O PAGAMENTO POR SERVIÇOS
AMBIENTAIS:
O MERCADO DE CARBONO PROMOVE
A INCLUSÃO SOCIAL?
Grão-Chanceler
Dom Washington Cruz, CP
Reitor
Prof. Wolmir Therezio Amado
Editora da UCG
Pró-Reitora da Prope
Presidente do Conselho Editorial
Profa. Dra. Sandra de Faria
Coordenador Geral da Editora da UCG
Prof. Gil Barreto Ribeiro
Conselho Editorial
Membros
Prof a. Dra. Regina Lúcia de Araújo
Prof a. Dra. Heloisa Selma Fernandes Capel
Profa. Dra. Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante
Profa. Dra. Elane Ribeiro Peixoto
Prof. Dr. Aparecido Divino da Cruz
Prof. Dr. Cristóvão Giovani Burgarelli
Escritora Maria Luisa Ribeiro
Ms. Heloísa Helena Campos Borges
Escritor Ubirajara Galli
Jornalista Iúri Rincon Godinho
MARKUS BROSE
ORGANIZADOR
O PAGAMENTO POR SERVIÇOS
AMBIENTAIS
O MERCADO DE CARBONO PROMOVE
A INCLUSÃO SOCIAL?
© 2009, Markus Brose (Organizador)
Editora da UCG
Rua Colônia, Qd. 240-C, Lt. 26 - 29
Chácara C2, Jardim Novo Mundo
CEP. 74.713-200 – Goiânia – Goiás – Brasil
Secretaria e Fax (62) 39461814 – Revistas (62) 39461815
Coordenação (62) 39461816 – Livraria (62) 39461080
Comissão Técnica
Iêda Gonçalves de Aguiar
Revisão e Diagramação
Biblioteca Central da UCG
Normatização
Luiz Fernando Garibaldi
Arte-final da Capa
P128
O pagamento por serviços ambientais: o mercado de carbono promove a
inclusão social / Organizador Markus Brose. – Goiânia: Ed. da
UCG, 2009.
358p.
ISBN 978-85-7103-582-9
1. Meio ambiente – riscos. 2. Proteção a natureza. 3. Meio ambiente
– aspectos sociais e socioeconômicos. 4. Impacto ambiental. I. Brose,
Markus (org.). II. Título.
CDU:
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2009
502.3
504
504.05
AUTORES
Ana Maria Ribeiro
Assistente Social com especialização em Saúde Pública. Atuou como assistente técnica e
coordenadora em diversas políticas públicas municipais em Francisco Morato, Franco da
Rocha, Campo Limpo Paulista, São Paulo e entorno. Foi membro de Conselhos Municipais
dos Direitos da Criança e do Adolescente, Saúde e Assistência Social. Integrou o Conselho
Gestor do Parque Anhangüera. Atual Coordenadora Regional da CARE Brasil no Programa
de Desenvolvimento Local dos Distritos Perus e Anhangüera, na região metropolitana de
São Paulo.
Ayri Saraiva Rando
Engenheiro Ambiental pela EEP – Escola de Engenharia de Piracicaba. Atuou na ONG
NAPRA – Núcleo de Apoio à População Ribeirinha da Amazônia assessorando a produção
e comercialização de produtos florestais não-madeireiros, saneamento ambiental e educação
junto à comunidades ribeirinhas em Rondônia. Integrou a OSCIP Piracicaba 2010,
dedicada ao planejamento estratégico do município. Atua na CARE Brasil no projeto de
apoio à Política Estadual de Mudanças Climáticas e Combate à Pobreza do Governo do
Piauí.
Bruna Cristina Engel
Estudante de Engenharia Ambiental. Atuou em órgãos de fiscalização ambiental no Rio
Grande do Sul: DEFAP – Departamento de Florestas e Áreas Portegidas e FEPAM –
Fundação Estadual de Proteção Ambiental. Atuou na ONG IMCA – Instituto Morro da
Cutia de Agroecologia no programa de formação, e na gestão de projetos. Atua como
voluntária na ONG Amigos da Terra Brasil.
Carsten Rothballer
Cientista Social com especialização em Desenvolvimento Internacional pela Universidade
de Viena/Áustria, tendo realizado parte dos seus estudos nas áreas de economia, ciência
política e sociologia tanto na Universidade de Pavia/Itália, como na UFBA – Universidade
Federal da Bahia. Atua como analista de programas em mudança climática na secretaria
européia da ONG ICLEI – Governos Locais pela Sustentabilidade.
Cecília Mariano Michellis
Gestora Ambiental pela USP – Universidade de São Paulo. Atuou na AATT - Associação
de Apoio ao Trabalhador Tocantinense. Foi coordenadora da área de sustentabilidade da
empresa CantorCO2e Brasil, no escritório São Paulo, empresa global do mercado de
carbono. Atua na empresa Carbono Social Serviços Ambientais, no desenvolvimento de
projetos de carbono.
Devanir Garcia dos Santos
Agrônomo pela UFLA – Universidade Federal de Lavras, com especialização em Irrigação
pelo Instituto de Pesquisa de Vercelli/Itália. Mestre em Gestão Econômica do Meio
Ambiente pela UNB – Universidade de Brasília. Foi coordenador regional da
RURALMINAS – Fundação Rural Mineira e membro do grupo responsável pela elaboração
de normas técnicas de irrigação e drenagem da ABNT - Associação Brasileira de Normas
Técnicas. Foi consultor do IICA – Instituto Interamericano de Cooperação para a
Agricultura e do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento em
irrigação e elaboração de planos de recursos hídricos. Atual Gerente de Conservação de
Água e Solo, da Superitentência de Uso Múltiplos, da ANA – Agência Nacional de Águas.
Divaldo Rezende
Agrônomo pela UFLA – Universidade Federal de Lavras. Mestre em Políticas Ambientais
e Recursos Naturais pela Universidade de Londres. Doutor pela Universidade de Aveiro/
Portugal. Desenvolveu em parceria com Stefano Merlin o conceito de Carbono Social,
tendo sido co-fundador da empresa Ecológica Assessoria e da ONG Instituto Ecológica.
Atual Diretor Executivo da empresa CantorCO2e Brasil, empresa global do mercado de
carbono.
Evandro Holanda Júnior
Médico Veterinário pela UECE – Universidade Estadual do Ceará, com especialização em
Administração Rural pela UFLA – Universidade Federal de Lavras. Mestre em Medicina
Veterinária e Doutor em Ciência Animal pela UFMG – Universidade Federal de Minas
Gerais. Pesquisador da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária e atual
Chefe Geral da Embrapa Caprinos e Ovinos localizada em Sobral/CE.
Fabiano Toni
Agrônomo pela USP – Universidade de São Paulo. Mestre em Política Científica e
Tecnológica pela UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas. Doutor em Ciência
Política pela Universidade da Flórida/EUA. Foi professor da UFRN – Universidade Federal
do Rio Grande do Norte e pesquisador associado do CIFOR – Centro Internacional de
Pesquisa Florestal. Atualmente é professor adjunto do Centro de Desenvolvimento
Sustentável da Universidade de Brasília (UnB).
Guilherme Monteiro do Prado Valladares
Engenheiro Florestal pela Polytechnic State University da California/USA. MBA Executivo
pela FGV - Fundação Getúlio Vargas. Atuou na empresa florestal Duratex. Em 2001
fundou a empresa de consultoria Ambiental PV Ltda, que conta como clientes organizações
como Conservação Internacional, The Nature Conservancy, CARE Brasil e empresas como
JP Morgan Climate, Arcelor do Brasil, Odebrecht e PriceWaterhouseCoopers. Em 2006
foi co-fundador da ONG Instituto Perene. Em 2008 foi o primeiro candidato brasileiro
selecionado para uma bolsa pela Fundação Kinship Conservation.
Isabel Bergling
Estudante de Administração da Universidade de Uppsala/Suécia, em intercâmbio, cursando
Gestão e Negócios Internacionais da UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos
Sinos. Atua como voluntária na ONG Amigos da Terra Brasil.
Isadora de Afrodite Richwin Ferreira
Jornalista e mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB).
Foi analista de projetos da Fundação Avina e atua hoje como assessora de comunicação do
WWF-Brasil.
Jörgdieter Anhalt
Engenheiro pela Universidade de Wilhelmshaven/Alemanha. Longa experiência com
projetos e políticas públicas de energia renovável e eficiência energética pela GTZ - Agência
Alemã de Cooperação, tendo também atuado no Centro de Pesquisa Nuclear Jülich e no
Ministério de Ciência e Tecnologia, na Alemanha. Veio ao Brasil em 1983 como pesquisador
da USP - Universidade de São Paulo. Em 1995 foi fundador da ONG IDER - Instituto de
Desenvolvimento Sustentável & Energias Renováveis no Ceará, onde coordena o
desenvolvimento e implantação de tecnologias sociais inovadoras no uso de energia
renovável.
Lars Friberg
Cientista político pela Universidade de Uppsala/Suécia. Mestre em Economia e Relações
Internacionais pela Universidade John Hopkins/USA. Foi analista de mudanças climáticas
e energia para a rede global de ONGs CAN – Climate Action Network em Bruxelas.
Atual Doutorando em Polítia Internacional da Universidade de Potsdam/Alemanha, com
foco de pesquisa na relação de projetos MDL e gestão pública, no âmbito do Consórcio
Europeu de Pesquisa em Governança (SFB 700). Entre 2007/08 foi pesquisador visitante
no Centro Clima, da COPPE/UFRJ, no tema certificação de biocombustíveis.
Leonardo Sakamoto
Jornalista, mestre e doutor em Ciência Política pela USP – Universidade de São Paulo.
Cobriu a guerra pela independência em Timor Leste e a guerra civil em Angola. Foi professor
do Curso de Jornalismo da ECA-USP e trabalhou em diversos veículos de comunicação,
tendo recebido prêmios na área de jornalismo e direitos humanos, como Vladimir Herzog
e o Prêmio Combate ao Trabalho Escravo. Empreendedor social Ashoka, é coordenador
da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para Erradicação do
Trabalho Escravo (Conatrae) e no Comitê Gestor do Pacto Nacional pela Erradicação do
Trabalho Escravo.
Luzia Maria Honorato
Educadora social, formada no Magistério. Foi administradora do Parque Rodrigo de Gaspari.
Atuou como Conselheira Tutelar na Subprefeitura de Perus, e foi presidente da SADIP –
Sociedade Amigos do Distrito de Perus. Co-fundadora e integrante da diretoria da
COOPERCOSE – Cooperativa de Trabalhadores da Coleta, Triagem e Comercialização
de Materiais Recicláveis e Prestadores de Serviços. Membro da coordenação executiva do
Fórum de Desenvolvimento Local de Perus e Anhangüera.
Marcelo Calazans
Sociólogo pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Educação pela
UFES – Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenador da FASE – Federação de
Órgãos para Assistência Social e Educacional no Espírito Santo. Membro da Rede Deserto
Verde, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, da Rede Latino Americana contra
Monocultivo de Árvores e da Articulação Capixaba de Agroecologia. Membro-fundador
do Grupo Durban para Justiça Climática.
Marco Aurélio Rodrigues
Geógrafo pela UFPR – Universidade Federal do Paraná. Mestre em Geografia pela
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, área de concentração análise ambiental
e dinâmica territorial. Atuou em projetos e programas socioambientais na Amazônia,
Cerrado e Mata Atlântica. Atual coordenador regional da CARE Brasil no Programa de
Desenvolvimento da Costa do Cacau, no litoral sul da Bahia.
Mário Sérgio Bortoto
Microempresário do setor gráfico. Liderança comunitária e ex-administrador regional dos
Distritos Perus e Anhangüera no município de São Paulo. Co-fundador da Associação
Pró-Centro Cultural do Trabalhador ‘Os Queixadas’, que visa a proteção da memória das
lutas operárias na Fábrica de Cimento Portland Perus. Membro da coordenação executiva
do Fórum de Desenvolvimento Local de Perus e Anhangüera.
Markus Brose
Agrônomo com especialização em agroecologia. Atuou como assistente técnico da GTZ –
Agência Alemã de Cooperação em Brasília. Mestre em Gestão Pública pela Universidade
de Londres. Foi coordenador do Projeto Gestão Participativa junto às Secretarias Estaduais
de Planejamento nos estados do Nordeste, em convênio SUDENE/Banco Mundial. Foi
consultor em metodologias participativas junto à Secretaria da Agricultura do Rio Grande
do Sul, e posteriormente na Secretaria Estadual de Planejamento, no governo Olívio.
Doutor em Sociologia Política pela Universidade de Osnabrück/Alemanha. Atual Diretor
da CARE Brasil.
Mauricio Reimberg
Jornalista pela PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Trabalhou como
repórter do portal UOL, do jornal O Estado de São Paulo, da Agência Carta Maior, e das
revistas Caros Amigos e Cult. Atualmente é jornalista da ONG Repórter Brasil.
Messias Pereira Moraes
Foi comerciante, empreendedor e gerente de banco. Liderança comunitária, atua como
integrante de movimentos sociais e é membro do Conselho de Saúde de Perus. Atualmente
atua na CARE Brasil como assistente no Programa de Desenvolvimento Local dos Distritos
Perus e Anhangüera, na região metropolitana de São Paulo.
Miriam Prochnow
Pedagoga. Líder Avina. Especialista em meio ambiente com prioridade para políticas públicas,
educação ambiental e desenvolvimento institucional. Atuou em diversas organizações da sociedade
civil, redes e órgãos do Governo Federal na execução de projetos de conservação e uso sustentável
de recursos naturais, campanhas e produção de materiais. Foi Coordenadora da Rede de ONGs
da Mata Atlântica. Durante vários anos acompanhou o Programa Piloto para a Proteção de Florestas
Tropicais, tendo assento em suas comissões como reprentante da sociedade civil. Atualmente é
Coordenadora de Políticas Públicas da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida
(Apremavi), além de Secretária Executiva do Diálogo Florestal para a Mata Atlântica e Pampa.
Nelson Aparecido Bueno de Camargo
Técnico gráfico e microempreendedor do setor gráfico. Liderança comunitária, foi integrante
do conselho gestor do Parque Anhangüera e do conselho do Centro Educacional Unificado
de Perus. Foi membro do CIESP distrital Lapa, da Associação Brasileira de Preservação
Ferroviária, do Centro Cultural Ajuá-Perus e da Associação dos Comerciantes, Industriais
e Prestadores de Serviços de Perus (Acisper). Atualmente Vice-Presidente do Instituto de
Ferrovias e Preservação do Patrimônio Cultural e membro da coordenação executiva do
Fórum de Desenvolvimento Local de Perus e Anhangüera, em São Paulo.
Nilto Tatto
Administrador. Foi Administrador e Secretário Executivo da ONG ISA – Instituto
Sócioambiental. Atualmente coordena o Programa Vale do Ribeira/São Paulo do ISA.
Nilton de Moraes Bertacchini
Comerciante e empreendedor. Integrou diversas diretorias da Sociedade Amigos do Distrito
de Perus. Foi presidente das associações de pais e mestres das escolas Cândido Portinari e
Brigadeiro Gavião Peixoto. Foi o primeiro administrador regional dos Distritos Perus e
Anhangüera no município de São Paulo, e foi presidente do Clube Desportivo Municipal
de Perus e do Clube Esportivo Portland. Atual presidente da Associação dos Comerciantes,
Industriais e Prestadores de Serviços de Perus (Acisper).
Paula Castro Pareja
Engenheira ambiental pela Universidade Nacional Agrária La Molina/Peru. Mestre em
Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade de Reading/Reino Unido. Foi
pesquisadora em projeto conjunto Universidade La Molina e ONG ITDG - Intermediate
Technology Development Group sobre biocombustíveis no Peru. Atualmente Doutoranda
em Ciências Políticas da Universidade de Zurique/Suiça. Suas áreas de pesquisa e consultoria
são: negociações internacionais sobre mudanças climáticas, educação ambiental, gestão de
resíduos sólidos, energia renovável e biocombustíveis.
Paulo Rodrigues
Liderança comunitária, comerciante e empreendedor. Ambientalista, foi co-fundador do
‘Movimento Lixão+1 não!’ e atua como consultor ambiental do escritório de advocacia
Pinheiro Pedro em São Paulo. Foi presidente do Centro Cultural Ajuá-Perus e integrante
da diretoria da Sociedade de Amigos do Distrito de Perus. Atual presidente da ONG
IFPPC-Instituto de Ferrovias e Preservação do Patrimônio Cultural, que visa a preservação
do patrimônio histórico e memória da ferrovia Perus-Cajamar.
Raquel Pasinato
Bióloga. Mestre em Ecologia de Agroecosistemas pela USP – Universidade de São Paulo.
Foi voluntária e prestadora de serviços na Estação Ecológica Juréia-Itatins da Secretaria do
Meio Ambiente do Estado de São Paulo em pesquisas junto às comunidades quilombolas.
Atualmente integra a equipe do Programa Vale do Ribeira/SP no trabalho com comunidades
quilombolas da ONG ISA – Instituto Sócioambiental.
Renata Everett do Prado Valladares
Engenheira mecânica pela University of California Berkeley/USA. Atuou com sistemas de
aquecimento solar na empresa Transsen. Posteriormente desenvolveu a área de
aproveitamento de biomassa no escritóiro brasileiro da organização Winrock International.
Foi responsável por projetos finalistas no Prêmio Tecnologia Social do Banco do Brasil e
Prêmio Bahia Ambiental. Atua como sócia-gerente nas áreas de energia renovável e mudança
climática na empresa Ambiental PV Ltda.
Roberta Pardo Mendes
Técnica em educação e militante social. Atua nos movimentos sociais e organizações
comunitárias nos distritos de Anhangüera e Perus, em São Paulo.
Rodrigo Valente Serra
Economista pela UFF – Universidade Federal Fluminense. Mestre em Planejamento Urbano e
Regional pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Economia pela
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas. Professor/pesquisador do Mestrado em
Engenharia Ambiental do IFF – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense.
Sebastião Alves Gonçalves
Aposentado. Liderança comunitária que atua nas comunidades de base do Distrito de
Anhangüera em São Paulo. Integrante das diretorias da União dos Moradores do Parque
Anhangüera (Umpa) e do Centro Anhangüera de Promoção e Educação Social (Capes). Membro
da coordenação executiva do Fórum de Desenvolvimento Local de Perus e Anhangüera.
Sérgio Wulff Gobetti
Economista e jornalista. Mestre e Doutor em Economia pela Universidade de Brasília
(UnB). Exerce o cargo de Técnico de Planejamento e Pesquisa no IPEA – Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada. Entre 2001 e maio de 2009, atuou na sucursal de Brasília
do jornal O Estado de São Paulo. Nos anos de 2006, 2007 e 2008 foi premiado pela STN
– Secretaria do Tesouro Nacional em concursos de monografias na área das finanças públicas.
Tamra Gilbertson
Graduação em Biologia Marinha e Zoologia pela Humboldt State University/USA. Atuou
em diversas organizações nos temas de comércio internacional, ecologia, feminismo e
globalização. Foi editora do jornal feminista The Matrix. Atua como coordenadora do
projeto de Justiça Ambiental da ONG Transnational Institute (TNI) na Holanda. Membrofundador do Grupo Durban para Justiça Climática.
Vanessa Silva
Jornalista pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Participou de diversos projetos
envolvendo questões sociais, como o jornal comunitário Bauru nos Trilhos, jornal mural
desenvolvido na comunidade sorocabana no Jardim Europa em Bauru. Foi criadora e editora
do rádio-documentário Diferente, Pero no Mucho e co-autora da revista eletrônica Realidade
Sul Americana. Atualmente atua na Associação Brasileira da Propriedade Intelectual dos
Jornalistas Profissionais (Apijor).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
19
PARTE I
ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS COM ROYALTIES
1.1 POBRE MUNICÍPIO RICO
Leonardo Sakamoto; Maurício Reimberg
61
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO
E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
Sérgio Wulff Gobetti; Rodrigo Valente Serra
73
PARTE II
ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS COM PROJETOS MDL
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM
DE PROJETOS MDL NO BRASIL
Cecília Mariano Michellis
101
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO
DE PROJETOS MDL
Lars Friberg; Paula Castro
123
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO
AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR PROJETOS
MDL NO BRASIL
Carsten Rothballer
149
PARTE III
O CONFLITO SOCIAL EM PROJETOS MDL
3.1 QUEIMANDO EUCALIPTO: O CASO DA PLANTAR
Marcelo Calazans; Tamra Gilbertson
195
3.2 BARRA GRANDE – A HIDRELÉTRICA E A FLORESTA
COM ARAUCÁRIA
Miriam Prochnow; Bruna Cristina Engel; Isabel Bergling
209
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
Ana Maria Ribeiro; Luzia Maria Honorato;
Mário Sérgio Bortoto; Markus Brose; Messias Pereira Moares;
Nelson Camargo; Nilton de Moraes Bertacchini;
Paulo Rodrigues; Roberta Pardo Mendes;
Sebastião Alves Gonçalves; Vanessa Silva
223
PARTE IV
TESTE E INOVAÇÃO EM PAGAMENTO
POR SERVIÇOS AMBIENTAIS E ADAPTAÇÃO/
MITIGAÇÃO ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
4.1 O RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL COM QUILOMBOLAS
NO VALE DO RIBEIRA (SP)
Nilto Tatto; Raquel Pasinato
257
4.2 PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
Devanir Garcia dos Santos
273
4.3 OS BENEFÍCIOS PARA AS COMUNIDADES LOCAIS
EM PROJETOS DE CARBONO FLORESTAL NO BRASIL
Guilherme Monteiro do Prado Valadares;
Renata Everett do Prado Valladares
293
4.4 RESTAURAÇÃO FLORESTAL EM ASSENTAMENTOS
DE REFORMA AGRÁRIA NO SUL DA BAHIA
Marco Aurélio Rodrigues
305
4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
Divaldo Rezende
319
4.6 SECA E VULNERABILIDADE: O FUNDO DE PASTO
COMO ESTRATÉGIA PARA LIDAR COM O CLIMA
SEMIÁRIDO
Fabiano Toni; Evandro Holanda Júnior;
Isadora de Afrodite Richwin Ferreira
347
4.7 DISSEMINAÇÃO DE FOGÕES ECOEFICIENTES
NO CEARÁ
Jörgdieter Anhalt
359
4.8 A POLÍTICA ESTADUAL DE MUDANÇAS
CLIMÁTICAS E COMBATE À POBREZA NO PIAUÍ
Markus Brose; Ayri Saraiva Rando
367
“O objetivo do mecanismo de desenvolvimento
limpo deve ser assistir às Partes não incluídas
no Anexo I para que atinjam o desenvolvimento
sustentável, [...]”.
(Protocolo de Quioto, Artigo 12, Inciso 2)
INTRODUÇÃO
A CARE Brasil participa de três programas de desenvolvimento
rural no Norte e Nordeste do país, cada um deles implementado em
conjunto com um grande número de atores locais. Além de contribuírem para os processos de desenvolvimento local nesses territórios, esses
programas se revestem de um valor simbólico, pois evidenciam as raízes
estruturais da pobreza no país.
O Programa de Desenvolvimento na Costa do Cacau, na Bahia,
atua no entorno do porto de Ilhéus que foi, no final do século XIX e
início do século XX, um dos portos mais ricos do hemisfério sul. Por
Ilhéus, chegou a ser escoada mais da metade da produção mundial de
cacau, concentrando grande riqueza, eternizada nos romances de Jorge
Amado. Bem antes disso, no século XVI, a região já havia sido rica, abrigando o primeiro investimento em moldes empresariais na colônia para
a produção de açúcar e aguardente, e mais tarde produziu a farinha de
mandioca que possibilitou aos portugueses a expansão rumo ao sertão.
Porém, a riqueza gerada em diferentes ciclos econômicos ficou concentrada na mão de poucas famílias e deu origem a oligarquias que uniram
a propriedade da terra e o poder político, mantendo larga parte da população na pobreza. Este fenômeno ficou conhecido como coronelismo, e
manteve a população de trabalhadores rurais sem acesso aos ativos produtivos ou à educação. Em especial a população afrodescendente e os
povos indígenas do litoral sul da Bahia estão entre os grupos mais vulneráveis da sociedade baiana. E que agora assistem a novas mudanças da
região mediante a implantação, pelo Programa de Aceleração do Cresci-
MARKUS BROSE
20
mento (PAC), da ferrovia Leste-Oeste, que ligará Ilhéus a Figueiróplis
(TO), e de um porto para escoar soja e algodão do oeste baiano.
O Programa de Desenvolvimento Microrregional do Norte do
Piauí atua no entorno do porto de Parnaíba que, nos séculos XVIII e
XIX, exportou produtos vegetais e farmacêuticos oriundos do sertão.
O porto de Parnaíba figurou entre os principais portos do Atlântico, contando com navios que faziam conexão direta com portos europeus. Durante a Segunda Guerra Mundial, o porto teve importância estratégica
para a aliança do Governo Vargas com os Estados Unidos, pois por ali
exportava-se óleo de mamona, produto essencial para o funcionamento
de aviões e tanques. A economia de Parnaíba continua relevante, pois
abriga a maior bacia leiteira da região, além disso abastecendo a indústria calçadista de São Paulo e do Rio Grande do Sul com couros finos.
Porém, do fausto do passado – a primeira cidade com iluminação elétrica e o primeiro porto com guindaste hidráulico, os casarões cobertos de
azulejos e os extensos galpões na zona portuária – restam apenas os prédios
e as memórias. A concentração da riqueza na mão de poucas famílias gerou uma microrregião que concentra hoje parte dos municípios com
menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país.
O Programa de Geração de Renda com Ribeirinhos na Calha do
rio Amazonas atua a partir do porto de Itacoatiara, um dos principais
atracadouros para os navios europeus e asiáticos que vêm buscar a soja
da Amazônia. Por Itacoatiara, são embarcados mais de dois milhões de
toneladas de soja ao ano de Rondônia e do Mato Grosso transportadas
pela hidrovia do rio Madeira, concentrando ali um movimento de cargas
e navios que praticamente não tem beneficiado as comunidades do entorno. Essas comunidades vivem no modelo histórico herdado dos povos indígenas de ocupação das várzeas em pequenas habitações de palafita
com limitado acesso às políticas públicas universais. Na maioria delas, a
escola pública vai somente até a quarta série, não existe acesso universal
nem a energia elétrica ou a sistema básico de saneamento. E o intenso
tráfego dos navios de carga gera ondas que colocam em risco os pequenos barcos dos moradores e têm contribuído para a aceleração da erosão
e do assoreamento das margens do rio.
Assim, a experiência da CARE Brasil em alguns dos territórios e
zonas rurais mais vulneráveis do país evidencia que, mesmo havendo
crescimento econômico e geração de riquezas, se não houver mecanis-
INTRODUÇÃO
21
mos de redistribuição e se a sociedade local não estiver preparada e habilitada para utilizar esta riqueza como um investimento produtivo para
um futuro melhor, poucas famílias se beneficiam e o território tende a
permanecer pobre. A exclusão da maior parte da população dos benefícios gerados pelo crescimento econômico não é um fenômeno recente, ele
acompanha a história do país e constitui uma das principais causas estruturais de nossa pobreza.
Corremos o risco de essa experiência histórica se repetir com a
nova riqueza que está sendo gerada pelo pagamento por serviços
ambientais, em especial os projetos do novíssimo mercado de carbono.
Essa não é uma preocupação abstrata ou teórica, pois se baseia na ausência de benefícios sociais tanto em experiências mais antigas – como o
pagamento dos royalties de gás e petróleo ou a Compensação Financeira
pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), quanto nas mais recentes, como a promessa de que a política nacional de biocombustíveis seria
uma iniciativa de mitigação da mudança do clima com forte componente social.
Os biocombustíveis teriam um Selo Social que garantiria que essa
política incluiria em larga escala agricultores familiares neste novo mercado por meio da comercialização da mamona. Passada a fase piloto, o desempenho da produção brasileira de biodiesel efetivamente explodiu, saiu de
736m3, em 2005, para 1,1 milhões m3, em 2008. Porém, como 78%
desse volume são provenientes de soja, 16% de sebo e 3% de óleo de algodão, a mamona dos agricultores familiares não se destaca na estatística.
