A EPIDEMIA COMO FATO SOCIAL Evan Stark Originalmente publicado no: International Journal of Health Services, volume 7, Number 4, 1977, pp.681-705, Baywood Publishing Co, Inc. Tradução: Carlos Roberto Oliveira Rio de Janeiro agosto de 2004 O conceito de causação de doença sofreu duas mudanças. A primeira, tomou os fatores sociais como determinantes, e não mais os fatores naturais; a segunda, passou da determinação por condições sociais para a determinação por relações sociais que geram estresse. Estas mudanças acompanham a grosso modo o surgimento do capital industrial e sua passagem de um processo altamente competitivo e individualista para um processo social. Neste artigo, as epidemias são consideradas fatos sociais que ocorrem em meio às mudanças acima assinaladas da doença e em meio à organização econômica da sociedade. As epidemias do século dezenove ocorreram, quando as empresas tentaram resolver seus problemas econômicos criando grandes distâncias entre as necessidades sociais de uma força de trabalho em expansão e os bens e serviços disponíveis. A coincidência de crises periódicas na produção e na saúde mostrou que as epidemias eram ocasiões para se lutar contra a injustiça, e não simplesmente contra a doença. E os trabalhadores demonstraram uma capacidade para a auto-organização durante as epidemias que forçou as autoridades municipais a reformar profundamente a organização do trabalho, do mercado e do serviço social. Após 1900, reforma tornou-se parte permanente da estratégia de desenvolvimento do capital. O novo capitalista social buscava organizar o trabalho politicamente, muito além da fábrica, e extrair valor não apenas dos operários, mas de toda atividade social. Estas ações reduziram a mortalidade infantil e a mortalidade por doenças infecciosas, mas também criaram as novas epidemias de estresse crônico. A despeito da mistificação da etiologia social pela medicina, a identidade do processo de doença com os meios mais gerais de reprodução social indicam que a doença agora é endopólica, produto não da natureza, mas de decisões e processos políticos e econômicos historicamente específicos. Houve duas mudanças fundamentais na determinação da doença epidêmica. A primeira alteração – na qual determinação deixou de ser dada 2 por fatores primariamente naturais e passou para os fatores sociais – ocorreu de modo gradual, ao longo de séculos, e corresponde a grosso modo ao período pré-industrial. Porém, a segunda alteração foi muito mais rápida, se passou talvez em décadas no final do século XIX, e corresponde à integração dos capitais individuais e competitivos em um capital social. Desde o advento da industrialização capitalista os determinantes primários da morte e doença no Ocidente deslocaram-se gradualmente das infecções e doenças transmissíveis – disseminadas por más condições como desnutrição, superpopulação ou saneamento inadequado – para uma cadeia de fatores sociais complexos entre os quais a pauperização e os danos biológicos desempenham papéis pouco significativos. Em 1900, 40% de todas as mortes nos Estados Unidos ainda eram causadas pelas principais doenças infecciosas, hoje, menos de 6% de todas as mortes são devidos a estas infecções. Por outro lado, quase 70% podem agora ser imputados a acidentes e aos três principais problemas crônicos: doença cardíaca, câncer e infarto. A exposição física a substâncias perigosas no ar, água e alimentos e no trabalho por certo se mantém como causa importante de danos à saúde. Mas estes riscos estão inextricavelmente ligados por cadeias complexas de causação a comportamentos necessários para se enfrentar as pressões cotidianas. As principais causas de morte precoce no Ocidente parecem ou, diretamente determinadas por comportamento induzido por estresse como violência doméstica que resulta em homicídio ou, padrões tipo A em doença coronariana ou, indiretamente determinados por hábitos destrutivos de consumo adotados para aliviar o estresse. Os exemplos incluem direção imprudente, alcoolismo, adição a drogas, fumo em casos de câncer de pulmão, ou uma dieta rica em açúcar e gordura em casos de câncer de colo. Além disso, em muitos casos pode-se observar o impacto do estresse sobre uma base 3 agregada de problemas sociais como desemprego, divisões sexistas do trabalho, agitação social, desempenho de funções sem significado social e discriminação social (1-9). Em suma, os problemas físicos e a natureza foram substituídos como os principais problemas de saúde no Ocidente pelo meio ambiente social e, mais especificamente, pelas relações sociais ligadas a avanços na produção capitalista. Embora a doença possa ter sofrido nas sociedades socialistas mudanças semelhantes as sofridas no capitalismo – por exemplo, a redução das comunidades rurais a satélites da indústria urbana – a determinação de doença sob o socialismo merece um estudo e uma crítica em separado. Este artigo procura definir o objeto da epidemiologia materialista durante a segunda mudança através do exame da alteração dos elos entre o desenvolvimento capitalista – particularmente do capital competitivo para o capital monopolista – e o processo de doença. As grandes questões econômicas e políticas envolvidas na evolução do capitalismo competitivo para o capitalismo moderno já foram extensamente discutidas em outras obras (10-13). Meu interesse é mostrar o efeito da doença sobre esta evolução e, inversamente, os modos pelos quais o processo de doença foi moldado por ela. Além disso, tomarei a doença não como um intruso extraterritorial ou biológico, mas como um fato de dimensões socioeconômicas, ideológicas e políticas. Na medida em que se pode atribuir epidemias a causas sociais claramente definidas como pobreza, superpopulação ou distribuição desigual de serviços, elas podem ser pensadas como sendo – até certo ponto, propositadamente – feitas pelo, com e também para o povo. Neste contexto, sua definição é um fenômeno dinâmico constituído politicamente, e também cientificamente, nas lutas que ocorrem junto com a doença física. Pretendo mostrar que pessoas, e mesmo cadáveres, não são simplesmente ordenados em 4 série por alguma força ou agente externo durante uma epidemia, mas que suas vítimas e perpetradores definem ativamente seu contexto e significado (14). Após delinear em linhas gerais a transição da determinação natural para a determinação social e levantar alguns dos problemas conceituais decorrentes do fato de se olhar para uma epidemia como praxis em torno do processo de trabalho, mostro que a autoridade política se decompôs e foi reorganizada dentro do contexto da epidemia urbana nas cidades do século XIX. Sugiro nesta parte que as epidemias do século XIX foram uma conseqüência inesperada de picos periódicos de desigualdade na distribuição de bens sociais. Em contraste com isto, a mortalidade precoce hoje parece ser um dos muitos componentes potencialmente controláveis de uma rede econômica altamente integrada. Entretanto, minha questão principal é que as dimensões de uma epidemia são mais reveladas por seu desenvolvimento histórico do que por sua aparência física no espaço demográfico. Câncer, doença cardíaca, hipertensão, infarto, doença mental, homicídio, adição a drogas, etc. sofrem impactos de uma história social comum. Embora as vítimas não morram na proximidade física umas das outras ou em um espaço socialmente concentrado em um dado momento no tempo, elas são tão a epidemia de nosso século quanto a tuberculose era do século XIX. Nas últimas partes do artigo, a transformação da doença em um produto fabricado e distribuído pelo Estado, junto com outros bens sociais, é imputada ao surgimento, na virada do século, do capital social: a acumulação de valores centralizada e politicamente dirigida, baseada na coordenação política de toda atividade social como trabalho (15-16). Não estou interessado em re-discutir a causação social. Antes, pretendo mostrar a lógica desta conclusão dada a ampla direção da história biológica e social. Assim, por exemplo, o fato das doenças ligadas ao estresse serem atribuídas a determinantes múltiplos e 5 complexos – junto com todo o continuum que vai do trabalho até o consumo individual – está materialmente baseado, após 1900, na extensão do processo de trabalho como a fonte exclusiva de valor, que parte da fábrica e chega até a vida cotidiana. A partir daí, a doença resulta das tensões de classe associadas a períodos de expansão capitalista e da imposição de atraso, apesar da sociedade ter uma maior capacidade para acabar com o subdesenvolvimento (17,18). Deste modo, as epidemias são um fato social não apenas por serem cada vez mais causadas por fatores comportamentais, sociais e ambientais, mas também porque estes fatores são eles mesmos cada vez mais determinados em meio a lutas pelo controle do produto social. DA CAUSAÇÃO NATURAL À CAUSAÇÃO SOCIAL Desde a primeira vez que os humanos tentaram resistir, explicar ou incorporar os efeitos da natureza em seus rituais, a doença tem tido uma dimensão social e sido parte da história e da consciência da sociedade. E, sem dúvida, atividades sociais como remover uma floresta, represar um rio ou arar um campo têm sempre mediado a tradução de fatos naturais em doença e morte (19). Para os países pré-industriais, a natureza é um princípio organizativo, o contexto bem como o meio de sobrevivência. Porém, desde o início da manufatura, e particularmente desde sua organização capitalista, a natureza em geral e especificamente a doença têm sido vistas como obstáculos, perigos momentâneos – devido a seu efeito sobre a força de trabalho – que tem de ser racionalmente superados e, se possível, transformados em bens no processo de acumulação. A doença começa como um fato social, mas só se torna inteiramente um produto social no fim de um longo processo histórico durante o qual as bases naturais iniciais da vida social 6 – clima, fertilidade do solo, caça, abrigo, etc. – são substituídas por produtos da atividade viva da sociedade. De início, catástrofes naturais colocaram o gênero Homo muito abaixo da subsistência e são marcadas como crises de sobrevivência da sociedade. No nicho ecológico delimitado pela caverna e pelo cemitério no qual a maior parte de nosso tempo evolutivo tem sido gasto, a produção teve lugar na natureza e a doença apareceu como um imperativo de adaptação articulado segundo a divisão do trabalho primitiva e sexual. Gradualmente, à medida em que a agricultura e outras formas de trabalho eram organizadas para produzir um maior excedente de bens básicos e, além disto, meios de produção