A EPIDEMIA COMO FATO SOCIAL
Evan Stark
Originalmente publicado no: International Journal of Health Services,
volume 7, Number 4, 1977, pp.681-705, Baywood Publishing Co, Inc.
Tradução: Carlos Roberto Oliveira
Rio de Janeiro
agosto de 2004
O conceito de causação de doença sofreu duas mudanças. A primeira,
tomou os fatores sociais como determinantes, e não mais os fatores naturais;
a segunda, passou da determinação por condições sociais para a determinação
por relações sociais que geram estresse. Estas mudanças acompanham a
grosso modo o surgimento do capital industrial e sua passagem de um
processo altamente competitivo e individualista para um processo social.
Neste artigo, as epidemias são consideradas fatos sociais que ocorrem em
meio às mudanças acima assinaladas da doença e em meio à organização
econômica da sociedade.
As epidemias do século dezenove ocorreram, quando as empresas
tentaram resolver seus problemas econômicos criando grandes distâncias
entre as necessidades sociais de uma força de trabalho em expansão e os bens
e serviços disponíveis. A coincidência de crises periódicas na produção e na
saúde mostrou que as epidemias eram ocasiões para se lutar contra a
injustiça, e não simplesmente contra a doença. E os trabalhadores
demonstraram uma capacidade para a auto-organização durante as epidemias
que forçou as autoridades municipais a reformar profundamente a
organização do trabalho, do mercado e do serviço social.
Após 1900, reforma tornou-se parte permanente da estratégia de
desenvolvimento do capital. O novo capitalista social buscava organizar o
trabalho politicamente, muito além da fábrica, e extrair valor não apenas dos
operários, mas de toda atividade social.
Estas ações reduziram a mortalidade infantil e a mortalidade por doenças
infecciosas, mas também criaram as novas epidemias de estresse crônico. A
despeito da mistificação da etiologia social pela medicina, a identidade do
processo de doença com os meios mais gerais de reprodução social indicam
que a doença agora é endopólica, produto não da natureza, mas de decisões e
processos políticos e econômicos historicamente específicos.
Houve duas mudanças fundamentais na determinação da doença
epidêmica. A primeira alteração – na qual determinação deixou de ser dada
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por fatores primariamente naturais e passou para os fatores sociais – ocorreu
de modo gradual, ao longo de séculos, e corresponde a grosso modo ao
período pré-industrial. Porém, a segunda alteração foi muito mais rápida, se
passou talvez em décadas no final do século XIX, e corresponde à integração
dos capitais individuais e competitivos em um capital social.
Desde o advento da industrialização capitalista os determinantes
primários da morte e doença no Ocidente deslocaram-se gradualmente das
infecções e doenças transmissíveis – disseminadas por más condições como
desnutrição, superpopulação ou saneamento inadequado – para uma cadeia de
fatores sociais complexos entre os quais a pauperização e os danos biológicos
desempenham papéis pouco significativos. Em 1900, 40% de todas as mortes
nos Estados Unidos ainda eram causadas pelas principais doenças infecciosas,
hoje, menos de 6% de todas as mortes são devidos a estas infecções. Por outro
lado, quase 70% podem agora ser imputados a acidentes e aos três principais
problemas crônicos: doença cardíaca, câncer e infarto.
A exposição física a substâncias perigosas no ar, água e alimentos e no
trabalho por certo se mantém como causa importante de danos à saúde. Mas
estes riscos estão inextricavelmente ligados por cadeias complexas de
causação a comportamentos necessários para se enfrentar as pressões
cotidianas. As principais causas de morte precoce no Ocidente parecem ou,
diretamente determinadas por comportamento induzido por estresse como
violência doméstica que resulta em homicídio ou, padrões tipo A em doença
coronariana ou, indiretamente determinados por hábitos destrutivos de
consumo adotados para aliviar o estresse. Os exemplos incluem direção
imprudente, alcoolismo, adição a drogas, fumo em casos de câncer de pulmão,
ou uma dieta rica em açúcar e gordura em casos de câncer de colo. Além
disso, em muitos casos pode-se observar o impacto do estresse sobre uma base
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agregada de problemas sociais como desemprego, divisões sexistas do
trabalho, agitação social, desempenho de funções sem significado social e
discriminação social (1-9). Em suma, os problemas físicos e a natureza foram
substituídos como os principais problemas de saúde no Ocidente pelo meio
ambiente social e, mais especificamente, pelas relações sociais ligadas a
avanços na produção capitalista. Embora a doença possa ter sofrido nas
sociedades socialistas mudanças semelhantes as sofridas no capitalismo – por
exemplo, a redução das comunidades rurais a satélites da indústria urbana – a
determinação de doença sob o socialismo merece um estudo e uma crítica em
separado.
Este artigo procura definir o objeto da epidemiologia materialista
durante a segunda mudança através do exame da alteração dos elos entre o
desenvolvimento capitalista – particularmente do capital competitivo para o
capital monopolista – e o processo de doença. As grandes questões
econômicas e políticas envolvidas na evolução do capitalismo competitivo
para o capitalismo moderno já foram extensamente discutidas em outras obras
(10-13). Meu interesse é mostrar o efeito da doença sobre esta evolução e,
inversamente, os modos pelos quais o processo de doença foi moldado por ela.
Além disso, tomarei a doença não como um intruso extraterritorial ou
biológico, mas como um fato de dimensões socioeconômicas, ideológicas e
políticas. Na medida em que se pode atribuir epidemias a causas sociais
claramente definidas como pobreza, superpopulação ou distribuição desigual
de serviços, elas podem ser pensadas como sendo – até certo ponto,
propositadamente – feitas pelo, com e também para o povo. Neste contexto,
sua definição é um fenômeno dinâmico constituído politicamente, e também
cientificamente, nas lutas que ocorrem junto com a doença física. Pretendo
mostrar que pessoas, e mesmo cadáveres, não são simplesmente ordenados em
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série por alguma força ou agente externo durante uma epidemia, mas que suas
vítimas e perpetradores definem ativamente seu contexto e significado (14).
Após delinear em linhas gerais a transição da determinação natural para
a determinação social e levantar alguns dos problemas conceituais decorrentes
do fato de se olhar para uma epidemia como praxis em torno do processo de
trabalho, mostro que a autoridade política se decompôs e foi reorganizada
dentro do contexto da epidemia urbana nas cidades do século XIX. Sugiro
nesta parte que as epidemias do século XIX foram uma conseqüência
inesperada de picos periódicos de desigualdade na distribuição de bens
sociais. Em contraste com isto, a mortalidade precoce hoje parece ser um dos
muitos componentes potencialmente controláveis de uma rede econômica
altamente integrada. Entretanto, minha questão principal é que as dimensões
de uma epidemia são mais reveladas por seu desenvolvimento histórico do que
por sua aparência física no espaço demográfico. Câncer, doença cardíaca,
hipertensão, infarto, doença mental, homicídio, adição a drogas, etc. sofrem
impactos de uma história social comum. Embora as vítimas não morram na
proximidade física umas das outras ou em um espaço socialmente concentrado
em um dado momento no tempo, elas são tão a epidemia de nosso século
quanto a tuberculose era do século XIX.
Nas últimas partes do artigo, a transformação da doença em um produto
fabricado e distribuído pelo Estado, junto com outros bens sociais, é imputada
ao surgimento, na virada do século, do capital social: a acumulação de valores
centralizada e politicamente dirigida, baseada na coordenação política de toda
atividade social como trabalho (15-16). Não estou interessado em re-discutir a
causação social. Antes, pretendo mostrar a lógica desta conclusão dada a
ampla direção da história biológica e social. Assim, por exemplo, o fato das
doenças ligadas ao estresse serem atribuídas a determinantes múltiplos e
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complexos – junto com todo o continuum que vai do trabalho até o consumo
individual – está materialmente baseado, após 1900, na extensão do processo
de trabalho como a fonte exclusiva de valor, que parte da fábrica e chega até a
vida cotidiana. A partir daí, a doença resulta das tensões de classe associadas a
períodos de expansão capitalista e da imposição de atraso, apesar da
sociedade ter uma maior capacidade para acabar com o subdesenvolvimento
(17,18). Deste modo, as epidemias são um fato social não apenas por serem
cada vez mais causadas por fatores comportamentais, sociais e ambientais,
mas também porque estes fatores são eles mesmos cada vez mais
determinados em meio a lutas pelo controle do produto social.
DA CAUSAÇÃO NATURAL À CAUSAÇÃO SOCIAL
Desde a primeira vez que os humanos tentaram resistir, explicar ou
incorporar os efeitos da natureza em seus rituais, a doença tem tido uma
dimensão social e sido parte da história e da consciência da sociedade. E, sem
dúvida, atividades sociais como remover uma floresta, represar um rio ou arar
um campo têm sempre mediado a tradução de fatos naturais em doença e
morte (19). Para os países pré-industriais, a natureza é um princípio
organizativo, o contexto bem como o meio de sobrevivência. Porém, desde o
início da manufatura, e particularmente desde sua organização capitalista, a
natureza em geral e especificamente a doença têm sido vistas como
obstáculos, perigos momentâneos – devido a seu efeito sobre a força de
trabalho – que tem de ser racionalmente superados e, se possível,
transformados em bens no processo de acumulação. A doença começa como
um fato social, mas só se torna inteiramente um produto social no fim de um
longo processo histórico durante o qual as bases naturais iniciais da vida social
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– clima, fertilidade do solo, caça, abrigo, etc. – são substituídas por produtos
da atividade viva da sociedade.
De início, catástrofes naturais colocaram o gênero Homo muito abaixo
da subsistência e são marcadas como crises de sobrevivência da sociedade. No
nicho ecológico delimitado pela caverna e pelo cemitério no qual a maior
parte de nosso tempo evolutivo tem sido gasto, a produção teve lugar na
natureza e a doença apareceu como um imperativo de adaptação articulado
segundo a divisão do trabalho primitiva e sexual. Gradualmente, à medida em
que a agricultura e outras formas de trabalho eram organizadas para produzir
um maior excedente de bens básicos e, além disto, meios de produção capazes
de resistir a acidentes naturais, as mesmas condições sociais sob as quais
commodities mais tangíveis eram produzidos e distribuídos vieram a
determinar as causas biológicas da doença e da morte.