De maneira geral, a matriz energética brasileira é considerada uma
das mais limpas do mundo, o que contribui para fortalecer a posição do
país nas negociações internacionais sobre o futuro do clima. Uma análise
mais detalhada, porém, demonstra que existem controvérsias quanto a
esta questão, pois determinadas usinas hidrelétricas, como Balbina, no
Amazonas, e Samuel, em Rondônia, tem uma alta taxa de emissão de
gases de efeito estufa. Ademais, se a nossa matriz energética é considerada limpa no quesito ambiental e também é economicamente rentável, ela
não tem sido socialmente justa. O setor elétrico tem uma longa história
de realocação forçada de comunidades rurais e populações tradicionais,
ausência de indenizações ou pagamento de indenizações ínfimas, relacionamento autoritário e tecnocrata com a população local, além da baixa
qualidade de alguns dos estudos de impacto ambiental.
Usinas do Madeira levam caos e riqueza a Rondônia
As usinas hidrelétricas do rio Madeira, vitrines do Programa de Aceleração do
Crescimento, custarão R$ 21 bilhões e injetarão R$ 8 bilhões por ano na economia de Rondônia até 2013. Promessa de bonança ao empobrecido estado, elas já
são um dos empreendimentos mais caros da história e também um dos mais controversos.
Procuradores federais pedem a cassação das licenças das usinas e já levantam suspeitas sobre o seu financiamento. Instituições civis acusam os construtores de ignorarem impactos socioambientais. Autoridades locais temem que a capital Porto
Velho chegue ao colapso, caso os investimentos em infraestrutura não saiam do
papel. E o setor produtivo está preocupado com a possibilidade de que o desenvolvimento da região não seja sustentável.
Atraídos pelas oportunidades, empresas já se instalam na região, e famílias desembarcam semanalmente na capital Porto Velho. Em apenas seis meses de obras, já
ocorreram efeitos previtos no Projeto Básico Ambiental para três anos.
Para antecipar a inauguração das usinas, Saesa e Enersus, os consórcios empresariais que constroem Santo Antônio e Jirau, respectivamente, atropelam o plano de
mitigação, nome das práticas que minimizariam os impactos negativos.
O cumprimento dos planos de mitigação foi determinado pelo IBAMA, que segundo o Ministério Público Federal de Rondônia, transformou as inconsistências
dos projetos, detectadas pela equipe técnica do órgão, em cerca de cem
condicionantes (FOLHA DE SÃO PAULO, 2009d).
22
MARKUS BROSE
‘Malária e aspectos hematológicos em moradores da área de influência dos futuros reservatórios das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, Rondônia’. O objetivo deste trabalho foi analisar a prevalência da malária antes do início da
implantação das obras civis e fazer considerações sobre os impactos da doença
com o ingresso de milhares de trabalhadores e agregados atraídos pelas oportunidades de emprego e comércio. Os resultados obtidos mostram que a malária se faz
presente em toda a região, em variados graus de prevalência. [...] A construção de
usinas hidrelétricas geralmente causa aumentos na malária [...] sugerindo que se
as condições atuais de saneamento e serviços públicos de saúde oferecidos à população não sofrerem uma profunda reestruturação tanto física como humana, os
riscos de uma nova epidemia de malária aumentarão consideravelmente
(KATSURAGAWA, 2009).
Geradoras brasileiras de energia, donas de grandes usinas hidrelétricas, se preparam para tentar emplacar seus projetos no MDL das Nações Unidas e assim emitir
certificados de crédito de carbono para melhorar a taxa de retorno dos empreendimentos. Até mesmo as duas hidrelétricas do Rio Madeira já encomendaram seus
estudos e estimativas mostram que a receita anual, para cada uma, poderia gerar
em torno de Euros 50 milhões. (VALOR ECONÔMICO, 2009)
INTRODUÇÃO
23
Um exemplo de que a matriz energética dificilmente pode ser considerada limpa vem sendo divulgado pela mídia sobre o PAC em Rondônia,
onde as duas usinas do rio Madeira nos primeiros seis meses das obras, em
2008, já geraram os impactos negativos previstos pelo projeto básico
ambiental para três anos, pois esses impactos foram subestimados. Por causa
das obras, o leito do rio está sendo revirado, trazendo à superfície o mercúrio que foi utilizado no passado pelos garimpeiros, o que coloca em risco a
água que abastece as cidades da região. Apenas 10% dos vestígios arqueológicos foram catalogados e o Ministério Público investiga o Banco da
Amazônia por ter emprestado às empreiteiras recursos acima dos limites
legais. Esses alguns dos impactos mais visíveis.
Segundo relatos da imprensa, os impactos menos visíveis estão ligados à atração de migrantes à Rondônia, na busca por terra e emprego. Os
conflitos por terras em Rondônia já são graves, nos enfrentamentos de grupos sem-terra e fazendeiros ocorridos entre junho de 2006 e abril de 2008
foram assassinados ao menos 12 pessoas. E, com aumento da migração, os
conflitos podem se agravar. Além disso, tanto o desmatamento ocasionado
pelas obras das usinas, como a futura geração de metano pela decomposição
da madeira quando estiver submersa, irão emitir gases de efeito estufa.
Esses exemplos acerca da distância que frequentemente separa as
promessas da realidade em projetos denominados de ‘desenvolvimento
sustentável’, realidade esta que freqüentemente se concretiza na exclusão
social de parte da população, sem falar nos prejuízos ambientais não computados nos custos dos empreendimentos, constituem o contexto para a
pergunta central desta publicação:
Os projetos do mercado de carbono estão promovendo o desenvolvimento sustentável nos territórios onde eles estão sendo implantados?
Desenvolvimento sustentável implica inclusão social e promoção do
desenvolvimento humano, temas centrais para o presente e o futuro do país.
Como contribuição a esse debate, esta publicação, dirigida a lideranças comunitárias, técnicos de ONGs e militantes de movimentos sociais, foi dividida em quatro partes. A primeira apresenta uma breve análise
sobre a experiência com o pagamento dos royalties de gás e petróleo. Estes
textos, com base em análise da experiência de municípios como Coari, no
Amazonas, e Campos, no Rio de Janeiro, fortalecem o argumento de que
o repasse de recursos financeiros, por si só, não promove o desenvolvimento local. Na segunda parte do livro, apresentamos análises realizadas em
diferentes universidades que evidenciam que os projetos de carbono no
país não estão tendo um impacto social significativo. Para reforçar esse
argumento, a terceira parte apresenta estudos de caso detalhados sobre
conflitos sociais envolvendo projetos do mercado de carbono. E, para concluir o quadro, a quarta parte apresenta uma série de iniciativas que visam
qualificar o pagamento por serviços ambientais e, em especial, apresentar
alternativas para a adaptação e a mitigação às mudanças do clima.
24
MARKUS BROSE
1 O CONCEITO DA JUSTIÇA AMBIENTAL
Em nossa sociedade, existe uma tendência de que grupos vulneráveis sofram com os maiores custos ambientais e usufruam menos dos benefícios do crescimento econômico. Mais visível em regiões metropolitanas,
há o problema específico da localização de atividades geradoras de riscos
ambientais, por exemplo aterros, refinarias, lixões, incineradores, usinas,
aeroportos etc., que representam um custo ambiental de toda a cidade,
sendo implantados em bairros periféricos onde vivem populações com baixa
renda e sem alternativa para escolher outra localização.
Outros exemplos conhecidos de injustiça ambiental, já no contexto
rural, são a realocação forçada de mais de 70 mil famílias sem indenização
adequada, por causa da construção da barragem de Sobradinho, na Bahia,
formando o maior lago artificial do mundo, e a realocação dos quilombolas
de Alcântara, no Maranhão, para a instalação da base de lançamento de
foguetes espaciais. As experiências negativas dos quilombolas deixam especialmente claro que em nosso país a pobreza tem cor e gênero, ou seja,
os afrodescendentes, em especial as mulheres, estão entre os grupos mais
vulneráveis.
O conceito de justiça ambiental tem sua origem na ideia de que não
deve haver uma distribuição desigual, tanto dos benefícios quanto das desvantagens, como consequência do uso dos recursos naturais. Em especial,
não deve haver desigualdade gerada pela legislação ambiental entre diferentes grupos sociais. Os benefícios, os lucros, assim como os riscos e os
problemas, gerados pelo uso dos recursos naturais devem ser distribuídos
igualmente na sociedade. Ou então, deve haver compensações por se conviver com esses riscos.
Desse modo, os grupos mais vulneráveis da nossa sociedade não
deveriam ser afetados desproporcionalmente pelos efeitos negativos da in-
Assim, o direito ao meio ambiente, um bem comum, em outras
palavras um direito difuso ou coletivo, funde-se com o direito ao desenvolvimento sustentável. E o direito vale tanto para nós hoje como para as
25
Considerando que, segundo a Constituição da República, todos têm
direito ao bem jurídico meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações;
Considerando que as condutas e atividades consideradas lesivas ao
bem jurídico meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas
ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente
da obrigação de reparar os danos causados;
Considerando que é competência material comum da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, bem assim preservar as florestas, a fauna e a flora;
Considerando que essa competência material acha-se parcialmente
densificada na Lei No. 6.938/81, a qual dispõe a política nacional
do meio ambiente, que tem por objetivo a preservação, melhoria e
recuperação da qualidade propícia à vida, visando assegurar, no país,
condições de desenvolvimento sócio-econômico [...] (MAZZONI,
2008, p. 1-2).
INTRODUÇÃO
tervenção e modificação do meio ambiente, menos ainda pela adoção da
legislação. O mecanismo mais importante para garantir a justiça ambiental
está fundamentado no fato de que a comunidade deve ter o direito de
participar efetivamente das decisões que afetam a sua vida e pleitear medidas compensatórias pelos impactos ambientais negativos que ela sofre. Participação aqui não é entendida apenas como ir a uma reunião ou votar.
Participar é ter acesso igual aos benefícios e às restrições no uso dos recursos naturais.
Pois, de acordo com a Constituição, o direito a um ambiente saudável é um direito fundamental na medida em que é reconhecido pela lei
como sendo essencial para a qualidade de vida, além de ser também um
princípio da ordem econômica, que visa a justiça social e a dignidade para
todos.
futuras gerações. Temos o direito a um tipo de desenvolvimento que assegure uma vida digna para todos os cidadãos e possibilite uma relação sustentável entre a economia, a natureza e o bem-estar das famílias.
26
MARKUS BROSE
2 O PAGAMENTO POR SERVIÇOS AMBIENTAIS
Os ecossistemas (florestas, cerrados, manguezais, recifes marinhos
etc) produzem diária e silenciosamente uma variedade de produtos e serviços essenciais à vida na terra, e portanto essenciais para nós, mas que a
maioria das pessoas nem percebe. Podemos diferenciar estes produtos e
serviços em:
• produtos ambientais – são aqueles bens gerados pelos ecossistemas que
utilizamos para consumo e comercialização (madeira, frutos, peles, carnes, sementes, remédios e similares). Constituem uma base de sustentação e fonte de renda tanto para populações extrativistas como para diversas
cadeias produtivas;
• serviços ambientais – são aqueles serviços gerados pelos ecossistemas que
beneficiam a vida, como biodiversidade, proteção de solos, proteção
contra os raios solares, funções hídricas e similares.
Como os serviços ambientais são gratuitos, nos acostumamos facilmente a eles e corremos o risco de utilizá-los em excesso, colocando em
perigo a natureza e, por extensão, a humanidade. Daí a necessidade crescente de controle e regulamentação do uso dos serviços ambientais. Mais
do que leis e normas que, historicamente, se mostraram insuficientes ante
a voracidade da iniciativa privada, também se mostra necessário atribuir
um preço aos serviços ambientais para regular o acesso a eles e contribuir
para a sua manutenção.
Nesse ponto de vista, um serviço ambiental ainda pouco debatido é
a energia estocada nos combustíveis fósseis. Os ecossistemas coletaram e
estocaram a energia solar por milhões de anos na forma de carvão mineral,
petróleo e gás natural, que agora estamos queimando em um ritmo acelerado. Não apenas nossa economia devolve em poucos anos à atmosfera o
carbono que foi estocado ao longo de eras geológicas, como cobra um
preço barato por essa energia solar aqui acumulada. O petróleo, o gás natural e o carvão mineral se mantém em preços artificalmente baixos porque os preços do mercado não refletem atualmente todos os custos
econômicos, sociais e ambientais do uso destas fontes de enregia. Em espe-
cial, os preços dos combustíveis fósseis não contemplam os custos do aquecimento global.
Exemplificando, em 2008 as organizações WWF e Greenpeace publicaram um estudo sobre o custo do carvão mineral na China, estimando
que a indústria chinesa de carvão mineral possui custos não contabilizados
da ordem de R$500 bilhões/ano. Esses custos se referem aos acidentes
fatais nas minas, às doenças causadas à população, à poluição do ar e da
água, à degradação dos ecossistemas e aos prejuízos causados a prédios e
casas pela fuligem. Tal custo é subsidiado integralmente pela sociedade,
pois levaria muitas empresas à falência se elas arcassem com esse custo na
conta de energia. A concepção de que a energia fóssil em nosso planeta
precisa ser valorizada, e merece um sobrepreço, altera o fundamento de
nossa economia.
Crise e clima mudam cadeia de suprimento
27
Outro exemplo recente quanto à necessidade de se alterar preços de
uma cadeia produtiva para incluir os custos ambientais é o debate sobre o
futuro da pecuária na Amazônia. Após ajuizamento de ações civis pelo
Ministério Público no Pará, o setor público teve que intervir com recursos
públicos para salvar a cadeia produtiva e ordenar a alteração dos custos.
INTRODUÇÃO
Indústrias estão abandonando cadeias mundiais de suprimentos e adotando redes
regionais, numa grande mudança provocada pela crise financeria e por preocupação com mudanças climáticas. Empresas estão crescentemente buscando adquirir
seus insumos mais perto de casa. Assim, para suas operações americanas ou européias, é mais provável que recorram ao Méxio e à Europa Oriental do que à China,
como antes. [...] Especialistas em cadeias de suprimento concordam. A Ernst &
Young ressalta que até 70% da ‘pegada de carbono’ de uma empresa industrial
podem decorrer de transportes e outros processos em suas cadeias de suprimentos.
[...] Gerard Kleisterlee, executivo-chefe da Philips, uma das maiores empresas
europeias, disse ao Financial Times, que até agora, transporte barato era sinônimo
de que ‘o México não era competitivo com a China em termos de fornecimento a
empresas americanas’. Mas agora ele prevê que empresas como a Philips passarão a
usar países como a Ucrânica, em lugar de fontes asiáticas, no suprimento de insumos.
(VALOR ECONÔMICO, 2009b)
A alteração da estrutura de custos na cadeia produtiva da carne
Foi publicado estudo de grupo de pesquisadores que analisou os indicadores de qualidade de vida de 286 municípios na Amazônia e verificou que localidades com um processo
de desmatamento em curso apresentam por alguns anos indicadores acima da média.
Porém, os benefícios duram apenas entre 12 a 16 anos – quando acaba a exploração da
madeira e a produtividade da pecuária. Depois desse ‘boom’, o município passa a apresentar índices de qualidade de vida parecidos com os do período anterior ao desmatamento
e mantém a pobreza (FOLHA DE SÃO PAULO, 2009c, p. A10).
Pão de Açúcar, Carrefour e Wal-Mart suspenderam a compra de carnes de 11 frigoríficos apontados pelo MPF - Ministério Público Federal do Pará como comercializadores
de gado criado em área de devastação da Amazônia. Os supermercados resolveram
tomar a atitude em conjunto, após a denúncia do MPF e da ONG Greenpeace. No
início de junho de 2009, o MPF ajuizou 21 ações civis públicas pedindo indenização
de R$2,1 bilhões de pecuaristas e frigoríficos que comercializaram animais criados em
fazendas desmatadas ilegalmente (FOLHA DE SÃO PAULO, 2009e, p. B3).
Em audiência pública em Belém, um representante do setor dos frigoríficos disse que
o Ministério Público foi ‘prepotente’, ‘irresponsável’ e agiu de maneira açodada ao
mover ações contra pecuaristas e frigoríficos que comercializaram bois criados em
áreas desmatadas. Segundo a Federação de Agricultura e Pecuária do Pará, essas repercussões podem levar ao colapso de um dos principais produtos do estado. A senadora
Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura, disse
ontem que a exigência de rastreabilidade dos bois comprados por frigoríficos só será
possível se os pecuaristas forem remunerados pelos custos. A ruralista também defendeu a flexibilização do Cógigo Florestal (FOLHA DE SÃO PAULO, 2009b).
28
MARKUS BROSE
Mais de R$ 6,2 bilhões saídos do BNDES nos últimos dois anos tiveram como destino
sete negócios em que a dor de cabeça foi o maior retorno obtido pelo banco. Segundo
o Ministério Público Federal no Pará, o Bertin, frigorífico com R$2,5 bilhões em
financiamento, era suspeito de comprar carne de pecuaristas que atuavam am área
desmatada. Em 2007, o BNDES investiu R$1,4 bilhão no JBS-Friboi e se tornou seu
sócio. A empresa é investigada pelo Ministério Público de Rondônia por suspeita de
corrupção e fraude de embalagens. O frigorífico Independência se habilitou a receber
R$450 milhões em novembro. Quatro meses depois, entrou em recuperação judicial
(FOLHA DE SÃO PAULO, 2009a).
O Ministério da Agricultura vai investir R$1 milhão na implantação de um sistema de
geomonitoramento por satélite para fiscalizar o desmatamento de áreas preservadas e
fazer o rastreamento do gado no Pará. O custo anual de manutenção do sistema de R$
2,5 milhões será bancado inicialmente pelo Ministério, mas nos anos seguintes deverá
ser dividido com produtores, frigoríficos, e o BNDES (O ESTADO DE SÃO PAULO, 2009, p. 135).
INTRODUÇÃO
29
Os pagamentos por serviços ambientais são mecanismos regulatórios
que remuneram ou recompensam quem protege a natureza e mantém os
serviços ambientais funcionando para o bem comum. Constitui uma forma de precificar os produtos e serviços da natureza, atribuindo-lhes valor
e constituindo assim um mercado que deve proteger as fontes dos serviços
naturais, pois elas são finitas e sensíveis.
As florestas nativas até hoje têm preço avaliado somente pelos produtos gerados por elas, como a madeira, mas elas prestam diversos outros
serviços que também precisam ser remunerados, como a produção de ar
puro e de água potável, a proteção e a alimentação dos animais silvestres, o
abrigo para a biodiversidade e similares.
Os serviços ambientais, embora essenciais ao funcionamento do
planeta e, consequentemente, à nossa vida, não são incluídos nos custos
dos produtos em nossa economia. Como chegamos atualmente a um nível
inédito na história quanto ao grau de degradação ambiental, o custo dos
serviços ambientais precisa passar a integrar o cálculo do custo de produção de produtos com alto impacto ambiental, como o plástico, os combustíveis fósseis, o papel, os alimentos não irrigados como soja e carne, os
alimentos irrigados como arroz e frutas etc.
Uma das primeiras perguntas que surgem é: quem vai pagar a conta? Se não houver mecanismos públicos de regulação e controle, a tendência excludente da iniciativa privada será que as populações mais vulneráveis
paguem a maior parte da conta. Por isso, é necessário promover o controle
social para garantir que haja justiça ambiental, que os custos sejam assumidos por toda a sociedade e que as populações mais pobres sejam os primeiros beneficiários do pagamento pelos serviços ambientais.
Algumas das principais categorias de pagamento por serviços
ambientais atualmente em funcionamento são:
a) conservação de recursos hídricos: paga pela produção de água potável;
b) impostos ecológicos: pagam pela implantação e manutenção de áreas
de conservação;
c) compensação ambiental: remunera a população do entorno de gasodutos,
hidrelétricas e grandes projetos rodoviários pelas perdas ambientais;
d) subsídios a reservas extrativistas: renumera o uso sustentável dos recursos naturais;
e) sobrepreço de alimentos orgânicos: remunera adicionalmente os produtores pelo uso sustentável de recursos naturais na agricultura;
f ) geração de créditos de carbono: remunera pelo sequestro ou pela redução de emissão de gases de efeito estufa.
Uma das modalidades de pagamento por serviço ambiental que mais
rapidamente se expandiu no país e que mais riquezas está gerando é o
pagamento por créditos de carbono, originado no Protocolo de Quioto e
que visa reduzir os impactos das mudanças climáticas.
3 OS RISCOS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
A mudança global do clima está acontecendo ao nosso redor na
forma de impactos diversos. Alguns deles podemos verificar diretamente
em nosso entorno, outros têm acontecido em territórios mais distantes:
• o aquecimento global;
• a maior frequência e intensidade de eventos extremos;
• alterações no regime de chuvas;
• perturbações nas correntes marinhas;
• retração de geleiras;
• elevação do nível dos oceanos.
As maiores temperaturas médias anuais do planeta foram registradas
nos últimos anos do século XX e nos primeiros anos do século XXI. Não
há mais dúvidas de que a ampliação dessas mudanças é causada pelo aumento da concentração de certos gases na atmosfera, chamados de gases de
efeito estufa. Eles impedem a liberação para o espaço do calor recebido
pela superfície terrestre a partir do sol, gerando um aquecimento tal como
ocorre em uma estufa. Nas estufas, as superfícies de vidro impedem a saída
do calor que entrou no ambiente pelos raios solares.
30
MARKUS BROSE
Derrete a mais alta pista de esqui do mundo
Quando a geleira Chacaltaya despareceu, vítima do aquecimento global, extinguiu-se com ela também a mais alta pista de esqui do mundo. A perda neste ano
dessa geleira de 18 mil anos, nos Andes bolivianos, ameaça reduzir o abastecimento de água de 2 milhões de pessoas na região de La Paz. [...]
O Chacaltaya, que significa ponte de gelo na língua da etnia aimará, sucumbiu ao
aquecimento da temperatura no verão deste ano, quando suas duas últimas linguetas
glaciais se derreteram. Os cientistas haviam previsto seu desaparecimento para
2015, mas o aquecimento global acelerou muito o processo. [...]
31
Entre os gases de efeito estufa, os mais significativos são o dióxido
de carbono (CO2) e o metano (CH4), emitidos pela ação humana. A concentração de CO2 na atmosfera, que em tempos remotos era de 280 partes
por milhão, hoje já atinge níveis de 375 partes por milhão. Esse aumento
de gases na atmosfera, em especial o dióxido de carbono, é causado pela
crescente industrialização do planeta, que implica tanto no desmatamento
para expansão da agropecuária e da urbanização, quanto na queima de
combustíveis fósseis (petróleo, carvão mineral e gás natural) em motores
industriais, automóveis, geradores etc. Toda combustão lança fuligem no
ar. O motor a álcool emite menos, o do carro a gasolina dez vezes mais e o
movido a diesel, cem vezes mais fuligem.
Desde a Revolução Industrial, a temperatura média do planeta aumentou cerca de 0,6 graus Celsius, tendo esse fenômeno se acelerado recentemente. Apesar de haver muitas incertezas quanto aos impactos futuros
de fenômenos de tamanha complexidade, as previsões científicas indicam
que ocorrerá um aumento da temperatura média global na faixa de 1,4 a
5,8 graus Celsius até o final do século XXI Essa é, atualmente, a maior
ameaça à sobrevivência da humanidade.
Os efeitos em longo prazo prevêem: maiores perdas na agropecuária,
ameaça à biodiversidade, expansão de doenças, aumento da frequência e
intensidade de enchentes e secas, mudanças no volume de fluxos dos rios
com impactos nas hidrelétricas, alteração da pesca, inundação de planícies
costeiras, entre outros. Esses efeitos serão particularmente negativos em
países em desenvolvimento, e nestes, especialmente nas suas áreas mais
vulneráveis, geralmente as mais pobres. Ou seja, os impactos das mudanças climáticas serão mais fortes naquelas populações que menos contribuíram para a sua existência.
Historicamente, a humanidade já enfrentou ameaças em escala global
e teve relativo sucesso na sua superação. No final dos anos 1970, por exemplo, foi detectado o risco de que o buraco da camada de ozônio ameaçava
INTRODUÇÃO
O principal fornecimento de água de La Paz vem das águas das chuvas e do degelo
de geleiras tropicais na região da Cordilheira Real. O escoamento das geleiras
desemboca em dez usinas hidrelétricas que fornecem cerca de 80% da energia
elétrica da região (VALOR ECONÔMICO, 2009b).
expor uma parcela crescente da humanidade, das plantas e dos animais aos
efeitos nocivos dos raios solares. Em 1985, foi assinada a Convenção de
Viena sobre Proteção da Camada de Ozônio, a qual desencadeou um esforço mundial voluntário para a alteração dos processos industriais e para a
proibição do uso dos gases tóxicos que destroem o ozônio na atmosfera.
Tendo em vista os riscos ainda maiores originados pelas mudanças
climáticas, foi estabelecida a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre
Mudança do Clima, aberta para assinatura voluntária pelos países durante
a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992. Ao aderir à Convenção do Clima,
o Brasil – assim como os demais países – se comprometeu a mudar o seu
processo de desenvolvimento, alterando a forma como as empresas atuam
e como a economia do país é administrada, a fim de possibilitar o desenvolvimento sustentável.
Durante a Conferência de 1992, foi elaborado o plano para promover o desenvolvimento sustentável conhecido como Agenda 21. Nela, o
desenvolvimento sustentável é apresentado como o processo de mudança
que acontece na sociedade, em especial na economia, por meio da alteração do modo como as empresas produzem, como geram energia, como as
organizações públicas atuam na economia e como cada cidadão altera a
sua própria forma de consumir.
32
MARKUS BROSE
O Protocolo de Quioto
Os países signatários da Convenção do Clima se reúnem anualmente na Conferência das Partes (COP) para avaliar o avanço das ações de prevenção e adaptação à mudança do clima. Nos primeiros cinco anos de validade da Convenção
do Clima, muito pouco mudou de forma voluntária nas economias dos países.
O mundo produziu algo em torno de 38 bilhões de toneladas de gases de efeito
estufa em 2005, em um ritmo de crescimento de 1,6% ao ano desde 1990. Cerca
de 70% dessas emissões foram geradas por apenas dez grandes emissores (Estados
Unidos, União Européia, China, Rússia, Índia, Japão, Brasil, Canadá, México e
Indonésia).
Na assembléia da COP 3 realizada em 1997, na cidade de Quioto, no Japão, os
delegados desistiram de esperar por ações voluntárias e adotaram metas rígidas de
33
O Protocolo de Quioto merece destaque, pois a delegação brasileira
na COP 3, em 1997, propôs que uma das formas de redução das emissões
para que os países industrializados atingissem suas metas seria financiar
projetos em países de desenvolvimento. A proposta foi ampliada durante
as negociações e acabou sendo aceita sob o nome de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). O MDL consiste em projetos realizados em
países em desenvolvimento com investimentos vindos do exterior, geradores de créditos de carbono a ser comercializados no mercado europeu de
certificados de redução de emissões.
A ideia central do MDL está baseada no fato de que os gases de
efeito estufa agem na atmosfera para além das fronteiras nacionais, podendo o seu sequestro e redução se dar em qualquer lugar do planeta.
Os projetos MDL visam promover o desenvolvimento sustentável nos
países que os executam, recebendo para tanto financiamento dos países
que mais contribuíram para as mudanças climáticas, criando assim uma
ferramenta de promoção da justiça ambiental.
INTRODUÇÃO
redução das emissões de gases de efeito estufa. Esse conjunto de metas integra o
Protocolo de Quioto. Numa primeira etapa, essas metas são obrigatórias apenas
para os países mais industrializados (chamados de países do Anexo I), que devem
reduzir até 2012 suas emissões de gases de efeito estufa em média 5% abaixo do
nível de emissões medido em 1990. Até que um número mínimo de países tivesse
aderido voluntariamente ao Protocolo de Quioto, este entrou em vigor somente
em 2005.