capazes de resistir a acidentes naturais, as mesmas condições sociais sob as quais commodities mais tangíveis eram produzidos e distribuídos vieram a determinar as causas biológicas da doença e da morte. Do século XIV até meados do século XIX, quando camponeses, servos e artesãos foram expulsos dos domínios, fazendas e cidades feudais, a distribuição do produto social mais uma vez mostrou ser periodicamente inadequada para manter a população acima da simples subsistência (20-21). A melhora a longo prazo na esperança de vida, mesmo após 1700, é pontuada por retrocessos dramáticos. Entretanto, estas epidemias ocorrem cada vez menos devido a fatos naturais na periferia da sociedade para os quais as pessoas estão fisiologicamente despreparadas e cada vez mais como resultado da apropriação privada e desigual de um excedente ampliado através da guerra, escravidão, comércio, exploração urbano-industrial de colônias e do campo e, sem dúvida, da organização da fábrica e de bairros pobres (22-25). O período formativo da industrialização capitalista no Ocidente pode ser demarcado politicamente pela fragmentação do feudalismo (já iniciado por volta do final do século XIV na Inglaterra) e por lutas maciças por reforma na 7 Europa e América entre 1830 e 1890 (25-30). O mesmo período pode ser demarcado em termos biossociais pela Peste Negra (1347 na Inglaterra), uma arma mortal especialmente indiferenciada no grupo dos assassinos, e pela restrição da doença epidêmica em grande parte aos bairros pobres, um processo que ocorreu gradualmente durante toda esta época (22,25). Guerra, comércio e religião, nesta ordem, quase sempre juntos, forneceram os instrumentos repressivos, econômicos e ideológicos para a hegemonia política e para a homogeneização da doença no Ocidente. Hegemonia e acúmulo crescente de imunidades compartilhadas são inseparáveis. Melhorias na dieta como a batata e o milho – que agora parecem ter sustentado a população dos impérios em expansão sobre uma base rural diminuída – são tão inconcebíveis fora do mercantilismo quanto o sucesso da penetração britânica ou espanhola no mundo não-europeu afastado da resistência a novas infecções exibidas por adultos europeus comparados a asiáticos ou americanos (19,22,31). Apesar da doença infecciosa ter ocasionalmente ajudado a proteger povos menos desenvolvidos, por exemplo, os rebeldes do Haiti em 1801 ou os russos contra os suecos (1708) ou contra o exército de Napoleão, em geral, a vantagem na mortalidade seguiu e reforçou o poder econômico. O exemplo clássico é que cinqüenta anos após Cortez ter trazido doenças européias ao Novo Mundo, a população ameríndia tinha sido reduzida pelas epidemias a um décimo de seu antigo tamanho! (19, pg.204; 22 pp.118-120). Infecções geradas pela água, insetos e por contato direto homem-homem naturalmente tinham uma abrangência muito grande dentro de cidades cheias de gente e povoados agrícolas no Ocidente, como os historiadores da saúde pública nos relatam. Mas o fato deles terem aumentado a imunidade agregada significa que a expansão territorial inevitavelmente incluía um formidável assalto de 8 infecções aos vizinhos rurais menos experientes imunologicamente. (19, pg.76; 22, pg.113). No Novo Mundo, a distribuição da doença também seguiu cada vez mais as divisões do trabalho e o local de moradia. Disenteria, febre tifóide, varíola e febre amarela – a última resultado do tráfico de escravos – continuaram a dificultar a conquista fácil durante todo o período; mas, no final do século XVI, o tifo e o escorbuto – doenças diretamente ligadas aos padrões de vida do soldado comum – desempenharam o papel mais importante. Apesar do uso do saneamento como defesa militar do Oeste avançado contra o Leste bárbaro só ter sido formalizado no front polonês (e meridional) da I Guerra Mundial, a necessidade do trabalhador pobre como massa saudável para formar exércitos é um argumento repetido para o saneamento interno (22, p.99). Os filósofos médicos nos anos de 1700 apontaram catástrofes naturais para explicar a clara injustiça das epidemias que atacavam os ricos assim como os pobres (23, p.60). Ainda, no final do século XVI (e talvez em boa medida antes) as doenças da pobreza haviam sido separadas da peste mais geral, que manteve altas taxas de mortalidade, em todas as classes, durante toda a Idade Média. A produção industrial marca o aparecimento da natureza como um domínio dentro da sociedade, cujas supostas leis podem ser mapeadas pela ciência com o objetivo de explorar seus potenciais recursos para fins sociais. A prevalência e distribuição da doença – quaisquer que sejam suas causas biológicas próximas – são socialmente articuladas. O tifo, por exemplo, é uma doença da depressão econômica e irrompeu em conexão: com a dificuldade na indústria têxtil em Flandres e na Áustria; com a escassez de batatas na Irlanda (depressão econômica tornou-se sinônimo de escassez de alimentos); na Silésia (1846) e em Londres (1863), como conseqüência de crises econômicas 9 (23). A tuberculose seguiu um caminho similar (32). Em meados do século XIX, pobreza e uma pressão constante da doença eram equivalentes. A abundância ou a qualidade do produto agrícola também não pode ser atribuída à generosidade da natureza. Ao contrário, a terra e o alimento só apóiam a vida de modo indireto, como uma função de seu valor, um denominador universal que retira seu significado do coração da vida social, nas relações competitivas entre os trabalhadores e entre as classes. As críticas conservadoras do industrialismo viram os novos meios de pacificar a natureza como formas de romper os padrões tradicionais da vida e do trabalho e como inerentemente anárquicos (33). Mas, como Marx e Engels foram os primeiros a observar, a extração de valor a partir da organização social do trabalho reflete um alto nível de integração e cooperação, ainda que reificado em tecnologia e baseado em uma divisão do trabalho exploradora e politicamente imposta de fora do processo de trabalho (34). Engels, por exemplo, atribuiu as assim chamadas doenças da pobreza e desordem urbana – que pareciam surgir espontaneamente na comunidade – às condições de trabalho nas fábricas (25). Além disso, afirmou que tais condições eram muito mais resultados contingentes da exploração do que propriamente causas últimas. A doença surgia da interação entre relações sociais e condições, e não apenas das condições de trabalho isoladamente, e deveria ser estudada não só para descobrir a coisa causadora, mas como impacto pato-fisiológico da situação de uma determinada classe. Na medida em que as relações de classe se modificam, pode-se esperar que a doença e o conhecimento sobre ela também sejam modificados. Para Marx no Capital, a fábrica é mais um processo do que um lugar e não está necessariamente limitada a sua planta física. Com respeito à epidemia, Marx afirma que a ganância do capitalista pelo lucro leva-o a 10 aumentar as horas de trabalho dos operários (para aumentar a mais-valia absoluta) e que estes são colocados abaixo da subsistência biológica e não podem se reproduzir como classe (35, pg.239). A saúde se deteriora, a luta de classe se intensifica e a epidemia irrompe. Neste momento, o Estado responde à crise – com, por exemplo, as Leis das Fábricas (Factory Acts) – para conter a luta de classe e proteger os interesses do capital agrário e industrial como um todo. Mesmo nesta formulação muito mecânica que aparece cedo no desenvolvimento lógico do Capital, Marx sugere que há uma ligação íntima entre lutas em torno do processo de trabalho, doença e intervenção estatal na economia para melhorar a saúde. Da mesma forma que as rebeliões e lutas de classe, as epidemias imprimiram ao trabalho e ao capital tensões crescentes entre a miséria do dia de trabalho e o potencial alienado para a reprodução cooperativa. As epidemias muitas vezes começaram – da mesma forma que as rebeliões e lutas de classe – porque as condições (de vida e trabalho) nas cidades, fábricas ou bairros pobres foram colocadas abaixo dos padrões negociados em ciclos anteriores de luta, embora não necessariamente abaixo da subsistência. Mas elas mudaram rapidamente para lutas que visavam a aplicação de formas cooperativas – desenvolvidas através da auto-ajuda – a fim de obter uma reorganização social básica, incluindo-se aí a reorganização do processo de trabalho. Repressão e concessões relutantes, seguidas por uma exploração mais intensiva, foram os meios iniciais usados pelo capital para manter o lucro sem alterar fundamentalmente as condições ou as relações de produção. Independente do fato desta estratégia ter destruído mais trabalhadores do que salvou, a luta de classe se intensificou claramente a partir de 1830 (30,36). Em certos casos, as lutas por reforma na América, Inglaterra e no continente 11 europeu forçaram o capital a adotar uma postura progressista e mais bem concebida de desenvolvimento permanente que incluía produtividade expandida, investimento em serviços sociais, pleno emprego e a reconstrução política do trabalho, consumo, família e política partidária. Com esta abordagem – desde que as rendas do Estado, preços, produtividade e transferência de pagamentos do Estado para o capital, extraídos por impostos sobre os pagamentos feitos aos trabalhadores pudessem ser mantidos a frente dos avanços nas compensações monetárias e sociais – os lucros estavam assegurados (37). A adoção acima assinalada de desenvolvimento do capital e sua mudança para a extração de mais-valia absoluta – por meio do aumento da jornada de trabalho para a extração de mais-valia relativa, através da reorganização técnica do trabalho – gerou efeitos cada vez mais claros sobre a saúde. Por outro lado, após 1850, a tuberculose e praticamente todas as doenças infecciosas e doenças comuns da infância declinaram (38). O milagroso sucesso da medicina moderna contra as infecções entre 1910 e 1950 é inconcebível sem as melhorias no padrão de vida. Contudo, ao mesmo tempo, vários efeitos negativos sobre a saúde estão associados ao uso do desenvolvimento capitalista para eliminar crises na ordem social. Sem dúvida, o desenvolvimento não é uniforme nem universal e se alterna com o subdesenvolvimento tanto historica quanto geograficamente. Em resultado, as doenças do subdesenvolvimento permanecem espalhadas por todo o mundo e nos guetos da América e da Europa, onde aparecem combinadas com problemas mais modernos como a hipertensão (24,39). Mais importante, o declínio nas taxas de morte de faixas etárias específicas devido à redução das doenças infecciosas e doenças