Do século XIV até meados do século XIX, quando camponeses, servos
e artesãos foram expulsos dos domínios, fazendas e cidades feudais, a
distribuição do produto social mais uma vez mostrou ser periodicamente
inadequada para manter a população acima da simples subsistência (20-21). A
melhora a longo prazo na esperança de vida, mesmo após 1700, é pontuada
por retrocessos dramáticos. Entretanto, estas epidemias ocorrem cada vez
menos devido a fatos naturais na periferia da sociedade para os quais as
pessoas estão fisiologicamente despreparadas e cada vez mais como resultado
da apropriação privada e desigual de um excedente ampliado através da
guerra, escravidão, comércio, exploração urbano-industrial de colônias e do
campo e, sem dúvida, da organização da fábrica e de bairros pobres (22-25).
O período formativo da industrialização capitalista no Ocidente pode ser
demarcado politicamente pela fragmentação do feudalismo (já iniciado por
volta do final do século XIV na Inglaterra) e por lutas maciças por reforma na
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Europa e América entre 1830 e 1890 (25-30). O mesmo período pode ser
demarcado em termos biossociais pela Peste Negra (1347 na Inglaterra), uma
arma mortal especialmente indiferenciada no grupo dos assassinos, e pela
restrição da doença epidêmica em grande parte aos bairros pobres, um
processo que ocorreu gradualmente durante toda esta época (22,25).
Guerra, comércio e religião, nesta ordem, quase sempre juntos,
forneceram os instrumentos repressivos, econômicos e ideológicos para a
hegemonia política e para a homogeneização da doença no Ocidente.
Hegemonia e acúmulo crescente de imunidades compartilhadas são
inseparáveis. Melhorias na dieta como a batata e o milho – que agora parecem
ter sustentado a população dos impérios em expansão sobre uma base rural
diminuída – são tão inconcebíveis fora do mercantilismo quanto o sucesso da
penetração britânica ou espanhola no mundo não-europeu afastado da
resistência a novas infecções exibidas por adultos europeus comparados a
asiáticos ou americanos (19,22,31).
Apesar da doença infecciosa ter ocasionalmente ajudado a proteger
povos menos desenvolvidos, por exemplo, os rebeldes do Haiti em 1801 ou os
russos contra os suecos (1708) ou contra o exército de Napoleão, em geral, a
vantagem na mortalidade seguiu e reforçou o poder econômico. O exemplo
clássico é que cinqüenta anos após Cortez ter trazido doenças européias ao
Novo Mundo, a população ameríndia tinha sido reduzida pelas epidemias a
um décimo de seu antigo tamanho! (19, pg.204; 22 pp.118-120). Infecções
geradas pela água, insetos e por contato direto homem-homem naturalmente
tinham uma abrangência muito grande dentro de cidades cheias de gente e
povoados agrícolas no Ocidente, como os historiadores da saúde pública nos
relatam. Mas o fato deles terem aumentado a imunidade agregada significa
que a expansão territorial inevitavelmente incluía um formidável assalto de
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infecções aos vizinhos rurais menos experientes imunologicamente. (19,
pg.76; 22, pg.113).
No Novo Mundo, a distribuição da doença também seguiu cada vez
mais as divisões do trabalho e o local de moradia. Disenteria, febre tifóide,
varíola e febre amarela – a última resultado do tráfico de escravos –
continuaram a dificultar a conquista fácil durante todo o período; mas, no final
do século XVI, o tifo e o escorbuto – doenças diretamente ligadas aos padrões
de vida do soldado comum – desempenharam o papel mais importante. Apesar
do uso do saneamento como defesa militar do Oeste avançado contra o Leste
bárbaro só ter sido formalizado no front polonês (e meridional) da I Guerra
Mundial, a necessidade do trabalhador pobre como massa saudável para
formar exércitos é um argumento repetido para o saneamento interno (22,
p.99). Os filósofos médicos nos anos de 1700 apontaram catástrofes naturais
para explicar a clara injustiça das epidemias que atacavam os ricos assim
como os pobres (23, p.60). Ainda, no final do século XVI (e talvez em boa
medida antes) as doenças da pobreza haviam sido separadas da peste mais
geral, que manteve altas taxas de mortalidade, em todas as classes, durante
toda a Idade Média.
A produção industrial marca o aparecimento da natureza como um
domínio dentro da sociedade, cujas supostas leis podem ser mapeadas pela
ciência com o objetivo de explorar seus potenciais recursos para fins sociais.
A prevalência e distribuição da doença – quaisquer que sejam suas causas
biológicas próximas – são socialmente articuladas. O tifo, por exemplo, é uma
doença da depressão econômica e irrompeu em conexão: com a dificuldade na
indústria têxtil em Flandres e na Áustria; com a escassez de batatas na Irlanda
(depressão econômica tornou-se sinônimo de escassez de alimentos); na
Silésia (1846) e em Londres (1863), como conseqüência de crises econômicas
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(23). A tuberculose seguiu um caminho similar (32). Em meados do século
XIX, pobreza e uma pressão constante da doença eram equivalentes. A
abundância ou a qualidade do produto agrícola também não pode ser atribuída
à generosidade da natureza. Ao contrário, a terra e o alimento só apóiam a
vida de modo indireto, como uma função de seu valor, um denominador
universal que retira seu significado do coração da vida social, nas relações
competitivas entre os trabalhadores e entre as classes.
As críticas conservadoras do industrialismo viram os novos meios de
pacificar a natureza como formas de romper os padrões tradicionais da vida e
do trabalho e como inerentemente anárquicos (33). Mas, como Marx e Engels
foram os primeiros a observar, a extração de valor a partir da organização
social do trabalho reflete um alto nível de integração e cooperação, ainda que
reificado em tecnologia e baseado em uma divisão do trabalho exploradora e
politicamente imposta de fora do processo de trabalho (34).
Engels, por exemplo, atribuiu as assim chamadas doenças da pobreza e
desordem urbana – que pareciam surgir espontaneamente na comunidade – às
condições de trabalho nas fábricas (25). Além disso, afirmou que tais
condições eram muito mais resultados contingentes da exploração do que
propriamente causas últimas. A doença surgia da interação entre relações
sociais e condições, e não apenas das condições de trabalho isoladamente, e
deveria ser estudada não só para descobrir a coisa causadora, mas como
impacto pato-fisiológico da situação de uma determinada classe. Na medida
em que as relações de classe se modificam, pode-se esperar que a doença e o
conhecimento sobre ela também sejam modificados.
Para Marx no Capital, a fábrica é mais um processo do que um lugar e
não está necessariamente limitada a sua planta física. Com respeito à
epidemia, Marx afirma que a ganância do capitalista pelo lucro leva-o a
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aumentar as horas de trabalho dos operários (para aumentar a mais-valia
absoluta) e que estes são colocados abaixo da subsistência biológica e não
podem se reproduzir como classe (35, pg.239). A saúde se deteriora, a luta de
classe se intensifica e a epidemia irrompe. Neste momento, o Estado responde
à crise – com, por exemplo, as Leis das Fábricas (Factory Acts) – para conter
a luta de classe e proteger os interesses do capital agrário e industrial como um
todo. Mesmo nesta formulação muito mecânica que aparece cedo no
desenvolvimento lógico do Capital, Marx sugere que há uma ligação íntima
entre lutas em torno do processo de trabalho, doença e intervenção estatal na
economia para melhorar a saúde.
Da mesma forma que as rebeliões e lutas de classe, as epidemias
imprimiram ao trabalho e ao capital tensões crescentes entre a miséria do dia
de trabalho e o potencial alienado para a reprodução cooperativa. As
epidemias muitas vezes começaram – da mesma forma que as rebeliões e lutas
de classe – porque as condições (de vida e trabalho) nas cidades, fábricas ou
bairros pobres foram colocadas abaixo dos padrões negociados em ciclos
anteriores de luta, embora não necessariamente abaixo da subsistência. Mas
elas mudaram rapidamente para lutas que visavam a aplicação de formas
cooperativas – desenvolvidas através da auto-ajuda – a fim de obter uma
reorganização social básica, incluindo-se aí a reorganização do processo de
trabalho.
Repressão e concessões relutantes, seguidas por uma exploração mais
intensiva, foram os meios iniciais usados pelo capital para manter o lucro sem
alterar fundamentalmente as condições ou as relações de produção.
Independente do fato desta estratégia ter destruído mais trabalhadores do que
salvou, a luta de classe se intensificou claramente a partir de 1830 (30,36). Em
certos casos, as lutas por reforma na América, Inglaterra e no continente
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europeu forçaram o capital a adotar uma postura progressista e mais bem
concebida de desenvolvimento permanente que incluía produtividade
expandida, investimento em serviços sociais, pleno emprego e a reconstrução
política do trabalho, consumo, família e política partidária. Com esta
abordagem – desde que as rendas do Estado, preços, produtividade e
transferência de pagamentos do Estado para o capital, extraídos por impostos
sobre os pagamentos feitos aos trabalhadores pudessem ser mantidos a frente
dos avanços nas compensações monetárias e sociais – os lucros estavam
assegurados (37).
A adoção acima assinalada de desenvolvimento do capital e sua
mudança para a extração de mais-valia absoluta – por meio do aumento da
jornada de trabalho para a extração de mais-valia relativa, através da
reorganização técnica do trabalho – gerou efeitos cada vez mais claros sobre a
saúde. Por outro lado, após 1850, a tuberculose e praticamente todas as
doenças infecciosas e doenças comuns da infância declinaram (38). O
milagroso sucesso da medicina moderna contra as infecções entre 1910 e 1950
é inconcebível sem as melhorias no padrão de vida. Contudo, ao mesmo
tempo, vários efeitos negativos sobre a saúde estão associados ao uso do
desenvolvimento capitalista para eliminar crises na ordem social.
Sem dúvida, o desenvolvimento não é uniforme nem universal e se
alterna com o subdesenvolvimento tanto historica quanto geograficamente.
Em resultado, as doenças do subdesenvolvimento permanecem espalhadas por
todo o mundo e nos guetos da América e da Europa, onde aparecem
combinadas com problemas mais modernos como a hipertensão (24,39). Mais
importante, o declínio nas taxas de morte de faixas etárias específicas devido à
redução das doenças infecciosas e doenças comuns da infância foi lentamente
superada por um aumento da morte precoce, em especial, entre homens,
12
devido
a
comportamentos
destrutivos,
desordens
na
comunidade,
carcinogênicos industriais, dieta e estresse gerado pela rotina (3,9). Em 1970,
a esperança de vida após 15 anos para homens brancos na Inglaterra e Estados
Unidos era aproximadamente a mesma de 1910! (9) E, como a maioria dos
críticos agora concorda, a medicina é inteiramente ineficaz contra esta nova
epidemia (40-42). Infelizmente, dados estes fatos, mesmo entre os críticos
radicais da saúde ainda há os que persistem em atribuir as más condições de
saúde no capitalismo às reduções da oferta e organização do cuidado médico,
e não à dinâmica da própria acumulação.