Para que as metas das reduções sejam alcançadas, as pessoas físicas, as empresas e
os governos dos países industrializados precisam mudar seu padrão de comércio,
produção e consumo: poluir menos, consumir menos energia, utilizar menos produtos oriundos de petróleo como plástico e fertilizantes químicos, andar menos
de avião, comprar alimentos produzidos localmente, reduzir o uso do carro privilegiando o transporte público etc.
Aquele consumo de combustíveis fósseis que não pode ser eliminado precisa ser
compensado mediante investimento em ações que sequestrem os gases de efeito
estufa. Para tanto surgiram dois mercados: o mercado certificado, na sua primeira
fase somente na Europa, para aquelas pessoas jurídicas que por força de lei precisam reduzir suas emissões, e o mercado voluntário, onde toda pessoa física e jurídica pode comprar créditos de carbono espontaneamente.
34
MARKUS BROSE
O componente social: o Anexo III do MDL
Depois da aprovação da proposta brasileira do MDL no Protocolo de Quioto,
a Presidência da República, em reuniões preparatórias do Fórum Brasileiro de
Mudanças Climáticas, solicitou ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) que
constituísse com rapidez uma carteira de projetos-piloto de redução de gases
de efeito estufa. Em 2000 a Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos, do MMA, firmou convênio com o Centro Clima da COPPE/
UFRJ tendo como objetivo a definição de critérios de seleção e avaliação para
projetos de MDL.
Foram realizados diversos estudos de alcance nacional e internacional, bem como
seminários com representantes dos diversos segmentos da sociedade. Em 2002 o
MMA publicou uma proposta de critérios e indicadores de elegibilidade de MDL.
Com base nesse trabalho, a CIMGC – Comissão Interministerial de Mudança
Global do Clima, secretariada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, adotou
em setembro de 2003 o formulário denominado de Anexo III.
No Anexo III do documento de concepção do projeto (DCP), o proprietário do
empreendimento deve demonstrar como vai alcançar o conjunto de cinco requisitos obrigatórios de desenvolvimento sustentável para projetos MDL:
1) Contribuição para a sustentabilidade ambiental local – descrever como vai
prevenir e reduzir os impactos ambientais do novo empreendimento;
2) Contribuição para o desenvolvimento das condições de trabalho e a geração
líquida de empregos – avaliar o compromisso do projeto com o aumento do
nível de empregos diretos e indiretos;
3) Contribuição para a distribuição de renda – descrever os benefícios sócioeconômicos esperados do empreendimento;
4) Contribuição para a capacitação e o desenvolvimento tecnológico – avaliar o
grau de inovação tecnológica do projeto, a origem dos equipamentos, os
royalties e as licenças e a necessidade de assistência técnica do exterior;
5) Contribuição para a integração regional e a articulação com outros setores –
descrever a contribuição para o desenvolvimento e integração do território
de implantação com o entorno.
O relatório ‘Contribuição do Brasil para evitar a mudança do clima’ apresentado a
ONU em 2007, vai além, afirmando que o MDL deve contribuir para o “desenvolvimento sustentável local”. Vale ainda registrar, que os indicadores utilizados
pelo Anexo III são diferentes dos que o IBGE utiliza a partir da Agenda 21 e
publicados a cada quatro anos no relatório ‘Indicadores de Desenvolvimeno Sustentável do Brasil’.
O comércio de emissões de certificados oriundos de projetos MDL
é um sistema global de compra e venda de cotas de emissões de gases de
efeito estufa, em especial dióxido de carbono. Baseia-se na experiência do
sistema regulatório utilizado desde o início dos anos 1990, nos Estados
Unidos, para reduzir a chuva ácida por meio da comercialização de créditos do dióxido de enxofre entre empresas. Por esse modelo, o governo
distribui cotas de permissão de emissão de poluição para cada empresa. As
que conseguirem poluir menos do que suas cotas de emissão anual podem
vender a parte da cota não utilizada àquelas que não conseguem limitar
sua poluição. Neste modelo, a poluição passa a ter um preço e passa a
existir um estímulo claro para sua redução.
Esse modelo de ação mais lento, que gera um novo mercado para as
empresas, enfrenta críticas diante da experiência bem-sucedida de regulamentação e proibição gradual pelos órgãos ambientais, que é o modelo
mais utilizado na Europa. Mas, como o cumprimento do Protocolo de
Quioto depende da boa vontade e do consenso entre os países, tendo profundas implicações na economia e encarecendo os preços de muitos produtos e serviços, o mecanismo de mercado foi até agora o único aceito pela
maioria dos países. No Brasil, esse mercado começou recentemente, em
2005, quando foi autorizado o primeiro projeto MDL no país, mas vem
crescendo em ritmo acelerado.
35
Historicamente a iniciativa privada tem utilizado apenas um indicador de sucesso:
o lucro. A Comissão de Meio Ambiente das Nações Unidas cunhou em 1987 o
termo sustentabilidade, desencadeando o debate nas empresas sobre como viabilizar
negócios sustentáveis. Em 1994 o jornalista e consultor John Elkington criou o
conceito do triple bottom line (TBL), aqui entendido como os três indicadores
centrais, que se tornou um padrão internacionalmente aceito para as empresas e
foi transformado em diversos tipos de medidas, métodos e normas.
Os três indicadores implicam que a empresa tenha responsabilidade não apenas
para com os seus proprietários e acionistas, mas também perante a todos aqueles
atores que, diretamente ou indiretamente, são impactados pela empresa. Esses
atores são chamados de partes interessadas ou envolvidas com a empresa, em inglês stakeholders. Os três indicadores são:
• Pessoas – se refere a práticas éticas e benéficas da empresa tanto frente aos seus
funcionários como perante a comunidade no território onde atua.
• Planeta – se refere às práticas benéficas ao ambiente natural. A preocupação da
empresa deve ser a de reduzir ao mínimo o impacto de sua cadeia produtiva.
• Lucro – se refere ao benefício econômico gerado para toda a comunidade e não
apenas para os proprietários.
INTRODUÇÃO
Os três indicadores centrais: pessoas, planeta e lucro
36
MARKUS BROSE
Essa concepção acabou por promover a ideia da licença social, que tem sido utilizada principalmente no setor de mineração. As empresas que adotam o TBL buscam estabelecer desde o início da sua atuação o diálogo com as comunidades
envolvidas e as autoridades governamentais. A empresa passa a merecer a
credibilidade e o respeito da comunidade, ou seja, recebe a licença social, enquanto a relação custo/benefício do empreendimento for positiva para os atores sociais
envolvidos localmente. O futuro do negócio depende do acesso contínuo a recursos naturais, e também da confiança, boa vontade e autorização de terceiros. Para
assegurar essa confiança é necessário que a empresa adote um comportamento
consultivo, transparente e responsável. Ela deve se preocupar com a comunicação,
construir confiança e adequar seus procedimentos para além da mera filantropia.
Desde a criação, pelas Nações Unidas, em 1988, da rede voluntária de
pesquisadores denominada Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), o debate sobre as mudanças do clima esteve mais afeito aos
meteorologistas e ambientalistas. A inovação da conferência COP 13, realizada em 2007 em Bali/Indonésia, foi a presença em grande número de organizações sociais que demandaram maior participação no MDL e inclusão de
objetivos sociais nos projetos.
A emergência do tema da justiça social nas negociações internacionais do
clima ampliou a complexidade do debate e extrapolou os limites do ambientalismo. Nesse sentido, os projetos MDL constituem apenas a face mais visível
das ações de prevenção das mudanças do clima. O lado menos visível é constituído pelas ações de adaptação aos futuros impactos econômicos e sociais. A Federação CARE vem atuando na introdução e no teste de ferramentas de redução de
vulnerabilidade e adaptação à mudança do clima, como:
• com recursos doados pelo Governo do Canadá, a CARE Bangladesh promoveu, entre 2001 e 2006, um projeto em distritos rurais de Subarnabad,
na divisa entre Bangladesh e Índia. Como o grupo mais vulnerável à mudança do nível do mar e à alteração do ciclo de chuva são os trabalhadores
temporários nas fazendas de criação de camarão, em especial as suas mulheres e filhas, foram apoiadas as atividades de mapeamento participativo de
riscos, produção de planos de ação em emergências, capacitação de lideranças comunitárias e governos locais, recuperação de matas ciliares e
armazenamento de água da chuva1;
1
As lições do projeto foram sistematizadas em Pouliotte, Smit e Westerhoff (2009).
INTRODUÇÃO
37
• nas montanhas da Ásia Central o aumento da temperatura está acelerando o
derretimento das geleiras, reduzindo a disponibilidade de água nas vilas das
montanhas e gerando inundações nas planícies. Também com recursos do
Governo do Canadá, a CARE Tadjiquistão implementou, entre 2005 e 2007,
um projeto-piloto com o objetivo de aumentar a capacidade de resiliência
das mulheres, pois, devido à poligamia, muitas delas dependem sozinhas da
agricultura de subsistência. O projeto promoveu o mapeamento participativo
de vulnerabilidades em microbacias hidrográficas, o resgate do conhecimento tradicional sobre o tempo e as estações do ano, capacitação em gestão de
riscos em catástrofes naturais, construção de estufas para segurança alimentar, introdução de fogões a lenha mais eficientes e melhoria do isolamento
térmico das casas com materiais locais. As ferramentas de diagnóstico do
projeto estão sendo replicadas pela CARE em ações similares na África
(DAZÉ, 2008);
• com base nas lições aprendidas com seus projetos piloto, as CARE no Peru,
na Bolívia e no Equador estão participando do programa de adaptação pelas
comunidades rurais ao derretimento das geleiras no Andes, implementado
pelos governos dos três países e pelo Banco Mundial. Tradicionalmente, as
comunidades andinas são abastecidas com água pelas geleiras, mas com o
desaparecimento delas os agricultores familiares precisam aprender como
gerenciar a água nas regiões áridas das montanhas, estabelecer irrigação em
pequena escala, introduzir culturas mais resistentes à seca e participar ativamente dos novos comitês de gerenciamento de bacia.
Buscando ampliar estes esforços, a CARE Internacional integra a
rede Mangues para o Futuro (MFF) que, com base na experiência do
Tsunami em 2004, busca recompor os mangues no litoral dos países do
Oceano Índico e fomentar a maior capacidade de resposta a catástrofes
naturais pelas comunidades locais, e faz parte ainda da Aliança para o Clima, Comunidade e Biodiversidade (CCBA), que estabeleceu um padrão
de qualidade para projetos de carbono no mercado voluntário. A CARE
Brasil integra o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica e o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
Também o Governo Federal vem integrando cada vez mais as políticas públicas de mudanças climáticas com as políticas sociais, por exemplo, ao iniciar em 2009 as operações do Fundo Amazônia mediante a
aprovação dos cinco primeiros projetos de fomento ao pagamento por
serviços ambientais no valor de R$ 45 milhões.
Promovendo a capacidade de adaptação
Porque priorizar as famílias do meio rural?
Imperativo do desenvolvimento humano – a maioria das famílias mais pobres no
mundo está concentrada em áreas rurais e devem receber apoio para que seja possível o desenvolvimento com inclusão social.
Imperativo ambiental – o ativo engajamento das famílias vulneráveis do meio
rural é necessário para promover a adequada gestão dos ecossistemas.
Imperativo moral – as famílias pobres do meio rural são as que menos contribuíram para o aquecimento global, porém estão entre as mais vulneráveis.
A adaptação às mudanças do clima não deve ser planejada apenas de modo técnico, tais como realizar obras públicas, transferir tecnologia ou promover a educação
ambiental. Este tipo de ação pode ser importante, porém não são suficientes se as
famílias vulneráveis não tiverem maior autonomia de decisão e capacidade de gestão de entidades representativas de seus interesses. Nesse contexto, tem grande
relevância a melhoria do desempenho de governos locais. É importante garantir às
famílias vulneráveis acesso a ativos produtivos, representação adequada em políticas públicas, direito à participação e ao controle social, bem como acesso de seus
produtos e serviços ao mercado para garantir a renda familiar.
A capacidade de adaptação está diretamente relacionada à capacidade de aprender,
inovar e cooperar na comunidade visando maximizar o aprendizado grupal e disseminar as experiências. A resiliência tem papel central na adaptação às mudanças
e consiste na capacidade de lidar com, e se recuperar de, situações de emergências
ou choques. A capacidade de resiliência de uma família pode ser entendida como
tendo três dimensões: ecológica, social e econômica. Para ampliar a capacidade de
resiliência é importante garantir o acesso à informação e à formação (WORLD
RESOURCES INSTITUTE, 2009)
38
MARKUS BROSE
4 A DEMANDA PELA PARTICIPAÇÃO
O texto da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança
do Clima, firmado pelo Brasil na Eco 92, prevê entre as obrigações (Art. 4
Par.1-i):
Promover a cooperação na educação, treinamento e conscientização
pública em relação à mudança do clima, e estimular a mais ampla
participação nesse processo, inclusive a participação de organizações
não governamentais.
INTRODUÇÃO
39
O Brasil é uma democracia ainda jovem, contando apenas com uma
geração pós-ditadura, sendo que uma das principais demandas de sua
redemocratização ainda consiste na busca pela maior transparência e responsabilidade nos processos de desenvolvimento. Apesar de a redemocratização brasileira ser marcada pelo cumprimento das formalidades da
democracia, como realizar eleições e criar conselhos, leis e normas, ainda
experimenta diversas formas de autoritarismo em seu cotidiano. Por isso,
uma das principais demandas da sociedade civil brasileira está resumida na
frase “Democratizar a democracia!”, o que significa que, além das eleições,
é necessário vivenciar formas democráticas que possibilitem melhoria de
qualidade de vida das populações mais vulneráveis.
Desse modo, tendo em vista uma tradição autoritária das políticas
públicas, toda análise sobre desenvolvimento precisa utilizar padrões exigentes quanto aos impactos das políticas públicas e das ações da iniciativa
privada no país. Uma ferramenta útil para qualificar o debate sobre os
diferentes níveis de participação no desenvolvimento é a Escada de Participação, desenvolvida nos anos 1960 pela gestora pública Sherry Arnstein.
Sherry definiu oito níveis de participação existentes em projetos de
desenvolvimento e políticas públicas, descrevendo características diferentes em cada nível. Assim, uma iniciativa de promover a participação, como
criar um conselho municipal, realizar um audiência pública ou organizar
uma votação, pode não ser participativo na prática, mas, de acordo com
esta classificação, ser uma forma de manipulação ou ter um viés autoritário. No sentido do trabalho de Arnstein, aplicar uma ferramenta
participativa, por si só, não garante a participação legítima se o órgão público, a ONG ou a empresa não levar em conta nas suas decisões as demandas apresentadas pela comunidade. A Escada da Participação de
Arnstein constitui, assim, um tipo de termômetro que nos permite qualificar o real conteúdo das diferentes formas de participação que encontramos na prática.
Por exemplo, durante o ano de 2007, em um projeto conjunto com
o Instituto Polis, a CARE Brasil analisou as políticas públicas de revitalização
do centro da cidade de São Paulo e constatou que, na prática, apesar dos
vários mecanismos formais de participação e transparência previstos na
Constituição, na Lei de Responsabilidade Fiscal e no Estatuto das Cidades, nem o cidadão, nem a Câmara Municipal têm acesso detalhado aos
gastos do empréstimo concedido pelo Banco Interamericano. Demons-
trou também, pelo uso das categorias de análise da Escada de Participação
de Arnstein, que a revitalização do centro de São Paulo, independente do
partido eleito, tem tido, desde 2004, participação restrita ou nenhuma
participação (CYMBALISTA et al., 2008).
A tipologia de participação cidadã de Arnstein
40
MARKUS BROSE
Existe uma diferença fundamental entre passar pelo ritual vazio da participação e
dispor de poder real para influenciar os resultados do processo. Essa diferença foi
resumida de forma brilhante em um cartaz impresso na primavera de 1968 por
estudantes franceses para explicar as rebeliões de estudantes e trabalhadores:
Eu participo
Tu participas
Ele participa
Nós participamos
Vós participais
Eles lucram
O cartaz explicita a idéia fundamental de que participação sem redistribuição de
poder é um processo vazio e frustrante para os grupos desprovidos dele. A participação sem redistribuição de poder permite àqueles que têm poder de decisão
argumentar que todos os lados foram ouvidos, mas beneficiar apenas alguns.
A participação vazia mantém o status quo. [...]
Uma tipologia de oito níveis de participação pode auxiliar na análise dessa temática
confusa. Para efeito ilustrativo, os oito tipos de participação estão dispostos em
forma de uma escada, onde cada degrau corresponde ao nível de poder do cidadão
para decidir sobre os resultados. Os primeiros degraus da escada são 1) Manipulação e 2) Terapia. Esses dois degraus descrevem níveis de ‘não-participação’ que
têm sido utilizados por alguns no lugar da genuína participação.
[...] Subindo a escada estão níveis de poder do cidadão com graus crescentes de
poder de decisão. Os cidadãos podem participar de uma 6) Parceria que lhes permita negociar de igual para igual com aqueles que tradicionalmente detêm o poder. Nos degraus superiores, 7) Delegação de poder e 8) Controle cidadão, o cidadão
sem-nada detém a maioria nos fóruns de tomada de decisão, ou mesmo o completo poder gerencial (ARNSTEIN, 2002, p. 4-13).
Tendo em vista que os projetos de pagamento por serviços
ambientais visam promover a justiça ambiental, contribuindo para o desenvolvimento sustentável, esses projetos deverão atender aos mais altos
níveis de qualidade na promoção da participação. As famílias e as comunidades neles envolvidas, chamados de Stakeholders na linguagem da
gerência de projetos, devem participar ativamente do debate, do planejamento e, em especial, dos benefícios gerados por esses projetos, atingindo, assim, as mais altas escalas de qualidade pela Escada de Participação
de Arnstein.
A demanda por maior participação no MDL é ressaltada pelo fato
de que apenas um número muito limitado de empresas de consultoria
tem permissão para verificar e validar os documentos desse tipo de projeto no mundo. Porém, a limitação do mercado imposta pelas Nações
Unidas não tem se traduzido em maior participação popular no planejamento dos projetos. A renomada empresa norueguesa Det Norske Veritas
(DNV), por exemplo, chegou a perder seu registro junto às Nações Unidas, colocando em dúvida os projetos MDL de sua responsabilidade.
Um estudo publicado em 2009 pelo WWF analisou 900 projetos MDL
apresentados às Nações Unidas entre 2007 e 2009, e concluiu que, das
cinco empresas de consultoria que validaram ao menos 40 projetos cada
no mundo, apenas duas apresentaram alto desempenho. O que fortalece
a demanda dos atores locais tanto em serem ouvidos no planejamento,
como em partiparem dos benefícios dos projetos MDL.
5 SOBRE ESTA PUBLICAÇÃO
Uma série de estudos em escala global vem buscando promover
esses objetivos. O CD4CDM – Projeto de Fortalecimento Institucional
para o MDL, desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o
41
i) a elaboração e a execução de programas educacionais e de
conscientização pública sobre a mudança do clima e seus efeitos;
ii) o acesso público a informações sobre a mudança do clima e seus
efeitos;
iii) a participação pública no tratamento da mudança do clima e
de seus efeitos e na concepção de medidas de resposta adequadas; e
iv) o treinamento de pessoal científico, técnico e de direção.
INTRODUÇÃO
A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima prevê no seu Artigo 6 que os países signatários devem promover:
MARKUS BROSE
42
Meio Ambiente (Unep) publicou, em 2005, uma revisão da bibliografia especializada que vinha sendo publicada desde 1997 sobre o MDL.
O estudo conclui que o MDL – se deixado apenas sob controle das forças do mercado – não contribui de forma significativa para o desenvolvimento sustentável (OLSEN, 2005).
Em 2007, o WWF encomendou uma avaliação sobre o desempenho dos projetos MDL no mundo. O estudo elaborado pelo centro
de pesquisas alemão Öko-Institut ressalta que, geralmente, os projetos
MDL não apresentam benefícios ao desenvolvimento sustentável, pois
prevalece a preocupação dos proprietários em gerar o volume máximo
de créditos de carbono ao preço mínimo. A participação dos beneficiários no projeto é vista mais como um peso ou um fator de custo que
uma oportunidade para obter a licença social e prevenir impactos sociais
negativos.
Paralelamente, o IOB – Departamento de Avaliação de Operações
do Ministério das Relações Exteriores da Holanda publicou, em 2008,
uma avaliação do impacto de 44 projetos MDL financiados, total ou
parcialmente, com recursos públicos holandeses em diversos países, incluindo o Brasil. A avaliação ressalta que três quartos dos projetos não
tiveram impacto social, ou tiveram apenas benefício limitado para as
comunidades locais.
Uma vez que, em 1997, o Protocolo de Quioto criou os projetos
de MDL com base em uma proposta apresentada pelo Brasil, passados
dez anos de experiência e aprendizado, fica a seguinte pergunta:
No Brasil, os projetos MDL estão promovendo o desenvolvimento sustentável nos territórios onde eles foram implementados?
Esta pergunta busca identificar se as comunidades envolvidas com
os projetos MDL estão participando, ou seja, se estão se beneficiando da
nova riqueza gerada neste novo mercado. Para apoiar lideranças comunitárias e técnicos de ONGs e movimentos sociais a encontrar uma
resposta a essa pergunta, a CARE Brasil iniciou, em 2008, um esforço
de pesquisa e aprendizado sobre os impactos sociais de projetos MDL.
A maioria das análises aqui apresentadas não foi realizada diretamente
pela CARE Brasil, foram coletados e sistematizados textos já publicados
ou disponíveis na internet. As opiniões e pontos de vista dos representantes de órgãos públicos, empresas e demais atores sociais envolvidos
com MDL foram coletadas pelos respectivos autores de cada capítulo.
CIMGC: a responsabilidade pelo MDL
43
Em geral, as análises apresentadas nos capítulos deste livro demonstram que os projetos MDL no Brasil não estão gerando impactos sociais
significativos nos seus territórios. Nos piores casos, estão até gerando impactos negativos. Na classificação pela Escada de Participação de Arnstein,
a maioria dos projetos MDL aqui analisados está no degrau da não-participação, somente alguns dos estudos de caso chegam ao nível da participação restrita. Mas praticamente nenhum desses projetos MDL alcança o
nível da cogestão que seria necessário para caracterizar uma iniciativa de
desenvolvimento sustentável.
Um estudo conduzido na Universidade de Oxford no período de
2006 a 2007, baseado na análise de desempenho da CIMGC, enfatiza
que, não havendo necessidade de licença social para um MDL no Brasil, a
INTRODUÇÃO
De acordo com o Protocolo de Quioto cada país deve estabelecer uma Autoridade
Nacional Designada (AND) cuja função é aprovar, registrar, avaliar e promover o
MDL. A AND constitui o órgão superior do país frente à agência das Nações
Unidas que supervisiona o MDL no mundo, a UNFCCC - Convenção-Quadro
das Nações Unidas sobre Mudança do Clima cuja sede fica em Bonn/Alemanha.
A autoridade nacional designada do Brasil é a CIMGC - Comissão Interministerial
de Mudança Global do Clima, criada em 1999. Com reuniões a cada dois meses
e secretariada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, a CIMGC é composta por
representantes de 10 ministérios, além da Casa Civil, e goza de prestígio internacional pelo pioneirismo e seriedade de seu trabalho. O site da comissão na internet
possibilita uma maior transparência no ciclo dos projetos MDL, ao apresentar os
documentos de todos os projetos no país, nas versões em português e inglês.
O ciclo de registro e aprovação do MDL é relativamente caro e burocratizado,
baseado no trâmite de formulários. A CIMGC não realiza missões de campo, suas
decisões são baseadas nos documentos apresentados e a CIMGC não suspende a
comercialização dos créditos de empresas que não estejam beneficiando as comunidades do entorno.
O papel da CIMGC será cada vez mais relevante, tendo em vista que em março de
2009 o Banco Mundial aprovou um empréstimo no valor de U$ 1,3 bilhão, destinado ao Programa Nacional de Desenvolvimento de Políticas de Gestão Ambiental
Sustentável. No âmbito deste programa, o BNDES deve se tornar um dos principais financiadores de projetos MDL no país, com a meta de que seja implementada
uma carteira de projetos que somem a redução de 20 milhões de toneladas de CO2
equivalente/ano.
existência do licenciamento ambiental praticamente garante a aprovação
dos documentos do projeto. Segundo o autor, os critérios aplicados pela
CIMGC são genéricos, não especificando na prática o que significa desenvolvimento sustentável (COLE, 2007).
Importa ressaltar que os projetos MDL são empreendimentos privados que têm distribuído seus resultados financeiros para os sócios, para os
consultores, para os avaliadores; no entanto, não têm obrigação de distribuir
parte da nova riqueza para as comunidades locais. Nos casos em que parte
dos recursos gerados pelo MDL vai para fundos públicos, eles também têm
estado fora do controle pelo cidadão, sendo alocados de acordo apenas com
as prioridades dos órgãos públicos envolvidos. Em outras palavras, a maioria
dos projetos MDL no país ainda segue o paradigma histórico de nosso crescimento econômico de que os fins justificariam os meios.
44
MARKUS BROSE
6 SUGESTÕES PARA O DEBATE SOBRE O FUTURO DO MDL
O desenvolvimento sustentável envolve todos os processos na sociedade, em especial da iniciativa privada, que sejam viáveis economicamente,
justos socialmente e corretos ambientalmente. Ele exige que empresas, produtores rurais e indústrias mudem seus procedimentos e ajustem seus preços. Na medida em que bens e serviços ambientais passam a ter um custo, a
estrutura de preços no mercado muda. Uma análise do impacto desses custos está sendo preparada por um consórcio de instituições de pesquisa no
Estudo Econômico das Mudanças Climáticas no Brasil2.
Um exemplo recente da importância desse debate está na decisão
dos Ministérios do Meio Ambiente e das Minas e Energia de que as novas
usinas termoelétricas a serem instaladas no país têm de compensar suas emissões de gases de efeito estufa, o que gerou protestos pelo setor, pois as projeções demonstram que uma nova usina de 100MW teria que investir algo
em torno de R$200 milhões apenas para compensar suas emissões.
Segundo o Parágrafo 2º do Artigo 12 do Protocolo de Quioto, os projetos de MDL são empreendimentos que promovem o desenvolvimento sustentável: “O objetivo do mecanismo de desenvolvimento limpo deve ser assistir
às Partes não incluídas no Anexo I para que atinjam o desenvolvimento sus-
2
Site: www.economiadoclima.org.br. Acessado em: abr. 2009
3
Texto de apresentação da Agenda 21 no site: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 19
fev. 2009
45
A Agenda 21 Brasileira é um processo e instrumento de planejamento participativo para o desenvolvimento sustentável e que tem como
eixo central a sustentabilidade, compatibilizando a conservação
ambiental, a justiça social e o crescimento econômico. O documento é resultado de uma vasta consulta à população brasileira, sendo
constituído a partir das diretrizes da Agenda 21 global. Trata-se,
portanto, de um instrumento fundamental para a construção da
democracia participativa e da cidadania ativa no país3.
INTRODUÇÃO
tentável, [...]”. O MDL constitui o primeiro instrumento criado pelas Nações
Unidas que integra aspectos de mudanças climáticas com o desenvolvimento.
As “Partes não incluídas no Anexo I”, na linguagem técnica desses
acordos, se refere a países como o Brasil. Reformulando o parágrafo, o
objetivo do mecanismo de desenvolvimento limpo deve ser assistir ao Brasil para que ele atinja o desenvolvimento sustentável. Então, como medir o
desenvolvimento sustentável desses projetos?
Desenvolvimento sustentável são as mudanças, os projetos, as empresas, as cadeias produtivas que atendem às nossas demandas hoje sem comprometer ou colocar em risco as demandas futuras de nossos filhos e netos.
Não podemos destruir o solo, o ar, as florestas, os rios, os recifes, os mangues
de tal modo agora que o globo se torne poluído, degradado e desértico quando
as próximas gerações forem utilizá-lo. Nós tomamos emprestado o meio
ambiente de nossos netos, e temos que devolvê-lo em poucos anos!