comuns da infância foi lentamente superada por um aumento da morte precoce, em especial, entre homens, 12 devido a comportamentos destrutivos, desordens na comunidade, carcinogênicos industriais, dieta e estresse gerado pela rotina (3,9). Em 1970, a esperança de vida após 15 anos para homens brancos na Inglaterra e Estados Unidos era aproximadamente a mesma de 1910! (9) E, como a maioria dos críticos agora concorda, a medicina é inteiramente ineficaz contra esta nova epidemia (40-42). Infelizmente, dados estes fatos, mesmo entre os críticos radicais da saúde ainda há os que persistem em atribuir as más condições de saúde no capitalismo às reduções da oferta e organização do cuidado médico, e não à dinâmica da própria acumulação. Houve uma época em que a flagelação ritualizada era empregada para racionalizar a determinação, aparentemente impessoal, da doença pela natureza. Agora, relações sociais produtoras de doença são publicamente alardeadas como exclusivamente naturais ou, pelo menos, como inevitáveis ou imutáveis. Mas por trás desta fachada benigna, o antagonismo entre sociedade e natureza atinge o seu auge. Na medida em que o homem se insere na própria lógica da natureza, o ambiente alternativamente torna-se o bode expiatório para os males sociais e é forçado a refletir inúmeros danos transportados pelo crescimento industrial. A morte agora é socialmente construída e distribuída com uma distante referência à natureza ou à doença no sentido tradicional. É endopólica, e não endêmica, resultante da política, e não da biologia. Até aqui, a ênfase tem recaído na mudança da determinação natural para a determinação social da doença que coincidiu com o industrialismo. Embora as grandes pandemias sigam rotas de comércio (21), elas têm origens biológicas distintas. Por outro lado, a articulação social de doenças geradas pela água ou animais nas cidades americanas do século XIX era muitas vezes complexa demais para se distinguir a causação biológica da causação social. E, na metade do século, a natureza social da doença era amplamente 13 reconhecida, embora talvez não entre os médicos. A reivindicação do líder operário de antes da Guerra Civil americana, George Henry Evans, por um imposto de renda escalonado para deter o cólera coincidiu com a recomendação do presidente da Sociedade Médica de New York para bloquear o reto com cera de abelha a fim de conter a respectiva diarréia (43, pg.67). Agora, as vítimas da epidemia gritavam por causa da injustiça e não simplesmente de dor. Ao mesmo tempo, as autoridades municipais eram responsáveis pela epidemia e por seu controle. Nesta medida, as epidemias eram ocasiões de exacerbação dos conflitos de classe, e a coincidência da doença e a intensificação do conflito moldavam o curso da epidemia de dentro e de fora. Em suma, a crescente natureza social da doença era tanto causa quanto conseqüência do reconhecimento de que a doença era socialmente determinada. Para os epidemiologistas, a epidemia reflete um súbito pico na mortalidade secundariamente relacionado a uma doença mais geral ou a processos sociais, marcado por estágios de virulência crescente ou decrescente. Mas a experiência de uma epidemia tanto para suas vítimas quanto para as autoridades é estratificada de modo diverso: em estágios na destruição e na reconstrução da autoridade política. Artaud se refere ao impacto inicial de uma epidemia: “Todas as formas sociais se desintegram. A ordem entra em colapso”. (44, pg.15). O colapso da estrutura normativa prevalecente é também uma oportunidade para a invenção social geral. Da mesma forma que revoltas, escassez de alimentos, guerras, incêndios, greves gerais e rebeliões, as epidemias são estágios para o auto-reconhecimento coletivo e para a reconstrução das identidades coletivas normalmente subordinadas na vida cotidiana aos papéis publicamente aceitáveis. Elas são teatros – onde o caráter sagrado do corpo e do Estado, o corpo político, é 14 jogado ao vento, onde grupos ativistas se constituem repentinamente nas articulações mais profundas da biologia e da história – e instrumentos com os quais as massas tentam transformar sua objetificação, sua vitimização, em razão biológica, realizando a afirmação e a redistribuição de sentido de acordo com a necessidade. Como Genêt mostra em O Balcão (45), a única preocupação das autoridades é reafirmar a centralidade de sua dominação, mesmo que isto inclua levar temporariamente a vítima ou os rebeldes às barricadas. Embora a versão oficial dos fatos possa ser modificada com sucesso, cabe à autoridade controlar quem define o que é decisivo no final. Não é surpresa que as epidemias estejam profundamente arraigadas na memória crítica dos povos oprimidos. A dinâmica da política interna associada com o processo de doença pode ser exemplificada brevemente revendo os estágios pelos quais passou uma epidemia de febre amarela ocorrida em New Orleans em 1853. Estágio I. A Irrupção Na melhor das hipóteses, a associação da epidemia com a pobreza é estática; na pior delas, é enganosa. Nas sociedades capitalistas, onde a pobreza é construída para preservar a apropriação privada do excedente social do trabalho, as condições dos trabalhadores pobres, incluindo sua saúde, são um produto dinâmico de sua relação com a riqueza, não uma função da pobreza em si mesma. Exatamente como Chadwick afirmou que a doença causava a pobreza – e, sem dúvida, causou muitas vezes no mundo pré-industrial – assim as epidemias têm sido citadas tanto como causa de pobreza quanto de depressões econômicas associadas com pauperização na sociedade capitalista. Contudo, de fato, esta associação provém dos problemas que o capital e o 15 trabalho enfrentam no auge do ciclo dos negócios, quando as remunerações pelo trabalho são geralmente altas e as condições parecem prósperas. Quando a febre amarela irrompeu em New Orleans, em 1853, os jornais falavam em um tom ufanista sobre a recente prosperidade da cidade (46, pg.96): Nunca houve um tempo em que tantos prédios novos estivessem em construção; a introdução dos transportes públicos fez os subúrbios florescerem; prédios velhos vêm abaixo para dar espaço aos novos; e nos limites da cidade aparecem novas casas tão rapidamente quanto os pântanos e as lagoas se enchem. Este boom nos negócios e no comércio ocorria, como afirmava um jornal, a despeito da “escassez de mão de obra” e do “conseqüente aumento no preço do trabalho” (46). Não é de surpreender que o mundo dos negócios tenha respondido ao obstáculo colocado pela elevação dos pagamentos aos trabalhadores, encorajando o aumento do fluxo de trabalhadores migrantes e imigrantes baratos para aquela cidade portuária. As estatísticas hospitalares fornecem um triste registro desta tendência: entre 1850 e 1852 as admissões superaram os 18.000 casos por ano. Deste total, só 2.000 haviam nascido na América, e destes, só 250 haviam nascido na Louisiana (46, pg.4). Uma fonte atribuía a alta incidência de febre entre os imigrantes a seu emprego pelos ricos em trabalhos de construção tradicionalmente reservados aos negros (46, pg.143). Em outras palavras, resolveu-se um problema que as demandas de pagamento na produção criavam para os negócios, tentando manipular o mercado de trabalho. Gradualmente, o balanço entre recursos sociais e físicos cresceu. O mundo dos negócios respondeu à alta de pagamento com a alta dos preços, produção ampliada, desinvestimento em bens sociais e controle 16 político mais acirrado que ameaçava as redes locais informais – e muitas vezes ilegais – de prestação de serviços. Neste intervalo, chegaram grandes contingentes de trabalhadores, em parte respondendo ao sucesso da luta por melhores pagamentos. A rápida imigração, a exploração intensiva dentro e fora do local de trabalho, o colapso dos serviços urbanos existentes, o agravamento da escassez crônica de habitações e a proliferação de alojamentos sem estrutura ou serviços públicos de apoio – estas foram as causas de pobreza impostas ao processo de trabalho para proteger os lucros e geraram as contradições sociais refletidas na irrupção das doenças epidêmicas. Estágio II – Tendência de Queda e Êxodo Muitas vezes, os negócios ficam praticamente paralisados, antes e logo após as declarações oficiais de uma epidemia. A rapidez dos fatos e a falta de informação torna difícil determinar exatamente a relação entre a disseminação da doença e a tendência de queda nos negócios. Não fica claro no caso de New Orleans, por exemplo, se os negócios foram superestimados (dívidas não saldadas, folhas de pagamento não cumpridas, queda aguda da liquidez, demissões súbitas, etc.), provocando o êxodo urbano por onde a epidemia circulou ou, se o êxodo começou em resposta às crescentes taxas de mortalidade que, por sua vez, forçaram os negócios a fechar, aumentando o êxodo, e assim por diante. Sabemos que o êxodo foi grande. Novecentos cidadãos fugiram da pequenina cidade de Boston durante a epidemia de 1721 e o dobro deste número deixou a cidade em 1751 (47). A eficácia da fuga era discutível. Filmes e imagens literárias da epidemia nos oferecem tanto a chegada da morte na cidadela isolada, onde os heróis luteranos de Bergman no Sétimo Selo (48) buscam abrigo, quanto o Decameron de Boccaccio, escrito 17 quando ele estava se escondendo da epidemia ocorrida em 1347, em Florença, com dois companheiros cheios de mantimentos e sete mulheres tão cheias de luxúria quanto de religião (44). Entretanto, a partir das estatísticas de mortalidade, sabemos que à medida que as cidades atingiam seus limites naturais e sua organização fazia com que o auto-transporte para as florestas ficasse caro demais, se não impossível, para o pobre, as epidemias os transformavam em guarnições de cadáveres de baixa-renda. Da mesma forma, para os negros e imigrantes recentes, a violência que os esperava nos subúrbios racistas e chauvinistas nada possuía de atraente (49). A classe média não encontrava tais barreiras para fugir. Vinte mil habitantes, a maioria ligada aos negócios, deixou New Orleans durante a febre de 1853 e migrações sazonais eram comuns em quase todas as cidades costeiras (46, pg.51). Em uma era na qual os trabalhadores não tinham economias em dinheiro, o efeito da paralisação dos negócios sobre o trabalho era imediato e dramático, em especial quando os padrões de moradia se combinavam a leis contra a criação privada de porcos e vacas para reduzir a capacidade das famílias de trabalhadores de sobreviver sem a paga por seu trabalho. Durante a epidemia de 1822, em New York, por exemplo, para conter a doença, foi construída uma