Houve uma época em que a flagelação ritualizada era empregada para
racionalizar a determinação, aparentemente impessoal, da doença pela
natureza. Agora, relações sociais produtoras de doença são publicamente
alardeadas como exclusivamente naturais ou, pelo menos, como inevitáveis ou
imutáveis. Mas por trás desta fachada benigna, o antagonismo entre sociedade
e natureza atinge o seu auge. Na medida em que o homem se insere na própria
lógica da natureza, o ambiente alternativamente torna-se o bode expiatório
para os males sociais e é forçado a refletir inúmeros danos transportados pelo
crescimento industrial. A morte agora é socialmente construída e distribuída
com uma distante referência à natureza ou à doença no sentido tradicional. É
endopólica, e não endêmica, resultante da política, e não da biologia.
Até aqui, a ênfase tem recaído na mudança da determinação natural para
a determinação social da doença que coincidiu com o industrialismo. Embora
as grandes pandemias sigam rotas de comércio (21), elas têm origens
biológicas distintas. Por outro lado, a articulação social de doenças geradas
pela água ou animais nas cidades americanas do século XIX era muitas vezes
complexa demais para se distinguir a causação biológica da causação social.
E, na metade do século, a natureza social da doença era amplamente
13
reconhecida, embora talvez não entre os médicos. A reivindicação do líder
operário de antes da Guerra Civil americana, George Henry Evans, por um
imposto de renda escalonado para deter o cólera coincidiu com a
recomendação do presidente da Sociedade Médica de New York para bloquear
o reto com cera de abelha a fim de conter a respectiva diarréia (43, pg.67).
Agora, as vítimas da epidemia gritavam por causa da injustiça e não
simplesmente de dor. Ao mesmo tempo, as autoridades municipais eram
responsáveis pela epidemia e por seu controle. Nesta medida, as epidemias
eram ocasiões de exacerbação dos conflitos de classe, e a coincidência da
doença e a intensificação do conflito moldavam o curso da epidemia de dentro
e de fora. Em suma, a crescente natureza social da doença era tanto causa
quanto conseqüência do reconhecimento de que a doença era socialmente
determinada.
Para os epidemiologistas, a epidemia reflete um súbito pico na
mortalidade secundariamente relacionado a uma doença mais geral ou a
processos sociais, marcado por estágios de virulência crescente ou
decrescente. Mas a experiência de uma epidemia tanto para suas vítimas
quanto para as autoridades é estratificada de modo diverso: em estágios na
destruição e na reconstrução da autoridade política. Artaud se refere ao
impacto inicial de uma epidemia: “Todas as formas sociais se desintegram. A
ordem entra em colapso”. (44, pg.15). O colapso da estrutura normativa
prevalecente é também uma oportunidade para a invenção social geral. Da
mesma forma que revoltas, escassez de alimentos, guerras, incêndios, greves
gerais e rebeliões, as epidemias são estágios para o auto-reconhecimento
coletivo e para a reconstrução das identidades coletivas normalmente
subordinadas na vida cotidiana aos papéis publicamente aceitáveis. Elas são
teatros – onde o caráter sagrado do corpo e do Estado, o corpo político, é
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jogado ao vento, onde grupos ativistas se constituem repentinamente nas
articulações mais profundas da biologia e da história – e instrumentos com os
quais as massas tentam transformar sua objetificação, sua vitimização, em
razão biológica, realizando a afirmação e a redistribuição de sentido de acordo
com a necessidade. Como Genêt mostra em O Balcão (45), a única
preocupação das autoridades é reafirmar a centralidade de sua dominação,
mesmo que isto inclua levar temporariamente a vítima ou os rebeldes às
barricadas. Embora a versão oficial dos fatos possa ser modificada com
sucesso, cabe à autoridade controlar quem define o que é decisivo no final.
Não é surpresa que as epidemias estejam profundamente arraigadas na
memória crítica dos povos oprimidos.
A dinâmica da política interna associada com o processo de doença
pode ser exemplificada brevemente revendo os estágios pelos quais passou
uma epidemia de febre amarela ocorrida em New Orleans em 1853.
Estágio I. A Irrupção
Na melhor das hipóteses, a associação da epidemia com a pobreza é
estática; na pior delas, é enganosa. Nas sociedades capitalistas, onde a pobreza
é construída para preservar a apropriação privada do excedente social do
trabalho, as condições dos trabalhadores pobres, incluindo sua saúde, são um
produto dinâmico de sua relação com a riqueza, não uma função da pobreza
em si mesma. Exatamente como Chadwick afirmou que a doença causava a
pobreza – e, sem dúvida, causou muitas vezes no mundo pré-industrial – assim
as epidemias têm sido citadas tanto como causa de pobreza quanto de
depressões econômicas associadas com pauperização na sociedade capitalista.
Contudo, de fato, esta associação provém dos problemas que o capital e o
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trabalho enfrentam no auge do ciclo dos negócios, quando as remunerações
pelo trabalho são geralmente altas e as condições parecem prósperas.
Quando a febre amarela irrompeu em New Orleans, em 1853, os jornais
falavam em um tom ufanista sobre a recente prosperidade da cidade (46,
pg.96):
Nunca houve um tempo em que tantos prédios novos estivessem em
construção; a introdução dos transportes públicos fez os subúrbios
florescerem; prédios velhos vêm abaixo para dar espaço aos novos; e nos
limites da cidade aparecem novas casas tão rapidamente quanto os pântanos e
as lagoas se enchem.
Este boom nos negócios e no comércio ocorria, como afirmava um jornal, a
despeito da “escassez de mão de obra” e do “conseqüente aumento no preço
do trabalho” (46). Não é de surpreender que o mundo dos negócios tenha
respondido ao obstáculo colocado pela elevação dos pagamentos aos
trabalhadores, encorajando o aumento do fluxo de trabalhadores migrantes e
imigrantes baratos para aquela cidade portuária. As estatísticas hospitalares
fornecem um triste registro desta tendência: entre 1850 e 1852 as admissões
superaram os 18.000 casos por ano. Deste total, só 2.000 haviam nascido na
América, e destes, só 250 haviam nascido na Louisiana (46, pg.4). Uma fonte
atribuía a alta incidência de febre entre os imigrantes a seu emprego pelos
ricos em trabalhos de construção tradicionalmente reservados aos negros (46,
pg.143).
Em outras palavras, resolveu-se um problema que as demandas de
pagamento na produção criavam para os negócios, tentando manipular o
mercado de trabalho. Gradualmente, o balanço entre recursos sociais e físicos
cresceu. O mundo dos negócios respondeu à alta de pagamento com a alta dos
preços, produção ampliada, desinvestimento em bens sociais e controle
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político mais acirrado que ameaçava as redes locais informais – e muitas vezes
ilegais – de prestação de serviços. Neste intervalo, chegaram grandes
contingentes de trabalhadores, em parte respondendo ao sucesso da luta por
melhores pagamentos. A rápida imigração, a exploração intensiva dentro e
fora do local de trabalho, o colapso dos serviços urbanos existentes, o
agravamento da escassez crônica de habitações e a proliferação de
alojamentos sem estrutura ou serviços públicos de apoio – estas foram as
causas de pobreza impostas ao processo de trabalho para proteger os lucros e
geraram as contradições sociais refletidas na irrupção das doenças epidêmicas.
Estágio II – Tendência de Queda e Êxodo
Muitas vezes, os negócios ficam praticamente paralisados, antes e logo
após as declarações oficiais de uma epidemia. A rapidez dos fatos e a falta de
informação torna difícil determinar exatamente a relação entre a disseminação
da doença e a tendência de queda nos negócios. Não fica claro no caso de New
Orleans, por exemplo, se os negócios foram superestimados (dívidas não
saldadas, folhas de pagamento não cumpridas, queda aguda da liquidez,
demissões súbitas, etc.), provocando o êxodo urbano por onde a epidemia
circulou ou, se o êxodo começou em resposta às crescentes taxas de
mortalidade que, por sua vez, forçaram os negócios a fechar, aumentando o
êxodo, e assim por diante. Sabemos que o êxodo foi grande. Novecentos
cidadãos fugiram da pequenina cidade de Boston durante a epidemia de 1721
e o dobro deste número deixou a cidade em 1751 (47). A eficácia da fuga era
discutível. Filmes e imagens literárias da epidemia nos oferecem tanto a
chegada da morte na cidadela isolada, onde os heróis luteranos de Bergman no
Sétimo Selo (48) buscam abrigo, quanto o Decameron de Boccaccio, escrito
17
quando ele estava se escondendo da epidemia ocorrida em 1347, em Florença,
com dois companheiros cheios de mantimentos e sete mulheres tão cheias de
luxúria quanto de religião (44).
Entretanto, a partir das estatísticas de mortalidade, sabemos que à
medida que as cidades atingiam seus limites naturais e sua organização fazia
com que o auto-transporte para as florestas ficasse caro demais, se não
impossível, para o pobre, as epidemias os transformavam em guarnições de
cadáveres de baixa-renda. Da mesma forma, para os negros e imigrantes
recentes, a violência que os esperava nos subúrbios racistas e chauvinistas
nada possuía de atraente (49). A classe média não encontrava tais barreiras
para fugir. Vinte mil habitantes, a maioria ligada aos negócios, deixou New
Orleans durante a febre de 1853 e migrações sazonais eram comuns em quase
todas as cidades costeiras (46, pg.51).
Em uma era na qual os trabalhadores não tinham economias em
dinheiro, o efeito da paralisação dos negócios sobre o trabalho era imediato e
dramático, em especial quando os padrões de moradia se combinavam a leis
contra a criação privada de porcos e vacas para reduzir a capacidade das
famílias de trabalhadores de sobreviver sem a paga por seu trabalho. Durante a
epidemia de 1822, em New York, por exemplo, para conter a doença, foi
construída uma alta cerca de estacas que ia da rua Chambers até a rua
Roosevelt e dali para o East River. Bancos, escritórios, e lojas simplesmente
foram embora, forçando os trabalhadores a deixar suas casas naquela parte da
cidade e eliminando, para numerosas famílias, os ganhos sociais obtidos
durante uma década de luta (50, pg.43).