Dessa forma, o desenvolvimento de modo sustentável é diferente
do crescimento econômico que experimentamos desde a política de industrialização do país iniciada pelo governo Vargas, pois, para que exista desenvolvimento sustentável, não é possível que continuemos sendo passivos,
nem que aceitemos a contínua reprodução da pobreza e da exclusão social
em nossa sociedade. O desenvolvimento sustentável exige que sejamos ativos em diferentes formas, consumidores conscientes, leitores críticos, cidadãos ativos, militantes pela nossa qualidade de vida, adeptos do controle
social sobre empresas, governos e ONGs. O Governo Federal reafirma essa
exigência quando define:
MARKUS BROSE
46
Assim, a combinação entre o uso racional dos recursos naturais e a
inclusão social deixou de ser um debate partidário, ideológico e apaixonado como fora nos anos 1970 ou 1980. Desde que o Brasil se tornou signatário da Convenção-Quadro das Nações Unidas de Mudança do Clima,
esse deixou de ser um compromisso do cidadão para se tornar dever de
Estado. O Protocolo de Quioto se tornou lei no Brasil por meio do Decreto n. 5.445, de 12 de maio de 2005, publicado no Diário Oficial da União
no dia seguinte.
Porém, uma análise dos Anexos III disponíveis no site da CIMGC
na internet revela que a maior parte dos projetos de MDL no país se baseia
no conceito denominado pelos economistas de trickle down, isto é, o projeto, após ser instalado, simplesmente por estar lá, quase que naturalmente, sem necessidade de esforço complementar, vai promover o bem público
e a qualidade de vida da população. Esse conceito, mediante a experiência
brasileira com a industrialização desde 1930, incluindo duas ditaduras,
permite-nos as mais variadas dúvidas e questionamentos.
Em vários dos Anexos III que estão publicados na internet, os cinco
requisitos são respondidos pelos proprietários dos projetos sem profundidade, mediante poucas frases ou curtos parágrafos. No caso do requisito 3,
por exemplo, alguns Anexos III se limitam a listar os impostos que serão
pagos.
John Tyndall foi um dos primeiros cientistas a descrever nos anos
1860 os efeitos dos raios solares na atmosfera e as mudanças que poderiam
ocorrer se houvesse alteração na composição química do ar. Em 2000, as
principais universidades do Reino Unido formaram um consórcio de pesquisa com o nome deste cientista, constituindo um dos principais centros
de referência em mudanças climáticas do globo.
O Centro de Pesquisa Tyndall publicou, em 2007, uma avaliação
de desempenho dos projetos MDL no mundo e chegou à conclusão de
que, embora todos os projetos analisados reduzem emissões de gases de
efeito estufa, ou sequestram gases da atmosfera, não produzem quase nenhum outro benefício para a sociedade. Segundo o estudo, os critérios
para aferir a contribuição ao desenvolvimento sustentável dos projetos são
muito genéricos, e a maioria dos governos (Índia, Brasil e África do Sul),
ao aprovarem os empreendimentos, não supervisionam o cumprimento
das cláusulas sociais, em outras palavras, não controlam se efetivamente
ocorre o desenvolvimento sustentável.
INTRODUÇÃO
47
Um ano mais tarde, a Secretaria Executiva da CIMGC confirmou
esta análise, ao contribuir com um estudo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Unep) na busca de sugestões para o aperfeiçoamento global dos projetos MDL, informando, quanto à participação
popular no Brasil, que a Comissão publica todos os projetos na internet
com o objetivo de que os operadores do projeto sejam obrigados a cumprir
com as promessas feitas nos documentos. Em outras palavras, o Governo
Federal espera que a opinião pública (jornalistas, pesquisadores, lideranças
comunitárias e organizações da sociedade civil) leiam esses documentos e
cobrem das empresas operadoras dos projetos MDL o efetivo cumprimento do desenvolvimento sustentável.
O quadro até aqui apresentado não difere muito do cenário identificado pelos autores dos capítulos apresentados neste livro. Com raras exceções, os projetos nacionais de MDL não parecem estar atendendo ao seu
principal objetivo: promover o desenvolvimento sustentável nos territórios onde estão instalados. Por ser uma ferramenta do mercado, a maioria
dos projetos MDL se concentra em gerar lucro para seus operadores, com
limitada participação, sem envolvimento comunitário e com pouca transparência.
É interessante notar que diversos técnicos de organizações comunitárias, ONGs e militantes de movimentos sociais, quando entrevistados
para este livro repetiram: “Este deve ser o único projeto de MDL do mundo que recebe tantas críticas e enfrenta tanta resistência pelas organizações
da sociedade civil”.
Quando os entrevistados se expressam de forma similar no norte de
Minas, na periferia de São Paulo e no interior de Santa Catarina, não se trata
mais de coincidência, pois há um padrão, uma tendência, que merece ser
analisada. E isso significa que o MDL tem problemas estruturais quanto
ao seu componente social. Não é mera coincidência que ONGs e movimentos sociais distantes uns dos outros duvidem de que a monocultura de
cana de açúcar ou de eucalipto, para dar dois exemplos de projetos MDL,
sejam considerados projetos de desenvolvimento sustentável. Assim, adquire
relevância uma nova pergunta:
Como tornar os projetos de MDL da segunda fase do mercado de
carbono socialmente mais justos?
As análises apresentadas neste livro não parecem ser suficientes para
responder a essa questão, a qual demandaria um projeto de pesquisa pró-
prio. Mas certamente podemos ter algumas pistas a partir da sistematização
de lições aprendidas até aqui. Algumas propostas são resumidas a seguir.
6.1 Recomendações para o Diálogo com a CIMGC
6.1.1 Manter o pioneirismo do Brasil: assim como o país foi pioneiro no
debate global sobre mudanças climáticas tanto na proposição do MDL
como na implantação dos mecanismos que possibilitaram a efetivação
de uma carteira-piloto de projetos, a CIMGC deveria dar continuidade ao pioneirismo e liderar o debate sobre o futuro do MDL incluindo o fortalecimento do componente social no tripé da sustentabilidade.
Na proteção do futuro da humanidade, não é mais aceitável que falte
‘apenas’ o componente social quando os componentes econômicos e
ambientais estejam adequadamente salvaguardados.
48
MARKUS BROSE
6.1.2 Qualificar os critérios de adicionalidade: entre os critérios de
análise de elegibilidade de um projeto de MDL, deve constar uma
análise rigorosa sobre a qualidade e a eficácia da dimensão de sustentabilidade. Uma empresa que, no Anexo III, se propõe simplesmente a
seguir a legislação fiscal, ambiental e trabalhista, não apresenta um
projeto com critério de adicionalidade. O cumprimento da legislação é o mínimo que a empresa deve realizar e, ao fazer o mínimo,
cabe a dúvida se o seu projeto é um empreendimento de desenvolvimento sustentável.
6.1.3 Valorizar a experiência da sociedade civil brasileira: ao estabelecer que a participação nos projetos de MDL se restrinja à publicação
por 30 dias dos documentos do projeto na internet, em um país
onde apenas 12% das famílias das classes C e D têm acesso à internet
e cerca de 60% da população apresenta analfabetismo funcional, a
CIMGC estabeleceu um retrocesso ante aos mecanismos participativos já testados e introduzidos na sociedade. Graças à atuação de
uma sociedade civil rica e diversificada, a democracia brasileira vem,
desde o fim da ditadura, tornando-se cada vez mais participativa.
Experiências como conselhos regionais de desenvolvimento, conselhos municipais de gestão, Estatuto das Cidades, orçamento
participativo, consultas populares e Observatório da Cidadania são
iniciativas que inovaram no cenário nacional e internacional e deveriam ser levadas em consideração no desenho dos mecanismos de
participação do MDL.
6.1.4 Promover amplo debate sobre uma versão atualizada do Anexo III:
passada uma década de debate, estudos e experiências práticas com o
MDL no país, que merece todo o mérito pelo pioneirismo do processo, parece ser relevante a realização de um amplo processo de consulta à comunidade científica e à sociedade civil, sobre a revisão e a
qualificação das metas sociais dos novos projetos MDL.
49
6.1.6 Ampliar os mecanismos de diálogo com a sociedade: a formulação
e a implementação da política nacional de projetos MDL constitui
responsabilidade de um grupo seleto de funcionários públicos federais
que desfrutam de renome internacional pela alta qualidade de seu trabalho, lotados em Brasília, onde analisam os documentos dos projetos
e constituem o ponto de referência das negociações internacionais.
Esse isolamento certamente favorece a ausência de influências políticas ou comerciais na tomada de decisão e garante a lisura do ciclo de
aprovação dos projetos de MDL pelo qual o Brasil se tornou conhecido. Porém, ele também evita que a política nacional esteja conectada
aos acontecimentos nos territórios onde o MDL está sendo executado, sem maior contato com a sociedade local nem diálogo com as
comunidades envolvidas. Na próxima fase do mercado de carbono,
será importante criar conselhos ou comitês de trabalho junto à CIMGC
INTRODUÇÃO
6.1.5 Promover a profissionalização da elaboração do Anexo III: as
empresas do MDL devem promover o desenvolvimento sustentável.
Assim, os empreendimentos MDL não constituem empresas comuns
que apenas geram lucro e ações de responsabilidade social. A produção do Anexo III não deveria ser deixada a critério de profissionais
sem experiência na área e que consideram que filantropia ou caridade são suficientes para combater a pobreza. O Anexo III deve envolver
tanto profissionais externos às empresas de consultoria, qualificados
no tema, como prever os custos correspondentes à sua montagem,
com o objetivo de garantir uma alta qualidade na definição do componente social do novo empreendimento.
nos quais as organizações da sociedade civil local possam ter assento e
participar da política nacional de mudanças climáticas para que sejam
ouvidas mais vozes e outros pontos de vista.
6.1.7 Criar mecanismos de diálogo com o cidadão: tanto pela importância dos projetos MDL, como pelo seu potencial impacto nas populações do entorno, importa criar uma ouvidoria na CIMGC, acessível a
todo cidadão, como ponto de contato para informações, reclamações
e consultas. Nem todo cidadão está organizado em associações ou participa de movimentos sociais. Essa nova unidade organizacional deve
ter o compromisso de agilizar o atendimento das dúvidas e promover
a solução dos impasses. Deve ter um processo simples e transparente
para receber, identificar, registrar e solucionar críticas de atores locais.
O procedimento deve ser de baixo custo, permitindo tanto denúncias
diretas como anônimas, se for o caso, seguido de um processo
estruturado de investigação das denúncias, publicação dos resultados,
para gerar mudanças efetivas de procedimentos.
50
MARKUS BROSE
6.1.8 Contribuir para qualificar a cobertura da mídia: as notícias e as
manchetes sobre mudanças climáticas ainda estão afeitas ao sensacionalismo. No sentido de qualificar o debate público sobre projetos
MDL, será importante fornecer aos centros de formação de jornalistas, radialistas e profissionais correlatos informações qualificadas para
uma análise e apreciação externa da evolução desse setor, bem como
capacitar radialistas comunitários para que contribuam com a qualificação da opinião pública local. Ampliando, dessa forma, as oportunidades de controle social para o cidadão.
6.1.9 Atualizar os parâmetros de qualidade dos EIA/Rima: diversos
projetos MDL que enfrentam protesto social e causam comoção nos
territórios de sua instalação, cumpriram as etapas formais de
licenciamento ambiental com documentos e estudos de baixa qualidade. Na prática, não tem havido punição consequente e economicamente relevante para este tipo de falha no sistema, salvo a eventual
revisão dos documentos e apresentação em nova versão. Este contexto coloca em dúvida os fundamentos do MDL e coloca em risco a
qualidade dos créditos gerados no Brasil.
6.1.10 Tornar a monitoria do impacto social obrigatória: a componente social deve ser monitorada com o mesmo rigor utilizado no cálculo e na medição das toneladas de carbono evitadas pelo
empreendimento. Esta monitoria deve ser transparente e acessível às
organizações locais.
6.2 Recomendações para o Diálogo com as Empresas
6.2.3 Prever ações sociais de alto impacto no orçamento: o orçamento
do projeto MDL deve prever entre seus investimentos também a
aplicação de recursos significativos no componente social. O empreendimento deve promover ao longo da sua existência ações de desenvolvimento local de alta qualidade, incluindo aí, tanto
51
6.2.2 Destacar a importância do Anexo III: para que no futuro o componente social do tripé da sustentabilidade tenha o mesmo peso que
o componente econômico e o componente ambiental, será importante ampliar, qualificar e valorizar o Anexo III. Ele deve deixar de
ser um mero formulário anexado obrigatoriamente ao projeto para
cumprir uma exigência legal e se tornar, pela ação da CIMGC e das
empresas, uma ferramenta de análise e comunicação com o mesmo
peso que o orçamento ou o relatório dos validadores externos quanto ao carbono.
INTRODUÇÃO
6.2.1 Qualificar o conceito de social: nossa sociedade tem uma tendência de desconsiderar o componente social por conta da tradição do
assistencialismo. Nossa democracia é conhecida por aliar a democratização política com a concentração econômica. Isso passou a
mudar com a atual Constituição, e em especial com a Lei Orgânica
de Assistência Social (Loas), as quais consideram a assistência social
um direito, não mais um favor ou uma esmola. Nesse sentido, o
conceito de ‘social’ nos futuros projetos de MDL deveria ir muito
além de projetos pontuais de baixa qualidade, como caridade,
filantropia ou cursos de corte e costura, de garçom e de padeiro;
deveria, sim, promover o empoderamento social, econômico e político das comunidades do entorno do projeto rumo a altos indicadores de desenvolvimento humano.
internamente, a qualidade de vida dos funcionários, como externamente, o desenvolvimento humano das comunidades do entorno.
Esses investimentos para promover a inclusão social devem ser realizados tanto com recursos dos investidores, como com a destinação
de uma parcela de ao menos 20% dos ganhos auferidos com a
comercialização dos créditos de carbono.
6.3 Recomendações para o Diálogo com a Sociedade Civil
52
MARKUS BROSE
6.3.1 Auditoria social externa e de qualidade: o componente social deve
ser tratado com o mesmo rigor que o componente econômico e o
componente ambiental do MDL. Dessa forma, além da verificação da
contabilidade por auditores independentes e da validação externa das
toneladas de carbono calculadas, o projeto também deve passar por
rigorosas avaliações externas quanto à sua dimensão social. O investimento social deve ser auditado periodicamente quanto à sua efetividade
e qualidade, para além de ações pontuais de filantropia ou caridade.
6.3.2 Qualificar os indicadores: uma grande obra atrai temporariamente
um grande número de operários para a sua construção. Esses operários,
em geral, são mal remunerados, pouco dinamizam a economia local e,
assim que podem, migram para a próxima obra. Quando permanecem
no local, em geral constituem novas favelas. A construção de Brasília
representa um exemplo hoje clássico desse padrão de exclusão social
mediante o pagamento de baixos salários. Nesse sentido, importa qualificar os indicadores de desenvolvimento social utilizados no Anexo III
do MDL. No quesito empregos, por exemplo, é necessário detalhar se
os postos de trabalho gerados pelo novo empreendimento são temporários ou permanentes e, além disso, se são de alta qualidade ou de baixa
remuneração. A prática demonstra que a mera geração de empregos
temporários de baixa qualidade, por si só, sem medidas mitigadoras e
compensatórias, não gera desenvolvimento local, ao contrário, pode reduzir os índices locais de desenvolvimento humano.
6.3.3 Qualificar o processo de consulta pública: mesmo que o procedimento brasileiro de consulta seja internacionalmente reconhecido e
elogiado, e pareça ser o mais avançado na comparação com os proces-
sos de análise e registro de projetos MDL na Índia ou na China, onde
há pouca ou nenhuma participação, corremos o risco de estarmos nivelando por baixo. Com base na experiência de nossa democratização,
devemos aspirar aos mais elevados índices de participação na Escada de
Arnstein, por isso consultar apenas um pequeno grupo seleto e fixo
de ONGs sobre o MDL ainda não parece ser um processo de participação satisfatório. Nos futuros projetos MDL, será necessário envolver ativamente os atores locais, não somente prefeitos e autoridades
públicas, com a finalidade de promover a efetiva integração da sociedade civil local no debate e no conflito sobre os benefícios, custos e
prejuízos que o novo empreendimento irá causar localmente.
6.3.6 Informar a atuação dos bancos públicos: os projetos MDL, assim
como os projetos de geração de energia no país, em geral não são
viáveis sem financiamento público. Este financiamento pode ser con-
53
6.3.5 Qualificar o debate sobre a matriz energética: a afirmação reiterada pela mídia diante da opinião pública de que a matriz energética
nacional é limpa, apaga da memória coletiva as perdas ambientais e
os graves impactos sociais gerados pelas hidrelétricas nas últimas décadas. Nesse sentido, importa realçar as dimensões econômica, ecológica e social do que vem a ser energia limpa, visando qualificar o
debate e permitir uma análise mais criteriosa de como a matriz
energética impacta o desenvolvimento sustentável. O fim não pode
continuar justificando os meios em nosso desenvolvimento.
INTRODUÇÃO
6.3.4 Ampliar o debate para além do ambientalismo: as mudanças climáticas são um fenômeno de tamanha magnitude e risco para a vida
no planeta que deveriam ser retirados os rótulos da meteorologia ou
do meio ambiente para esse tema, que deveria passar a ser discutido
como uma ameaça à nossa economia e ao nosso desenvolvimento como
um todo. Assim, o debate sobre os projetos MDL, bem como sobre
novos projetos de adaptação, deveriam no futuro incluir muito mais
atores que os órgãos públicos ou as organizações da sociedade civil
identificadas como ambientalistas. Será necessário debater, analisar e
planejar os projetos, tanto de adaptação, como de MDL, no âmbito
das ações de desenvolvimento humano.
54
MARKUS BROSE
cedido diretamente, via bancos públicos de desenvolvimento como
o BNDES, BNB, BRDE e similares, ou então indiretamente, via a
participação acionária do Brasil em bancos internacionais de desenvolvimento, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano, a
Corporação Andina de Fomento (CAF), o Banco do Sul e similares.
O financiamento aprovado pelo Banco Mundial em março de 2009
vai ampliar este papel dos bancos públicos na viabilização do MDL.
Como as linhas de financiamento dos bancos públicos têm taxa de
juros abaixo do mercado, elas embutem um subsídio da sociedade
como um todo a estes projetos. Este subsídio merece a devida transparência, que deveria não apenas ser precificada e auditada pelo TCU,
mas também acompanhada e analisada pelas organizações da sociedade civil.
6.3.7 Rever a estrutura de custos: atualmente, o custo de produção de
um certificado de redução de emissão equivalente a uma tonelada de
CO2 no Brasil contempla apenas os custos diretos do empreendimento e seu registro. Mas existe uma série de custos adicionais, por
exemplo, para gerar o marco regulatório que viabiliza a produção
deste certificado, incluindo a manutenção da CIMGC, as delegações brasileiras nas negociações internacionais, os congressos, conferências e eventos similares realizados no país, o fomento público à
pesquisa científica e bolsas de pesquisa, entre outros. Adicionalmente,
o Estado arca com uma série de custos para viabilizar a operacionalização do crédito, incluindo os custos do Ministério Público e da
Justiça para ajuizar restrições às ações das empresas, as ações policiais em ordens de despejo e prisão de militantes, as custas judiciais
para processar ONGs e conter a pressão sobre as empresas, os inúmeros laudos e perícias encomendados pelo Ibama, as despesas para
elaboração e posterior revisão de estudos ambientais de baixa qualidade, entre outros. O cômputo dos investimentos pela iniciativa
privada, mais a soma dos dispêndios pelo setor público, é que possibilitaria à opinião pública conhecer o real custo para colocar no mercado um certificado de redução de emissões. E uma vez precificados
os gastos públicos necessários para viabilizar um projeto de MDL,
será possível um saudável debate sobre a relação custo/benefício dos
projetos MDL para toda a sociedade e, consequentemente, uma aná-
lise qualificada se o preço pago por tonelada pelos compradores do
mercado europeu compensa a realização do projeto para a sociedade
brasileira.
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PARTE I
ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS
COM ROYALTIES
1.1
POBRE MUNICÍPIO RICO
Leonardo Sakamoto, Maurício Reimberg
No coração do Estado do Amazonas, banhado pelo rio Solimões,
Coari era igual a qualquer outro município no meio da floresta, com uma
pequena população. A realidade local começou a mudar quando foram
descobertos petróleo, de excelente qualidade, e uma imensa jazida de gás
natural cerca de três mil metros abaixo do solo. A partir daí, a Petrobras
implantou em suas terras a Província Petrolífera do Rio Urucu, tornando
possível a prospecção, o transporte e o escoamento do material até o
Solimões e, de lá, para a Refinaria de Manaus (Reman).
Ao todo, o gasoduto Urucu-Coari-Manaus possui 661km de extensão. O segundo trecho, que liga Coari à capital do Amazonas, está em fase
final de construção. Ele começou a ser feito em junho de 2006 – o início
da operação comercial está previsto para outubro de 2009. Os investimentos estimados na obra são de cerca de R$3,5 bilhões. O objetivo do duto é,
num primeiro momento, suprir a cidade de Manaus de gás natural destinado à geração de energia elétrica.
Do primeiro poço, construído em 1986, até hoje, Coari multiplicou seu orçamento. Em 2001, eram R$19,14 milhões em royalties transferidos pela Petrobras à administração municipal, além de R$ 1,25 milhão
na forma de participação especial – paga quando há grande volume de
produção ou rentabilidade. No ano passado, esse montante atingiu a marca de R$51,4 milhões. Para 2009, a previsão da prefeitura é de que o repasse chegue a R$84 milhões.
Esses valores, divulgados pela Agência Nacional do Petróleo (ANP),
devem crescer ainda mais quando o gasoduto estiver pronto. Dos muni-
LEONARDO SAKAMOTO; MAURÍCIO REIMBERG
62
cípios com exploração continental no país, Coari é o que mais recebe
royalties, e no ranking geral perde apenas para os da região da bacia de
Campos, no estado do Rio de Janeiro.
Contudo, essa fartura de recursos não alterou a qualidade de
vida de seus moradores. “A cidade passou a receber muito dinheiro,
mas também muita gente. A população que vivia ao redor, espalhada,
migrou para o centro”, analisou em 2002 o geógrafo Aziz Nacib
Ab’Sáber, professor emérito do Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo (USP). Da mesma forma que o orçamento,
a população também foi se multiplicando, e hoje são cerca de 100 mil
habitantes na busca pelo seu quinhão do Eldorado negro. Como não
havia estrutura para isso, cresceu a prostituição, e doenças como a
malária proliferaram. A cerca de dois quilômetros do porto da Petrobras,
no rio Solimões, a iluminação do terminal e a movimentação das embarcações afastaram os peixes, que eram fonte de renda e alimentação
para a população ribeirinha.
Ao mesmo tempo, a compensação financeira pela exploração do
subsolo não foi sentida pela população mais vulnerável. “Não houve mudança significativa com a vinda da Petrobras. Nas comunidades por onde
passa o gasoduto, as pessoas não sabem para quem vão os benefícios”,
afirma Joércio Gonçalves Pereira (2009), bispo da Prelazia de Coari.
“Quando vem alguma autoridade importante, eles [a prefeitura] investem numa comunidade e falam que todas as outras são do mesmo jeito.
Isso não é verdade”.
Segundo o bispo de Coari, há diversas comunidades que não têm
escolas nem professores disponíveis. “As aulas são dadas dentro da igreja
ou debaixo de árvores. No ano passado, uma comunidade teve cinco dias
de aula no ano inteiro por falta de professor”, conta Joércio. O município reúne 18 mil alunos oficialmente matriculados no Ensino Fundamental. A cidade não possui biblioteca nem museu.
A situação social de Coari é um dos principais alvos das críticas. Há reclamações sobre a falta de saneamento básico, de água potável e o acúmulo de lixo nas vias. Os moradores convivem num
contexto de elevado consumo de bebidas alcoólicas e drogas, sobretudo maconha e cocaína. Diante do quadro de precarização, cresce o
número de casos de doenças sexualmente transmissíveis, como a Aids,
além da violência.
POBRE MUNICÍPIO RICO
1.1
63
“Em muitas comunidades foi feito o poço artesanal, mas se o motor
pifa, quem vai consertar? Muitos poços estão quebrados e as pessoas bebem água do Solimões”, explica o bispo. Nas comunidades rurais, a população sobrevive com o cultivo de mandioca e a produção de farinha,
além do cultivo de banana, mamão e maracujá. Entre os funcionários
públicos locais, a situação não é muito diferente: desde dezembro de
2008, eles recebem os salários parcelados.
Segundo o secretário de Comunicação de Coari, Walcione Tavares
(2009), “os benefícios serão mais efetivos após a inauguração da obra do
que com a construção propriamente dita”. No entanto, ele argumenta
que houve um aquecimento da economia local, com geração de emprego, expansão do setor de material de construção e fortalecimento da rede
hoteleira e dos restaurantes.
O secretário informa ainda que os royalties são utilizados na
melhoria da rede de educação e saúde, no fortalecimento da infra-estrutura, na manutenção da malha viária e na geração de energia para as 280
comunidades rurais. Na opinião de Tavares (2009), os recursos vindos
da obra trouxeram o “progresso” a Coari, apesar dos problemas sociais
“inerentes” ao desenvolvimento.
Com a proximidade do fim da construção, centenas de pessoas estão perdendo os seus empregos. O efetivo direcionado ao gasoduto chegou
a seis mil trabalhadores. A Petrobras (2009) diz que 70% do pessoal empregado nas obras vieram das comunidades ribeirinhas e de pequenas cidades no meio da floresta. A Prefeitura de Coari, por sua vez, promete
manter parte da mão-de-obra no setor de manutenção e serviços.
Os trabalhadores do gasoduto atuam por turno, com longas temporadas dentro da mata e outras na cidade. Os operários ficam alojados
num Terminal Aquaviário, a quarenta minutos de barco da cidade. Segundo
a Petrobras, é proibido o deslocamento de trabalhadores à noite, a não
ser em casos de emergência. A cada trinta dias, as pessoas que são de fora
do Estado ganham nove dias de folga.
Para Joércio, a Petrobras é a principal beneficiada com a obra,
pois diversifica a sua produção além do eixo Rio-Santos, operando petróleo e gás de boa qualidade. “Já Coari está jogando fora o seu momento de desenvolvimento”, lamenta. “Onde você recebe muito dinheiro, há
a tentação de não investir, não criar um infra-estrutura, porque já há um
ganho fácil. Outro perigo é a corrupção”.
64
LEONARDO SAKAMOTO; MAURÍCIO REIMBERG
1 DENÚNCIAS
Em maio de 2008, uma grande ação da Polícia Federal (PF) sacudiu
o cenário político de Coari. A Operação Vorax, alusão a uma bactéria que
se alimenta de petróleo, investigou uma quadrilha acusada de participação
num suposto esquema de desvio de verbas públicas na prefeitura local.
Segundo a PF, a organização criminosa se apropriava de recursos repassados pelo governo federal e pela Petrobras referentes à exploração de petróleo e gás no município.
A partir de denúncias apresentadas pelo senador Jefferson Peres
(PDT-AM), morto em maio de 2008, e pelo deputado Francisco Praciano
(PT-AM), a PF deflagrou a operação a fim de dar cumprimento a 23 mandados de prisão temporária e 48 mandados de busca e apreensão expedidos pela 2ª Vara da Justiça Federal do Amazonas e pelo Tribunal Regional
Federal da 1ª Região.
Segundo a conclusão da fiscalização feita em 2007 pela
Controladoria-Geral da União (CGU), em parceria com a PF, os supostos
desvios praticados pela prefeitura de Coari geraram mais de R$7 milhões
em prejuízos aos cofres públicos entre 2001 e 2006, sendo R$3,1 milhões em
recursos federais e mais de R$3,8 milhões em receitas de royalties.
