferença entre Brasil e Portugal. A nação jovem, como alerta Alencar no prefácio a Sonhos d’ouro, ainda começava a formatar sua individualidade, em um período no qual a descoberta da influência indígena era aspecto revolucionário. O Romantismo brasileiro, principalmente em Alencar, representa o indígena de maneira absolutamente nova na literatura brasileira, bem como na literatura sul-americana. A partir do indianismo alencariano, o índio torna-se presente e participativo no processo de formação da Nação brasileira em seus primórdios coloniais. As obras de Alencar representam o primeiro momento em que os indígenas são inseridos na história da colonização, como coautores e como elemento positivo da formação da nacionalidade. E uma tal perspectiva se apresentava como socialmente (e politicamente) arrojada – uma vez que os índios no XIX sofriam de desprestigio oficial e social – e se apresentaria conflitante não só com a imagem do indígena (morto ao chegar) que era representado na literatura, como também e principalmente, com o indigenismo da historiografia brasileira do mesmo período. Este, por 56 sua vez, insistia na erradicação do elemento indígena da história (oficial) do Brasil, por considerá-lo o grande vilão do desenvolvimento nacional. Enquanto Francisco Adolpho de Varnhagen - o historiador oficial - construía uma narrativa quase “ficcional”, em que o elemento português era o grande herói civilizador e responsável pelo suposto sucesso da nação brasileira, Alencar escrevia e desvelava as lacunas da formação nacional. Varnhagen como brasileiro por nascimento, mas tendo vivido e se formado em Portugal, não via problemas em uma história continuista em que a Coroa e seus representantes tivessem papel de destaque, como heróis civilizadores. Sua história do Brasil justificava a permanência da Casa de Bragança no poder, proporcionando uma confortável situação político-ideológica para Dom Pedro II. Já os românticos indianistas, mesmo com passagem em Portugal: caso de Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães, previam uma nacionalização que se propunha como ruptura, a partir da reabilitação do indígena e que se concretizará na obra de José de Alencar. Entremeando discursos, Alencar propunha uma ficção que destacava as limitações das fontes históricas, propondo-se a complementá-las e divergir delas ao sabor do seu bom senso. Escrevia e descobria as fragilidades da formação brasileira, com todas as violências e desmazelo de um processo indefinido, em que a Nação se fizera aos trancos e sem grandes heroísmos ou grandes nomes. Desta maneira, o indianismo alencareano não se propunha apenas como retorno ao éden romântico, servindo também como contraponto político e defesa da diferença nacional. E o que vinha sendo um retrato do índio morto no indianismo anterior ─ e é curioso que tantas pinturas do século XIX se dediquem a retratar sua morte ─ nas mãos de Alencar se desenvolveu num crescendo que queremos ver como bastante heterodoxo e principalmente, como uma primeira tomada de consciência dos limites imagéticos da nacionalidade literária. A heterodoxia ocorre pelo escancaramento alencareano das fronteiras discursivas entre 57 indianismo e indigenismo, principalmente representadas pela apresentação dos bons e maus indígenas, civilizados e selvagens. O índio de Alencar finaliza a diferenciação nacional, tornando-o também fator de crítica político-social, ao descrevê-lo como protoprecursor de um povo sem cidadania. Assim é que, na narrativa alencareana, o índio que se associa ao colonizador se torna vassalo impotente, condição que será herdada por seus descendentes, os brasileiros. E a visão crítica de Alencar se adensa à medida que avança na narrativa da história, demonstrando a impossibilidade de estes elementos verdadeiramente nacionais deixarem de ser apenas e tão somente coadjuvantes em sua própria história. Portanto a partir de uma narrativa em que história e ficção se associam, Alencar refletiu verdadeiramente sobre a formação da nacionalidade, aproximando-se do indigenismo para produzir um indianismo histórico, em que a participação dos indígenas se torna essencial na formação da nacionalidade e da cultura brasileiras. Sua contribuição, portanto, para a formação de um imaginário nacional mestiço, em que o indígena fosse considerado como gente e como elemento fundante da civilização brasileira, é aspecto que deve ser re-considerado e de maneira menos preconceituosa, no sentido de uma reavaliação de seu indianismo na formação do imaginário brasileiro. E, principalmente, é tempo já de reavaliar Alencar não como “o escritor das mocinhas e rapazes”, como afirma Antônio Candido na Formação da Literatura Brasileira, ou como “portador de idéias fora do lugar” como quer Roberto Schwartz em Ao vencedor as batatas, mas como pensador da realidade sócio-política brasileira e possível precursor de um pensamento genuinamente nacional.1 Graças a ele, a sociedade brasileira interiorizou o “mito” ─ não de todo ficcional ─ da miscigenação como raiz da formação do povo brasileiro, pois Alencar revisava corretamente a narrativa historiográfica ao reinserí-lo no processo. 