Epidemias eram freqüentemente citadas para explicar súbitas quedas
nos negócios. Quando a economia não conseguiu retomar sua tendência
normal de crescimento após a febre em New Orleans, o jornal Price-Current
18
explicou que era devido à epidemia, cuja “grande malignidade e longa
duração, tinha em uma certa medida perturbado toda a maquinaria de nosso
comércio” (46, pg.106). Porém, é evidente que havia menos causas naturais
para o desinvestimento, desemprego, paralisação dos negócios e para a própria
epidemia.
Estágio III. O Colapso da Autoridade e o Desafio que Vinha de Baixo
O desaparecimento da infra-estrutura da classe média é acompanhado
pelo colapso da autoridade local. Os funcionários locais são fisicamente
vencidos pela doença, juntam-se à oposição pública contra ineficácia de seus
colegas, ou simplesmente se recusam a desempenhar suas tarefas oficiais
enquanto durar a crise. Um exemplo fascinante é dado pelo julgamento do
Superintendente Geral de Polícia Frederick Talmadge por sua falha em usar
seus New York Metropolitans contra as rebeliões que incendiaram os prédios
usados para colocar em quarentena os viajantes expostos durante a epidemia
de febre amarela de 1858. Após duvidar que seus homens pudessem ter
chegado ao local da rebelião a tempo de fazer algo, o Superintendente Geral
admitiu seus reais motivos no interrogatório: “Eu não podia mandar homens
para lá e expô-los à febre amarela, pois eles teriam de voltar e espalhariam a
doença por toda cidade” (51, pg.42). A lealdade do superintendente é
particularmente notável porque os Metropolitans haviam sido impostos à
cidade de New York pelos Republicanos para quebrar quaisquer simpatias
existentes entre a polícia e grupos de operários revoltosos.
A autoridade não é desacreditada, nem se dissolve em um vácuo
político. A questão não é se há médicos suficientes e leitos hospitalares para
os doentes ou sepulturas para os mortos. Nunca há, em sociedades capitalistas.
19
Antes, o que torna o fracasso do controle institucional uma questão política
durante uma epidemia é o aumento concomitante do nível de desordem e luta.
A desobediência associada com a doença epidêmica pode crescer a
partir das próprias formas estabelecidas pelas autoridades para racionalizar o
sofrimento. Assim, os grupos de auto-flagelação que se formam durante a
pestilência muitas vezes se tornam excessivamente zelosos, desdenhando todas
as autoridades estabelecidas da igreja e do Estado. “Seus rituais eram quase
suicidas para os participantes” (19, pg.182). Em outras palavras, resistência à
dor pode ser agregada a outros sintomas evidentes entre os que usam a ocasião
de uma epidemia como um estágio para a rebelião. Depois da Peste Negra em
1374, as pessoas foram atingidas pela dança de São Vito, uma doença horrível
de origens desconhecidas (uma teoria é que era causada pelo ergot do centeio,
um LSD orgânico).
O surto mais sério começou na cidade de Aix-la-Chapelle em julho... os
dançarinos ganharam aderentes que imitavam seus movimentos. Milhares
foram atingidos e a febre evoluiu para um protesto anti-clerical. Correntes de
dançarinos invadiram os Países Baixos, moveram-se ao longo do Reno e
apareceram por toda Alemanha. As cidades de Colônia, Mainz e Strasbourg
caíram sob o reino do terror. Multidões tomaram posse de casas
monásticas...e eram insensíveis à dor (22, pg.197).
Um tratado do século XVII identifica alfaiates, artesãos e outras pessoas
sedentárias
como
vítimas
potenciais
desta
doença
que
aparecia
periodicamente e pode estar relacionada – na medida em que é um processo
que se espalha por imitação e leva à revoltas – às epidemias de bruxaria
ocorridas entre 1595 e 1616 (23, pg.61). Contudo, a associação entre doença e
rebelião muitas vezes tornou-se mais direta e auto-consciente. Durante a
epidemia de cólera no século XIX em New York, os trabalhadores pobres
20
enfrentaram as autoridades tentando remover seus vizinhos para hospitais
(43). A mesma epidemia foi muitas vezes comparada às Astor Place Riots
(Revoltas de Astor Place) e às Anti-Draft Riots (Revoltas contra o Alistamento
Militar), cuja maioria das vítimas provinha da comunidade irlandesa (43).
Os líderes carismáticos surgem das fileiras no meio da desordem. Como
relata Artaud (44, pg.18):
A epidemia de 1502 na Provença, que forneceu a Nostradamus a sua
primeira oportunidade para exercer seus poderes como curador, coincidiu
com os mais profundos levantes políticos, queda ou morte de reis,
desaparecimento e destruição de províncias, terremotos, fenômenos
magnéticos de todos os tipos, êxodos de judeus, que precedem ou seguem, na
ordem política ou cósmica, cataclismas e devastações cujos efeitos aqueles
que os provocam são estúpidos demais para prevê-los e não suficientemente
perversos para de fato desejá-los.
Além disso, para as autoridades, a desordem parece ser acompanhada de uma
ampla demonstração, devido às vítimas, em favor do programa de reforma
geral das classes trabalhadoras. Pouco antes da declaração oficial de
emergência, em 1853, em New Orleans, o Commercial Bulletin juntou-se à
reivindicação “popular” por “melhorias nas ruas” e “verbas para saneamento”
e concordou que “o sistema como um todo precisava de uma revisão” (46,
pg.38). Quando a crise estava inteiramente dada, o Delta afirmou em seu
editorial que “nosso governo municipal, em ocasiões de emergência pública e
perigo, é uma mera farsa” (46, pg.64). Esqueceu de acrescentar que a natureza
farsesca do governo burguês se torna mais aparente quando sua oposição
requer dele mais do que uma piada.
21
Estágio IV. O Surgimento da Comunidade
A ciência social eleva as categorias de sociedade burguesa a divisões
cognitivas que parecem ter o status de lei natural. Tomadas em conjunto, estas
categorias compreendem a lógica social cujo desdobramento ordena o registro
da história e da sociologia. Nas sociedades capitalistas, a ordem é a pedra de
toque do livro de registro e, por extensão, da política interna e externa. Nos
livros-texto, entre o colapso da autoridade municipal e a restauração da
ordem, não há nada, há um espaço vazio ou, para ser mais exato, há apenas
caos e anarquia. Pior de tudo, não há trabalho produtivo.
Mas os que vão se tornar as vítimas da epidemia vivem suas vidas
normalmente em constante luta dentro e contra as categorias da experiência
cotidiana. A partir desta tensão cresce a qualidade revolucionária que Marx
encontrou no coração do progresso capitalista. Ordem, para o oprimido e o
explorado, é a fragmentação da autonomia – não sua expressão – e
socialização inclui a repressão de modos alternativos de se fazer coisas.
Caracteristicamente, a resistência toma a forma de recusa e é individualizada.
No entanto, todo espaço é contestado. A liberdade de trabalho – que é o
segredo da organização capitalista sob pagamento – persiste como um
potencial vivo em cada momento da vida laborativa. Sem o trabalho, o capital
não é nada. Quando o trabalho cessa durante uma revolta, greve geral ou
epidemia, a história burguesa se dissolve. Mas sem o capital, o trabalho
consegue ser ele mesmo, para além da história burguesa, na direção da
sociedade. Esta tentativa do trabalho de reconstruir sua saúde em seus
próprios termos é o coração das epidemias do século XIX, mas é invisível nos
textos de saúde pública.
22
Quando os negócios e a autoridade política fracassam, a comunidade de
vítimas encontra alternativas em sua experiência cotidiana. A doença
transforma a sobrevida da comunidade em sua única vida.
Uma vez que a pestilência se estabelece em uma cidade, as formas
regulares entram em colapso. Não há manutenção de estradas e esgotos,
exércitos, polícia ou administração municipal. Acendem-se piras ao acaso
para queimar os mortos, com o que se conseguir. Cada família quer ter a sua
própria pira. Assim, madeira, espaço e o próprio fogo tornam-se raros, há
feudos familiares em volta das piras, logo seguidas por uma fuga geral, pois
os corpos são numerosos demais. Os mortos já obstruem as ruas amontoados
em pirâmides mordidos nas extremidades por animais. O mau cheiro paira no
ar como uma chama. Ruas inteiras ficam bloqueadas por pilhas de corpos.
Neste momento, as casas abertas e as vítimas delirantes, suas mentes tomadas
por visões pavorosas, que espalham uivando pelas ruas... Outras vítimas, sem
bubões, delírio, dor ou erupções, se examinam orgulhosas no espelho, em
esplêndida saúde, assim pensam, e de repente caem mortas com suas faces
dilaceradas nas suas mãos, cheias de escárnio por outras vítimas (44, pg.23).
Cerimônias – inclusive rituais de cura, cuidado, diminuição do medo,
integração física e psíquica – atingem um auge teatral durante as epidemias.
entre outros, Poe (52), Artaud (44), Camus (53) e Bergman (48) vêem a
pestilência como um estágio simbólico no qual as questões filosóficas chave
envolvendo morte, sofrimento, salvação, misericórdia e heroísmo são
debatidas através de ações exemplares executadas na comunidade dos pares. A
mera demonstração de roupas e cenários é muitas vezes esmagadora. Durante
o ataque de 1853, quando os negócios com os corpos substituíram a troca de
mercadorias, o lugar de comando deslocou-se das instituições burguesas – a
praça do mercado e o Palácio da Justiça – para as ruas e o cemitério.
Multidões se reuniam para ver as procissões fora da cidade, “muitos usando
23
saquinhos de cânfora e especiarias em seus narizes, para assistir e contemplar
a vasta congregação dos mortos”. Ao fundo, reminiscentes das peças
históricas de Shakespeare, canhões disparavam em intervalos regulares
enquanto barris acesos de alcatrão davam à cidade uma cor e cheiro distintos
de manhã à noite (46, pg.67). A demonstração unificava a epidemia como um
teatro com revoltas, rebeliões e fogueiras. Por exemplo, durante o incêndio,
em 1835, em New York (50, pg.127):
Homens e mulheres de Five Points* desfilavam embebedados com seus
trapos debaixo de ricas capas, sedas e cetins da melhor qualidade; negros
fortes se pavoneavam na frente de seus colegas resplandecentes em
sobrecasacas e cartolas roubadas.