alta cerca de estacas que ia da rua Chambers até a rua Roosevelt e dali para o East River. Bancos, escritórios, e lojas simplesmente foram embora, forçando os trabalhadores a deixar suas casas naquela parte da cidade e eliminando, para numerosas famílias, os ganhos sociais obtidos durante uma década de luta (50, pg.43). Epidemias eram freqüentemente citadas para explicar súbitas quedas nos negócios. Quando a economia não conseguiu retomar sua tendência normal de crescimento após a febre em New Orleans, o jornal Price-Current 18 explicou que era devido à epidemia, cuja “grande malignidade e longa duração, tinha em uma certa medida perturbado toda a maquinaria de nosso comércio” (46, pg.106). Porém, é evidente que havia menos causas naturais para o desinvestimento, desemprego, paralisação dos negócios e para a própria epidemia. Estágio III. O Colapso da Autoridade e o Desafio que Vinha de Baixo O desaparecimento da infra-estrutura da classe média é acompanhado pelo colapso da autoridade local. Os funcionários locais são fisicamente vencidos pela doença, juntam-se à oposição pública contra ineficácia de seus colegas, ou simplesmente se recusam a desempenhar suas tarefas oficiais enquanto durar a crise. Um exemplo fascinante é dado pelo julgamento do Superintendente Geral de Polícia Frederick Talmadge por sua falha em usar seus New York Metropolitans contra as rebeliões que incendiaram os prédios usados para colocar em quarentena os viajantes expostos durante a epidemia de febre amarela de 1858. Após duvidar que seus homens pudessem ter chegado ao local da rebelião a tempo de fazer algo, o Superintendente Geral admitiu seus reais motivos no interrogatório: “Eu não podia mandar homens para lá e expô-los à febre amarela, pois eles teriam de voltar e espalhariam a doença por toda cidade” (51, pg.42). A lealdade do superintendente é particularmente notável porque os Metropolitans haviam sido impostos à cidade de New York pelos Republicanos para quebrar quaisquer simpatias existentes entre a polícia e grupos de operários revoltosos. A autoridade não é desacreditada, nem se dissolve em um vácuo político. A questão não é se há médicos suficientes e leitos hospitalares para os doentes ou sepulturas para os mortos. Nunca há, em sociedades capitalistas. 19 Antes, o que torna o fracasso do controle institucional uma questão política durante uma epidemia é o aumento concomitante do nível de desordem e luta. A desobediência associada com a doença epidêmica pode crescer a partir das próprias formas estabelecidas pelas autoridades para racionalizar o sofrimento. Assim, os grupos de auto-flagelação que se formam durante a pestilência muitas vezes se tornam excessivamente zelosos, desdenhando todas as autoridades estabelecidas da igreja e do Estado. “Seus rituais eram quase suicidas para os participantes” (19, pg.182). Em outras palavras, resistência à dor pode ser agregada a outros sintomas evidentes entre os que usam a ocasião de uma epidemia como um estágio para a rebelião. Depois da Peste Negra em 1374, as pessoas foram atingidas pela dança de São Vito, uma doença horrível de origens desconhecidas (uma teoria é que era causada pelo ergot do centeio, um LSD orgânico). O surto mais sério começou na cidade de Aix-la-Chapelle em julho... os dançarinos ganharam aderentes que imitavam seus movimentos. Milhares foram atingidos e a febre evoluiu para um protesto anti-clerical. Correntes de dançarinos invadiram os Países Baixos, moveram-se ao longo do Reno e apareceram por toda Alemanha. As cidades de Colônia, Mainz e Strasbourg caíram sob o reino do terror. Multidões tomaram posse de casas monásticas...e eram insensíveis à dor (22, pg.197). Um tratado do século XVII identifica alfaiates, artesãos e outras pessoas sedentárias como vítimas potenciais desta doença que aparecia periodicamente e pode estar relacionada – na medida em que é um processo que se espalha por imitação e leva à revoltas – às epidemias de bruxaria ocorridas entre 1595 e 1616 (23, pg.61). Contudo, a associação entre doença e rebelião muitas vezes tornou-se mais direta e auto-consciente. Durante a epidemia de cólera no século XIX em New York, os trabalhadores pobres 20 enfrentaram as autoridades tentando remover seus vizinhos para hospitais (43). A mesma epidemia foi muitas vezes comparada às Astor Place Riots (Revoltas de Astor Place) e às Anti-Draft Riots (Revoltas contra o Alistamento Militar), cuja maioria das vítimas provinha da comunidade irlandesa (43). Os líderes carismáticos surgem das fileiras no meio da desordem. Como relata Artaud (44, pg.18): A epidemia de 1502 na Provença, que forneceu a Nostradamus a sua primeira oportunidade para exercer seus poderes como curador, coincidiu com os mais profundos levantes políticos, queda ou morte de reis, desaparecimento e destruição de províncias, terremotos, fenômenos magnéticos de todos os tipos, êxodos de judeus, que precedem ou seguem, na ordem política ou cósmica, cataclismas e devastações cujos efeitos aqueles que os provocam são estúpidos demais para prevê-los e não suficientemente perversos para de fato desejá-los. Além disso, para as autoridades, a desordem parece ser acompanhada de uma ampla demonstração, devido às vítimas, em favor do programa de reforma geral das classes trabalhadoras. Pouco antes da declaração oficial de emergência, em 1853, em New Orleans, o Commercial Bulletin juntou-se à reivindicação “popular” por “melhorias nas ruas” e “verbas para saneamento” e concordou que “o sistema como um todo precisava de uma revisão” (46, pg.38). Quando a crise estava inteiramente dada, o Delta afirmou em seu editorial que “nosso governo municipal, em ocasiões de emergência pública e perigo, é uma mera farsa” (46, pg.64). Esqueceu de acrescentar que a natureza farsesca do governo burguês se torna mais aparente quando sua oposição requer dele mais do que uma piada. 21 Estágio IV. O Surgimento da Comunidade A ciência social eleva as categorias de sociedade burguesa a divisões cognitivas que parecem ter o status de lei natural. Tomadas em conjunto, estas categorias compreendem a lógica social cujo desdobramento ordena o registro da história e da sociologia. Nas sociedades capitalistas, a ordem é a pedra de toque do livro de registro e, por extensão, da política interna e externa. Nos livros-texto, entre o colapso da autoridade municipal e a restauração da ordem, não há nada, há um espaço vazio ou, para ser mais exato, há apenas caos e anarquia. Pior de tudo, não há trabalho produtivo. Mas os que vão se tornar as vítimas da epidemia vivem suas vidas normalmente em constante luta dentro e contra as categorias da experiência cotidiana. A partir desta tensão cresce a qualidade revolucionária que Marx encontrou no coração do progresso capitalista. Ordem, para o oprimido e o explorado, é a fragmentação da autonomia – não sua expressão – e socialização inclui a repressão de modos alternativos de se fazer coisas. Caracteristicamente, a resistência toma a forma de recusa e é individualizada. No entanto, todo espaço é contestado. A liberdade de trabalho – que é o segredo da organização capitalista sob pagamento – persiste como um potencial vivo em cada momento da vida laborativa. Sem o trabalho, o capital não é nada. Quando o trabalho cessa durante uma revolta, greve geral ou epidemia, a história burguesa se dissolve. Mas sem o capital, o trabalho consegue ser ele mesmo, para além da história burguesa, na direção da sociedade. Esta tentativa do trabalho de reconstruir sua saúde em seus próprios termos é o coração das epidemias do século XIX, mas é invisível nos textos de saúde pública. 22 Quando os negócios e a autoridade política fracassam, a comunidade de vítimas encontra alternativas em sua experiência cotidiana. A doença transforma a sobrevida da comunidade em sua única vida. Uma vez que a pestilência se estabelece em uma cidade, as formas regulares entram em colapso. Não há manutenção de estradas e esgotos, exércitos, polícia ou administração municipal. Acendem-se piras ao acaso para queimar os mortos, com o que se conseguir. Cada família quer ter a sua própria pira. Assim, madeira, espaço e o próprio fogo tornam-se raros, há feudos familiares em volta das piras, logo seguidas por uma fuga geral, pois os corpos são numerosos demais. Os mortos já obstruem as ruas amontoados em pirâmides mordidos nas extremidades por animais. O mau cheiro paira no ar como uma chama. Ruas inteiras ficam bloqueadas por pilhas de corpos. Neste momento, as casas abertas e as vítimas delirantes, suas mentes tomadas por visões pavorosas, que espalham uivando pelas ruas... Outras vítimas, sem bubões, delírio, dor ou erupções, se examinam orgulhosas no espelho, em esplêndida saúde, assim pensam, e de repente caem mortas com suas faces dilaceradas nas suas mãos, cheias de escárnio por outras vítimas (44, pg.23). Cerimônias – inclusive rituais de cura, cuidado, diminuição do medo, integração física e psíquica – atingem um auge teatral durante as epidemias. entre outros, Poe (52), Artaud (44), Camus (53) e Bergman (48) vêem a pestilência como um estágio simbólico no qual as questões filosóficas chave envolvendo morte, sofrimento, salvação, misericórdia e heroísmo são debatidas através de ações exemplares executadas na comunidade dos pares. A mera demonstração de roupas e cenários é muitas vezes esmagadora. Durante o ataque de 1853, quando os negócios com os corpos substituíram a troca de mercadorias, o lugar de comando deslocou-se das instituições burguesas – a praça do mercado e o Palácio da Justiça – para as ruas e o cemitério. Multidões se reuniam para ver as procissões fora da cidade, “muitos usando 23 saquinhos de cânfora e especiarias em seus narizes, para assistir e contemplar a vasta congregação dos mortos”. Ao fundo, reminiscentes das peças históricas de Shakespeare, canhões disparavam em intervalos regulares enquanto barris acesos de alcatrão davam à cidade uma cor e cheiro distintos de manhã à noite (46, pg.67). A demonstração unificava a epidemia como um teatro com revoltas, rebeliões e fogueiras. Por exemplo, durante o incêndio, em 1835, em New York (50, pg.127): Homens e mulheres de Five Points* desfilavam embebedados com seus trapos debaixo de ricas capas, sedas e cetins da melhor qualidade; negros fortes se pavoneavam na frente de seus colegas resplandecentes em sobrecasacas e cartolas roubadas. Estas ações são estranhamente ridículas, rebeldes e democráticas, particularmente em contraste com a sombria impessoalidade dos relatos da saúde pública. Este teatro de crise quase brechtiano logo preenche o vácuo criado pela dissolução da autoridade tradicional e das relações de trabalho. O mundo excluído do boêmio, os tratamentos charlatanescos dos curadores tradicionais e ciganos, a fraternidade das gangues, a linguagem da paixão, sonho, conspiração e crime – tudo isto vem à superfície à medida que desaparece o nexo do dinheiro vivo. As definições de saúde e salubridade também mudam. Até aqui, definida como sobrevivência individual em um mercado anárquico, agora a saúde parece depender inteiramente do apoio mútuo dos indivíduos e de suas vizinhanças imediatas. Gangues, clubes políticos, associações de ________________________________________ N. do T.: Five Points era uma região de New York formada pela intercessão das ruas Park, Worth e Baxter, que no século XIX era extremamente insalubre, concentrando cortiços onde viviam trabalhadores pobres. Palco de constantes agitações sociais. 