1 CANDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. 7 ed., Vol. 2 (1836-1880). Belo Horizonte: Itatiaia, 1993. SCHWARTZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Livraria duas cidades/ed. 34, 2001. 58 Por sinal, a suposta mitificação alencareana deve ser revista, principalmente em se considerando a forma como propõe a participação dos indígenas na história do Brasil. Se, por um lado, ele idealiza os heróis indígenas (condição necessária à ficção) por outro narra verdades por vezes indesejáveis, mas históricas. Tomemos como exemplo Iracema, a virgem que se entrega ao branco selando o destino de sua tribo e, por extensão, de toda a tribo. Se Iracema não existiu de fato, como personagem, efetivamente muitas Iracemas houveram na história do Brasil. Já quanto a Peri e Poti, que amigavelmente se bandearam para o lado dos portugueses na ficção – em O Guarani e Iracema, respectivamente ─ também não deixam de ser plausíveis, sendo que o Poti é, verdadeiramente, um personagem histórico. Assim, tendemos a crer que as representações do índio e sua inserção no processo colonizador, e concomitantemente, na “História do Brasil”, de maneira positiva – contrariamente ao que a historiografia abalizada pela coroa e representada pelo historiador mais representativo da época: Adolfo de Varnhagen, preconizava – possam indicar que a postura de Alencar em relação ao tema era política e socialmente, bastante avançada. Ao considerar o mestiço como o brasileiro por excelência e o índio como elemento co-fundador ele problematiza as relações entre Estado brasileiro e povo, propondo uma visão bem mais realista de Brasil2 do que a que se construía à época, com a versão oficial de Varnhagen. É curioso que a Cândido, entre outros, tenham passado despercebidas as sutilezas e a profundidade do discurso histórico de Alencar. Cremos não ser possível denominar a difícil situação social de Peri, vivendo como pária entre a família de Dom Antônio de Mariz, como “mentirada gentil” como quer Antônio Cândido. Afinal, se Peri – na narrativa - é considerado 2 Esta perspectiva do “excessivo” realismo de Alencar, por sinal é observada por Roberto Schwartz em Ao vencedor as batatas (2001), onde ele considera o pano de fundo da literatura urbana de Alencar com excessivamente realista por demonstrar as incongruências sociais da época. Isto não representa, porém, para Schwartz, um valor, uma vez que, para ele, esta “incongruência” social, se por bem representada, leva também às incongruências na obra de Alencar. 59 um amigo o é para alguns apenas: aqueles que, segundo o narrador, fazem o uso da razão 3. Para a senhora da casa e a maioria dos brancos, ele é um gentio. E ainda para Isabel - a mestiça cujo surgimento se dá por uma violência não declarada - ele é mais que um inimigo: é a memória de sua desgraçada condição marginal de mestiça. Da mesma forma, Iracema percebe a diferença ente suas relações com Martim e as que ele possivelmente teria com as moças brancas. O indianismo alencareano revela - com suavidade – que as relações entre brancos e índios foram historicamente conflituosas e difíceis, e se mesmo entre os brancos “racionais” uma sombra de igualdade se apresenta – caso de Peri e Poti - ela permanece somente como possibilidade. Uma outra questão também importante a ser destaca é a da submissão voluntária de Peri e Iracema, que não pode jamais ser considerada como um amor ao cativeiro. Peri na verdade é um escravo do amor, como declara Silviano Santiago. Em Varnhagen – que Alencar leu - há uma descrição deste costume indígena de submissão ao pai da moça pretendida. Apesar de que este amor seja mascarado em devoção – o que provavelmente se deveu aos olhos preconceituosos que leriam o romance – ao final o ardil funciona e Peri conquista a noiva desejada. Iracema, por sua vez, é escrava do amor. Como boa parte das mulheres de Alencar é esposa submissa como toda mulher – na concepção patriarcal - deve ser. Assim, não há cegueira na “passividade” deles. Há um encantamento que os faz perder as raízes, em prol da aceitação de uma cultura mais elaborada, mas nem sempre tida como superior. Deste modo, as relações de conflito estão lá, marcadas nas personagens fadadas ao fracasso de suas vidas, mas ao sucesso da colonização e do surgimento do povo brasileiro. Não há que ignorar o caráter dramático e violento do processo colonizatório, e Alencar em momento algum propõe o apagamento do conflito. Apenas, para que se consolide um 3 Em O Guarani, os preconceitos contra o índio são bastante bem representados pela atuação de boa parte dos personagens, sendo que Peri só é respeitado pelos grandes personagens (ideais) da obra: D, Antônio, Álvaro e Cecília, que, mesmo assim, teve que se adaptar à sua presença. 