Estas
ações
são
estranhamente
ridículas,
rebeldes
e
democráticas,
particularmente em contraste com a sombria impessoalidade dos relatos da
saúde pública.
Este teatro de crise quase brechtiano logo preenche o vácuo criado pela
dissolução da autoridade tradicional e das relações de trabalho. O mundo
excluído do boêmio, os tratamentos charlatanescos dos curadores tradicionais
e ciganos, a fraternidade das gangues, a linguagem da paixão, sonho,
conspiração e crime – tudo isto vem à superfície à medida que desaparece o
nexo do dinheiro vivo. As definições de saúde e salubridade também mudam.
Até aqui, definida como sobrevivência individual em um mercado anárquico,
agora a saúde parece depender inteiramente do apoio mútuo dos indivíduos e
de suas vizinhanças imediatas. Gangues, clubes políticos, associações de
________________________________________
N. do T.: Five Points era uma região de New York formada pela intercessão das ruas Park,
Worth e Baxter, que no século XIX era extremamente insalubre, concentrando
cortiços onde viviam trabalhadores pobres. Palco de constantes agitações sociais.
24
bombeiros voluntários, clubes locais de esporte e de tiro, sociedades
educacionais étnicas, sociedades religiosas, filantrópicas e beneficentes –
grupos cujo efeito a longo prazo é muitas vezes tornar as condições
dominantes mais palatáveis – repentinamente substituem sua reserva puritana
e estreito foco chauvinista com objetivos que crescem organicamente das lutas
de atores/sofredores para realizar um trabalho interdependente. As instituições
são espontaneamente organizadas de baixo. Casas abandonadas tornam-se
hospitais e pensões gratuitas; tabernas transformam-se em cortes de justiça;
salas de reunião e escolas; lojas tornam-se centros de distribuição; os remédios
caseiros dos velhos e esquisitos agricultores pobres que vieram para a cidade,
de repente, parecem produtos da mais profunda sabedoria e criatividade. O
valor de uso deixa de ser uma simplesmente a racionalização da troca e se
torna seu motivo.
Estágio V. A Declaração da Epidemia
Afirma-se, durante todo o período da industrialização, que doença
epidêmica, pobreza, loucura, escassez ou guerra eram responsabilidade do Rei.
Nossa cultura toma o contexto individual da doença como não problemático, e
assim, torna-se difícil compreender que, até cerca de 1910, uma irrupção de
doença era comumente percebida como um problema social pelo qual o
Estado era em última instância responsável. Embora a política pública pudesse
culpar as vítimas individuais (ou seus modos de vida) pelas catástrofes, a
queda do governo de uma cidade americana durante uma epidemia não era
menos certa do que o colapso do mandarinato chinês sob circunstâncias
semelhantes (54).
25
Além do medo de perder o poder, dois fatores impediam as autoridades
municipais de declarar uma crise na saúde. Em primeiro lugar, a cidade do
século XIX era administrada por uma máquina, uma rede complexa de
clientelismo na qual a lealdade básica era organizada em troca de serviços e
pagamentos ao intermediário (55). Por enquanto a máquina legitimasse a
afirmação de que os recursos disponíveis eram escassos, a competição dentro
da comunidade era necessária e a apropriação privada da riqueza social
prosseguia sem controle. Mas a declaração de uma epidemia forçava as
autoridades a reivindicar que uma maior parte do excedente fosse investido
em serviços sociais e reforçasse a profissionalização do governo, defendida
por reformadores com pouca sensibilidade à importância do clientelismo. Em
segundo lugar, já que a imagem de uma cidade saudável era essencial para os
lucros dos negócios em bens e trabalho, era certo que o anúncio de uma
epidemia criaria problemas para os negócios, especialmente onde leis de
quarentena, licença e inspeção fossem sancionadas. Além disso, os opositores
da vacinação argumentavam que a doença tinha um efeito catártico sobre os
pobres e subjugava o caráter desordeiro dos trabalhadores (46, pg.38; 56).
O uso do termo epidemia para simultaneamente expressar e distorcer
contradições políticas diversas será discutido abaixo. Basta dizer que o
fracasso no controle da doença em face da mortalidade crescente era apenas
um único fator determinando seu uso e não necessariamente o mais
importante. Pouca atenção foi dada às 2.500 pessoas mortas pela febre em
New Orleans em 1854 (46), um ano após a grande epidemia, sugerindo que a
mobilização da opinião pública para a doença necessitava um colapso mais
geral dos negócios e do governo, e não meramente uma alta taxa de
mortalidade. De fato, em um sentido, o reino biológico era apenas o veículo
através do qual a doença circulava da economia política para a comunidade de
26
trabalhadores e, novamente, retornava – pela via da auto-organização política
das vítimas – para as autoridades municipais. Não havia nada de natural ou de
inevitável no desequilíbrio entre serviço e a necessidade que produzia morte
em proporções epidêmicas, nem na compreensão pública que a epidemia era
parte de uma crise mais ampla no gerenciamento do capital. Ao contrário, o
Estado assumia a responsabilidade pelo epidêmico só para reduzir a crise geral
na acumulação e na autoridade a um problema de saúde que podia
supostamente ser controlado por meios técnicos.
A identificação oficial de um padrão fisiopatológico enraizava a ruptura
social na experiência e, mais do que isso, oferecia às vítimas da doença um
quadro para organizar as diversas causas de miséria. A epidemia tornou-se um
espelho no qual pessoas com identidades ambíguas se viam. Em todo lugar, as
pessoas encontravam sinais da doença iminente; todo acontecimento ou
comportamento social era uma causa potencial e críticas anteriormente
suspeitas eram levadas a sério, pois se dizia que seriam motivadas pelo medo
da morte. Não muito tempo atrás, este processo de identificação serviu às
autoridades. Assim, embora a recente doença dos legionários fosse
provavelmente bacteriológica em sua origem e não tivesse ligação alguma
com a gripe suína, o governo foi capaz, ao sugerir tal ligação, de ganhar apoio
para seus esforços de produzir em massa uma vacina para a inexistente
epidemia vindoura. Apesar de tudo, em geral, a declaração de crise expande a
crise, embora também possa limitar sua pertinência à área da saúde. Não
menos importante, o trabalhador pobre pode se juntar a uma epidemia para ter
acesso a bens sociais normalmente inatingíveis, incluindo-se aí remédios, bem
estar social, comida e abrigo. Cabe lembrar que, os médicos também não são
imunes ao contágio do acontecimento. Eles encontram casos em todo lugar!
27
Estágio VI. A Reconstituição da Autoridade.
A declaração de uma epidemia torna oficial a paralisação dos negócios.
Quem não tiver meios para sobreviver é jogado para os cofres públicos. Mas
já que não sobrou nenhum serviço municipal, eles têm de ser inventados.
Incapaz de trocar serviços e renda por obediência e trabalho, a máquina é
substituída por redes informais com trocas de bens por lealdade direta, não
mediada pelo trabalho.
Junto com os conhecidos meios de auto-ajuda, ocorre a reivindicação do
trabalhador pobre por bem estar por meio de protestos, roubo e rebeliões.
Donativos dos ricos e das classes médias vêm rápido. Uma das mais antigas
filas do pão se formou durante uma crise de inverno em 1820, em New York,
quando os açougueiros e padeiros transformaram igrejas e tabernas em pontos
de distribuição de alimentos que eles não conseguiam mais vender (50).
Durante a febre de New Orleans, um clube de cidadãos abastados, a Howard
Association, começou imediatamente a distribuir mantimentos, carne,
utensílios de cozinha e o “privilégio dos ricos, de receber duas visitas diárias
de um médico” (46, pg.54). Cartões de alimentação e combustível eram dados
de graça.
Paradoxalmente, as redes de auto-ajuda e as iniciativas políticas das
vítimas mostram ao governo como reconstituir sua autoridade política.
Incapaz de tomar coragem para se re-apropriar de uma parte do excedente para
a saúde, o governo pode, entretanto, ter energia para racionalizar os meios
pelos quais os trabalhadores pobres se re-apropriam do excedente de forma
direta.
O processo oficial de racionalização começa declarando oficiais as
redes de serviços menos ameaçadoras e, por meio disto, absorvendo-as no
28
aparelho governamental. A seguir, suas funções são expandidas e redefinidas
de modo a incluir muitos dos modos da repressão municipal, em particular, o
poder de polícia para prisão, inspeção e multas. Cidadãos respeitáveis são
empossados e a polícia regular é mobilizada para fazer cumprir o novo plano
de saúde. Após um grupo de cidadãos ter se juntado ao Departamento de
Saúde (Health Office) inspecionando navios de New York, em 1793,
esperando prevenir a disseminação da febre que vinha de Philadelphia, eles
passaram a formar o Comitê de Saúde da cidade, auxiliados por patrulheiros
locais, e oficialmente encarregados de fazer cumprir várias medidas
repressivas ao longo dos cais e embarcadouros (57, pg.125).
Em New Orleans, o poder da Howard Association foi rapidamente
racionalizado para tornar possível a ajuda direta em casos de necessidade
degradante (46, pg.32). Assim, o pagamento direto de uma compensação
social foi assumido pela municipalidade mas, em uma forma que incorporava
iniciativa política vinda de baixo e gradualmente transformou bem estar
(welfare) em auxílio-trabalho (workfare). As demandas imediatas dos
trabalhadores pobres tornaram-se pretexto para fazer das formas de autonomia
da classe trabalhadora o alvo direto da legislação. As reformas do século XIX
são incompreensíveis se não se leva em conta a tentativa de cooptar, penetrar e
fragmentar as redes de cuidado e tratamento dos próprios trabalhadores. Por
exemplo, mesmo durante a Grande Peste de Londres, em 1665, as reuniões
públicas foram prontamente proibidas (57, pg.23). Uma campanha de New
York contra o “vício, bebedeira e preguiça” da classe trabalhadora seguiu-se a
um surto de febre em 1832 (57, pg.285); New York e Connecticut
freqüentemente usaram as epidemias como desculpa para inspecionar, regular
e fechar locais de diversão dos trabalhadores (47, pg. 102; 57, pg.288). A
literatura de saúde pública está repleta de tentativas de atribuir doenças
29
epidêmicas a tabernas e à vida nas ruas, a “ruas estreitas, pensões e bibocas”
onde “bebedeira e libertinagem promoviam a doença”, e de campanhas contra
“mendigos obstinados”, traficantes, órfãos, delinqüentes, vagabundos e outros
que resistiam à disciplina requerida pela fábrica. A Guarda Municipal e as
Leis de Saúde (Health Acts) das décadas de 1850 e 1860 foram
especificamente dirigidas para dar a autoridades estatais meios legítimos de
penetrar em lugares da cultura da classe trabalhadora.