As investigações resultaram em 21 suspeitos detidos. Um dos presos
pela PF foi o atual prefeito Rodrigo Alves (PP), que ficou na cadeia por
um mês em julho de 2008 – na época ele era vice-prefeito de Adail Pinheiro (2001-2008) e estava em plena campanha eleitoral. O ex-prefeito Adail,
que apóia Rodrigo, é apontado pela PF como o chefe da “quadrilha”. A PF
pediu a sua prisão, que foi negada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª
Região.
Em janeiro deste ano, outro revés para o poder público local. Seis
pessoas, entre elas Rodrigo Alves e Adail Pinheiro, foram formalmente
denunciadas à Justiça do Amazonas pelo crime de promoção da prostituição infantil. Com foro privilegiado, o prefeito responde ao processo na
Justiça Federal. Segundo a denúncia, feita pela Procuradoria Regional da
República a partir do inquérito da PF, garotas de programa menores de
idade estariam sendo agenciadas com dinheiro público.
Tavares (2009) nega as acusações e reafirma que a aplicação dos
recursos está sendo feita de forma “mais criteriosa” na atual gestão.
“O prefeito Rodrigo nunca participou nem fez esses possíveis delitos apon-
POBRE MUNICÍPIO RICO
As empresas que fazem a exploração de petróleo, gás natural ou
xisto betuminoso repassam o valor dos royalties à Secretaria do Tesouro
Nacional. O cálculo exato depende de fatores como riscos geológicos e
expectativas de produção, mas gira entre 5% e 10% do total da produção
de um campo durante um mês. Cabe à Agência Nacional do Petróleo apurar o valor devido aos beneficiários e garantir o pagamento. O montante –
1.1
2 FISCALIZAÇÃO
65
tados pela investigação”, diz. “Confunde-se muito denúncias com culpa.
Cabe a justiça esclarecer”. Tavares também foi secretário de Comunicação
nos dois mandatos de Adail.
Ele acredita ainda que o resultado eleitoral deu “sinal verde” para a
prefeitura continuar trabalhando. “A população teve a oportunidade de se
pronunciar diante a avalanche de denúncias da PF, tomou conhecimento e
o prefeito foi eleito com mais de 54% dos votos”, lembra.
Um dos supostos crimes apontados no inquérito da PF, a prostituição infantil, é apenas uma das faces de um desafio à espera de solução em
Coari. Uma possível consequência disso é que a estatística das meninas
grávidas com idade até 15 anos mostra uma elevada incidência da maternidade precoce. Entre mulheres que tiveram filhos em Coari, no primeiro
semestre de 2008, 13,9% estavam nessa faixa. Em 1995, um ano antes da
chegada da Petrobras à cidade, apenas 1,7% das grávidas tinha idade abaixo de 15 anos (NOSSA, 2008).
O próprio secretário de Comunicação reconhece a gravidade do
problema e atribui o índice ao aumento populacional ocasionado pela obra.
Segundo ele, a Prefeitura implantou diversos conselhos tutelares que trabalham com palestras e orientação para o público-alvo. Tavares (2009) diz
ainda que a questão é “geográfica”. “Há uma quantidade grande de homens solteiros, alguns distantes da família e do casamento”, diz.
Já a Petrobras (2009) diz não ter conhecimento de nenhum empregado próprio ou de empresas consorciadas em casos de envolvimento sexual
com crianças ou adolescentes. A empresa esclarece que repassou R$819,6
mil aos Fundos para a Infância e a Adolescência de municípios do Amazonas em 2008. Os recursos são geridos pelo Conselho dos Direitos da Criança
e do Adolescente e são destinados a projetos que atendem 1.890 pessoas
no Amazonas.
LEONARDO SAKAMOTO; MAURÍCIO REIMBERG
66
dividido entre estados e municípios produtores (ou que abriguem estrutura de transporte) e, eventualmente, a marinha e o governo federal – é então
depositado em contas do Banco do Brasil.
A Lei n. 9.478, de 1997, que trata da aplicação dos recursos gerados
pela compensação financeira do petróleo, proíbe sua utilização na amortização de dívidas ou na folha de pagamentos. Compete ao Tribunal de
Contas da União (TCU) fiscalizar essa aplicação por meio de inspeções e
auditorias, com o apoio dos Tribunais de Contas Estaduais e Municipais.
Não é necessário que os administradores enviem relatórios periodicamente à instituição, que é acionada quando há suspeita de irregularidades.
Os possíveis desvios dos recursos dos royalties foram alvo de diversas investigações pelo TCU. Em 2003, por exemplo, os auditores do órgão
descobriram que, entre 2001 e 2002, R$7,7 milhões em royalties foram
sacados das contas da Prefeitura de Coari sem que o prefeito, à época,
Adail Pinheiro, justificasse o destino dos recursos.
Uma auditoria já havia estado na cidade no ano de 2000 e, ao analisar a utilização dos royalties entre janeiro de 1999 e julho daquele ano,
também verificou uma série de irregularidades, como uso da verba em
salários, pagamentos fantasmas e transferência de recursos para outras contas
da prefeitura, sem informações quanto à aplicação. Foram detectadas operações que beneficiavam inclusive o então prefeito, Roberval Rodrigues da
Silva (PFL), que já faleceu.
O TCU – diante dos fatos expostos pelo ministro Benjamin Zymler,
relator do processo – pediu uma tomada de contas especial (associada à
existência de débito, prejuízo ou aplicação indevida). No total, o destino
de cerca de R$8,4 milhões não pôde ser comprovado durante o período
apurado.
Na época, além do problema com os royalties, Roberval Rodrigues,
citado como responsável, foi convocado para dar explicações sobre convênios firmados durante sua gestão.
3 IMPACTO SOCIAL
Uma das principais preocupações do senador Jefferson Peres (PDTAM) dizia respeito aos indícios de corrupção na destinação dos recursos
em Coari. Entrevistado em 2002 por esta reportagem, Peres acreditava
que, se o dinheiro fosse aplicado em projetos sociais sérios, haveria pobre-
POBRE MUNICÍPIO RICO
A exploração comercial da Província Petrolífera do Rio Urucu
começou em 1988, dois anos após o estabelecimento do primeiro poço.
A reserva provada é de 72,42 milhões de barris de óleo e 294,85 milhões
de barris de gás natural – atrás apenas das bacias de Campos (RJ) e Santos
(SP). Sempre houve a expectativa da descoberta de grandes jazidas na floresta amazônica, assentada em uma das maiores bacias sedimentares do
planeta. Data de 1917 o início da exploração na parte norte do país, quando o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil perfurou um poço de
sondagem.
1.1
4 ELDORADO NEGRO
67
za, mas não miséria ou indigência. E considerava que para eliminar desvios de recursos oriundos de royalties dentro das prefeituras era necessário
que o TCU desse mais agilidade ao processo de fiscalização. “Coari é, de
longe, o município mais rico do Amazonas”, disse.
Ele sugeria também que o governo federal fizesse o acompanhamento mais rigoroso desses fundos, incluindo a criação de um conselho
comunitário. Independente e com poderes totais, esse órgão seria formado
por membros da sociedade civil para vistoriar a aplicação do dinheiro –
acionando o Ministério Público a qualquer indício de irregularidade.
É claro que nada disso adianta sem a condenação dos responsáveis,
fazendo valer leis já existentes e garantindo o ressarcimento dos recursos
desviados dos cofres públicos, o que beneficiaria não só o Amazonas, mas
também os mais de 760 municípios que recebem royalties do petróleo.
“Em todo lugar em que uma empresa grande aparece, tem-se a impressão de que tudo vai ficar mais fácil”, afirma o professor Ab’Sáber – coautor do livro Previsão de impactos, no qual analisa o desenvolvimento
sustentável e as mudanças sociais e ambientais geradas pelos projetos. “Em
Coari, a questão era, desde o começo, ter planos de harmonização entre o
urbano, o sítio, o rio e o lago”. Uma vez que isso foi ignorado pelos governantes, resta estudar o problema e buscar soluções para recuperar a harmonia, ou, como diz Ab’Sáber (1998), “desenvolver projetos para minimizar
o crescimento rápido e socialmente anômalo, ajudando os que buscam
uma vida melhor”. Gente como a de Coari, que se encheu de expectativas
quando ouviu notícias sobre a descoberta de petróleo e do dinheiro que ele
trazia. Mas que está ainda na espera, ou sem perspectivas.
LEONARDO SAKAMOTO; MAURÍCIO REIMBERG
68
São produzidos diariamente cerca de 10 milhões de m³ de gás nos
poços de Urucu. Atualmente, cerca de 8 milhões de m³ por dia são comprimidos e reinjetados nos reservatórios para garantir aproveitamento futuro. O restante é utilizado na produção de GLP (gás de cozinha) e geração
de energia na Base de Operações Geólogo Pedro de Moura.
A Petrobras é a empresa economicamente mais importante do
Amazonas. Em 2007, ela recolheu, no Estado, R$759,6 milhões em ICMS,
que corresponde a cerca de 19% de toda a arrecadação do Amazonas.
O Imposto Sobre Serviço (ISS) recolhido pela Petrobras aos municípios
amazonenses somou R$19,5 milhões em 2007.
Coró foi um dos funcionários pioneiros da Petrobras na região de
Urucu. Ele conta que descia por cordas de helicóptero e abria caminho à
faca para a exploração. Lembra de histórias de araras que perseguiam caminhonetes e atrapalhavam as comunicações cortando os fios telefônicos.
De lá para cá, as clareiras cresceram.
A estatal afirma que realiza diversos estudos e ações para minimizar
os impactos ambientais e sociais de seus empreendimentos na Amazônia.
Uma delas é o Programa De Olho no Ambiente, focado na construção de
Agendas 21 comunitárias e na implementação do Plano de Ação Comunitário. O programa consiste em uma pesquisa de campo e um diagnóstico
socioambiental que revelam a realidade local de acordo com a opinião dos
moradores.
Além disso, em Coari são desenvolvidas oficinas de capacitação e
reuniões mobilizadoras nas comunidades do Monte Sião, São Francisco
do Laranjal, São Francisco do Xibuí e São Francisco do Jacaré, nas quais
são tratados temas relacionados à organização comunitária, unidades de
conservação e uso dos recursos hídricos.
Em Urucu, tanto para o funcionamento dos veículos quanto para a
geração de energia elétrica, utiliza-se o gás natural, que lança menos resíduos sólidos na atmosfera se comparado com outros derivados do petróleo, além de ser mais barato. Ali também foram desenvolvidos um
orquidário (com 85 espécies) e viveiros com mais de 125 mil mudas de
plantas nativas, como o angico, que são cultivadas para reflorestamento.
A construção do gasoduto Coari-Manaus derrubou pelo menos 20
metros de largura da floresta localizada ao longo da extensão linear do trajeto. Foram também utilizadas 16 clareiras de apoio, cada uma com dois hectares, para a armazenagem de tubos e outras atividades operacionais. Essas
áreas estão sendo reflorestadas, com o acompanhamento da Universidade
Federal do Amazonas (Ufam) e do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão ambiental que concedeu as licenças de implantação da
obra. Segundo a Petrobras (2009), isso “está 90% concluído”.
No entanto, a própria estatal ressalta, em relato publicado na Agência
Petrobras de Notícias, que as operações estão inseridas num “ambiente ultrasensível”. “Em alguns momentos, o trabalho de abertura das clareiras teve de
ser interrompido devido a descobertas de vestígios da ocupação na região de
até mil anos atrás, segundo estimativas dos arqueólogos que participaram
das obras. Ao todo, 18 sítios arqueológicos foram localizados, com fragmentos de utensílios como vasos, cerâmicas e flechas”, diz o texto.
1.1
69
Hoje, o escoamento de gás e derivados do petróleo é feito por barcaças através do rio Solimões até a Refinaria de Manaus (Reman). A Petrobras,
que implanta o gasoduto de 661km quilômetros que liga a Província Petrolífera do Rio Urucu a Manaus, planeja construir outro até Porto Velho (RO).
O objetivo é aproveitar o gás natural no abastecimento de energia elétrica da
região. O tempo de vida útil do gasoduto é de vinte anos.
O projeto, que oficialmente está em “fase de discussão” num grupo
de trabalho do Ministério de Minas e Energia, foi duramente criticado
durante as audiências públicas (realizadas em cidades que serão afetadas
pelo projeto) por pesquisadores, ambientalistas e organizações da sociedade civil. Uma das reclamações é que o Estudo de Impacto Ambiental/
Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) não apresenta alternativas à
implantação do gasoduto, necessárias a uma obra dessa magnitude. Alguns ambientalistas sugerem, por exemplo, a construção de um ramal no
gasoduto Bolívia-Brasil. O EIA/Rima foi produzido para a Petrobras pela
empresa Serviços de Consultoria em Meio Ambiente (Cepemar), que no
texto aconselha a sua implementação.
Em 2001, a Amazon Financial Information Service (Afis), um serviço norte-americano de informações financeiras, classificou o projeto do
gasoduto Urucu-Porto Velho como um dos investimentos em infra-estrutura na América Latina que apresentam maior risco “sócio-políticoambiental” para potenciais investidores. Segundo o relatório do Afis, a
obra seria prejudicial para o meio ambiente e para os habitantes das áreas
POBRE MUNICÍPIO RICO
5 O GASODUTO URUCU-PORTO VELHO
LEONARDO SAKAMOTO; MAURÍCIO REIMBERG
70
afetadas, a ponto de comprometer “a reputação das empresas e/ou organizações envolvidas com o projeto junto às instituições financeiras públicas
e privadas internacionais”.
Ao todo, o gasoduto teria 522,2 quilômetros, abrindo uma clareira
de 20 metros de largura que percorrerá os municípios de Coari, Tapauá e
Canutama, no Amazonas, até atingir Porto Velho, e atravessando os rios
Madeira, Açuã, Purus, Coari e Itanhauã, além do igarapé Trufari e do furo
Curá-Curá. Em quase todo o percurso, ficará enterrado a uma profundidade mínima de um metro.
Outras críticas recaem sobre o risco de contaminação da água e do
solo, a alteração da vida das populações indígenas e ribeirinhas, a exploração desenfreada e o desmatamento que o projeto pode trazer.
O relatório não afasta a possibilidade do aumento das doenças sexualmente transmissíveis, da prostituição e do índice de violência – que o
próprio texto considera hoje “bastante baixo na região” –, além da transformação de moléstias endêmicas, como a malária e a leishmaniose, em
epidemias.
As recomendações para reduzir os impactos nem sempre se mostram suficientes. Uma delas é a contratação de trabalhadores apenas na
sede dos municípios, para evitar que se utilize mão-de-obra dos ribeirinhos, causando êxodo. Mas, caso se repita o que aconteceu em Coari, um
deslocamento de pessoas em busca de emprego no centro urbano ocorrerá
de qualquer forma. O exemplo desse município não é citado para reforçar
a necessidade da correta aplicação dos royalties em projetos sociais.
O texto do Rima também informa que, terminadas as obras, a economia retornará aos níveis anteriores – depois de já ter provocado migração. Por isso, sugere um trabalho de “esclarecimento da temporalidade do
projeto” às comunidades.
Em carta enviada ao Ibama, Josué Sateré Maué (2009), coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira, desabafou:
Nós, povos indígenas, nos grandes projetos (rodovias, hidrelétricas,
linhão), sempre fomos considerados empecilhos ao desenvolvimento. O discurso de que somos poucos justifica qualquer empreendimento. Mesmo que atinja diretamente em torno de quatro mil
pessoas, distribuídas em 57 aldeias, com dez etnias diferentes, além
dos indígenas de pouco ou nenhum contato [...] para o governo
federal, os estados e a Petrobras, o projeto vale a pena porque trará
benefícios para milhões de ‘brancos’ que moram distantes de nossas
terras e que não se importam com nosso sofrimento [...].
Na verdade, não são só os povos indígenas que estão ameaçados.
O professor Aziz Ab’Sáber faz um alerta para outras consequências do projeto: “Com uma extensão dessa e com uma estrada de apoio, abre-se um
caminho fantástico para os especuladores. Daí fazem ramais, sub-ramais,
loteiam, vendem, começam a extração de madeira”. Há o exemplo da região sul-sudeste do Pará, hoje ocupada por fazendas de gado, e que vem
perdendo boa parte de sua cobertura vegetal e enfrentando graves problemas sociais, como o trabalho escravo. “Seria o primeiro grande caminho
de devastação da Amazônia ocidental”.
REFERÊNCIAS
NOSSA, Leonencio. Cidades amazônicas viram eldorados da prostituição infantil. O Estado de S. Paulo, 07 jul. 2008.
AB’SÁBER, Aziz; MÜLLER-PLANTENBERG, Clarita (Orgs.). Previsão de impactos: o
estudo de impacto ambiental no leste, oeste e sul. São Paulo: Edusp, 1998.
PEREIRA, Joércio Gonçalves. Entrevista por telefone. Coari, 06 abr. 2009.
AB’SÁBER, Aziz. Entrevista realizada em São Paulo em 20 mar. 2002
1.1
TAVARES, Walcione. Entrevista por telefone. Coari, 09 abr. 2009.
71
PETROBRAS. Comunicação por email. resposta oficial. 06 abr. 2009.
POBRE MUNICÍPIO RICO
MAUÉ, Josué Sateré. Carta ao Ibama. Arquivo pessoal. 15 abr. 2002.
1.2
UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA
DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS
ROYALTIES NO BRASIL
Sérgio Wulff Gobetti; Rodrigo Valente Serra
1 ROYALTIES: O QUE SÃO E PARA QUE SERVEM?
Os royalties são uma das formas mais antigas de pagamento de direitos e propriedade. No Dicionário Aurélio, o royalty é definido como a
“importância cobrada pelo proprietário de uma patente, processo de produção, marca, etc... ou pelo autor de uma obra para permitir seu uso ou
comercialização”. A palavra royalty vem do inglês royal, que significa “da
realeza” ou “relativo ao rei”. Originalmente, royalty designava exatamente
o direito que o rei tinha de receber pagamento pelo uso de minerais em
suas terras. E é justamente esse o sentido que levou o emprego da palavra
para designar o valor cobrado pelo poder público das empresas que exploram recursos naturais não-renováveis, ou seja, recursos cuja disponibilidade na natureza é finita, como o petróleo.
Essa finitude (física ou econômica) do petróleo implica que sua
extração em um período torna o recurso indisponível em períodos posteriores, afetando o nível de bem-estar das gerações futuras. Por isso, nada
mais natural de que o governo cobre das empresas que extraem o petróleo
uma compensação financeira pela renda de que elas se apropriaram e invista esse dinheiro em ações benéficas para as gerações futuras.
É extremamente oportuno para os propósitos deste artigo, portanto, atravessar esta sucinta apresentação conceitual com uma perspectiva
ética, a qual desemboca no realce da ‘promoção da justiça intergeracional’
como forma ideal de aplicação dos royalties. Ora, a natureza compensatória dos royalties expressa a necessidade de ressarcimento ao proprietário de
riquezas finitas pela dilapidação de seu patrimônio. No Brasil, sendo a
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
74
propriedade exclusiva das jazidas da União, esta, com as referidas compensações, deveria, idealmente falando, construir um cenário futuro de menor
dependência em relação às exauríveis riquezas minerais.
Esse cenário de menor dependência em relação ao petróleo encontra, é claro, múltiplos caminhos para ser concretizado, quais sejam: de
uma forma mais direta, por meio, por exemplo, do financiamento de um
vigoroso programa de desenvolvimento de fontes renováveis de energia,
que poderia ser assim traduzido – “se a exploração do petróleo realizada
hoje deixa as gerações futuras mais pobres em termos desta riqueza, tratemos de, com as compensações recebidas, tornar a sociedade vindoura
menos dependente deste recurso com a oferta de fontes renováveis de
energia”; de outras tantas formas indiretas de compensação, via investimentos sociais e produtivos, com intuito de defender o bem-estar das
futuras gerações.
Diante de tantas possibilidades, e reconhecendo que as escolhas para
aplicação das referidas compensações sofrem sempre pressão das demandas sociais e políticas que se debruçam sobre o gasto público, importa
ressaltar que essa natureza compensatória exige eticamente uma vigilante
cobrança dos gestores desses recursos para a aplicação ideal aqui aludida,
que é a promoção da justiça entre gerações.
Atualmente, estima-se que as reservas de petróleo no mundo somem 1,3 trilhão de barris (no Brasil são 14 bilhões de barris), e a produção
diária é de 82 milhões de barris. Ou seja, no ritmo atual, sem novas descobertas, o petróleo se acabaria em 41 anos, até 2050. Mesmo que de tempos
em tempos esse estoque esteja sendo reavaliado e descubramos a existência
de novas jazidas de petróleo, como a chamada camada de “pré-sal” no
Brasil, provavelmente chegaremos no futuro próximo ao dia a partir do
qual será muito caro extrair do subsolo o petróleo que eventualmente ainda esteja escondido nas profundezas do mar.
No ano de 2008, por exemplo, vimos o preço do petróleo subir
para um nível recorde de US$150 por barril e, logo em seguida, entrar em
queda livre, até atingir US$40. Isso significa que a produção atual está
gerando prejuízo? Depende do custo de extração de cada lugar, mas é improvável que haja prejuízo. No Oriente Médio, por exemplo, onde estão as
maiores reservas de petróleo do mundo, o custo de extração oscila em
torno de US$ 5 por barril apenas. No Brasil, o custo médio é maior, mas
não passa de US$ 15, segundo os balanços das próprias empresas do setor.
As indenizações pela exploração de petróleo no Brasil foram instituídas pela Lei n. 2004/1953, que criou a Petrobras. Inicialmente, esses
royalties correspondiam a uma alíquota de 5% sobre o valor do petróleo
extraído em terra (onshore). Não havia extração de petróleo em mar
(offshore). Nessa fase inicial, os recursos eram totalmente transferidos para
os estados, que deviam repassar 20% para os municípios.
Em 1969, quando foi descoberto petróleo em mar, o governo federal passou a se apropriar sozinho dos royalties referentes à extração na plataforma continental (mar). Assim, os royalties de terra ficavam com estados
e municípios, e os de mar, somente com a União. Essa situação se prolongou até o final de 1985, quando a Lei n. 7.453 criou uma regra de repartição dos royalties do mar entre União, estados e municípios.
Na ocasião, o governo federal abriu mão de 80% do valor dos
royalties e criou um Fundo Especial do Petróleo (FPE) destinado a contemplar com recursos os estados e municípios que não estivessem nas regiões produtoras de petróleo. Inicialmente, esse “fundão” recebia 20% de
todo dinheiro arrecadado das empresas petrolíferas que operavam na plataforma continental, mas esses porcentuais foram sendo posteriormente
alterados por novas legislações que surgiram.
Nesse momento, ou seja, no final da década de 1980, essas mudanças
não chamavam muito a atenção, porque o volume de produção e, particularmente, a receita dos royalties ainda era pequena, representando menos de R$200
milhões anuais (Figura 1). Esse valor só passou a crescer depois de 1997, quan-
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
2 A HISTÓRIA DO PAGAMENTO DE ROYALTIES NO BRASIL
75
Portanto, quando vislumbramos uma situação como a do barril de
petróleo sendo vendido a US$150 ou mesmo a US$70, é natural que nos
questionemos: afinal, para onde está indo tamanho lucro?
Por isso, o valor dos royalties geralmente é calculado em função de
duas variáveis: quantidade e preço – quantidade de petróleo (ou gás natural) produzido e preço do petróleo (ou gás natural). Como o petróleo é um
produto comercializado internacionalmente, seu preço é referenciado em
dólar e convertido para a moeda do país de acordo com a taxa de câmbio.
Dessa forma, se o preço internacional cai, o valor dos royalties também
deve cair, mas se a taxa de câmbio do país também se desvaloriza, o valor
dos royalties na moeda nacional pode ser maior.
do o governo federal, para conseguir apoio à quebra do monopólio do petróleo entre prefeitos e governadores, aprovou a Lei n. 9.478, chamada Lei do
Petróleo, que ampliou os royalties de 5 para até 10% e ainda criou uma compensação extraordinária, denominada Participação Especial (PE).
A rigor, a PE também é um tipo de royalty, mas sua cobrança é
diferenciada de acordo com o volume e o tempo de produção do campo de
petróleo e da sua localização (em terra ou mar e, no caso do mar, da profundidade em que ocorre a extração). Campos pequenos, que produzem
pouco, podem ser isentos, ao passo que campos maiores e mais rentáveis
podem chegar a pagar até 40% de sua receita líquida. O pagamento obedece a uma escala progressiva de tributação, como ocorre com o imposto
de renda das pessoas físicas1.
25
20
15
10
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
5
1997 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
Figura 1: A Evolução dos Royalties de Petróleo
Fonte: ANP (2009)
De modo resumido, é possível dividir a receita dos royalties em três
partes principais: uma alíquota básica de 5%, outra alíquota excedente de
até 5% (o que totaliza na maioria das vezes uma alíquota final de 10%
sobre o valor de produção) e a PE. Originalmente, o valor recolhido de
royalties sobre produção era significativamente maior do que o das participações especiais, mas hoje essa situação se inverteu.
76
1
Existem seis faixas de tributação para a PE: isento, 10%, 20%, 30%, 35% e 40% da receita
líquida, isto é, a receita bruta menos os demais royalties e outros custos dedutíveis por legislação.
No ano de 2008, as duas formas de compensação financeira pela
exploração de petróleo renderam R$22,8 bilhões aos cofres públicos, conforme o Quadro 1.
Quadro 1: Renda aos Cofres Públicos segundo a Forma de Compensação Financeira.
Em 2009, essas receitas devem cair significativamente em virtude
da queda do preço do petróleo. No primeiro trimestre do ano, por exemplo, a arrecadação de royalties e participações especiais foi 24% menor do
que no mesmo período de 2008.
No futuro, espera-se que, a despeito dessa volatilidade, as receitas
de royalties sejam significativamente maiores no Brasil, uma vez que o país
tem gigantescas reservas de petróleo ainda inexploradas, cujo potencial
recém começou a ser conhecido. Diante dessa perspectiva, é fundamental
que discutamos o que fazer com a riqueza gerada pelo petróleo, seja aquela
apropriada pelo Estado, sob a forma de royalties e impostos, seja aquela
que as empresas do setor estão acumulando privadamente.
Como dividir essa riqueza entre as empresas envolvidas na exploração e a sociedade? Como repartir os royalties entre as três esferas da federação?
Como e onde aplicar os recursos públicos? Essas são algumas perguntas de
suma importância para cumprirmos a missão que inicialmente definimos:
a justiça intergeracional.
Antes de mais nada, contudo, é fundamental entendermos como se
dá atualmente a distribuição dos recursos dos royalties e participações especiais, não só no rateio entre União, estados e municípios, como também
no universo de cada uma dessas unidades da federação.
3 O ABC DAS REGRAS
O sistema de repartição das receitas do petróleo, embora se utilize
de operações matemáticas simples, requer o conhecimento de um conjun-
77
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL = R$11,7 bilhões
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
ROYALTIES (BÁSICO E EXCEDENTE) = R$10,9 bilhões
to expressivo de normas e informações2 que tornam sua tradução uma
tarefa árdua. Este “ABC” tem como propósito a simplificação das regras
para que o leitor possa, a partir delas, compreender os principais problemas envolvendo o tema.
A Tabela 1 retrata a repartição dos royalties de petróleo recolhidos
entre as três esferas da federação. Em média, 61% dos recursos têm sido
descentralizados, ou seja, deixam os cofres federais para alimentar os cofres
estaduais e municipais. Mas o que determina esse rateio e quais são os estados e municípios beneficiários?
Tabela 1: Divisão do bolo (2008)
Royalties e PE
Valor (R$ milhões)
% Total
Total
União
Estados
Municípios
Fundo Especial
FPM (80%)
FPE (20%)
22.647
8.912
8.006
4.874
855
684
171
100,0
39,4
35,3
21,5
3,8
3,0
0,8
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
Fonte: Agência Nacional de Petróleo (www.anp.gov.br)
Como ponto de partida, é importante que se saiba que o petróleo é
constitucionalmente pertencente à União, mas a Constituição também
prevê que os estados e municípios produtores sejam contemplados com
parte das receitas recolhidas pelo governo federal. Porém, a Constituição
não diz quem são os produtores, quanto eles devem receber, nem veta que
outros estados e municípios também sejam beneficiados pelo repasse, como
ocorre com o FEP, já mencionado. Portanto, o grau de descentralização
dos royalties e a definição de quem são os produtores é algo que a legislação infraconstitucional determina.