24 bombeiros voluntários, clubes locais de esporte e de tiro, sociedades educacionais étnicas, sociedades religiosas, filantrópicas e beneficentes – grupos cujo efeito a longo prazo é muitas vezes tornar as condições dominantes mais palatáveis – repentinamente substituem sua reserva puritana e estreito foco chauvinista com objetivos que crescem organicamente das lutas de atores/sofredores para realizar um trabalho interdependente. As instituições são espontaneamente organizadas de baixo. Casas abandonadas tornam-se hospitais e pensões gratuitas; tabernas transformam-se em cortes de justiça; salas de reunião e escolas; lojas tornam-se centros de distribuição; os remédios caseiros dos velhos e esquisitos agricultores pobres que vieram para a cidade, de repente, parecem produtos da mais profunda sabedoria e criatividade. O valor de uso deixa de ser uma simplesmente a racionalização da troca e se torna seu motivo. Estágio V. A Declaração da Epidemia Afirma-se, durante todo o período da industrialização, que doença epidêmica, pobreza, loucura, escassez ou guerra eram responsabilidade do Rei. Nossa cultura toma o contexto individual da doença como não problemático, e assim, torna-se difícil compreender que, até cerca de 1910, uma irrupção de doença era comumente percebida como um problema social pelo qual o Estado era em última instância responsável. Embora a política pública pudesse culpar as vítimas individuais (ou seus modos de vida) pelas catástrofes, a queda do governo de uma cidade americana durante uma epidemia não era menos certa do que o colapso do mandarinato chinês sob circunstâncias semelhantes (54). 25 Além do medo de perder o poder, dois fatores impediam as autoridades municipais de declarar uma crise na saúde. Em primeiro lugar, a cidade do século XIX era administrada por uma máquina, uma rede complexa de clientelismo na qual a lealdade básica era organizada em troca de serviços e pagamentos ao intermediário (55). Por enquanto a máquina legitimasse a afirmação de que os recursos disponíveis eram escassos, a competição dentro da comunidade era necessária e a apropriação privada da riqueza social prosseguia sem controle. Mas a declaração de uma epidemia forçava as autoridades a reivindicar que uma maior parte do excedente fosse investido em serviços sociais e reforçasse a profissionalização do governo, defendida por reformadores com pouca sensibilidade à importância do clientelismo. Em segundo lugar, já que a imagem de uma cidade saudável era essencial para os lucros dos negócios em bens e trabalho, era certo que o anúncio de uma epidemia criaria problemas para os negócios, especialmente onde leis de quarentena, licença e inspeção fossem sancionadas. Além disso, os opositores da vacinação argumentavam que a doença tinha um efeito catártico sobre os pobres e subjugava o caráter desordeiro dos trabalhadores (46, pg.38; 56). O uso do termo epidemia para simultaneamente expressar e distorcer contradições políticas diversas será discutido abaixo. Basta dizer que o fracasso no controle da doença em face da mortalidade crescente era apenas um único fator determinando seu uso e não necessariamente o mais importante. Pouca atenção foi dada às 2.500 pessoas mortas pela febre em New Orleans em 1854 (46), um ano após a grande epidemia, sugerindo que a mobilização da opinião pública para a doença necessitava um colapso mais geral dos negócios e do governo, e não meramente uma alta taxa de mortalidade. De fato, em um sentido, o reino biológico era apenas o veículo através do qual a doença circulava da economia política para a comunidade de 26 trabalhadores e, novamente, retornava – pela via da auto-organização política das vítimas – para as autoridades municipais. Não havia nada de natural ou de inevitável no desequilíbrio entre serviço e a necessidade que produzia morte em proporções epidêmicas, nem na compreensão pública que a epidemia era parte de uma crise mais ampla no gerenciamento do capital. Ao contrário, o Estado assumia a responsabilidade pelo epidêmico só para reduzir a crise geral na acumulação e na autoridade a um problema de saúde que podia supostamente ser controlado por meios técnicos. A identificação oficial de um padrão fisiopatológico enraizava a ruptura social na experiência e, mais do que isso, oferecia às vítimas da doença um quadro para organizar as diversas causas de miséria. A epidemia tornou-se um espelho no qual pessoas com identidades ambíguas se viam. Em todo lugar, as pessoas encontravam sinais da doença iminente; todo acontecimento ou comportamento social era uma causa potencial e críticas anteriormente suspeitas eram levadas a sério, pois se dizia que seriam motivadas pelo medo da morte. Não muito tempo atrás, este processo de identificação serviu às autoridades. Assim, embora a recente doença dos legionários fosse provavelmente bacteriológica em sua origem e não tivesse ligação alguma com a gripe suína, o governo foi capaz, ao sugerir tal ligação, de ganhar apoio para seus esforços de produzir em massa uma vacina para a inexistente epidemia vindoura. Apesar de tudo, em geral, a declaração de crise expande a crise, embora também possa limitar sua pertinência à área da saúde. Não menos importante, o trabalhador pobre pode se juntar a uma epidemia para ter acesso a bens sociais normalmente inatingíveis, incluindo-se aí remédios, bem estar social, comida e abrigo. Cabe lembrar que, os médicos também não são imunes ao contágio do acontecimento. Eles encontram casos em todo lugar! 27 Estágio VI. A Reconstituição da Autoridade. A declaração de uma epidemia torna oficial a paralisação dos negócios. Quem não tiver meios para sobreviver é jogado para os cofres públicos. Mas já que não sobrou nenhum serviço municipal, eles têm de ser inventados. Incapaz de trocar serviços e renda por obediência e trabalho, a máquina é substituída por redes informais com trocas de bens por lealdade direta, não mediada pelo trabalho. Junto com os conhecidos meios de auto-ajuda, ocorre a reivindicação do trabalhador pobre por bem estar por meio de protestos, roubo e rebeliões. Donativos dos ricos e das classes médias vêm rápido. Uma das mais antigas filas do pão se formou durante uma crise de inverno em 1820, em New York, quando os açougueiros e padeiros transformaram igrejas e tabernas em pontos de distribuição de alimentos que eles não conseguiam mais vender (50). Durante a febre de New Orleans, um clube de cidadãos abastados, a Howard Association, começou imediatamente a distribuir mantimentos, carne, utensílios de cozinha e o “privilégio dos ricos, de receber duas visitas diárias de um médico” (46, pg.54). Cartões de alimentação e combustível eram dados de graça. Paradoxalmente, as redes de auto-ajuda e as iniciativas políticas das vítimas mostram ao governo como reconstituir sua autoridade política. Incapaz de tomar coragem para se re-apropriar de uma parte do excedente para a saúde, o governo pode, entretanto, ter energia para racionalizar os meios pelos quais os trabalhadores pobres se re-apropriam do excedente de forma direta. O processo oficial de racionalização começa declarando oficiais as redes de serviços menos ameaçadoras e, por meio disto, absorvendo-as no 28 aparelho governamental. A seguir, suas funções são expandidas e redefinidas de modo a incluir muitos dos modos da repressão municipal, em particular, o poder de polícia para prisão, inspeção e multas. Cidadãos respeitáveis são empossados e a polícia regular é mobilizada para fazer cumprir o novo plano de saúde. Após um grupo de cidadãos ter se juntado ao Departamento de Saúde (Health Office) inspecionando navios de New York, em 1793, esperando prevenir a disseminação da febre que vinha de Philadelphia, eles passaram a formar o Comitê de Saúde da cidade, auxiliados por patrulheiros locais, e oficialmente encarregados de fazer cumprir várias medidas repressivas ao longo dos cais e embarcadouros (57, pg.125). Em New Orleans, o poder da Howard Association foi rapidamente racionalizado para tornar possível a ajuda direta em casos de necessidade degradante (46, pg.32). Assim, o pagamento direto de uma compensação social foi assumido pela municipalidade mas, em uma forma que incorporava iniciativa política vinda de baixo e gradualmente transformou bem estar (welfare) em auxílio-trabalho (workfare). As demandas imediatas dos trabalhadores pobres tornaram-se pretexto para fazer das formas de autonomia da classe trabalhadora o alvo direto da legislação. As reformas do século XIX são incompreensíveis se não se leva em conta a tentativa de cooptar, penetrar e fragmentar as redes de cuidado e tratamento dos próprios trabalhadores. Por exemplo, mesmo durante a Grande Peste de Londres, em 1665, as reuniões públicas foram prontamente proibidas (57, pg.23). Uma campanha de New York contra o “vício, bebedeira e preguiça” da classe trabalhadora seguiu-se a um surto de febre em 1832 (57, pg.285); New York e Connecticut freqüentemente usaram as epidemias como desculpa para inspecionar, regular e fechar locais de diversão dos trabalhadores (47, pg. 102; 57, pg.288). A literatura de saúde pública está repleta de tentativas de atribuir doenças 29 epidêmicas a tabernas e à vida nas ruas, a “ruas estreitas, pensões e bibocas” onde “bebedeira e libertinagem promoviam a doença”, e de campanhas contra “mendigos obstinados”, traficantes, órfãos, delinqüentes, vagabundos e outros que resistiam à disciplina requerida pela fábrica. A Guarda Municipal e as Leis de Saúde (Health Acts) das décadas de 1850 e 1860 foram especificamente dirigidas para dar a autoridades estatais meios legítimos de penetrar em lugares da cultura da classe trabalhadora. O Estado responde à vitimização do trabalhador pobre redefinindo-a e estendendo-a. A profissionalização dos bombeiros, polícia e pessoal de saúde; a substituição dos poços da vizinhança (onde os trabalhadores se reuniam) pela água encanada; a criação e racionalização das prisões, orfanatos e reformatórios; a substituição da máquina pelo serviço civil; o esmagamento das gangues políticas e a limitação dos sindicatos a barganhas econômicas – em cada caso, embora a resposta política dos trabalhadores pobres a crises desse à polícia pública sua razão de ser, seu objetivo último era re-formar a vitimização junto com limites mais amplos, e se tanto, mais racionais. A epidemia do século XIX cresceu e se tornou um pretexto para intensificar a luta de classe em torno de condições. As epidemias eram subprodutos de tentativas periódicas de se resolver crises na acumulação por meios sociais e políticos extraordinários; mesmo assim, as municipalidades eram pressionadas para racionalizar suas respostas à doença, ou então ceder às iniciativas de suas vítimas. Em resultado, capitalismo e doença estavam ligados pelos esforços cada vez mais conscientes do Estado para reconciliar as iniciativas conflitantes do trabalho e dos negócios, em favor dos lucros. A conseqüência é que hoje, como críticos de pontos de vista opostos concordam, a doença segue o ciclo dos negócios, um eufemismo keynesiano para o ciclo do conflito de classe (58-60). 