O Estado responde à vitimização do trabalhador pobre redefinindo-a e
estendendo-a. A profissionalização dos bombeiros, polícia e pessoal de saúde;
a substituição dos poços da vizinhança (onde os trabalhadores se reuniam)
pela água encanada; a criação e racionalização das prisões, orfanatos e
reformatórios; a substituição da máquina pelo serviço civil; o esmagamento
das gangues políticas e a limitação dos sindicatos a barganhas econômicas –
em cada caso, embora a resposta política dos trabalhadores pobres a crises
desse à polícia pública sua razão de ser, seu objetivo último era re-formar a
vitimização junto com limites mais amplos, e se tanto, mais racionais.
A epidemia do século XIX cresceu e se tornou um pretexto para
intensificar a luta de classe em torno de condições. As epidemias eram subprodutos de tentativas periódicas de se resolver crises na acumulação por
meios sociais e políticos extraordinários; mesmo assim, as municipalidades
eram pressionadas para racionalizar suas respostas à doença, ou então ceder às
iniciativas de suas vítimas. Em resultado, capitalismo e doença estavam
ligados pelos esforços cada vez mais conscientes do Estado para reconciliar as
iniciativas conflitantes do trabalho e dos negócios, em favor dos lucros. A
conseqüência é que hoje, como críticos de pontos de vista opostos concordam,
a doença segue o ciclo dos negócios, um eufemismo keynesiano para o ciclo
do conflito de classe (58-60).
30
Mas a saúde, e não apenas a doença, é determinada pelo conflito de
classe. Vimos que a substância da polícia de saúde municipal reflete, apesar de
distorcida, os esforços cotidianos para democratizar os benefícios associados
com um dado estágio da produção. Junto com a ligação entre desenvolvimento
capitalista e doença há uma integração paralela de saúde e lutas pela liberdade.
A definição de liberdade é historicamente especificada pelas capacidades que
as pessoas revelam – e buscam – durante as lutas contra a exploração; saúde,
no entanto, não significa apenas a ausência de doença, mas a plena expressão
da razão biológica que surge junto com estas novas capacidades. E a saúde
tornou-se uma questão volátil não apenas quando a doença ameaçava a
existência física da força de trabalho, mas também quando trabalhadores que
lutavam para estabilizar suas formas autônomas de cuidado e tratamento
declararam a liberdade o uso mais apropriado da saúde.
MEDICINA, EPIDEMIA E O SURGIMENTO DO CAPITAL SOCIAL
A idéia de que as epidemias são fatos sociais contrasta com sua
descrição convencional de patologias virulentas distribuídas entre vítimas de
certas populações. Além disto, a epidemiologia burguesa pode ligar estes
padrões empíricos a fatos distintos, como guerra ou superpopulação, ou a
vagos processos trans-históricos como modernização ou pobreza. Mas uma
abordagem marxista explícita liga estes fatores sociais historicamente e os
relaciona com o processo de doença e com as leis que o desenvolvimento
capitalista colocou em prática em conflitos de classe específicos.
Foucault ofereceu recentemente uma alternativa para a abordagem
empiricista. Ele afirma que, como a visão nosológica, clínica e ambiental, a
31
epidêmica é um princípio organizador do reconhecimento e da compreensão e
também um princípio de constituição da doença dentro de um espaço social
distinto como, por exemplo, a família ou o corpo. O espaço e a visão de
mundo surgem juntos em diferentes momentos no processo evolutivo. Ao
dirigir nosso olhar dentro do espaço, o princípio organizativo ajuda a construir
a doença como um fenômeno unitário que pode ser medido, descrito e,
presumivelmente, tratado. Podemos acrescentar, entretanto, que cada visão de
mundo nos dirige para certos aspectos do processo de doença e nos afasta de
outros. E este olhar é controlado pelas mesmas pessoas que monopolizam o
tratamento. Foucault pensa que uma medicina de epidemias ligava a prérevolucionária medicina de classes (nosologia) ao pós-revolucionário modelo
clínico no qual o olhar é dirigido para a agregação de sintomas diferenciados e
visíveis no indivíduo anatômico, o cadáver (61).
Foucault pode relatar a perspectiva anatômica para a clínica afirmando a
autonomia relativa dos avanços médicos e evitando o reducionismo típico de
uma análise institucional tão radical. Mas, ao segregar estruturalmente os
desenvolvimentos ideológicos dentro da medicina a partir de uma análise
detalhada de mudanças sociais maiores, ele limita a abrangência de seus
argumentos históricos sobre as ligações entre ideologia, doença e estrutura
social. No final, ele perde de vista os conflitos entre medicinas orientadas para
o indivíduo e a abordagem epidemiológica do movimento de saúde pública,
assim como a visão individualista dos clínicos ligados ao pagamento-porserviço. Além disso, ele negligencia tanto o papel decisivo na resolução dos
conflitos desempenhado pelo Estado quanto a interferência dos negócios.
32
O DECLÍNIO DA MEDICINA BOTÂNICA
A guerra entre terapia botânica e heróica nos Estados Unidos foi
decidida, longe do laboratório, pela transformação capitalista da agricultura. A
base empírica para a ciência botânica era a fazenda da família. Por exemplo,
os médicos thomsonianos* desenvolveram seus tratamentos registrando e
racionalizando uma grande variedade destes remédios caseiros. E os
movimentos botânicos iniciais estavam ligados às lutas populistas durante
todo o período anterior à Guerra Civil Americana ** (43, 62). Em contraste, a
medicina heróica era cega e totalmente não-científica porque comunidades
rurais tinham poucos dependentes ou cadáveres não reclamados para gerar
diagnósticos anatômicos. À medida que a população rural veio para a cidade,
ela trouxe naturalmente seus remédios. Mas a proletarização do fazendeiro
tanto na cidade quanto no campo fez dele um dependente, passivo aos olhos
das profissões urbanas, e, para o olhar clínico, um objeto a ser adaptado.
Neste meio tempo, uma vez que a expansão capitalista havia destruído a base
comunal sobre a qual repousavam os tratamentos tradicionais, a medicina
botânica tornou-se eclética e, depois, charlatanesca.
As batalhas decisivas neste longo conflito ocorrem durante epidemias,
quando a ansiedade da massa estava voltada para o tratamento. Durante estas
* N. do T.: O Thomsonianismo era um sistema empírico baseado na afirmação de que o
corpo humano é composto de quatro elementos: terra, ar, fogo e água e de que só
devem ser utilizados remédios vegetais. O nome do sistema provém de seu
fundador: Samuel Thomson (1769-1843), médico americano de Massachusetts.
** N.do T.: A Guerra Civil Americana também conhecida como a Guerra de Secessão vai
de 1861 a 1865.
33
crises, as alianças entre médicos regulares e o poder de polícia da cidade eram
suficientes para excluir do serviço de saúde pública até mesmo os médicos
homeopatas relativamente proeminentes (43). Ainda está para ser feito um
estudo da transição no final deste período, com o Thomsonianismo em
declínio, os crescentes movimentos pelo saneamento e pela saúde dos
cidadãos, e as novas
formas de
medicina
integrando
descobertas
científicas,economia social e tratamentos tradicionais. Após 1870, e
claramente antes da medicina clínica ter qualquer impacto sobre a doença
epidêmica, a medicina botânica com uma consciência de classe estava morta.
Somente restava a homeopatia, despolitizada, a última voz de um sistema de
cuidado individual descentralizado, ecologicamente derivado e culturalmente
homogêneo.
A Guerra Civil Americana mostrou ao mundo dos negócios o valor do
monopólio da inovação tecnológica. A despeito disto, a ciência, a educação ou
a reforma de um modo mais geral, ainda parecia ser uma diversão só permitida
quando, durante rebeliões ou epidemias, massas autônomas entravam na arena
política atuando como se a injustiça, e não simplesmente a doença ou a
pobreza fosse a questão.
O mundo dos negócios e o governo foram finalmente convencidos a
adotar a reforma como uma estratégia permanente para o controle dos
assuntos interiores somente pela gradual identidade de movimentos dentro e
fora da saúde. Por exemplo, os sanitaristas radicais cada vez mais viram o
cólera simplesmente como uma fase aguda de uma doença crônica que incluía
urbanização, imigração e cortiços (43).Tanto o movimento dos trabalhadores e
a imprensa popular fizeram estas associações politicamente, ligando as
epidemias ao trabalho nas fábricas e a saúde a melhores condições de vida e
trabalho obtidas por meio do conflito social (63). Apesar da intensidade da
34
competição capitalista ser parcialmente uma função da luta dos trabalhadores
por mais dinheiro nas fábricas, seu pleno impacto foi sentido na comunidade
onde o desinvestimento em serviços públicos, lucros, períodos de dispensa de
trabalhadores e imigração ilegal foram expressos em falta crônica de
habitações, desnutrição, incêndios freqüentes e assim por diante. E, deste
modo, foi nas suas comunidades que trabalhadores se organizaram
politicamente para regular as conseqüências da produção ilegal e, além disso,
para limitar horas e melhorar as condições no trabalho. Para os reformadores
que vieram após a Guerra Civil Americana, as expressões últimas da política
dos trabalhadores foram as Anti-Draft Riots (Revoltas contra o Alistamento
Militar) e as Railroad Riots (Revoltas contra as Ferrovias), um em torno do
trabalho, o outro em torno das condições de vida, que deixaram a impressão
de que havia um “vulcão sob a cidade” que podia irromper a qualquer
momento (36,64).
Na virada do século XIX para o XX, a mídia popular reivindicou que a
mesma tecnologia utilizada para produzir vagões fosse aplicada para resolver
epidemias tais como: delinqüência, alcoolismo, acidentes de automóvel,
doença mental ou câncer. E, embora a determinação de bactérias causadoras
de doença tenha ocorrido em grande parte em laboratórios privados e tenha
sido expressa de maneiras que ajudaram a legitimar o uso clínico de drogas,
quando a ciência contribuiu diretamente para a medicina social, como nos
laboratórios municipais da década de 1890, os resultados mais do que
confirmaram as preocupações de saúde da higiene industrial e dos
movimentos conservacionistas; além disso, davam apoio a demandas dos
Escritórios de Estatísticas do Trabalho de amplos poderes para investigar e
controlar a saúde por meio da regulamentação das condições de trabalho (65).