78
2
No sítio da ANP na Internet estão disponíveis as informações necessárias para a distribuição dos royalties (ANP, 2008). Para o detalhamento da forma de rateio dos royalties,
ver Guia dos Royalties, em ANP (2008b).
Linha do litoral
A
B
Figura 2: Limite da Plataforma Continental
Fonte: elaborada pelos autores
As linhas ortogonais são inclinadas conforme o formato da costa no
limite entre dois estados e municípios. Se o litoral é convexo, como no
caso da localidade A, as linhas se abrem; se é côncavo, como em B, as
linhas se fecham.
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
Limite da plataforma continental
79
No caso do petróleo em terra, é muito fácil determinar, por exemplo,
quem é ‘produtor’, já que a jazida está localizada no território geográfico de
um município e estado. Mas, no caso da produção em mar, essa determinação
é mais complexa, para não dizer questionável, já que a divisão da faixa litorânea de mar (plataforma continental) entre os estados e, especialmente, entre os
municípios, depende de critérios que podem ser os mais variados possíveis.
No mundo, existem diversos critérios geográficos baseados em linhas retas traçadas desde a costa para fazer a divisão da plataforma continental para fins de apuração do direito aos royalties. No Brasil, adotam-se
dois tipos de linhas para dividir a área marítima a partir da costa: são as
linhas paralelas e ortogonais. As linhas paralelas são referenciadas no eixo
do Equador, como na Figura 2, representando as localidades A e B e suas
projeções sobre a plataforma continental:
Limite da plataforma continental
Linha do litoral
A
B
80
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
Figura 3: Limite da Plataforma Continental.
Fonte: Elaboração dos autores
Na Figura 3, com linhas ortogonais, fica claro que o município A
(com linhas abertas) possui uma área de confrontação bem maior do que o
município B, apesar deste último possuir uma costa um pouco mais extensa.
No Brasil, a divisão da plataforma continental entre os estados é feita
a partir de linhas ortogonais, ao passo que a divisão entre os municípios é
feita tanto por linhas paralelas quanto ortogonais. Quando um campo ou
poço de petróleo está dentro da área delimitada por essas linhas, diz-se que o
estado ou município em questão é “confrontante”.
No caso do petróleo extraído em mar, a “confrontação” geográfica
com poços e campos é que define a condição de produtor e o direito aos
royalties. No rateio dos recursos entre os estados, a confrontação é o único
critério utilizado. Entre os municípios, ele é o principal, mas não é o único,
e seu peso é bastante variável de acordo com a legislação. A lei que define as
regras de divisão dos recursos obtidos com a alíquota básica, por exemplo,
reserva 30% dos royalties aos municípios confrontantes e a toda sua área
geoeconômica, entendida como aquela formada pelos municípios influenciados pela produção de petróleo ou simplesmente limítrofes com os mesmos.
Ou seja, é utilizado um conceito mais amplo e socioeconômico para a divisão dos recursos.
Tipo de
Compensação
União
Estados
Produtores/
Confrontantes
Redistribuição
via ICMS
Todos (via FPE/FEP)
Alíquota
básica (5%)
Alíquota
excedente (até 5%)
Participação Média
Especial
Ponderada
Terra (%) Mar (%) Terra (%) Mar (%)
(%)
(%)
52,5
20
24,5
25
52,5
40
24
50
40
39,42
33,89
70
30
52,5
22,5
40
35,23
-17,5
-7,5
2
1,5
-2,10
0,75
Continua...
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
Tabela 2: A Distribuição das Rendas do Petróleo pelas Esferas de Governo
(2008)
81
Esse princípio desaparece na legislação que trata da divisão dos royalties
derivados da alíquota excedente e da PE. Nesses dois últimos casos, apenas os
municípios confrontantes têm direito ao rateio, e esse rateio é proporcional à
produção de petróleo nos campos sob a área de confrontação de cada município
– na área geoeconômica, ao contrário, a divisão é proporcional à população.
Além do benefício aos municípios confrontantes ou integrantes de alguma zona de produção (área geoeconômica), um outro critério norteia a
divisão de royalties entre os municípios. Trata-se da localização das instalações
de embarque e desembarque de petróleo. No caso da alíquota básica, apenas as
localidades com essas instalações recebem os recursos; no caso da alíquota
excedente, os municípios afetados (ou seja, cortados pelo dutos) também entram no rateio. Por fim, na PE, esse critério não é utilizado.
Atualmente, o reconhecimento pela Agência Nacional de Petróleo (ANP)
de que o município possui ou não tais instalações é um dos principais motivos
de polêmica e discussão judicial. Vários municípios têm conseguido receber
royalties pelo simples motivo de terem gasodutos atravessando seu território,
mesmo quando o gás vem de outro país, como a Bolívia e, portanto, nada tem
a ver com a produção brasileira de petróleo e gás.
A Tabela 2 apresenta um resumo dos principais critérios que balizam a
divisão de recursos entre as esferas da federação e no universo de cada esfera,
ou seja, entre os estados e entre os municípios. Como existem três fontes diferentes de royalties, o porcentual final que fica com cada esfera e subesfera é
resultante de uma média ponderada pelo valor de cada fonte de receita.
...Conclusão
Tipo de
Compensação
Municípios
Produtores
Confrontantes
Conf. e área
geoeconômica
Local de embarque/
desembarque
Afetados p/ embarque/
desemb.
Nos estados produtores
(via ICMS)
Todos (via FPM/FEP)
Total
Peso ponderação*
Alíquota
básica (5%)
Alíquota
excedente (até 5%)
Participação Média
Especial
Ponderada
Terra (%) Mar (%) Terra (%) Mar (%)
(%)
(%)
47,5
20
10
55,5
22,5
15,0
36
10
22,5
10
26,69
0,90
9,97
30
6,50
10
2,44
7,5
8
7,5
8
6
100
100
100
100
0,0270
0,2167
0,0242 0,2121
1,77
17,5
100
0,5200
2,10
3,01
100
1,0000
82
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
Notas: (*) Inclui municípios cortados por dutos (zona secundária) e limítrofes
(**) Os pesos para a média ponderada foram calculados a partir dos valores de
cada uma das fontes de royalty/participação especial
Fonte: elaborado pelos autores com base em dados da STN e ANP (2008).
A União, como se vê, fica com uma fatia minoritária da alíquota
básica de royalties, mas tem direito a 50% da arrecadação da PE, resultando em um porcentual médio final de 39,42% do bolo, em valores de 2008.
Os estados têm direito a uma parcela maior dos royalties de terra e menor
dos royalties de mar e, no caso da arrecadação decorrente da alíquota básica de 5%, precisam redistribuir 25% do que recebem entre todos os municípios do seu território, de acordo com a cota-parte do ICMS. Essa
redistribuição está representada na Tabela 2 pelos valores negativos (-17,5%
= 25% de 70%; -7,5% = 25% de 30%). Esses mesmos valores aparecem
com sinal positivo na área inferior da Tabela 2, reservada aos municípios,
indicando o retorno recebido pelas prefeituras nos estados produtores.
No caso dos municípios, vê-se que o porcentual dos royalties de mar
vai caindo na medida em que nos deslocamos da alíquota básica até a PE.
Da alíquota básica, por exemplo, 40% são destinados diretamente aos municípios (30% aos confrontantes e respectivas áreas geoeconômicas e 10% às
localidades com instalações de embarque e desembarque). Da alíquota exce-
O processo de descentralização dos royalties promovido pela legislação federal, ao garantir um quinhão dos recursos aos estados e municípi-
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
4 HIPERCONCENTRAÇÃO E QUALIDADE DO GASTO
PÚBLICO
83
dente, 30,5% são repassados aos municípios (22,5% aos confrontantes
apenas e 8% aos que possuem instalações de embarque e desembarque ou
são afetadas por elas). Por fim, da PE, apenas 10% ficam com os municípios, e somente os confrontantes.
Outro detalhe interessante que não aparece na Tabela 2, mas surge de
outros dados disponibilizados pela ANP, é o número de municípios beneficiados por cada um desses tipos de royalties. A receita decorrente da alíquota
básica sobre a produção em mar chegou a 831 prefeituras em 2008; a receita
da alíquota excedente chegou a 115, os depósitos judiciais a 43 e a PE, a apenas
29 cidades. Ou seja, a cada nova forma de tributação do petróleo criada no
Brasil nos últimos anos, o critério de distribuição entre os municípios tem sido
mais concentrador e mais desligado de parâmetros socioeconômicos.
A única compensação é que parte da receita dos royalties de mar
(10% da alíquota básica e 7,5% da excedente) é destinada ao FEP e
redistribuída a todos os estados e municípios de acordo com os critérios de
partilha dos Fundos de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios
(FPM). De cada real reservado ao FEP, 80 centavos são destinados aos
municípios e 20 centavos, aos estados. O rateio do FPM é feito por coeficientes populacionais – quanto maior a população, maior o valor recebido. Já o FPE é dividido por porcentuais fixos há duas décadas e que
originalmente foram determinados para beneficiar estados populosos e, ao
mesmo tempo, pobres em renda per capita.
Considerando todos esses critérios, temos uma divisão do bolo na
qual os estados ficam com 33,89% dos recursos e os municípios com 26,69%.
Esses porcentuais mudam um pouco a cada ano, conforme a composição
dos royalties. O fundamental, entretanto, é perceber quão díspares e incoerentes são os critérios de repartição, que, ao mesmo tempo em que promovem uma descentralização da esfera federal para a subnacional, nesta última
produzem a hiper-concentração espacial dos recursos.
Isso ficará bastante claro na próxima seção, onde mostraremos o
resultado final da distribuição dos royalties entre os municípios.
os, beneficiou um grupo minoritário de prefeituras privilegiadas por sua
condição geográfica. Em 2008, por exemplo, embora as estatísticas da ANP
indiquem que 912 municípios foram agraciados com os royalties de petróleo, 89,3% dos recursos (excluindo o FEP) foram concentrados por apenas 100 cidades.
Na realidade, existe uma concentração dos recursos em apenas 10
municípios do litoral fluminense e capixaba, que detêm 58,2% da renda
do petróleo reservada ao poder público municipal. Uma cidade sozinha,
Campos dos Goytacazes, recebeu em 2008 a quantia de R$1,180 bilhão
de royalties, 24,2% do total municipal. Para se ter uma ideia do que isso
significa, o valor recebido por Campos é duas vezes maior do que o repassado a 812 prefeituras que, teoricamente, também são ‘beneficiárias’
do sistema.
Tabela 3: Divisão dos Royalties entre Municípios em 2008
84
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
Município
UF
Valor emR$ milhões
% do Total
Campos dos Goytacazes
RJ
Macaé
RJ
Rio das Ostras
RJ
Cabo Frio
RJ
Quissamã
RJ
São João da Barra
RJ
Angra dos Reis
RJ
Casimiro de Abreu
RJ
Presidente Kennedy
ES
Rio de Janeiro
RJ
Os 10 maiores beneficiários
Outros 90 municípios beneficiários
Os 812 beneficiários restantes
1.180
506
342
201
151
148
88
83
73
66
2.838
1.516
521
24,20
10,37
7,01
4,12
3,11
3,03
1,80
1,71
1,50
1,36
58,21
31,10
10,69
Total
4.876
100,00
Além de concentrados, os recursos são muitas vezes mal aplicados
pelas prefeituras, como podemos ver ao comparar o perfil da despesa nos
municípios. De um total de 5.296 cidades para as quais conseguimos reu-
O município de Campos, principal beneficiário dos royalties, não apresentou seus balanços orçamentários a STN para que fossem incluídos no Finbra, mas seus dados foram coletados nos relatórios fiscais disponibilizados pelo TCE-RJ.
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
3
85
nir informações, a partir de um arquivo chamado Finbra, que está disponível ao público no site da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), identificamos 841 como beneficiárias de royalties. Neste grupo, entretanto, apenas
112 municípios podem ser considerados “dependentes” dos royalties, em
razão de que o recurso que recebem dessa fonte é maior do que conjunto
de suas receitas tributárias, como IPTU, ISS, ITBI, taxas e IRRF. Destes,
por sua vez, 69 foram classificados como “super-dependentes”, por possuírem uma receita e royalties pelo menos duas vezes maior do que a arrecadação de tributos3.
Evidentemente que esse critério de dependência é arbitrário, mas é
útil para nossos propósitos, que é o de mostrar que a qualidade do gasto é,
em muitos aspectos, inversamente proporcional ao volume ou ao peso dos
royalties no orçamento municipal. Com base nos dados de balanço orçamentário apresentados pelos municípios, podemos verificar, por exemplo,
que a despesa de pessoal dos beneficiários por royalties é de R$562,29 por
habitante-ano e a dos não-beneficiários, R$505,25. Ou seja, não existe
uma grande diferença entre as despesas dos beneficiários e não-beneficiários
dos royalties, até porque a imensa maioria dos chamados beneficiários recebe valores inexpressivos.
Se nos restringimos ao grupo de 112 municípios dependentes, essa
diferença é ainda maior, pois seu gasto com pessoal cresce para R$806,73
por habitante-ano, ao passo que os demais municípios apresentam despesa
de R$522,73 por habitante-ano. Adicionalmente, se compararmos as despesas com terceirização, vemos que ela chega a R$96,87 por habitante-ano
nos municípios dependentes, mais do que o dobro dos demais (R$40,41).
Entre os “super-dependentes”, o gasto pula para R$115,98 por habitanteano, quase três vezes maior do que os demais.
Esse maior gasto per capita não é, em si, um mau indicador. Aliás, é
natural que municípios com maior receita per capita, como o caso dos
recebedores de royalties, também tenham uma despesa maior. E gastar
mais em pessoal faz parte de uma estratégia de aparelhamento da máquina
pública para prestar serviços à comunidade. Contudo, quando compara-
mos o perfil do gasto municipal, detectamos indícios de que a qualidade
tem sido afetada negativamente pelo excesso de royalties.
Enquanto a despesa burocrática (nas funções Legislativa, Judiciária
e Administrativa) dos municípios dependentes supera a dos não-dependentes em 168%, chegando a R$512,76 por habitante-ano, o gasto em
saúde é apenas 48% maior, e o gasto em educação, 39% maior. Entre os
“super-dependentes”, essa distorção é ainda maior, como podemos ver na
Tabela 4. Ou seja, a receita adicional apropriada pelos municípios dependentes dos royalties tem sido canalizada prioritariamente para atividadesmeio e não para atividades finalísticas da administração pública, o que
reforça a necessidade de pensarmos em limites para os repasses aos estados
e municípios.
Outro possível reflexo dos excessos de transferências para alguns
municípios é a baixa produtividade da arrecadação própria de tributos.
Em média, a receita tributária dos municípios não-dependentes dos royalties
é de R$231,72 por habitante-ano. Entre os “dependentes”, a arrecadação
própria cai para R$178,39, e entre os “super-dependentes”, para R$133,15.
Ou seja, quanto maior a mesada dos royalties, maior a preguiça fiscal.
86
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
Tabela 4: Comparação do Gasto Per Capita nos Municípios, de acordo
com Peso dos Royalties (em R$)
Condição em
relação aos
royalties
Beneficiário
Nãobeneficiário
Dependente
Nãodependente
Superdependente
Nãosuperdendente
Pessoal
Terceirização
Investitimento
Gasto
burocrático
(Leg-Jud-Adm)
Saúde
Educação
562,29
37,18
133,77
196,13
263,20
306,90
505,25
806,73
44,50
96,87
122,14
258,11
199,37
512,76
256,87
381,51
287,29
407,16
522,73
40,41
124,19
191,67
256,95
292,97
796,58
115,98
311,90
573,36
399,98
390,16
525,10
40,62
124,59
193,47
257,71
294,08
Fonte: Elaborado pelos autores combase em dados do Finbra (Finanças do Brasil – Dados
Contábeis dos Municípios), disponível em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/
estados_municipios/index.asp
87
O debate acerca dos justos e/ou legítimos beneficiários dos royalties do
petróleo, no âmbito municipal, pode ser resumido, de forma estilizada, pelo
confronto de duas ideias mestras. De um lado, a defesa de uma radical pulverização dos royalties entre o conjunto dos municípios brasileiros, encampando
informalmente os slogans Se o Petróleo é Nosso, por que os Royalties São
Apenas de Alguns? ou O Petróleo é Nosso, os Royalties Também!
Resgatando o slogan O Petróleo é Nosso, que inspirou a criação da
Petrobras, na década de 1950, os porta-vozes atuais da pulverização dos
royalties demarcam, firmemente, que a propriedade do petróleo é constitucionalmente da União e que, por extensão, as compensações financeiras
oriundas da atividade de exploração e produção deveriam pertencer ao
conjunto das municipalidades.
Compondo a proposta Os Royalties São Nossos, a forma de dividir
essa compensação entre as municipalidades não careceria de nenhum procedimento complexo, ou suscetível de quaisquer subjetividades, bastando
que esse recurso fosse alocado ao FPM, tal qual já ocorre atualmente com
os recursos destinados legalmente ao FEP. O espírito dessa proposta está
incorporado, por exemplo, no projeto de lei n. 341/2007, de autoria do
deputado federal Júlio César (DEM-PI), prevendo que todos os royalties
municipais sejam distribuídos por intermédio do FPM.
Para se ter uma ideia do poder persuasivo desse argumento, a distribuição dos royalties via FPM representaria um reforço de 11% nesse fundo, que somou mais de R$42 bilhões em 2008. Para além desta sedutora
conta, que representaria um alento aos depauperados caixas dos milhares
de municípios que dependem do FPM para seu financiamento, outros
argumentos podem ser listados a favor da pulverização dos royalties. Vamos a alguns deles:
• Não seria razoável considerar os royalties compensações ambientais aos
municípios impactados pelas atividades de produção de petróleo e gás
natural, visto que, nas regras de rateio vigentes, existe um componente
central que em nada exprime os efetivos impactos da atividade sobre o
território – o conceito de confrontação com poços e campos petrolíferos, apresentado na seção 3, que torna alguns municípios costeiros, por
sorte geográfica, grandes beneficiários desses recursos, sem que essa con-
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
5 A QUESTÃO DA JUSTIÇA COMPENSATÓRIA EM
ÂMBITO MUNICIPAL
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
88
frontação exprima necessariamente os impactos ambientais resultantes
da exploração dos hidrocarbonetos.
• Se o legislador quisesse, de fato, beneficiar os territórios ambientalmente
atingidos, não poderia projetar importância tão grande ao conceito de
confrontação, mas sim vincular os royalties somente a fatores que potencialmente são danosos ao ambiente social e natural, como a presença de
equipamentos que dão suporte à atividade de exploração, produção e
escoamento de petróleo e gás natural (previstos parcialmente na norma
vigente, ao prever compensação para localidades com instalações de
embarque e desembarque) e os riscos potenciais associados a acidentes,
os quais deveriam ser informados, por exemplo, pelo estudo do comportamento das correntes marinhas e dos ventos (critérios não presentes na
norma vigente).
• Não seria razoável, também, beneficiar com royalties municípios que já
são duplamente beneficiados pela presença de capitais associados à atividade de exploração, produção e escoamento de petróleo e gás. São duplamente beneficiados aqueles que: por sediar os referidos capitais,
percebem aumento das receitas tributárias, inclusive advindos dos efeitos diretos e indiretos de um afluxo populacional em direção às oportunidades geradas pelas citadas atividades econômicas; e que, por sua
proximidade com campos produtores, são beneficiários das regras de
rateio do ICMS entre os municípios, uma vez que no cálculo do valor
adicionado destes municípios (parâmetro para a divisão da cota municipal) está incluído a riqueza oriunda das atividades de produção de petróleo e gás.
Juntando os argumentos expostos ao apelo do importante reforço
ao FPM advindo dos royalties, apresenta-se a indagação: por que as regras
atuais ainda não foram substituídas por essa via da pulverização? Pergunta
intrigante, sobretudo quando lembramos que no Congresso há uma maioria imensa de representantes mais interessados na mudança do que contrários a essas. Para certificar-se disso, basta verificar, na seção 4, o diminuto
grupo de municípios que recebem receitas expressivas de royalties.
Existem, porém, razões para entendermos a manutenção das regras
atuais. Pela dimensão política, ainda que não houvesse argumentos legais e
legítimos a favor das regras atuais, a lógica da ação coletiva (OLSON,
1999) nos ensina que os grupos de interesse menores, que têm muito a
perder, agindo de forma mais coesa conseguem sustentar suas demandas
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
Art. 20. São bens da União:
IX – os recursos minerais, inclusive os do subsolo;
[...]
§ 1º – É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo
ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia
89
de forma muito mais efetiva do que os grupos maiores, que ganham pouco
com as mudanças e experimentam uma atuação muito mais dispersa e de
pouca efetividade.
Materializando essa hipótese, vale lembrar que o grupo pequeno e
coeso que defende as regras atuais de rateio dos royalties logrou eleger em
2007, como deputados federais, os ex-prefeitos dos dois municípios maiores recebedores de royalties do país: Arnaldo Vianna (PDT), de Campos
dos Goytacazes, e Silvio Lopes (PSDB), de Macaé. Ambos são membros
da Comissão de Minas e Energia, por onde devem passar os projetos de lei
que alteram as regras de rateio dos royalties. Comissão que é presidida pelo
deputado Bernardo Ariston (PMDB-RJ), cuja base eleitoral é o Norte
Fluminense, região concentradora dos maiores beneficiários dos royalties.
O grande grupo interessado na pulverização dos royalties é aquele
formado pelos representantes de todos os municípios que ganhariam mais
com o aporte dos royalties ao FPM, o que inclui não apenas os milhares de
municípios dos estados não produtores, como também os municípios pertencentes a estados produtores mas que, em função da sua condição de
recebedores marginais, poderiam receber mais com a pulverização das rendas públicas do petróleo. Esse grupo, seguindo a lógica da ação coletiva de
Olson, ainda não logrou conquistar a pulverização dos royalties pela suposta menor coordenação de suas ações, dado que o que teriam a ganhar é
infinitamente inferior ao que teriam a perder os municípios hoje beneficiados com as regras vigentes.
Paralelamente a esta dimensão política, que auxilia a explicar os
motivos da sustentação das regras atuais de distribuição dos royalties, é
digno de nota dois outros argumentos em defesa de sua manutenção.
Em primeiro lugar, há uma interpretação do artigo 20 da Constituição Federal, que considera beneficiários dos royalties os municípios onde
ocorre a atividade de produção de petróleo e gás natural.
90
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou
compensação financeira por essa exploração (BRASIL, 1988).
Esse também foi o entendimento da ministra Ellen Gracie (2009),
do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Mandado de Segurança n. 24.132, onde “considerou-se que a receita patrimonial destinase a recompor perdas (ambientais, sociais, econômicas, etc.) decorrentes
da atividade de exploração do petróleo nos territórios dos estados e de seus
respectivos municípios”.
Ora, cabe registrar que, sendo essa a natureza jurídica dos royalties,
estes não deveriam, sequer, ter uma fração destinada ao FE (que é rateado
universalmente via FPE e FPM), como ocorre hoje. Sendo certo que essa
interpretação funcione como forte argumento em defesa das regras atuais
vigentes e pelo entendimento da não legalidade das propostas de pulverização dos royalties, antes apresentadas.
Outro argumento muito utilizado em defesa das regras atuais trata de
justificar os royalties destinados aos estados e municípios hoje beneficiados
como uma compensação à imunidade tributária sobre as operações interestaduais de petróleo e gás. De fato, o artigo 155, § 2º, inciso X, alínea b, da
Constituição Federal de 1988, dispõe que o ICMS incidente sobre petróleo,
lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, quando os
mesmos são destinados a outros estados, não pertence ao estado de origem.
Ou seja, enquanto o conjunto das mercadorias transacionadas entre estados
deixa a maior parte do ICMS nos estados de origem, e uma menor parte nos
estados de destino, as operações com as mercadorias listadas reservam o ICMS
integralmente aos estados de destino.
Tal argumento, entretanto, embora tenha validade explicativa do
ponto de vista histórico, deixa a desejar em termos de racionalidade econômica. A tributação no destino é a norma mais aceita no mundo, pois
garante que o imposto seja recolhido pelo estado em que vive o pagador de
imposto. Portanto, nada mais justo que os combustíveis e derivados de
petróleo sejam tributados no destino, como no Brasil. Se há ajuste a ser
feito, é nas demais mercadorias tributadas pelo ICMS que têm parte de
sua receita apropriada na origem. Essa mudança, aliás, é uma das principais medidas previstas nas últimas tentativas de reforma tributária. E, se
caminhamos no sentido de eliminar toda e qualquer tributação na origem,
O debate apresentado na seção anterior mostra, por certo, que a
solução não precisa ser (e nem deverá ser) do tipo “tudo ou nada”. Politicamente, vemos como insustentável tanto a manutenção das regras que
estão vigentes quanto uma ruptura radical no modelo de distribuição, que
deixasse, por exemplo, de contemplar os estados e municípios com as compensações.
Neste espírito, de propor um novo arranjo para a distribuição e
aplicação dos royalties que seja minimamente negociável, isto é, que possa
ser levado à votação no Congresso Nacional, propomos algumas sugestões,
organizadas em Alternativas Pragmáticas (sem mudar o princípio vigente
para o rateio) e Alternativas Principistas (que alcançam os fundamentos da
lógica de repartição e aplicação).
6.1 Alternativas Pragmáticas
Um retorno à seção 3, Tabela 2, mostra que a Lei n. 9.478/97 (responsável pela instituição da alíquota excedente e pela PE) propõe, no nível
municipal, uma distribuição muito mais concentradora dos royalties do
que a norma vigente para a alíquota básica desde os anos 1980. Lembrando que isso ocorre porque essa lei eliminou do universo de beneficiários
das novas compensações os municípios que fazem parte da área de influência das zonas de produção. Ou seja, as compensações criadas a partir de
1997 privilegiam os municípios que têm a sorte de ser confrontantes com
campos de petróleo e gás, independentemente dos reais impactos da atividade petrolífera sobre o território.
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
6 FALANDO EM ALTERNATIVAS
91
não há mais por que se falar em compensação aos estados produtores de
petróleo via royalties.
O desenvolvimento desta seção deixou patente que não há nada de
pacífico no entendimento de como as rendas petrolíferas devem ser distribuídas. Tampouco a aplicação dessas compensações pode ser vista como
asseguradora da promoção da justiça intergeracional. Em virtude destas duas
denúncias – que as compensações estão sendo distribuídas e aplicadas de
forma equivocada –, reserva-se a seção seguinte à apresentação de alternativas que visam aperfeiçoar o sistema de distribuição e aplicação dos royalties.
A primeira mudança pragmática que pode ser proposta para sanear
a hiperconcentração dos royalties em poucos municípios é a simples extensão das regras válidas para distribuir a parcela de royalties de 5% para a
parcela acima de 5% e para a PE. Assim, essas compensações, além de
favorecer os municípios confrontantes, estaria sendo dividida com os municípios cortados por dutos (que transportam óleo e gás exclusivamente
das áreas de concessão) e com os municípios limítrofes e que pertencem à
mesma mesorregião geográfica (unidade territorial do IBGE para fins de
pesquisa e planejamento).
Uma outra mudança pragmática seria a alteração do conceito de
confrontação, tornando a distribuição menos refém das reentrâncias e/ou
sinuosidade de nosso litoral. Fato é que o critério de rateio vigente torna
alguns municípios sortudos (com litoral côncavo) e outros azarados (com
litoral convexo), sem qualquer consideração sobre os reais impactos da
atividade petrolífera sobre o território.
92
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
6.2 Alternativas Principistas
Certamente que as propostas pragmáticas anteriormente aventadas
longe permanecem de construir garantias para uma distribuição e aplicação dos royalties e das participações especiais que se aproxime do princípio da promoção da justiça intergeracional.