30 Mas a saúde, e não apenas a doença, é determinada pelo conflito de classe. Vimos que a substância da polícia de saúde municipal reflete, apesar de distorcida, os esforços cotidianos para democratizar os benefícios associados com um dado estágio da produção. Junto com a ligação entre desenvolvimento capitalista e doença há uma integração paralela de saúde e lutas pela liberdade. A definição de liberdade é historicamente especificada pelas capacidades que as pessoas revelam – e buscam – durante as lutas contra a exploração; saúde, no entanto, não significa apenas a ausência de doença, mas a plena expressão da razão biológica que surge junto com estas novas capacidades. E a saúde tornou-se uma questão volátil não apenas quando a doença ameaçava a existência física da força de trabalho, mas também quando trabalhadores que lutavam para estabilizar suas formas autônomas de cuidado e tratamento declararam a liberdade o uso mais apropriado da saúde. MEDICINA, EPIDEMIA E O SURGIMENTO DO CAPITAL SOCIAL A idéia de que as epidemias são fatos sociais contrasta com sua descrição convencional de patologias virulentas distribuídas entre vítimas de certas populações. Além disto, a epidemiologia burguesa pode ligar estes padrões empíricos a fatos distintos, como guerra ou superpopulação, ou a vagos processos trans-históricos como modernização ou pobreza. Mas uma abordagem marxista explícita liga estes fatores sociais historicamente e os relaciona com o processo de doença e com as leis que o desenvolvimento capitalista colocou em prática em conflitos de classe específicos. Foucault ofereceu recentemente uma alternativa para a abordagem empiricista. Ele afirma que, como a visão nosológica, clínica e ambiental, a 31 epidêmica é um princípio organizador do reconhecimento e da compreensão e também um princípio de constituição da doença dentro de um espaço social distinto como, por exemplo, a família ou o corpo. O espaço e a visão de mundo surgem juntos em diferentes momentos no processo evolutivo. Ao dirigir nosso olhar dentro do espaço, o princípio organizativo ajuda a construir a doença como um fenômeno unitário que pode ser medido, descrito e, presumivelmente, tratado. Podemos acrescentar, entretanto, que cada visão de mundo nos dirige para certos aspectos do processo de doença e nos afasta de outros. E este olhar é controlado pelas mesmas pessoas que monopolizam o tratamento. Foucault pensa que uma medicina de epidemias ligava a prérevolucionária medicina de classes (nosologia) ao pós-revolucionário modelo clínico no qual o olhar é dirigido para a agregação de sintomas diferenciados e visíveis no indivíduo anatômico, o cadáver (61). Foucault pode relatar a perspectiva anatômica para a clínica afirmando a autonomia relativa dos avanços médicos e evitando o reducionismo típico de uma análise institucional tão radical. Mas, ao segregar estruturalmente os desenvolvimentos ideológicos dentro da medicina a partir de uma análise detalhada de mudanças sociais maiores, ele limita a abrangência de seus argumentos históricos sobre as ligações entre ideologia, doença e estrutura social. No final, ele perde de vista os conflitos entre medicinas orientadas para o indivíduo e a abordagem epidemiológica do movimento de saúde pública, assim como a visão individualista dos clínicos ligados ao pagamento-porserviço. Além disso, ele negligencia tanto o papel decisivo na resolução dos conflitos desempenhado pelo Estado quanto a interferência dos negócios. 32 O DECLÍNIO DA MEDICINA BOTÂNICA A guerra entre terapia botânica e heróica nos Estados Unidos foi decidida, longe do laboratório, pela transformação capitalista da agricultura. A base empírica para a ciência botânica era a fazenda da família. Por exemplo, os médicos thomsonianos* desenvolveram seus tratamentos registrando e racionalizando uma grande variedade destes remédios caseiros. E os movimentos botânicos iniciais estavam ligados às lutas populistas durante todo o período anterior à Guerra Civil Americana ** (43, 62). Em contraste, a medicina heróica era cega e totalmente não-científica porque comunidades rurais tinham poucos dependentes ou cadáveres não reclamados para gerar diagnósticos anatômicos. À medida que a população rural veio para a cidade, ela trouxe naturalmente seus remédios. Mas a proletarização do fazendeiro tanto na cidade quanto no campo fez dele um dependente, passivo aos olhos das profissões urbanas, e, para o olhar clínico, um objeto a ser adaptado. Neste meio tempo, uma vez que a expansão capitalista havia destruído a base comunal sobre a qual repousavam os tratamentos tradicionais, a medicina botânica tornou-se eclética e, depois, charlatanesca. As batalhas decisivas neste longo conflito ocorrem durante epidemias, quando a ansiedade da massa estava voltada para o tratamento. Durante estas * N. do T.: O Thomsonianismo era um sistema empírico baseado na afirmação de que o corpo humano é composto de quatro elementos: terra, ar, fogo e água e de que só devem ser utilizados remédios vegetais. O nome do sistema provém de seu fundador: Samuel Thomson (1769-1843), médico americano de Massachusetts. ** N.do T.: A Guerra Civil Americana também conhecida como a Guerra de Secessão vai de 1861 a 1865. 33 crises, as alianças entre médicos regulares e o poder de polícia da cidade eram suficientes para excluir do serviço de saúde pública até mesmo os médicos homeopatas relativamente proeminentes (43). Ainda está para ser feito um estudo da transição no final deste período, com o Thomsonianismo em declínio, os crescentes movimentos pelo saneamento e pela saúde dos cidadãos, e as novas formas de medicina integrando descobertas científicas,economia social e tratamentos tradicionais. Após 1870, e claramente antes da medicina clínica ter qualquer impacto sobre a doença epidêmica, a medicina botânica com uma consciência de classe estava morta. Somente restava a homeopatia, despolitizada, a última voz de um sistema de cuidado individual descentralizado, ecologicamente derivado e culturalmente homogêneo. A Guerra Civil Americana mostrou ao mundo dos negócios o valor do monopólio da inovação tecnológica. A despeito disto, a ciência, a educação ou a reforma de um modo mais geral, ainda parecia ser uma diversão só permitida quando, durante rebeliões ou epidemias, massas autônomas entravam na arena política atuando como se a injustiça, e não simplesmente a doença ou a pobreza fosse a questão. O mundo dos negócios e o governo foram finalmente convencidos a adotar a reforma como uma estratégia permanente para o controle dos assuntos interiores somente pela gradual identidade de movimentos dentro e fora da saúde. Por exemplo, os sanitaristas radicais cada vez mais viram o cólera simplesmente como uma fase aguda de uma doença crônica que incluía urbanização, imigração e cortiços (43).Tanto o movimento dos trabalhadores e a imprensa popular fizeram estas associações politicamente, ligando as epidemias ao trabalho nas fábricas e a saúde a melhores condições de vida e trabalho obtidas por meio do conflito social (63). Apesar da intensidade da 34 competição capitalista ser parcialmente uma função da luta dos trabalhadores por mais dinheiro nas fábricas, seu pleno impacto foi sentido na comunidade onde o desinvestimento em serviços públicos, lucros, períodos de dispensa de trabalhadores e imigração ilegal foram expressos em falta crônica de habitações, desnutrição, incêndios freqüentes e assim por diante. E, deste modo, foi nas suas comunidades que trabalhadores se organizaram politicamente para regular as conseqüências da produção ilegal e, além disso, para limitar horas e melhorar as condições no trabalho. Para os reformadores que vieram após a Guerra Civil Americana, as expressões últimas da política dos trabalhadores foram as Anti-Draft Riots (Revoltas contra o Alistamento Militar) e as Railroad Riots (Revoltas contra as Ferrovias), um em torno do trabalho, o outro em torno das condições de vida, que deixaram a impressão de que havia um “vulcão sob a cidade” que podia irromper a qualquer momento (36,64). Na virada do século XIX para o XX, a mídia popular reivindicou que a mesma tecnologia utilizada para produzir vagões fosse aplicada para resolver epidemias tais como: delinqüência, alcoolismo, acidentes de automóvel, doença mental ou câncer. E, embora a determinação de bactérias causadoras de doença tenha ocorrido em grande parte em laboratórios privados e tenha sido expressa de maneiras que ajudaram a legitimar o uso clínico de drogas, quando a ciência contribuiu diretamente para a medicina social, como nos laboratórios municipais da década de 1890, os resultados mais do que confirmaram as preocupações de saúde da higiene industrial e dos movimentos conservacionistas; além disso, davam apoio a demandas dos Escritórios de Estatísticas do Trabalho de amplos poderes para investigar e controlar a saúde por meio da regulamentação das condições de trabalho (65). O movimento de saúde pública como um todo foi acertadamente criticado por 35 seu caráter chauvinista, racista e essencialmente conservador (66). Mas sua concepção básica – condições sociais causavam doença, e, assim, havia necessidade da engenharia