O movimento de saúde pública como um todo foi acertadamente criticado por
35
seu caráter chauvinista, racista e essencialmente conservador (66). Mas sua
concepção básica – condições sociais causavam doença, e, assim, havia
necessidade da engenharia social para eliminá-la – deu à medicina das
epidemias um lugar radical no programa geral dos sindicalistas, revoltosos e
políticos de esquerda, da virada do século.
A IDEOLOGIA EPIDÊMICA E O CONTROLE SOCIAL
O uso ideológico da medicina epidêmica também apoiou políticas de
reforma, desenvolvidas no final do século XIX, que enfatizavam o controle
social mais do que a exploração flagrante. A natureza de classe da epidemia
parecia justificar a pobreza e desordem censuráveis e “as mulheres doentes da
classe operária” (66). Além disso, esta associação implicava que a doença,
como a ignorância ou a irresponsabilidade, era um encargo singular que podia
ser separado de outras questões sociais e estimulada por uma intervenção
estatal benevolente para estreitar os laços entre ciência, tecnologia e empresa
privada.
A profissionalização de praticamente todo o serviço social durante o
período das vacas gordas, de 1890 a 1920, criou a mística tecnocrática por
trás da qual várias formas de ajuda – da educação até a religião – foram
oficialmente integradas em amplos mecanismos de dominação (62,67). Por
fim, quando o sofrimento quebrou o espetáculo construído pelo fetichismo da
mercadoria em torno da infelicidade na sociedade burguesa, a epidemia era
uma boa desculpa. Neste ponto, uma ideologia da epidemia promovida por um
Estado crescentemente intervencionista ajudou a mediar as contradições
36
criadas pela medicina clínica nos seus primórdios, porque ela não podia nem
atender nem prevenir a doença social.
O núcleo material que embasava esta ideologia estava em substituir o
artesão pelo trabalhador massificado como fonte primária de mais valia. Como
a própria linha de montagem, a ciência social e a epidemiologia estatística
presumia e ajudava a reproduzir o trabalhador padronizado, o paciente que se
apresentava no hospital não em sua individualidade única, mas como força de
trabalho abstrata. O uso da tecnologia para controlar sintomas de um modo
que aparentemente restabelecia a norma; a emergência de uma definição
funcional de saúde; a doutrina da especificidade que levou à rápida descoberta
em série dos microorganismos-chave; e a súbita posição central de técnicas e
instrumentos para medir na terapêutica médica – tudo isto postulando a
existência de um meio ambiente uniforme da massa (68). Seria de surpreender
se a padronização da massa e de seu tratamento não tivesse reforçado a
padronização de um processo de doença já socializado.
As campanhas de vacinação periódica no início da década de 1900
representam o ponto culminante da resposta da saúde pública à doença
transmissível como um problema social. O Relatório Flexner (1910) não
apenas simbolizava o fim da medicina irregular, mas também unificava a
oposição do mundo dos negócios a qualquer forma de tratamento social e o
banimento da saúde pública para o ponto mais distante do consumo público,
para o velho, o muito jovem e o pobre e para as regiões subdesenvolvidas
(17,69). Na década de 1930, a saúde pública tinha sido reduzida a mero pano
de fundo de um sistema baseado na oferta de medicamentos e tecnologia,
centrado no hospital, com o trabalho médico estratificado em especialidades
técnicas em torno de um caso ou órgão isolado.
37
A MEDICINA CLÍNICA E O CONSUMERISMO*
Além da análise de Foucault, a tendência é explicar a sobrevivência de
um sistema de cuidado médico individual nos Estados Unidos como uma
evolução natural dos tratamentos relativamente distantes da época heróica
usados por médicos regulares do século XIX. Freidson (70) também afirma
que habilidade era a base objetiva para o atual monopólio profissional. Mas
um sistema de pagamento por serviço individualmente orientado é impensável
no mundo das corporações do século XX sem a supressão política de modos
alternativos de tratamento, a subordinação da medicina pública e a total
integração dos modos pequeno burgueses de oferta com grandes empresas e
governo. A circulação do capital através do setor médico, o surgimento da
medicina corporativa e a interdeterminação da ideologia médica e
consumerista não são uma aberração na história da medicina como uma
ciência, mas as precondições para esta história.
Exatamente como o olhar objetivo do médico do século XX centrado no
hospital é inconcebível fora da transformação capitalista dos agricultores do
século XIX – os sujeitos dos movimentos herboristas de auto-ajuda– em
objetos passivos do controle tecnológico, a integração da medicina clínica e
ciência também é inseparável do financiamento dado pela Fundação Carnegie
e pela Fundação Rockefeller às escolas médicas de elite para desenvolver
laboratórios (62,69). Estas fundações apoiaram o desenvolvimento da ciência
dentro do quadro da ideologia clínica, em parte, apenas porque esta
____________________________________
N. do T.: Consumerismo: teoria que afirma que um consumo progressivamente maior de
bens é economicamente benéfico para a sociedade como um todo.
38
perspectiva – precisamente porque derivava da produção de mercadorias de
pequena importância do século XIX – prometia aliviar o sofrimento individual
sem ameaçar a apropriação privada da riqueza social.
O capital ganhou substancialmente com seu apoio à medicina. A lógica
interna e a estrutura social da medicina clínica são resultado de seu uso,
durante o período da mais rápida expansão capitalista, como um veículo
através do qual as descobertas científicas podiam ser capitalisticamente
monopolizadas, incorporadas nos modos de controle dominantes e
transformadas em ativos capazes de gerar lucros. Mais imediatamente, o foco
da medicina no indivíduo anatômico como a fonte e sede de doença coincidiu
com os esforços para ensinar os trabalhadores imigrantes a consumir, no
mercado, bens que eles costumavam produzir em casa e culpá-los pelo
fracasso do capitalismo em cumprir as utópicas promessas feitas durante o
processo de industrialização (71).
A ciência e a ideologia consumerista juntaram-se para reforçar a
dependência da vítima para trabalhar e comprar. Na publicidade de massa, a
ideologia médica foi usada para atribuir a insatisfação e as desigualdades
sociais básicas à inadequação física e social do indivíduo. A participação no
mercado de massa era oferecida como o melhor alívio para a infelicidade,
enquanto Listerine curaria os “poços ocultos de veneno” que “espreitam e
conspiram contra os planos de prazer, mesmo da mais bela mulher” (71,
pg.38).
A aparente contradição entre as duas conseqüências do consumerismo,
isto é, felicidade e doença crônica, só podia ser resolvida se o consumidor
aceitasse sua dependência, com relação à saúde e felicidade, sob a orientação
disciplinada fornecida pelo patriarca e especialista das corporações. A ciência
doméstica e a ciência da saúde eram simplesmente os sub-produtos populares
39
da ciência médica: para todo problema (ou doença) havia uma solução (ou
medicamento) no mercado (73). O mercado aberto era veiculado pela
publicidade como o campo para a realização dos valores democráticos de
escolha, participação e controle negado no trabalho. Em paralelo, o cuidado de
saúde era organizado anti-democraticamente, de cima para baixo, junto com a
alimentação, vestuário, habitação e outros componentes do padrão de vida,
especificamente para acelerar a realização por meio de vendas rápidas do
excedente expropriado dos trabalhadores no trabalho. Em suma, o capital
endossou a ideologia médica como parte de uma tentativa mais ampla de
disfarçar o conjunto comum de doenças – contudo, o mau hálito permanece
sendo uma doença social – e para individualizar e integrar a doença, por meio
de medicamentos e hospitalização, como um incentivo para a participação
dependente no mercado de massa.
A EPIDEMIA DO CAPITAL SOCIAL
Durante toda a década de 1870 e 1880, bem estar social, educação
básica e secundária, aumento do padrão de vida, salário família, sindicalização
e voto universal foram todos duramente combatidos pelos industrialistas.
Porém, na década de 1920, estas reformas eram vitais para o êxito do capital.
O período de transição, a Era Progressista, é um ponto de virada no processo
de doença, assim como na história política e econômica da sociedade
burguesa. Não apenas a morte por doenças infecciosas e doenças da infância
caiu pouco antes e durante este período, mas, além disso, o caráter e a
distribuição da morte e da doença também mudaram (32,63).
40
Por volta de 1900, o mundo dos negócios estava tendo cada vez mais
dificuldades para se mover tanto na fábrica, quanto fora dela, no mercado ou
na comunidade. Antes, a organização capitalista no recinto das empresas
contrastava muito com a anarquia no mercado imposta pelas políticas de não
intervenção do Estado (34,74). Revoltas e atividade política formal realizadas
pelos artesãos haviam limitado o tempo de trabalho enquanto lutas em torno
da saúde, segurança e condições de vida forçaram os negócios a aumentar seus
investimentos em infra-estrutura urbana e serviços. Ao mesmo tempo, à
medida que os negócios se viam confrontados no campo político, a elevação
dos salários junto com as lutas para manter o controle do processo de trabalho
a fim de bloquear inovações tecnológicas precisava superar a alta dos salários.
E por trás do impasse enfrentado pelos negócios estava o fato material: as
forças de produção tinham se desenvolvido ao ponto em que era possível obter
um aumento da produtividade em bens básicos com um declínio absoluto no
tempo total de trabalho gasto na produção (13,75).
Em um nível mais geral, a necessidade do capital impor trabalho
derivava politicamente do fato do trabalho estar cada vez mais ultrapassado
como uma necessidade social. Mais especificamente, o capital tinha de
eliminar os artesãos e usar o Taylorismo, o Sistema Americano, e várias
estratégias de relações industriais para racionalizar a extração de valor da
massa trabalhadora (76). Porém, como a operação do departamento de
sociologia de Henry Ford exemplificou, o êxito da disciplina tempomovimento na fábrica dependia da racionalização e da organização da vida
fora da fábrica; do mesmo modo, para baixar os custos de reprodução, era
necessário limitar as iniciativas políticas do trabalho e assegurar o fluxo de
capital por meio mercadorias no setor expandido de serviços (71,77).