Diante dessas limitações, defende-se que são necessárias mudanças
mais substantivas na forma de rateio e aplicação dos royalties e das participações especiais, atingindo mesmo o princípio das normas vigentes. Faremos isso a partir de algumas questões norteadoras, as quais, certamente,
não esgotam a miríade de possibilidades requeridas para a reforma do marco
regulatório vigente.
Antes, porém, de passarmos às referidas indagações norteadoras, façamos uma pequena digressão, que entendemos didática, acerca da necessidade de alterações nos princípios que norteiam a distribuição das rendas do
petróleo. Como argumentado, as regras de distribuição das rendas petrolíferas foram arquitetadas quando estas eram pouco expressivas, carecendo agora de uma nova estrutura para seu rateio, uma vez que, de fato, por princípio,
a quantidade da matéria tratada pode, sim, alterar a sua qualidade.
Imaginemos, para fins didáticos, quais deveriam ser as regras de
rateio de um contêiner de alimentos entre uma população faminta. Pode-
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
93
ria ser advogado que crianças, pessoas enfermas e lactantes deveriam ser
priorizadas no recebimento dos alimentos a serem distribuídos. Agora,
imaginemos, por absurdo que seja, que tenhamos um contêiner para distribuir para cada pessoa. Certamente que não teriam qualquer razoabilidade
as regras antes defendidas. Em primeiro lugar, crianças e pessoas enfermas
estariam fora desta distribuição, dada sua inépcia para gerir um contêiner
de alimentos, ao passo que as lactantes não teriam qualquer vantagem sobre outros grupos sociais para fazê-lo. Facilmente, verifica-se que a mesma
matéria, alimento, dada sua mudança de ordem de grandeza, requer uma
forma completamente distinta de distribuição. Este é um exemplo extremo, que alerta sobre a necessidade de mudanças nos critérios de distribuição das rendas do petróleo, em razão da sua magnitude atual, muito superior
que quando as regras de rateio foram negociadas no Congresso.
Pergunta-se: a repartição atual dos royalties potencializa a adoção
de políticas de promoção da justiça intergeracional?
Em um país de enorme déficit social, amplifica-se a importância
da gestão dos fundos públicos, entre os quais, como visto, possui notória expressividade aquele formado pelas rendas petrolíferas. Se importa a boa gestão
deste fundo, este debate não pode se ater aos instrumentos que procuram garantir eficiência ao gasto, é preciso conhecer quem gasta, isto é,
quais são os entes beneficiários, com que proporções e magnitudes são
beneficiados.
Na primeira seção, vimos que, em 2008, o rateio das rendas petrolíferas (royalties + participações especiais) proporcionou uma fração de
39% para a União, 34% para os estados e 27% para os municípios. Se esse
rateio é o mais equilibrado ou não, trata-se de uma questão cuja resposta
necessariamente será atravessada pelo grau de crença do opinante sobre a
eficiência do gasto e de seu controle pelas três esferas de governo. Portanto,
tal resposta espelha uma tensão antiga entre municipalistas e centralistas.
Neste debate, interessa-nos marcar que, uma vez que a promoção da
justiça intergeracional foi escolhida como política ideal para a aplicação das
rendas petrolíferas, é destacada a importância do governo federal, tendo em
vista o seu potencialmente maior alcance articulador e coordenador de políticas de longo prazo, como, por exemplo, a de fomentar a pesquisa e o desenvolvimento de fontes alternativas de energia. Portanto, centralizar os
recursos dos royalties no governo federal, desde que vinculados a determinadas ações (e não desviados para o superávit primário, como hoje), pode ser,
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
94
sim, salutar para a política de promoção da justiça intergeracional. Desde
que isso não signifique, tampouco, uma esterilização completa da distribuição das rendas do petróleo aos governos subnacionais.
E, ainda: os critérios de confrontação (dos municípios com os campos na plataforma continental) estariam sendo fiéis ao princípio da promoção da justiça intergeracional?
Um eloquente “não” seria a resposta mais adequada. Seja qual for o
critério de confrontação adotado, se o vigente, ou os alternativos critérios
das linhas proporcionais e das linhas radiais, este não abarca os efetivos
impactos das atividades de exploração e produção sobre o território. Ora,
proximidade física não diz nada sobre impactos, a não ser que esta proximidade espelhasse a potencialidade de risco de um eventual acidente de
derramamento. Contudo, não há esta relação, pois em nenhum momento
as regras de rateio indagaram sobre a preponderância das correntes marítimas e dos ventos para entendimento das áreas potencialmente sujeitas aos
danos de um suposto derramamento.
O que importa, contrariamente à primazia da proximidade física, é
a localização territorial dos equipamentos que atendem a indústria petrolífera. Nestes municípios cujo território hospeda tais equipamentos há, de
fato, impactos, para os quais poderiam ser advogados royalties no sentido
de mitigá-los. Além disso, tais municípios, necessariamente, em virtude da
finitude da riqueza mineral, viverão um futuro de esvaziamento econômico, o qual poderia ser combatido por políticas de diversificação produtiva,
no âmbito municipal.
Dessa forma, nos parece coerente que a norma de distribuição
reequilibre o peso dos critérios no intuito de, por um lado, diminuir, ou
anular, a importância da proximidade física e, por outro, ampliar a importância da presença física dos equipamentos que servem às atividades de
exploração e produção petrolífera.
E, por fim: as aplicações das rendas do petróleo devem ser livres de
vinculações, como praticamente acontece hoje?
Deve ser sublinhada a quase total ausência na legislação vigente de
qualquer instrumento específico de controle social sobre a destinação dada
aos recursos das rendas petrolíferas. É claro que, integrando o caixa único
dos tesouros municipais, esses recursos estão sujeitos à fiscalização dos tribunais de contas estaduais. Contudo, para um controle mais efetivo da
aplicação dos referidos recursos, seria necessária uma elaboração mais de-
1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
95
talhada do plano de contas que contemplasse com clareza a vinculação
entre receita e despesa das rendas petrolíferas.
Por certo, vinculações de recursos públicos retiram graus de autonomia dos gestores democraticamente eleitos; por isso, qualquer tentativa
de engessar o gasto público pode ser alvo da sadia oposição em defesa da
referida autonomia. Porém, não estamos tratando de um recurso público
qualquer, mas sim de uma receita cuja natureza econômica, definida na
seção 1, exige a montagem de políticas de promoção da justiça intergeracional.
Tomando-se como exemplo as normas de repasses municipais vigentes no Sistema Único de Saúde (SUS) ou no Fundo de Manutenção do
Ensino Básico (Fundeb), verifica-se a exigência legal de conselhos gestores
e fiscalizadores das receitas destes programas. A importância dos recursos
das participações governamentais para o destino das regiões petrolíferas e
suas áreas de influência poderia também justificar mecanismos especiais,
previstos em lei, de consulta e fiscalização sobre sua destinação.
A complexidade da discussão política que envolve a decisão do que
venha a ser investimentos voltados para a promoção da justiça intergeracional no âmbito local, aliado ao próprio processo de ampliação dos espaços democráticos de participação no país, indicam a oportunidade de se
prever em lei arranjos democráticos para a decisão sobre a alocação de
parte ou de toda a receita de royalties repassada à esfera local.
Esse princípio também pode ser aplicado aos recursos centralizados
pela União. A experiência mundial mostra que a melhor forma de se lidar
com a volatilidade das receitas do petróleo (relacionadas às variações de
preços) é através da criação de fundos de poupança, que acumulam parte
dos royalties para ser utilizada pelas gerações futuras e destinam às gerações presentes uma fração dessa riqueza. Esse modelo é mais adequado à
justiça intergeracional e evita que governantes gastem “por conta”, aproveitando situações de pico nos preços internacionais, como em 2008.
Ou seja, a criação de um fundo com as receitas dos royalties resolve
dois problemas simultaneamente: evita que todos os recursos sejam gastos
no presente e que os gastos do presente também estejam sujeitos a uma
flutuação indesejável. Em outras palavras, cria-se uma fonte de renda permanente para as atuais e futuras gerações.
É assim, por exemplo, que as coisas funcionam na Noruega, país
que se tornou paradigma no atual debate brasileiro sobre o novo modelo
de regulação do setor petrolífero. O alto círculo governamental, entretanto, tem priorizado esse debate pelo lado dos negócios, relegando a um
segundo plano os exemplos positivos oferecidos pela experiência norueguesa no tocante à aplicação dos recursos.
O motivo para tal comportamento é que o governo teme que, ao
discutir a divisão dos recursos entre os entes federados, desperte a reação
organizada dos lobbies contrários às mudanças e que isso acabe inviabilizando toda e qualquer mudança na Lei do Petróleo. Cabe à sociedade civil,
portanto, fazer a pressão em sentido contrário, garantindo que o governo
não fique refém de grupos políticos e econômicos nesse debate, tão importante para os interesses nacionais.
É importante discutir o modelo de exploração do petróleo e a forma como governo e setor privado vão se associar na exploração do pré-sal,
mas também é vital que se discuta o destino que será dado aos recursos
públicos. Nada adianta concebermos um belo modelo de exploração que
garanta ao setor público uma fatia considerável da renda do petróleo se
esse dinheiro continuar sendo mal aplicado pelos governos federal, estaduais e municipais.
96
SÉRGIO WULFF GOBETTI; RODRIGO VALENTE SERRA
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97
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1.2 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO E APLICAÇÃO DOS ROYALTIES NO BRASIL
OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos
sociais. São Paulo: Edusp, 1999.
PARTE II
ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS
COM PROJETOS MDL
2.1
ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM
DE PROJETOS MDL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE SOBRE O ACESSO DE PEQUENAS
E MÉDIAS ORGANIZAÇÕES AOS MERCADOS DE CARBONO
Cecília Mariano Michellis
INTRODUÇÃO
O mercado de carbono é uma das principais propostas de combate
às mudanças climáticas regulamentadas pelo Protocolo de Quioto. No
entanto, conciliar mecanismos financeiros e promoção do desenvolvimento sustentável tem se mostrado uma tarefa árdua.
Com mais de 4.000 projetos em diferentes estágios de desenvolvimento no mundo, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) passou a
receber duras críticas que envolvem tanto a credibilidade de suas reduções de
emissão quanto a sua real contribuição para o desenvolvimento sustentável.
Ao se perguntar quais seriam as contribuições do MDL para o desenvolvimento sustentável, algumas considerações preliminares precisam ser levadas em conta. Primeiramente, o desenvolvimento sustentável é um conceito
amplo, político e ainda não plenamente legitimado, e mensurar o desenvolvimento, seja ele sustentável ou não, é sempre algo muito duvidoso devido à
natureza multidimensional do processo de desenvolvimento (VEIGA, 2008).
Outro ponto importante é que muitas das críticas ao MDL concentram-se na questão da justiça social, envolvendo a repartição dos benefícios
gerados pelo MDL em países emergentes, diante de uma crescente percepção de que o mecanismo passou a ser apenas mais uma commodity ambiental.
*
Artigo baseado no trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Gestão Ambiental
apresentado à Universidade de São Paulo (USP) em 2008.
CECÍLIA MARIANO MICHELLIS
1 O MDL E A QUESTÃO SOCIAL: CONTRIBUIÇÃO PARA
DIMINUIÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS
E REDUÇÃO DA POBREZA?
Uma leitura da Convenção do Clima e do Protocolo de Quioto revela
que, embora ambos estabeleçam como premissa a busca pelo desenvolvimento
sustentável e o auxílio aos países pobres, nenhum deles considera explicitamente a redução das desigualdades sociais como um de seus objetivos.
Como a questão social não é abordada de forma específica e explícita,
mas incorporada no amplo escopo do desenvolvimento sustentável, muitas
vezes ela é relevada a um segundo plano, sendo que a redução das desigualdades sociais passa a ser considerada ‘opcional’ na contribuição para o desenvolvimento sustentável.
Cabe a cada país estabelecer seu próprio critério de avaliação da contribuição dos projetos MDL para o desenvolvimento sustentável, sendo que,
no caso do Brasil, a Comissão Interministerial de Mudanças Globais do
Clima (CIMGC) definiu cinco critérios que são avaliados no momento da
aprovação do projeto pela Autoridade Nacional Designada1.
Embora esses critérios considerem inclusive a contribuição para a distribuição de renda para as comunidades mais pobres, em geral, os documentos2 apresentados à CIMGC constituem algumas páginas com informações
pouco específicas. O mais comum é encontrar breves descrições dos impactos sociais e econômicos dos projetos, ou seja, um resumo das conclusões
dos estudos de impacto ambiental realizado antes da implantação do empreendimento.
O que vemos hoje, portanto, são critérios para avaliar a contribuição
do projeto para o desenvolvimento sustentável, mas não da efetividade do
MDL em si.
Esses critérios ponderam a contribuição da “hidrelétrica x” ou do
“parque eólico y” para o desenvolvimento sustentável, mas não incluem uma
avaliação mais profunda que leve em consideração questões como quem são
os reais beneficiários da transferência de recursos dos países ricos para os
países pobres através do MDL.
102
1
2
Uma das etapas do desenvolvimento e aprovação de projetos MDL.
Também conhecido como Anexo III, documento que apresenta uma avaliação da contribuição do projeto para o desenvolvimento sustentável.
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM DE PROJETOS MDL NO BRASIL
103
Em virtude dessa abordagem pontual e fragmentada, a contribuição
para o desenvolvimento sustentável do MDL passou a ser questionada, sendo
observada uma tendência dos mecanismos financeiros e de certificação dos
projetos em excluir as organizações e comunidades que mais necessitam de
suporte financeiro para viabilizarem seus projetos nesse mercado. Cabe também comentar que o MDL muitas vezes é encarado como um instrumento
que dá o direito de continuar poluindo através de custo de oportunidade menor dos adquirentes.
El Khalili (2001) chama atenção para o fato de os debates sobre MDL
e mercados de carbono até o momento apresentarem uma forte tendência de
repetição de um modelo centralizador de commodities convencionais e títulos
em grandes centros financeiros, desconsiderando a necessidade de compatibilizar
a geração e distribuição de renda em países pobres com a conservação ambiental.
Lembrando que o objetivo do MDL é transferir dinheiro dos países
ricos para os países pobres como forma de incentivo à redução de emissões,
qual seria a eficiência desse mecanismo se a realidade fosse a transferência de
recursos de países ricos para empresas ricas?
Se esse for o caso, as soluções encontradas para mitigação das mudanças
climáticas nos países em desenvolvimento seriam, portanto, um exemplo de
como a justiça (ou injustiça) distributiva pode gerar resultados questionáveis.
No caso da proposta de comercialização de créditos de carbono, é evidente que
quem tem a obrigação de pagar são os poluidores. Já a definição de quem
poderia se beneficiar não é tão tangível.
Por exemplo, considerando um grupo multinacional com sede em um
país com metas de redução e subsidiárias em países em desenvolvimento, seria
possível um sistema onde, ao desenvolver um projeto MDL, a empresa se
beneficie duplamente: primeiro através de aquisição de reduções a preços mais
baratos em países pobres e depois através da transferência de lucros provenientes da venda dos créditos de carbono para a matriz.
Seria justo que organizações multinacionais se beneficiem quase que
exclusivamente da venda de créditos de carbono? Seria o MDL apenas mais
uma commodity convencional centralizada nas mãos de grandes corporações?
Podemos dizer que um mecanismo que desconsidera a questão social contribui para o desenvolvimento sustentável?
A visão clássica de sustentabilidade baseada no tripé ambiental, econômico e social diria que não, que o desenvolvimento só é sustentável na medida
em que incorpora essas três esferas de forma harmoniosa.
No entanto, um relatório coordenado por oito organizações nãogovernamentais na China, incluindo WWF, Greenpeace, Friends of Nature,
afirma que, como mecanismo de mercado, o MDL não pode resolver problemas de desigualdade. Na China, país com maior quantidade de projetos MDL, a maioria dos beneficiários desse mecanismo é composta por
grandes empresas em zonas urbanas ou industriais, enquanto as zonas rurais, consideradas mais vulneráveis às mudanças climáticas, não são beneficiadas (FEASIBILITY STUDY…, 2008).
2 MDL, UM MECANISMO PARA GRANDES CORPORAÇÕES
104
CECÍLIA MARIANO MICHELLIS
Um levantamento dos projetos MDL no Brasil também revela essa
mesma tendência relatada na China. Em agosto de 2008, o Brasil possuía
310 projetos MDL que já haviam iniciado os procedimentos de validação,
ocupando o terceiro lugar em número de projetos no mundo, com 8% do
total, perdendo para a China, com 1.343 projetos, e para a Índia, com
1.082 projetos.
A Autoridade Nacional Designada Brasileira, responsável por avaliar a contribuição do projeto para o desenvolvimento sustentável, havia
aprovado, até outubro de 2008, 191 projetos desses projetos.
Por meio de um levantamento baseado nesses 191 projetos aprovados, foi possível classificar as organizações proponentes de projetos MDL
em 14 categorias diferentes. A Tabela 1 apresenta o perfil das empresas que
desenvolvem projetos MDL, segundo essa classificação:
Tabela 1: Perfil das Empresas que Desenvolvem Projetos MDL no Brasil
por Grupos
Proponentes de
Ranking Projetos MDL
1º
2º
3º
4º
Grupos e corporações
Fazendas de suínos
Usinas sucroalcooleiras
Empresas de energia S.A.
Número de
projetos
%
41
35
28
26
21,5
18,3
14,7
13,6
Continua...
5º
6º
7º
8º
9º
10º
11º
12º
13º
14º
Total
Empresas de resíduos sólidos
Agroindústria
Empresas Ltda.
Indústria química & petroquímica
Grandes beneficiadoras de arroz
Siderúrgicas S.A.
Emp. celulose S.A.
Cooperativas rurais
Pública
Pequenos agricultores
191
Número de
projetos
%
15
10
7
7
6
6
5
2
2
1
7,9
5,2
3,7
3,7
3,1
3,1
2,6
1,0
1,0
0,5
100,0%
Fonte: dados elaborados pela autora.
Por ordem de representatividade, destacam-se:
Grupos
e corporações: com 22% do total e projetos aprovados, essa clas•
se inclui empresas diversas, de sociedade anônima (SA) ou sociedades de
propósitos específicos (SPE), consideradas de grande porte, ou estão ligadas a grupos empresariais e corporações por intermédio de seus principais acionistas, que não se enquadram nas demais classificações.
• Fazendas de suínos: com 18% de representatividade. Esse grupo poderia ser
considerado como de médias e pequenas organizações, pois se trata de projetos compostos por conjuntos de fazendas de suínos que possuem entre
1.000 e 20.000 animais. No entanto, em todos os projetos de suinocultura
no Brasil, o proponente descrito no Documento de Concepção do Projeto,
e, conseqüentemente, a organização detentora dos créditos, é a empresa Agcert,
considerada uma das grandes empresas de consultoria de carbono no Brasil.
A AgCert desenvolveu a metodologia utilizada nesse tipo de projeto, iniciando, em 2003, um processo de negociação com os representantes para a
inclusão das fazendas em um projeto MDL.
105
Proponentes de
Ranking Projetos MDL
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM DE PROJETOS MDL NO BRASIL
...Conclusão
CECÍLIA MARIANO MICHELLIS
106
• As usinas sucroalcooleiras seguem em terceiro lugar, com 15% do total
de projetos. Cada uma dessas indústrias chega a empregar até 2.000 trabalhadores diretamente durante a estação de colheita. As produtoras de
açúcar e álcool têm papel de destaque em razão da grande quantidade de
projetos de co-geração com bagaço de cana, que representam 32% da
capacidade total instalada (MW) das atividades de projeto MDL.
• O quarto grande grupo é o de sociedades anônimas de energia elétrica,
em geral, associadas a projetos de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs)
ou energia eólica.
• Por fim, o quinto maior grupo são as empresas de resíduos sólidos, proprietárias ou administradoras de aterros sanitários associados a projetos
de captura e queima de gases de aterro. Embora representem apenas 9%
do total de projetos, em termos de redução de emissões anuais ficam em
segundo lugar, com cerca de 20% do total de CERs (MCT, 2008).
Portanto, de acordo com a pesquisa, podemos classificar os proponentes de projeto em dois grandes grupos, quais sejam:
Organizações de grande porte: proprietárias de 68% dos projetos
aprovados pela CIMGC, incluem grupos empresariais e corporações, usinas sucroalcooleiras, sociedades anônimas dos ramos de energia, celulose e
siderurgia, grandes empresas da agroindústria, petroquímicas, entre outros.
Importante destacar também que, dos 191 projetos aprovados, 59
(24%) pertencem a empresas listadas no ranking das 500 maiores sociedades anônimas (SA) do Brasil, em 2007, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV,
2008). Entre essas empresas, destacam-se nomes como Petrobrás, Ambev,
Grupo Pão de Açúcar, CST, Bunge, Sadia, Cargill, CPFL Energia, Perdigão, Klabin, Tractebel, V&M do Brasil, AES Tietê, Votorantin, Brascan
Energia, além das principais empresas no setor sucroalcooleiro brasileiro
como Zillo Lorenzetti, Usina Barragrande e agroindústria como a Josapar.
Organizações de pequeno e médio porte ou públicas: representando 32% do total de projetos aprovados sendo que: 56% dos projetos desenvolvidos por organizações de pequeno e médio porte (18% do total)
constituem projetos de fazendas de suínos, cujo proponente de projeto é
na verdade uma empresa de consultoria em carbono; somente um é proposto por pequenos agricultores, dois por cooperativas rurais e dois por
organizações públicas; nenhum projeto aprovado possui a participação de
comunidades de baixa renda.
Os demais projetos são desenvolvidos por empresas de médio e pequeno porte diversas, como algumas empresas limitadas, produtoras de
energia independente, e gestoras de aterros sanitários, que compõem aproximadamente 8% do total de projetos.
3.1 Pequenas e Médias Empresas
A maior parte das micro, pequenas e médias empresas concentramse no setor de comércio e de serviços, considerados de baixo potencial para
o desenvolvimento de projetos de redução de emissões.
No entanto, mesmo considerando apenas o setor industrial que possui maior potencial, este representa 42,9% de todo o emprego industrial
no país, somando um total de mais de 285.000 estabelecimentos industriais
(SEBRAE, 2008).
Em um primeiro momento, micro e pequenas empresas podem parecer pouco atrativas por gerarem um montante reduzido de emissões quando comparadas a grandes indústrias, mas ainda assim possuem potencial
para adentrar no mercado de créditos de carbono.
3
Cuja definição nesse trabalho tomou por base orientações do Serviço de Apoio à Micro e
Pequena Empresa (Sebrae), que considera o número de empregados do estabelecimento.
107
O que se observa, portanto, é que nos últimos anos as experiências
com o MDL tiveram seu foco em projetos realizados por empresas de
grande porte, enquanto pequenas e médias organizações não tiveram uma
oportunidade de atuação significativa, embora desempenhem um papel
importante na economia brasileira.
Em relação às pequenas e médias organizações, destacam-se dois
grupos distintos que podemos considerar de maior potencial para a execução de atividades MDL no Brasil, quais sejam: as pequenas e médias empresas3; comunidades tradicionais ou de baixa renda devido ao seu potencial
(até o momento predominantemente teórico, porém bastante enfatizado
nas discussões) de desenvolvimento de projetos florestais no âmbito do
Land Use, Land Use Change and Forestry (LULUCF).
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM DE PROJETOS MDL NO BRASIL
3 PEQUENAS ORGANIZAÇÕES E SEU POTENCIAL
CECÍLIA MARIANO MICHELLIS
108
Podemos citar como exemplo a indústria de cerâmica vermelha,
em que empreendimentos com menos de 20 empregados são capazazes
de gerar quantidades significativas de redução de emissões.
É o caso de uma das Indústrias Cerâmicas localizada entre a divisa
dos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, que conta com 17 empregados apenas. A indústria possui um projeto com período creditício de
dez anos, de abril de 2006 a março de 2016, e irá reduzir uma média anual
de 13.021 toneladas de CO2equ.
A cerâmica consumia lenha nativa do Cerrado, prática que induzia o desmatamento nessa região. Em países em desenvolvimento como
o Brasil, as práticas de mudança do uso do solo, como desmatamento e
abandono de áreas cultivadas, representam mais de 70% das emissões de
CO2.
O empresário responsável optou, então, por desenvolver o projeto
no âmbito do mercado voluntário devido a diversos fatores, como menores custos, facilidade de aprovação e também porque na data de início
do projeto este não era elegível ao MDL.
O projeto consistia na substituição de combustível, trocando a
lenha nativa, utilizada para alimentar os fornos, por biomassa renovável,
como bagaço de cana e cavaco e serragem de áreas de reflorestamento.
Financeiramente, em um cenário conservador de US$5,00 a tonelada de CO2equ, isso poderá representar uma receita de aproximadamente US$65.000,00 por ano para o empreendedor. Além disso, o projeto
de carbono teve um importante papel na geração de benefícios sociais e
ambientais adicionais para a empresa, como, por exemplo:
• criação de uma nova cultura organizacional: o meio ambiente que antes
era visto como um empecilho ao desenvolvimento das atividades industriais devido sobretudo às dificuldades de obtenção de licenças e autorizações ambientais e após o projeto passou a ser entendido como uma
oportunidade de melhoria e ser incorporado no discurso e estratégia de
marketing empresarial.
• Regularização das atividades: obtenção e monitoramento da emissão de
licenças e autorizações ambientais, como licenças de operação, licenças
para extração de argila, outorga para uso de águas através de poços etc.,
necessárias para a certificação do projeto de redução de emissões.
• Estabelecimento de controles de produção e de monitoramento da curva de queima.
• Melhoria da imagem da empresa: divulgação do projeto e da empresa
através de revistas, jornais, TV e internet. A Cerâmica em questão
contabilizou mais de vinte publicações, nacionais e internacionais, relacionadas ao seu projeto.
3.2 Comunidades Tradicionais ou de Baixa Renda
4 PRINCIPAIS BARREIRAS
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM DE PROJETOS MDL NO BRASIL
A despeito de seu potencial, as pequenas e médias organizações parecem ter grande dificuldade em obter os benefícios da comercialização de
109
Dentre os projetos MDL, as atividades de reflorestamento são as
que aparentam ter maior potencial de inclusão de comunidades de baixa
renda. A UNFCCC faz menção direta de projetos executados por comunidades de baixa renda somente no caso de projetos florestais; para as demais atividades, como energia renovável, eficiência, tratamento de resíduos
etc, não há abordagem específica sobre o envolvimento de comunidades
no desenvolvimento de projetos.
Nesse sentido, a UNFCCC determina que atividades de florestamento e reflorestamento com remoções de até 8.000 toneladas de CO2/
ano implementadas por comunidades ou indivíduos de baixa renda, conforme definição do país em que se encontram, podem ser consideradas de
pequena escala e, portanto, possuem procedimentos menos complexos de
elaboração, aprovação e registro (ROCHA, [2007]).
Paradoxalmente, os projetos florestais são considerados os de maior
complexidade entre as atividades elegíveis ao MDL, com maiores custos
de transação e maiores riscos. O Brasil não possui nenhum projeto florestal aprovado até o momento, porém tem-se conhecimento de um projeto
promovido pela AES Tietê, que pretende reflorestar suas Áreas de Preservação Permanente ao redor dos reservatórios, que foi notícia em escala
nacional por ter conseguido aprovar uma metodologia nova.
Até o momento, a maioria dos projetos-piloto de sumidouro de
carbono (reflorestamento e florestamento) falhou ao enfrentar o desafio de
alcançar a melhoria nas condições de vida nos países em desenvolvimento
mediante comercialização de créditos de carbono (BOYD; GUTIERREZ;
CHANG, 2007).
créditos de carbono. O que se observa no mercado de carbono é a reprodução do caráter dominante das grandes empresas e corporações sobre a economia, ou seja, os atores com maiores recursos e poder se beneficiam quase que
exclusivamente dos resultados do mercado em questão, restando aos grupos
menos poderosos o aproveitamento de oportunidades pontuais4.