social para eliminá-la – deu à medicina das epidemias um lugar radical no programa geral dos sindicalistas, revoltosos e políticos de esquerda, da virada do século. A IDEOLOGIA EPIDÊMICA E O CONTROLE SOCIAL O uso ideológico da medicina epidêmica também apoiou políticas de reforma, desenvolvidas no final do século XIX, que enfatizavam o controle social mais do que a exploração flagrante. A natureza de classe da epidemia parecia justificar a pobreza e desordem censuráveis e “as mulheres doentes da classe operária” (66). Além disso, esta associação implicava que a doença, como a ignorância ou a irresponsabilidade, era um encargo singular que podia ser separado de outras questões sociais e estimulada por uma intervenção estatal benevolente para estreitar os laços entre ciência, tecnologia e empresa privada. A profissionalização de praticamente todo o serviço social durante o período das vacas gordas, de 1890 a 1920, criou a mística tecnocrática por trás da qual várias formas de ajuda – da educação até a religião – foram oficialmente integradas em amplos mecanismos de dominação (62,67). Por fim, quando o sofrimento quebrou o espetáculo construído pelo fetichismo da mercadoria em torno da infelicidade na sociedade burguesa, a epidemia era uma boa desculpa. Neste ponto, uma ideologia da epidemia promovida por um Estado crescentemente intervencionista ajudou a mediar as contradições 36 criadas pela medicina clínica nos seus primórdios, porque ela não podia nem atender nem prevenir a doença social. O núcleo material que embasava esta ideologia estava em substituir o artesão pelo trabalhador massificado como fonte primária de mais valia. Como a própria linha de montagem, a ciência social e a epidemiologia estatística presumia e ajudava a reproduzir o trabalhador padronizado, o paciente que se apresentava no hospital não em sua individualidade única, mas como força de trabalho abstrata. O uso da tecnologia para controlar sintomas de um modo que aparentemente restabelecia a norma; a emergência de uma definição funcional de saúde; a doutrina da especificidade que levou à rápida descoberta em série dos microorganismos-chave; e a súbita posição central de técnicas e instrumentos para medir na terapêutica médica – tudo isto postulando a existência de um meio ambiente uniforme da massa (68). Seria de surpreender se a padronização da massa e de seu tratamento não tivesse reforçado a padronização de um processo de doença já socializado. As campanhas de vacinação periódica no início da década de 1900 representam o ponto culminante da resposta da saúde pública à doença transmissível como um problema social. O Relatório Flexner (1910) não apenas simbolizava o fim da medicina irregular, mas também unificava a oposição do mundo dos negócios a qualquer forma de tratamento social e o banimento da saúde pública para o ponto mais distante do consumo público, para o velho, o muito jovem e o pobre e para as regiões subdesenvolvidas (17,69). Na década de 1930, a saúde pública tinha sido reduzida a mero pano de fundo de um sistema baseado na oferta de medicamentos e tecnologia, centrado no hospital, com o trabalho médico estratificado em especialidades técnicas em torno de um caso ou órgão isolado. 37 A MEDICINA CLÍNICA E O CONSUMERISMO* Além da análise de Foucault, a tendência é explicar a sobrevivência de um sistema de cuidado médico individual nos Estados Unidos como uma evolução natural dos tratamentos relativamente distantes da época heróica usados por médicos regulares do século XIX. Freidson (70) também afirma que habilidade era a base objetiva para o atual monopólio profissional. Mas um sistema de pagamento por serviço individualmente orientado é impensável no mundo das corporações do século XX sem a supressão política de modos alternativos de tratamento, a subordinação da medicina pública e a total integração dos modos pequeno burgueses de oferta com grandes empresas e governo. A circulação do capital através do setor médico, o surgimento da medicina corporativa e a interdeterminação da ideologia médica e consumerista não são uma aberração na história da medicina como uma ciência, mas as precondições para esta história. Exatamente como o olhar objetivo do médico do século XX centrado no hospital é inconcebível fora da transformação capitalista dos agricultores do século XIX – os sujeitos dos movimentos herboristas de auto-ajuda– em objetos passivos do controle tecnológico, a integração da medicina clínica e ciência também é inseparável do financiamento dado pela Fundação Carnegie e pela Fundação Rockefeller às escolas médicas de elite para desenvolver laboratórios (62,69). Estas fundações apoiaram o desenvolvimento da ciência dentro do quadro da ideologia clínica, em parte, apenas porque esta ____________________________________ N. do T.: Consumerismo: teoria que afirma que um consumo progressivamente maior de bens é economicamente benéfico para a sociedade como um todo. 38 perspectiva – precisamente porque derivava da produção de mercadorias de pequena importância do século XIX – prometia aliviar o sofrimento individual sem ameaçar a apropriação privada da riqueza social. O capital ganhou substancialmente com seu apoio à medicina. A lógica interna e a estrutura social da medicina clínica são resultado de seu uso, durante o período da mais rápida expansão capitalista, como um veículo através do qual as descobertas científicas podiam ser capitalisticamente monopolizadas, incorporadas nos modos de controle dominantes e transformadas em ativos capazes de gerar lucros. Mais imediatamente, o foco da medicina no indivíduo anatômico como a fonte e sede de doença coincidiu com os esforços para ensinar os trabalhadores imigrantes a consumir, no mercado, bens que eles costumavam produzir em casa e culpá-los pelo fracasso do capitalismo em cumprir as utópicas promessas feitas durante o processo de industrialização (71). A ciência e a ideologia consumerista juntaram-se para reforçar a dependência da vítima para trabalhar e comprar. Na publicidade de massa, a ideologia médica foi usada para atribuir a insatisfação e as desigualdades sociais básicas à inadequação física e social do indivíduo. A participação no mercado de massa era oferecida como o melhor alívio para a infelicidade, enquanto Listerine curaria os “poços ocultos de veneno” que “espreitam e conspiram contra os planos de prazer, mesmo da mais bela mulher” (71, pg.38). A aparente contradição entre as duas conseqüências do consumerismo, isto é, felicidade e doença crônica, só podia ser resolvida se o consumidor aceitasse sua dependência, com relação à saúde e felicidade, sob a orientação disciplinada fornecida pelo patriarca e especialista das corporações. A ciência doméstica e a ciência da saúde eram simplesmente os sub-produtos populares 39 da ciência médica: para todo problema (ou doença) havia uma solução (ou medicamento) no mercado (73). O mercado aberto era veiculado pela publicidade como o campo para a realização dos valores democráticos de escolha, participação e controle negado no trabalho. Em paralelo, o cuidado de saúde era organizado anti-democraticamente, de cima para baixo, junto com a alimentação, vestuário, habitação e outros componentes do padrão de vida, especificamente para acelerar a realização por meio de vendas rápidas do excedente expropriado dos trabalhadores no trabalho. Em suma, o capital endossou a ideologia médica como parte de uma tentativa mais ampla de disfarçar o conjunto comum de doenças – contudo, o mau hálito permanece sendo uma doença social – e para individualizar e integrar a doença, por meio de medicamentos e hospitalização, como um incentivo para a participação dependente no mercado de massa. A EPIDEMIA DO CAPITAL SOCIAL Durante toda a década de 1870 e 1880, bem estar social, educação básica e secundária, aumento do padrão de vida, salário família, sindicalização e voto universal foram todos duramente combatidos pelos industrialistas. Porém, na década de 1920, estas reformas eram vitais para o êxito do capital. O período de transição, a Era Progressista, é um ponto de virada no processo de doença, assim como na história política e econômica da sociedade burguesa. Não apenas a morte por doenças infecciosas e doenças da infância caiu pouco antes e durante este período, mas, além disso, o caráter e a distribuição da morte e da doença também mudaram (32,63). 40 Por volta de 1900, o mundo dos negócios estava tendo cada vez mais dificuldades para se mover tanto na fábrica, quanto fora dela, no mercado ou na comunidade. Antes, a organização capitalista no recinto das empresas contrastava muito com a anarquia no mercado imposta pelas políticas de não intervenção do Estado (34,74). Revoltas e atividade política formal realizadas pelos artesãos haviam limitado o tempo de trabalho enquanto lutas em torno da saúde, segurança e condições de vida forçaram os negócios a aumentar seus investimentos em infra-estrutura urbana e serviços. Ao mesmo tempo, à medida que os negócios se viam confrontados no campo político, a elevação dos salários junto com as lutas para manter o controle do processo de trabalho a fim de bloquear inovações tecnológicas precisava superar a alta dos salários. E por trás do impasse enfrentado pelos negócios estava o fato material: as forças de produção tinham se desenvolvido ao ponto em que era possível obter um aumento da produtividade em bens básicos com um declínio absoluto no tempo total de trabalho gasto na produção (13,75). Em um nível mais geral, a necessidade do capital impor trabalho derivava politicamente do fato do trabalho estar cada vez mais ultrapassado como uma necessidade social. Mais especificamente, o capital tinha de eliminar os artesãos e usar o Taylorismo, o Sistema Americano, e várias estratégias de relações industriais para racionalizar a extração de valor da massa trabalhadora (76). Porém, como a operação do departamento de sociologia de Henry Ford exemplificou, o êxito da disciplina tempomovimento na fábrica dependia da racionalização e da organização da vida fora da fábrica; do mesmo modo, para baixar os custos de reprodução, era necessário limitar as iniciativas políticas do trabalho e assegurar o fluxo de capital por meio mercadorias no setor expandido de serviços (71,77). 