41
A organização do mercado pela publicidade de massa na década de
1920 e a organização dos serviços pelo liberalismo da TVA* na década de
1930 incorporou consumo e reprodução como fatores na produção. Agora, o
valor estava organizado por todo o espectro da sociedade, não apenas no
recinto da fábrica. Como o empreendedor privado se dissolveu no capitalista
social e o artesão do século XIX foi substituído na cabeça do movimento dos
trabalhadores pelo trabalhador massificado da linha de montagem
automatizada, toda a sociedade parecia ser uma fábrica. Marx antecipou esta
transformação do potencial de toda a atividade em trabalho produtivo:
Não mais o trabalhador individual, mas sim a força de trabalho
socialmente combinada torna-se o agente real do processo de trabalho
coletivo. Os vários poderes competitivos de trabalho que constituem a
máquina produtiva como um todo participam de modos muito diferentes na
produção imediata de mercadorias... Um indivíduo trabalha com suas mãos,
outro com sua cabeça, um como gerente, engenheiro, técnico etc., o outro
como supervisor, um terceiro como trabalhador manual direto ou mero
ajudante. Assim, cada vez mais funções da força de trabalho vão sendo
subsumidas sob o conceito de trabalho produtivo e os trabalhadores sob o
conceito de trabalhadores produtivos. Eles são diretamente explorados pelo
capital...[A atividade combinada do trabalhador coletivo resulta] de imediato
em um produto coletivo que é, ao mesmo tempo, uma soma total das
____________________________________________
* N. do T.: A Tennessee Valley Authorithy (TVA) é uma empresa criada – pelo presidente
Roosevelt, em 1933, durante o período da Depressão – para realizar obras,
sobretudo, hidrelétricas, em sete estados rurais e especialmente pobres, ao
longo do rio Tennessee. Uma contradição para a economia americana, pois
fazia com que o governo federal detivesse uma indústria. Criticada por alguns,
como sendo uma iniciativa socialista, mas apoiada pelos liberais e tida como
exemplo do êxito do governo em resolver problemas políticos e econômicos.
42
mercadorias, e é indiferente se a função do trabalhador individual, que é
apenas um membro do trabalhador coletivo, é mais distante ou mais próxima
do trabalho manual imediato...A atividade desta força de trabalho
combinada é seu consumo produtivo imediato pelo capital autorealização do capital, criação imediata de mais valia... (78,também citada
em 75, pg.12) [O grifo é do autor.]
A padronização da força de trabalho e a transferência de seu controle do
proprietário individual da fábrica para o capital social e para o Estado, uma
vez também centralizado e racionalizado o processo de doença, faz com que
praticamente toda a doença séria seja epidêmica, embora a própria epidemia
pareça desaparecer. Com a substituição da exploração de trabalho intensiva
pela extensiva, as principais causas da doença ocupacional deslocaram-se das
condições de trabalho e fadiga física para o estresse, que vem a ser um nome
taquigráfico para aceleração, aborrecimento da mecanização da tarefa única,
pressão constante do capataz, o controlador voltado contra os trabalhadores.
Além disso, a distinção entre doenças causadas no trabalho e transmissíveis ou
crônicas desapareceu. Hoje, por exemplo, os comportamentos face aos riscos
associados com as principais causas de morte precoce – fumo, bebida, adição
a drogas, direção imprudente, e uma dieta rica em gorduras e pobre em fibras
– são todos mecanismos adaptativos empregados para enfrentar a rotinização
do estresse ao longo de todo o contínuo de experiência, especialmente onde os
apoios comunitários se desintegraram (3,4,9). O estresse também não é
individualizado. Desde o desaparecimento da família e da comunidade de
quase todas as atividades produtivas e socialmente reprodutivas, o estresse da
vida cotidiana e os comportamentos adaptados para enfrentar os riscos têm de
ser atribuídos a amplas tendências econômicas e a relações de classe que
determinam partes relativas de ganhos e poder (71). A descoberta por Thomas
43
(58), Brenner (59) e Eyer (60) de que a morte segue o ciclo dos negócios
também descreve uma mudança histórica no nível em que a doença é
produzida e distribuída.
A medicina clínica não nega a etiologia social unitária da doença. Ao
contrário, câncer, doença cardíaca, artrite reumatóide, entre outras doenças,
são atribuídas ao padrão de vida (40). Assim, a ideologia médica
simultaneamente reconhece que os meios do progresso capitalista causam
doença e concilia a natureza histórica contingente deste processo fazendo-o
aparecer ora, como um fato natural (como progresso) ora, como o resultado de
uma escolha individual ou estilo de vida (40). Como a esperança de vida para
os homens acima de trinta anos declinou durante a espiral inflacionária entre
1921 e 1927, as Sociedades Médicas Locais juntaram-se às companhias de
seguros recomendando exames de saúde periódicos para superar as “Doenças
da Vida Adulta” e as “Ameaças da Idade Madura” (72). O sentido corrente de
que o câncer é nossa responsabilidade individual e, a despeito disto, inevitável
cresce a partir desta irracionalidade central da ideologia clínica e apóia e é
apoiada por uma prática clínica igualmente mal direcionada.
CONCLUSÃO
A definição normativa de saúde estratifica as nossas funções biológicas
de acordo com sua importância para aqueles para quem trabalhamos. Uma
casa desordenada pode sinalizar doença mental em mulheres, mas não em um
homem solteiro. E um pulmão negro só se torna oficialmente visível quando o
mineiro se aposentou e não pode mais atravessar um quarto. No momento em
que estes se tornam os critérios pelos quais experimentemos a nós mesmos
como doentes, estamos inteiramente alienados; nossa identidade está
44
totalmente exteriorizada(14). Teorias normativas parecem passíveis de crédito
porque o capital pode retirar o que precisamos quando nos recusamos a fazer o
que ele requer. A experiência intra-subjetiva da doença como sendo saúde, a
transformação do estresse epidêmico em personalidade competitiva desejada
por qualquer Bom Americano, é uma função histórica da hegemonia de classe.
Que alternativa a epidemiologia marxista oferece? Se saúde e doença
são processos sociais também podem ser identificadas com as expressões
históricas concretas de liberdade e de sua negação. Apenas neste contexto, a
dimensão positiva de rupturas sociais, tais como rebeliões e epidemias, faz
sentido. A saúde pode de fato melhorar durante greves, rebeliões e revoltas,
mesmo se medida por meios convencionais (79). Reich (80), Mitchell (81),
Laing (82), Marcuse (83) e Fanon (85) todos afirmam de modo convincente
que os modos predominantes da personalidade, família e vida social são
doentes e que saúde, dependendo das necessidades sociais e capacidades, pode
incluir comportamentos de doença como acessos de raiva, passividade
biológica, regressão etc. Este é um longo caminho partindo da saúde como
harmonia com a natureza!
Afirmamos que a doença não é simplesmente implantada pelo
capitalismo, mas que, ao contrário, uma vez que ela é um processo social,
também gera políticas, economia e pensamento. Mais do que isto, a lógica do
desenvolvimento capitalista e a lógica do processo de doença têm de ser
traçadas, em parte, para responder às contradições dinâmicas que surgem da
interação delas. Assim, o capital toma formas sociais para enfrentar a crise do
século XIX na saúde e segurança, mas o capital social, ao incorporar o
processo de doença mais diretamente em mecanismos econômicos
centralizados, cria as doenças do estresse crônico. Como doença e desordem
irrompiam da fábrica e dos bairros da classe trabalhadora e circulavam de
45
modo selvagem pelas cidades do século XIX, eram politicamente
reconstituídas como epidemias e rebeliões. Porém, este mesmo processo
gradualmente ajudou a dissolver a distinção entre fábrica e comunidade.
Hoje, o processo de doença reflete a extensão vertical de trabalho no
tempo, assim como a sua extensão no espaço social. Estresse como fator
principal que predispõe o sistema físico/psíquico para uma pane significa a
homogeneização e a integração da doença e das formas usadas para ampliar e
proteger a obtenção de lucro. Ironicamente, na medida em que as causas de
doença coincidem quase exatamente com os fatores responsáveis pelo
crescimento econômico na sociedade capitalista, a epidemia – no sentido de
uma comunidade visível de doença – parece desaparecer por trás de uma
medicina clínica baseada na tecnologia e centrada no hospital. Esta é
desenvolvida para acolher os mais ultrajantes sintomas do progresso, para
individualizar a mortalidade coletiva e para classificar temporalmente a morte,
de acordo com o valor relativo colocado nos diferentes grupos de vítimas,
como, por exemplo, o trabalho. A medicina clínica coloca a alienação coletiva
biologicamente, ao redefinir o processo de doença em padrões que parecem
únicos no tempo, espaço social e intensidade. A distribuição de sintomas em
um continuum tempo-espaço aparentemente arbitrário faz a doença parecer
individual e esconde sua natureza epidêmica. A queixa do paciente – de se
sentir apenas um número – reflete tanto sua alienação particular na clínica
urbana quanto a sensação de estar sendo pressionado a experimentar
retrospectivamente o sentido de sua vida, em decorrência da determinação
prévia do paciente ser dada pelo trabalho abstrato.
Porém, a mística clínica tem suas fissuras. A obsolescência objetiva de
uma boa parte do trabalho por jornada se reflete subjetivamente na crescente
recusa ao trabalho, tanto dentro quanto fora da fábrica, e pela demanda de uma
46
recompensa social que não é mediada nem pela obediência nem pelo aumento
da produtividade. Os trabalhadores não mais barganham individualmente
remédio com os médicos; suas demandas médicas estão integradas em
demandas sociais mais amplas, e estas são colocadas para seus patrões e para
o Estado. Em paralelo a isto, os médicos são mais empregados para gerir o
desintegrado processo de oferta de cuidados do que para curar os doentes.
No movimento de emancipar o Homem da determinação natural, o
capital e o trabalho socializaram a si mesmos e também a biologia. Mas ao
fazer isto, prepararam sem o saber o caminho para a unificação da Biologia e
da Razão, da Saúde e da Liberdade.
Agradecimentos: Este texto foi originalmente apresentado no East Coast
Health Discussion Group. Sou especialmente grato a Kim Hoper e a Joe Eyer
por suas valiosas críticas.
47
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Manuscrito submetido para publicação em 10 de agosto de 1976.
Para pedidos de reprodução do texto:
Evan Stark
Institute for Social and Policy Studies
Yale University
111 Prospect Street
New Haven, Connecticut 06515
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A EPIDEMIA COMO FATO SOCIAL