60 passado mitológico “funcional” em respostas às demandas – nada pacíficas – de seu tempo, Alencar escolhe, dentre todo o passado histórico ou lendário, as personagens e situações em que se demonstrem mais claramente a veracidade das características consideradas por ele como apropriadas à fundação da Nação. Assim, a miscigenação se encontra representada, ora como possibilidade conflituosa, como em O Guarani, ora como fato consumado - mesmo que problemático - em Iracema. Perceba-se que, se as etnias se misturam, a cultura dominante, será a européia. Se o europeu se aproxima da cultura indígena é como somatória, e não como conversão, enquanto que o índio é incorporado à civilização pela negação de sua cultura. Alencar propõe o elemento indígena como herói literário e membro co-fundador da civilização brasileira, ainda que subalterno e assimilado culturalmente. Todavia presente em nossa história e, por vezes, em papéis de destaque, como Felipe Camarão. Assim, entre o indigenismo de Estado e o indianismo literário havia uma cisão política importante demais para que se venha considerando Alencar como reles triunfador fácil num estado de facilidades como quer Antônio Cândido (1993). Alencar propunha heróis civilizadores profundamente imbuídos de objetivos sociopolíticos que conciliavam culturas e etnias em busca de uma fusão que criaria o povo brasileiro. Os interesses particulares se esqueciam, sempre, por estes heróis, em detrimento da “causa” nacional. Assim, Martim abandona Iracema pela causa. Ubirajara toma duas esposas na busca de criar um novo povo. A conciliação buscada por Alencar se fazia em torno de idéias e civilizações, em torno de um ideal de Nação que considerasse a profunda imbricação entre a cultura autóctone e a européia, mesmo que enfatizando a última como dominante. Por outro lado se encontra lá a memória incômoda do processo violento – ainda que tido como necessário – da colonização, da dubiedade da postura indígena ora colaboracionista, ora vilã; mas, de toda maneira, presente na historia do Brasil. É contra este 61 apagamento que Alencar escreve/inscreve seus índios na literatura e na memória cultural nacional. Como Antônio Cândido e demais são obrigados a declarar, Alencar insere no cotidiano a presença do índio. E se há uma idealização, esta ocorre em nível de personagens, mas não em relação ao processo. Alencar constrói uma história do Brasil em que brancos e indígenas se encontram e enfrentam, alguns índios são incorporados e outros vencidos. E efetivamente, não há como dizer que tenha sido diferente. Podemos, porém, destacar uma simpatia em relação à cultura européia e isto é fato inegável. De fato residia aí a maior limitação do projeto indianista romântico. E ao mesmo tempo a grande revelação de que quanto mais indígenas nos propúnhamos, mais portugueses/europeus nos descobríamos. Esta é portanto uma limitação ideológica à qual Alencar não teve como fugir. Compartilhando dos preconceitos de sua época, propõe-se a um descentramento – que de fato consegue se comparado a Varnhagen e aos cronistas – mas que se limita pela impossibilidade de inserção do indígena na sociedade branca em termos igualitários, como postulado ao fm de O Guarani. Sua insistência no indígena, portanto, estava relacionada à busca de uma narrativa do Brasil que focasse realmente o brasileiro, e neste ponto ele avança imensamente em relação à historiografia oficial de Varnhagen. Enquanto o historiador construía uma grande “ficção” a partir de um discurso verdadeiro, propondo um continuísmo que, se satisfazia aos interesses da coroa, faltava com a verdade histórica, Alencar propunha uma ficção que compreendia as limitações das fontes históricas, propondo-se a complementá-las e divergir delas ao sabor do seu bom senso. Longe de ser ingênua, portanto, a insistência no indígena como herói nacional – que apresentara uma histórica recusa à colonização, e ainda no século XIX permanecia elemento independente – revelava uma decisão política, que visava a deixar clara a perspectiva de nação que Alencar pretendia: uma nação brasileira desvinculada de Portugal que, se herdara deste a língua e 62 costumes, herdara também do índio a capacidade de adaptação ao solo pátrio e a capacidade de rebeldia frente à Coroa. Portanto, naquele momento de formação, à parte a impossibilidade de se constituir uma nação absolutamente outra em relação à metrópole – o que de maneira nenhuma seria possível – o projeto romântico, representado em Alencar, foi o grande vencedor, contribuindo decisivamente para a formação da nacionalidade brasileira. E os avanços ideológicos aí compreendidos, como também suas limitações em resolver os problemas de cidadania, não invalidam seu esforço de decifração do enigma da nacionalidade que permanece ainda hoje, herdeiro do romantismo. Para tanto, a narrativa histórica e indianista de José de Alencar deu uma importante contribuição. 63