41 A organização do mercado pela publicidade de massa na década de 1920 e a organização dos serviços pelo liberalismo da TVA* na década de 1930 incorporou consumo e reprodução como fatores na produção. Agora, o valor estava organizado por todo o espectro da sociedade, não apenas no recinto da fábrica. Como o empreendedor privado se dissolveu no capitalista social e o artesão do século XIX foi substituído na cabeça do movimento dos trabalhadores pelo trabalhador massificado da linha de montagem automatizada, toda a sociedade parecia ser uma fábrica. Marx antecipou esta transformação do potencial de toda a atividade em trabalho produtivo: Não mais o trabalhador individual, mas sim a força de trabalho socialmente combinada torna-se o agente real do processo de trabalho coletivo. Os vários poderes competitivos de trabalho que constituem a máquina produtiva como um todo participam de modos muito diferentes na produção imediata de mercadorias... Um indivíduo trabalha com suas mãos, outro com sua cabeça, um como gerente, engenheiro, técnico etc., o outro como supervisor, um terceiro como trabalhador manual direto ou mero ajudante. Assim, cada vez mais funções da força de trabalho vão sendo subsumidas sob o conceito de trabalho produtivo e os trabalhadores sob o conceito de trabalhadores produtivos. Eles são diretamente explorados pelo capital...[A atividade combinada do trabalhador coletivo resulta] de imediato em um produto coletivo que é, ao mesmo tempo, uma soma total das ____________________________________________ * N. do T.: A Tennessee Valley Authorithy (TVA) é uma empresa criada – pelo presidente Roosevelt, em 1933, durante o período da Depressão – para realizar obras, sobretudo, hidrelétricas, em sete estados rurais e especialmente pobres, ao longo do rio Tennessee. Uma contradição para a economia americana, pois fazia com que o governo federal detivesse uma indústria. Criticada por alguns, como sendo uma iniciativa socialista, mas apoiada pelos liberais e tida como exemplo do êxito do governo em resolver problemas políticos e econômicos. 42 mercadorias, e é indiferente se a função do trabalhador individual, que é apenas um membro do trabalhador coletivo, é mais distante ou mais próxima do trabalho manual imediato...A atividade desta força de trabalho combinada é seu consumo produtivo imediato pelo capital autorealização do capital, criação imediata de mais valia... (78,também citada em 75, pg.12) [O grifo é do autor.] A padronização da força de trabalho e a transferência de seu controle do proprietário individual da fábrica para o capital social e para o Estado, uma vez também centralizado e racionalizado o processo de doença, faz com que praticamente toda a doença séria seja epidêmica, embora a própria epidemia pareça desaparecer. Com a substituição da exploração de trabalho intensiva pela extensiva, as principais causas da doença ocupacional deslocaram-se das condições de trabalho e fadiga física para o estresse, que vem a ser um nome taquigráfico para aceleração, aborrecimento da mecanização da tarefa única, pressão constante do capataz, o controlador voltado contra os trabalhadores. Além disso, a distinção entre doenças causadas no trabalho e transmissíveis ou crônicas desapareceu. Hoje, por exemplo, os comportamentos face aos riscos associados com as principais causas de morte precoce – fumo, bebida, adição a drogas, direção imprudente, e uma dieta rica em gorduras e pobre em fibras – são todos mecanismos adaptativos empregados para enfrentar a rotinização do estresse ao longo de todo o contínuo de experiência, especialmente onde os apoios comunitários se desintegraram (3,4,9). O estresse também não é individualizado. Desde o desaparecimento da família e da comunidade de quase todas as atividades produtivas e socialmente reprodutivas, o estresse da vida cotidiana e os comportamentos adaptados para enfrentar os riscos têm de ser atribuídos a amplas tendências econômicas e a relações de classe que determinam partes relativas de ganhos e poder (71). A descoberta por Thomas 43 (58), Brenner (59) e Eyer (60) de que a morte segue o ciclo dos negócios também descreve uma mudança histórica no nível em que a doença é produzida e distribuída. A medicina clínica não nega a etiologia social unitária da doença. Ao contrário, câncer, doença cardíaca, artrite reumatóide, entre outras doenças, são atribuídas ao padrão de vida (40). Assim, a ideologia médica simultaneamente reconhece que os meios do progresso capitalista causam doença e concilia a natureza histórica contingente deste processo fazendo-o aparecer ora, como um fato natural (como progresso) ora, como o resultado de uma escolha individual ou estilo de vida (40). Como a esperança de vida para os homens acima de trinta anos declinou durante a espiral inflacionária entre 1921 e 1927, as Sociedades Médicas Locais juntaram-se às companhias de seguros recomendando exames de saúde periódicos para superar as “Doenças da Vida Adulta” e as “Ameaças da Idade Madura” (72). O sentido corrente de que o câncer é nossa responsabilidade individual e, a despeito disto, inevitável cresce a partir desta irracionalidade central da ideologia clínica e apóia e é apoiada por uma prática clínica igualmente mal direcionada. CONCLUSÃO A definição normativa de saúde estratifica as nossas funções biológicas de acordo com sua importância para aqueles para quem trabalhamos. Uma casa desordenada pode sinalizar doença mental em mulheres, mas não em um homem solteiro. E um pulmão negro só se torna oficialmente visível quando o mineiro se aposentou e não pode mais atravessar um quarto. No momento em que estes se tornam os critérios pelos quais experimentemos a nós mesmos como doentes, estamos inteiramente alienados; nossa identidade está 44 totalmente exteriorizada(14). Teorias normativas parecem passíveis de crédito porque o capital pode retirar o que precisamos quando nos recusamos a fazer o que ele requer. A experiência intra-subjetiva da doença como sendo saúde, a transformação do estresse epidêmico em personalidade competitiva desejada por qualquer Bom Americano, é uma função histórica da hegemonia de classe. Que alternativa a epidemiologia marxista oferece? Se saúde e doença são processos sociais também podem ser identificadas com as expressões históricas concretas de liberdade e de sua negação. Apenas neste contexto, a dimensão positiva de rupturas sociais, tais como rebeliões e epidemias, faz sentido. A saúde pode de fato melhorar durante greves, rebeliões e revoltas, mesmo se medida por meios convencionais (79). Reich (80), Mitchell (81), Laing (82), Marcuse (83) e Fanon (85) todos afirmam de modo convincente que os modos predominantes da personalidade, família e vida social são doentes e que saúde, dependendo das necessidades sociais e capacidades, pode incluir comportamentos de doença como acessos de raiva, passividade biológica, regressão etc. Este é um longo caminho partindo da saúde como harmonia com a natureza! Afirmamos que a doença não é simplesmente implantada pelo capitalismo, mas que, ao contrário, uma vez que ela é um processo social, também gera políticas, economia e pensamento. Mais do que isto, a lógica do desenvolvimento capitalista e a lógica do processo de doença têm de ser traçadas, em parte, para responder às contradições dinâmicas que surgem da interação delas. Assim, o capital toma formas sociais para enfrentar a crise do século XIX na saúde e segurança, mas o capital social, ao incorporar o processo de doença mais diretamente em mecanismos econômicos centralizados, cria as doenças do estresse crônico. Como doença e desordem irrompiam da fábrica e dos bairros da classe trabalhadora e circulavam de 45 modo selvagem pelas cidades do século XIX, eram politicamente reconstituídas como epidemias e rebeliões. Porém, este mesmo processo gradualmente ajudou a dissolver a distinção entre fábrica e comunidade. Hoje, o processo de doença reflete a extensão vertical de trabalho no tempo, assim como a sua extensão no espaço social. Estresse como fator principal que predispõe o sistema físico/psíquico para uma pane significa a homogeneização e a integração da doença e das formas usadas para ampliar e proteger a obtenção de lucro. Ironicamente, na medida em que as causas de doença coincidem quase exatamente com os fatores responsáveis pelo crescimento econômico na sociedade capitalista, a epidemia – no sentido de uma comunidade visível de doença – parece desaparecer por trás de uma medicina clínica baseada na tecnologia e centrada no hospital. Esta é desenvolvida para acolher os mais ultrajantes sintomas do progresso, para individualizar a mortalidade coletiva e para classificar temporalmente a morte, de acordo com o valor relativo colocado nos diferentes grupos de vítimas, como, por exemplo, o trabalho. A medicina clínica coloca a alienação coletiva biologicamente, ao redefinir o processo de doença em padrões que parecem únicos no tempo, espaço social e intensidade. A distribuição de sintomas em um continuum tempo-espaço aparentemente arbitrário faz a doença parecer individual e esconde sua natureza epidêmica. A queixa do paciente – de se sentir apenas um número – reflete tanto sua alienação particular na clínica urbana quanto a sensação de estar sendo pressionado a experimentar retrospectivamente o sentido de sua vida, em decorrência da determinação prévia do paciente ser dada pelo trabalho abstrato. Porém, a mística clínica tem suas fissuras. A obsolescência objetiva de uma boa parte do trabalho por jornada se reflete subjetivamente na crescente recusa ao trabalho, tanto dentro quanto fora da fábrica, e pela demanda de uma 46 recompensa social que não é mediada nem pela obediência nem pelo aumento da produtividade. Os trabalhadores não mais barganham individualmente remédio com os médicos; suas demandas médicas estão integradas em demandas sociais mais amplas, e estas são colocadas para seus patrões e para o Estado. Em paralelo a isto, os médicos são mais empregados para gerir o desintegrado processo de oferta de cuidados do que para curar os doentes. No movimento de emancipar o Homem da determinação natural, o capital e o trabalho socializaram a si mesmos e também a biologia. Mas ao fazer isto, prepararam sem o saber o caminho para a unificação da Biologia e da Razão, da Saúde e da Liberdade. Agradecimentos: Este texto foi originalmente apresentado no East Coast Health Discussion Group. Sou especialmente grato a Kim Hoper e a Joe Eyer por suas valiosas críticas. 47 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Fox, B.H. Premorbid psychological factors as related to incidence of cancer: Background for prospective grant applicants. National Cancer Institute, National Institute of Health, Bethesda, 1976. 2. Stamler, J. Lectures in Preventive Cardiology, Grune and Stratton, New York, 1968. 3. Waldron, I. e Eyer, J. 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