Para Celso Furtado (apud VEIGA, 2008), a diferença entre crescimento econômico e desenvolvimento é que o primeiro vem-se fundando
na preservação de privilégios das elites, já o segundo se caracteriza pelo seu
projeto social:
110
CECÍLIA MARIANO MICHELLIS
Dispor de recursos para investir está longe de ser condição suficiente
para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida
dessa população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento.
Portanto, falar de desenvolvimento sustentável sem considerar um
programa social que inclua a necessidade de distribuição de renda e melhoria
da qualidade de vida das populações é fazer vista grossa a um modelo que
visa apenas à manutenção dos privilégios das elites.
Aspecto ainda mais contraditório, considerando que as grandes organizações são também as maiores poluidoras e paradoxalmente as populações
mais vulneráveis aos impactos adversos das mudanças climáticas, serão as comunidades de baixa renda que não se beneficiam desse mecanismo de mercado.
Em um cenário estável, é de se esperar que, sem uma interferência
no sistema, essa situação se perpetue ao longo do tempo, não havendo
espaço para que os grupos marginalizados, como pequenas empresas e comunidades de baixa renda, se sobressaiam, pois a ordem social (as regras e
estrutura do mercado) é estabelecida de forma a garantir essa perpetuação.
É evidente que, até o momento, os benefícios do MDL foram fortemente centralizados nas grandes empresas pela sua vantagem competitiva
no mercado, mas alguns pontos específicos contribuíram grandemente para
essa desvantagem. Uma pesquisa preliminar identificou algumas das principais dificuldades enfrentadas por pequenas empresas e comunidades em
desenvolver projetos MDL, conforme o Quadro 1.
4
Baseado nas teorias de Fligstein (2001) sobre campos (fields) e habilidades sociais (social skills).
Quadro 1: Barreiras para as Pequenas Empresas e Comunidades Desenvolverem Projetos MDL
Riscos de não aprovação do projeto
Dos projetos MDL existentes, espera-se
que menos de 70% conseguirão ultrapassar as etapas de validação até a emissão de créditos, segundo a The Carbon
Rating Agency. Embora esses fatores não
afetem exclusivamente pequenas organizações, mas também grandes corporações, é importante destacar que pequenas
empresas em geral são mais vulneráveis
a esse tipo de ocorrência que incluem
altos investimentos iniciais, seja de tempo ou capital, nenhum retorno em curto prazo e alto risco de aprovação dos
projetos.
Os projetos de redução de emissões estão, em geral, associados à implantação
de novas tecnologias mais modernas e eficientes e/ou que busquem a mudança no
processo produtivo, por exemplo, fontes
inovadoras de energia renovável (solar,
eólica etc.), substituição de máquinas
mais eficientes (eficiência energética),
equipamentos especializados (biodigestores e sistemas de queima de gases), entre outros. No entanto, o acesso a novas
Continua...
111
Burocratização dos procedimentos
de certificação e registro
De acordo com a Carbon Rating Agency,
projetos MDL demoram em média cerca
de 300 dias para passar da etapa inicial
de validação para o registro na UNFCCC.
Considerando os 60 dias necessários para
a elaboração do projeto e o período de
um ano necessário para a primeira verificação e emissão dos créditos, uma organização só terá um primeiro retorno
do valor investido no projeto MDL após
um período mínimo de dois anos.
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM DE PROJETOS MDL NO BRASIL
Barreiras
...Continuação...
Barreiras
112
CECÍLIA MARIANO MICHELLIS
Dificuldade de acesso
a novas tecnologias
tecnologias é uma das principais dificuldades encontradas em pequenas
organizações. Embora conste como responsabilidade de todas as Partes do Protocolo de Quioto cooperar em prol da
transferência e acesso a tecnologias, poucos foram os resultados conseguidos
nesse sentido.
A baixa capacidade administrativa das
pequenas e médias organizações dificulta seu acesso ao mercado de carbono de
duas formas principais. Primeiramente,
devido à ausência de estudos de mercado, incluindo novos mercados como o
de carbono. Em segundo lugar, pode dificultar procedimentos de obtenção da
certificação do projeto de redução de
emissões. Muitas vezes essas organizações
não estão prontas ou têm dificuldade em
revelar as informações que garantam a
credibilidade dos créditos durante uma
auditoria da DOE(1), devido à ausência
de procedimentos de controle e documentação necessária ou dificuldade em
sistematizar as informações.
As dificuldades administrativas internas
podem ser caracterizadas como a ausência de controles e sistemas de gestão de
recursos humanos, financeiros e naturais.
A falta de controle administrativo é agravada pela baixa escolaridade dos trabalhadores também, que têm dificuldade
em atender aos requisitos necessários para
certificação.
Adicionalmente, em alguns casos a informalidade trabalhista ou irregularidades
em questões ambientais, comuns a peContinua...
Conclusão
Custos de transação elevados
No caso de projetos MDL, além dos custos
de implantação da tecnologia, os custos de
transação iniciais de elaboração, aprovação,
registro, validação e verificação, ou seja, antes da emissão dos créditos, podem variar
em média de US$50.000,00 a US$200.00,00,
podendo ultrapassar US$ 400.000,00 dependendo da complexidade do projeto
(IETA’S, 2007).
Baixa quantidade de créditos gerados e pouca atratividade financeira
Considerando que os custos de transação,
em geral, não são menores para pequenas e
médias organizações, já que os procedimentos são os mesmos, a falta de interesse nos
projetos é ainda maior, pois os projetos de
grandes empresas são capazes de gerar uma
maior quantidade de créditos com custos de
transação semelhantes.
Falta de assessoria técnica
e desconhecimento
O desconhecimento das oportunidades no
mercado de carbono é apontado como um
dos principais entraves, sendo que as experiências são pouco divulgadas entre pequenas e médias empresas.
Nota: (1) Entidade Operacional Designada (do inglês Designated Operational Entity): empresa responsável por realizar uma auditoria independente do projeto e das reduções de emissões, procedimentos conhecidos como validação e verificação.
Fonte: dados elaborados pela autora.
Além dessas, existem barreiras específicas de projetos envolvendo
comunidades e populações tradicionais, que incluem as relacionadas no
Quadro 2.
113
Baixa capacidade administrativa da
organização proponente do projeto
quenas e médias organizações, pode resultar
na impossibilidade de certificação do projeto de carbono por uma terceira parte independente.
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM DE PROJETOS MDL NO BRASIL
Barreiras
Quadro 2: Barreiras Específicas de Projetos
114
CECÍLIA MARIANO MICHELLIS
Barreiras
Risco de diminuir o acesso e flexibilidade de uso da terra para as comunidades
O que poderia resultar na restrição do
acesso das comunidades a terra e a produtos florestais essenciais para sua sobrevivência. Um exemplo é o caso de
um projeto na Costa Rica onde muitos
camponeses pobres abandonaram o projeto MDL, pois a geração de créditos
impedia o uso da terra para outros usos
e ao mesmo tempo só teria um rendimento em longo prazo, optando, portanto, por reaver o acesso às suas terras
para outros fins com renda em prazos
mais curtos.
Maiores riscos para
investidores
Devido a maiores custos de transação e
complexidade do projeto. Créditos provenientes de projetos florestais não são
aceitos no maior mercado regulado de
CERs, o mercado europeu.
Questões de regularização
fundiária
Em comunidades tradicionais ou de baixa renda, a grilagem e irregularidade
fundiária é comum, sendo que muitas
vezes não existem certidões de propriedade legal da terra, inviabilizando a
aprovação de um projeto MDL.
Baixa capacidade de gestão das
comunidades
E consequente dependência de ajuda
contínua de outras organizações.
Pouca familiaridade de comunidades
com mecanismos globais de mercado
Projetos MDL envolvem procedimentos de transação pouco familiares para
comunidades tradicionais como uma
terceira parte auditora e altos custos de
transação. No caso específico do mercado de carbono, as disparidades aumentam, pois tratam-se de um mercado
global, envolvendo diversos parceiros
comerciais, com conjunto de valores
muitos distintos.
Fonte: dados elaborados pela autora.
5 ALTERNATIVAS
Após algumas experiências, duas alternativas para a inclusão de pequenas e médias organizações no mercado de carbono merecem destaque: a primeira consiste na identificação de oportunidades em outros mercados mais
flexíveis, como o mercado voluntário de carbono; a segunda seria a atuação
estratégica de pessoas e organizações na promoção de projetos de MDL.
5.2 Ação dos Atores Sociais
Atores sociais5 seriam pessoas ou organizações capazes de incentivar a
cooperação entre as partes e facilitar o desenvolvimento de projetos MDL por
pequenas e médias organizações, diminuindo as principais barreiras enfrentadas.
5
Essa é uma das propostas de Flingstein (2001) sobre como os atores com habilidades
sociais (social skills) que não estão na posição de dominância podem interagir para
alterar a ordem social estabelecida.
115
Uma das soluções encontradas pelas pequenas organizações que
desejam desenvolver projetos de mitigação de mudanças climáticas foi inseri-los no chamado Mercado Voluntário de Carbono (MVC).
O Mercado Voluntário surgiu paralelamente ao mercado de créditos de carbono do Protocolo de Quioto, como parte das iniciativas voluntárias de empresas e instituições que não possuem obrigações de reduzir
emissões, mas que desejam compensá-las mediante a aquisição de créditos
de carbono em um mercado não-Quioto, denominado informalmente de
Mercado Voluntário de Carbono (ou Non Kyoto Compliance).
A principal diferença em relação ao MDL, é que, no caso do MVC, não
há procedimentos pré-estabelecidos, portanto a definição da rigidez dos critérios
de certificação é definida pelo mercado, sem a interferência de um órgão regulador oficial. Em alguns casos, a certificação nem é uma exigência, ficando a critério do comprador definir os requisitos a serem atendidos pelo projeto.
Portanto, o MVC apresenta duas vantagens sobre o MDL: sua maior
flexibilidade e menores custos de transação, dependendo das condições estabelecidas, como não necessidade de passar por algumas das etapas do ciclo MDL.
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM DE PROJETOS MDL NO BRASIL
5.1 Explorar Oportunidades no Mercado Voluntário de Carbono
CECÍLIA MARIANO MICHELLIS
116
No caso do mercado de carbono, atores que poderiam desempenhar tais papéis incluem especialmente instituições do terceiro setor e
associações setoriais (de indústrias, pequenos produtores, pólos regionais etc.).
Um exemplo do que aqui definimos como atores sociais é o caso
do Sebrae-SP, com o APL Arranjo Produtivo Local (APL) de Cerâmica
Vermelha e o Instituto Ecológica. O Instituto havia desenvolvido com
sucesso, em 2006, um projeto de créditos de carbono em uma indústria
cerâmica do estado do Tocantins. O projeto consistia em substituir o uso
da lenha nativa, um combustível considerado como não renovável devido
ao desmatamento, por biomassas renováveis, como resíduos agropecuários
(casca de arroz, bagaço de cana etc.).
Ao tentar expandir essa experiência de sucesso para outras regiões,
em particular o estado de São Paulo, embora os projetos fossem viáveis e
interessantes para os empresários, o Instituto passou a enfrentar uma
série de dificuldades.
O primeiro obstáculo era identificar as empresas. Como em sua
maioria as cerâmicas são empresas familiares e de pequeno porte, era
difícil conseguir informações ou entrar em contato com os empresários.
Em seguida, mesmo após o primeiro contato, a maior parte dos empresários demonstrava uma clara desconfiança em relação ao projeto.
Mudanças climáticas e créditos de carbono não são temas recorrentes para o micro e pequeno empresário. Por esse motivo, ao se apresentar como Instituto Ecológica, coletando informações sobre uso de
lenha nativa, muitos dos proprietários ficavam desconfiados e preferiam
não dar informação. Mesmo aqueles que entendiam as reais intenções do
Instituto acabavam se desinteressando pelo projeto, pois como nunca
ouviam falar de projetos semelhantes, achavam que jamais daria certo.
O Instituto Ecológica então procurou o auxílio do Sebrae-SP, que
não só achou a iniciativa interessante, como passou a introduzir o Instituto no meio empresarial dos ceramistas. Além de fornecer informações
importantes, como principais pólos industriais e empresários mais motivados a cooperar, o Sebrae teve um importante papel em transmitir confiança aos ceramistas, que passaram a se interessar mais pelos projetos.
Após dois anos de trabalho, mais de oito cerâmicas do pólo de
Presidente Prudente, no interior do estado de São Paulo, estão desenvolvendo projetos de carbono, sendo que duas delas já comercializaram seus
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM DE PROJETOS MDL NO BRASIL
117
créditos. Com o sucesso dos projetos, outros empresários passaram a
procurar assessoria para desenvolvimento de seus próprios projetos.
Outro exemplo da importância da atuação do Instituto Ecológica
como um ator social foi no desenvolvimento do projeto Carbono Florestal. O projeto pretende reflorestar 150 hectares de pequenas propriedades
de assentados rurais do estado do Tocantins. Esses produtores possuem
baixa escolaridade, e muitos deles vieram de áreas urbanas, sem o conhecimento sobre como utilizar a terra. Para essas comunidades, desenvolver
um projeto de reflorestamento seria inviável por si só.
O Instituto Ecológica teve um papel fundamental na concretização
do projeto, que incluiu a capacitação da comunidade, a contratação de
empresa consultora para o desenvolvimento do projeto de carbono e a
assessoria técnica no reflorestamento, além de buscar investidores internacionais para o projeto.
O que se pretende demonstrar com essas experiências é que, tanto
pequenas empresas como comunidades de baixa renda, embora possuam
boas oportunidades de desenvolverem projetos viáveis de créditos de carbono, acabam perdendo sua chance devido à falta de conhecimento sobre
o mercado de carbono e a baixa capacidade institucional.
Sem o auxílio de outras organizações ou pessoas que possam ajudálas a conquistar um espaço no MDL, é pouco provável que o mercado de
carbono deixe de ser dominado pelas grandes empresas.
Além de conciliar empresas consultoras em carbono, desenvolvedores
de projetos (empresas e comunidades) e financiadores, os atores sociais
têm um papel ainda mais importante: o de tentar alterar o atual marco
institucional do MDL.
Ambas as iniciativas citadas foram desenvolvidas dentro do MVC e
não do MDL, contemplado pelo mercado de Quioto. Isso por que os critérios e procedimentos para aprovação e registro pelas Nações Unidas são
demasiadamente lentos e burocráticos. Nenhum desses projetos se
viabilizaria dentro do MDL, não devido à baixa qualidade do projeto, mas
porque essas organizações não teriam capacidade de arcar com custos de
até US$400.000,00 e a burocracia do processo, podendo decorrer mais de
três anos antes da emissão dos primeiros créditos.
Para aqueles que desejam desempenhar o papel de um ator social e
ver concretizadas suas iniciativas no âmbito do MDL, cabe lembrar que as
principais áreas em que se deve atuar são:
CECÍLIA MARIANO MICHELLIS
118
• a construção de um contexto, um cenário6 comum capaz de induzir a
cooperação entre os diferentes atores, ajudando-os a entender o que de
fato está acontecendo e assim poder tomar decisões e atitude. Publicar e
divulgar o atual status em que se encontram os projetos MDL, informações que evidenciem os casos de sucesso e as dificuldades encontradas são
fundamentais para mobilizar o público e induzir a ação. Em outro escopo,
cursos, publicações e eventos, preferencialmente mediante parcerias locais, são fundamentais para transmitir as informações para aqueles que
têm maior dificuldade de acesso a ela, como a pequena e média empresas,
criando uma cultura entre essas organizações para a identificação de oportunidades no mercado de carbono, as necessidades e meios de cooperação.
Divulgação de casos bem sucedidos através de notícias em jornais de grande circulação, ou circulação local e reportagens em meios de comunicação
de massa como TV e rádio, embora contenham pouco conhecimento técnico, costumam chamar a atenção de diferentes atores da sociedade.
• A definição de agenda: após construir um cenário capaz de mobilizar os atores
envolvidos no seu projeto, para que sua mobilização não seja em vão é preciso
o estabelecimento de um consenso sobre os termos importantes a serem discutidos, como necessidade de levantamento de dados com as empresas, pólos de
atuação, prioridades, objetivos etc., pois mudanças climáticas é um tema muito complexo e extenso, e, ao envolver e articular uma grande quantidade de
pessoas e instituições, é possível que surjam interesses distintos.
• A intermediação entre atores: procurando conciliar interesses entre as
associações de indústria e de produtores e outros atores, como empresas
especializadas em carbono e financiadores para a realização de projetos.
Como relatado no caso do Sebrae-SP, muitas vezes as dificuldades podem ser resolvidas com a simples articulação de um ator que seja capaz
de transmitir confiança e conciliar interesses e benefícios comuns.
• Outra forma de intermediação é o agrupamento de projetos. Além de
aumentar a quantidade de créditos gerados, aumentando consequentemente a atratividade financeira, ele diminui os custos de transação associados à sua elaboração, certificação e seu registro. Os projetos bundling
agregam projetos que utilizam tecnologias semelhantes e metodologias
de linha de base e monitoramento iguais. Os projetos de tratamento de
6
Framing.
resíduos com granjas de suínos, bastante comuns no Brasil, são um exemplo de projetos bundling em que o objetivo é agrupar as granjas para o
uso de um único biodigestor, diminuindo não só custos de transação
como também de implantação do projeto.
Um fator determinante para um crescimento econômico durável,
quando este se dá através de um setor específico da economia, é a repartição, ou seja, a distribuição de forma homogênea dos benefícios logo no
início, permitindo expansão e aprofundamento desse mercado. Dessa forma, permitir que diferentes organizações tenham acesso ao mercado de
carbono é fundamental não só para que os projetos de redução de emissões
contribuam para o desenvolvimento sustentável, mas também para garantir que esse mercado se expanda e se sustente em longo prazo.
Swedberg (2004), em seu artigo sobre sociologia econômica, pondera que as teorias econômicas estavam erradas não pelo fato de não considerarem substancialmente a racionalidade limitada dos atores, mas porque
falharam em aprender a importância da estrutura social na economia.
De forma análoga, o MDL pode encontrar sua principal falha não
em sua confiabilidade limitada no que diz respeito a procedimentos de
cálculos e redução de emissões, mas no momento em que desconsidera a
estrutura social e das organizações dos países em desenvolvimento para
119
A liberdade de entrar em mercados pode ser, ela própria, uma contribuição importante para o desenvolvimento, independentemente do
que o mecanismo de mercado possa fazer ou não para promover o
crescimento e a industrialização [...] A negação de acesso aos mercados de produto freqüentemente está entre as privações enfrentadas
por muitos produtores sujeitos à organização e restrições tradicionais.
A liberdade de participar do intercâmbio econômico tem um papel
básico na vida social [...] Há modelos que sugerem, por exemplo, que
o crescimento impulsionado por um determinado setor da economia
só pode ser durável se os benefícios do surto inicial forem distribuídos
de maneira suficientemente homogênea para que permita a expansão
e o aprofundamento dos mercados (VEIGA, 2008).
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM DE PROJETOS MDL NO BRASIL
6 PARA REFLEXÃO: PERSPECTIVAS E O FUTURO
DO MERCADO DE CARBONO
estabelecer seus instrumentos, concentrando os recursos e oportunidades
em um círculo pequeno de corporações, comprometendo a durabilidade e
expansão desse mercado no futuro.
REFERÊNCIAS
BOYD, E.; GUTIERREZ, M.; CHANG, M. Adaptação de projetos de MDL de pequena
escala para comunidades de baixa renda. In: KLINK, C. (Org.). Quanto mais quente,
melhor?: desafiando a sociedade civil a entender as mudanças climáticas. São Paulo:
Peirópolis, 2007.
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setembro de 2003.
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EL KHALILI, A. Créditos de carbono para quem?. Jornal do Meio Ambiente, n. 63/64,
ano VI, mar. abr . 2001. Disponível em: <http://www.jornaldomeioambiente.com.br>.
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FLIGSTEIN, N. Social skill and the theory of fields. Sociological Theory, v. 19, n. 2,
2001.
120
CECÍLIA MARIANO MICHELLIS
IETA: INTERNATIONAL EMISSIONS TRADING ASSOCIATION. IETA’s Guidance
note through the CDM Project approval process, v. 3, 2007. Disponível em: <http://
www.ieta.org/ieta/www/pages/getfile.php?docID=2370>. Acesso em: 05 nov. 2008.
PROTOCOLO de Quioto. Tradução conjunta do Ministério da Ciência e Tecnologia –
MCT e Ministério das Relações Exteriores. Disponível em: <http://www.mct.gov.br/clima/quioto/protocol.htm>. Acesso em: 06 jul. 2008.
ROCHA, M. T. et al. Projetos florestais no MDL: as definições e modalidades adotadas na
COP 9 (Decisão 19/CP.9). Piracibada: ESALQ-USP, [2007].
SEBRAE: SERVIÇO DE APOIO À MICRO E À PEQUENA EMPRESA. Anuário do
trabalho na micro e pequena empresa: 2008. Brasília, DF: DIEESE, 2008.
VEIGA, J. E. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. 3. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
SWEDBERG. R. Sociologia econômica: hoje e amanhã. Tradução Miceli, S. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, v. 16, n. 2, nov. 2004.
TACKLING climate change. Versão editada do relatório Feasibility Study on Chinese
Civil Society Responses to Climate Change. Disponível em: <http://
www.chinasuccessstories.com/china-csr/page/4/pt/>. Acesso em: 01 out. 2008.
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FEASIBILITY STUDY on Chinese Civil Society Responses to Climate Change. Tackling
climate change – and inequality. 21 de Abril de 2008. Disponível em: <http://
www.chinadialogue.net>. Acesso em: 01 out. 2008.
121
2.1 ORGANIZAÇÕES QUE SE BENEFICIAM DE PROJETOS MDL NO BRASIL
FGV: Fundação Getúio Vargas. As 500 maiores sociedades anônimas do Brasil 2007:
classificação geral. Disponível em: http://www.fgv.br/dgd/asp/dsp_Rankings.asp Acesso
em: 31 set. 2008.
2.2
ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO
DE PROJETOS MDL: ESTUDO
DE CASO BRASIL*
Lars Friberg; Paula Castro
INTRODUÇÃO
Sob o Protocolo de Quioto, o Mecanismo de Desenvolvimento
Limpo (MDL) é um dos instrumentos flexíveis que tem o objetivo de
auxiliar os países industrializados, também denominados países do Anexo I, a alcançar seus compromissos de redução de emissões de uma forma eficiente, com baixo custo, mediante a aquisição de créditos oriundos
de projetos de redução de emissões de gases de efeito estufa em países em
desenvolvimento. Estes créditos são mais baratos que o investimento em
redução de emissões dentro dos países industrializados. Ao mesmo tempo, o MDL tem o objetivo de beneficiar os países em desenvolvimento
pela promoção de investimentos em desenvolvimento sustentável e facilidades na transferência de tecnologia.
As Reduções Certificadas de Emissões (RCEs) geradas pelos projetos MDL não são de interesse apenas dos governos participantes do
Protocolo de Quioto, que precisam atingir suas metas de redução de
emissões até 2012, mas também de empresas europeias no âmbito do
Mercado Europeu de Emissões (EU ETS), que têm permissão de usar
*
Este capítulo constitui tradução do Texto para Discussão CDM-8, produzido em fevereiro de 2008 pelos autores, no âmbito da rede de instituições de pesquisa Climate
Strategies (Site: <http://www.climatestrategies.org>) como parte do projeto internacional Análise Empírica do Desempenho de Projetos MDL, coordenado pelo Prof. Dr.
Axel Michaelowa, da Universidade de Zurique, Suíça.
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
124
parte em RCEs para cumprir com suas metas de redução de emissões de
gases de efeito estufa.
Existem mais de 1.500 projetos MDL protolocados para validação,
e mais de 1.000 projetos já registrados, no Comitê Executivo de MDL no
órgão das Nações Unidas UNFCCC para gerar RCEs. Espera-se uma redução de volume de gases de efeito estufa de 1,3 bilhões de toneladas de
CO2 equivalente até 2012 pelos projetos registrados. Entretanto, ainda
existem algumas dúvidas se estes projetos MDL realmente produzirão os
volumes de RCEs estimados durante as etapas de planejamento e registro,
e se haverá volume suficiente de RCEs para os países do Anexo I atingirem
as metas até 2012 (MICHAELOWA, 2007). Além disso, existem também
dúvidas sobre a integridade ambiental e social de diversos projetos MDL,
o que pode reduzir a sua atratividade para compradores em potencial
(LOHMANN, 2006; BOYD et al., 2007; GHOSH, 2007).
Índia, China e Brasil são os países em desenvolvimento onde se
encontra a grande maioria dos projetos MDL no mundo. Ao final de 2007,
os três países juntos contabilizavam 63% de todos os projetos MDL
registrados no Comitê Executivo de MDL, e 73% dos projetos ainda em
fase de validação. Consequentemente, é interessante analisar o desempenho dos projetos nestes três países para tentar encontrar respostas para as
dúvidas mencionadas. O Brasil hospeda 13% dos projetos registrados até
dezembro de 2007, e 6% dos projetos enviados para validação até esta
mesma data, estando em terceiro lugar, após a China e a Índia.
Este texto analisa uma amostra significativa dos projetos MDL no
Brasil no que se refere às barreiras que eles estão enfrentando, bem como o
impacto destas barreiras durante o período de validação, de espera pelo
registro e na geração de RCEs. O texto também avalia três aspectos centrais do planejamento dos projetos: a argumentação apresentada nos documentos quanto à adicionalidade, a participação das comunidades envolvidos
e os benefícios planejados para a sustentabilidade. Na Seção 1, apresentaremos a amostra de projetos usada para esta análise; a Seção 2 detalha as
barreiras encontradas pelos projetos MDL no Brasil, suas possíveis causas
e seus efeitos no desempenho dos projetos; na Seção 3, avaliamos a qualidade da argumentação quanto à adicionalidade dos projetos da amostra; e,
na Seção 4, analisamos o processo de consulta aos envolvidos e os benefícios esperados quanto à sustentabilidade destes projetos. Finalmente, sintetizam-se as conclusões.
1 AMOSTRA DA PESQUISA
Características do projeto
Número de projetos
Status do projeto
Registrado (até junho de 2007)
Em validação
5
4
Fonte de recursos
Unilateral
Bilateral
3
6
Tipo de projeto
Energia renovável para rede – biomassa
Energia térmica para o usuário – biomassa
Gerenciamento de resíduos animais
Energia renovável para rede – hídrica
Energia renovável para rede – eólico
Captura de gás e energia em aterro sanitário
2
2
2
1
1
1
Dimensão do projeto
Pequeno
Grande
5
4
Empresa consultora
para elaboração
dos documentos
Ecosecurities
Ecoenergy Brazil
Ecoinvest
PTZ BioEnergy
AgCert
PricewaterhouseCoopers
Ecológia Assessoria
APSIS Consultoria
2
1
1
1
1
1
1
1
Fonte: dados elaborados pelos autores
125
Tabela 1: Características dos Projetos Selecionados para a Amostra
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
Cinco projetos MDL brasileiros registrados até o final de junho de
2007, além de quatro projetos MDL publicados para comentários antes
de junho de 2006 sem que tenham sido enviados para registro até junho
de 2007, foram avaliados mediante análise do respectivo Documento de
Concepção do Projeto (DCP), dos relatórios externos de validação, do
monitoramento e verificação, bem como de entrevistas com os respectivos
consultores do projeto e os especialistas locais. As entrevistas foram realizadas entre setembro e dezembro de 2007. Nas seções a seguir, todos os
dados e cálculos serão baseados nos dados do portfolio brasileiro de projetos MDL existente em junho de 2007.
A amostra foi escolhida de forma a incluir diferentes tipos, dimensões e consultores de projeto, representativos do mercado de MDL brasileiro, como apresentado na Tabela 1.
126
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
2 BARREIRAS ENCONTRADAS PELOS PROJETOS MDL NO
BRASIL
O desenvolvimento de projetos MDL pode, em geral, enfrentar
diversas barreiras, dependendo do tipo do projeto, características, tamanho e situação específica. Existe, por exemplo, uma percepção geral de
que, especialmente os projetos MDL pequenos e unilaterais – ou seja,
projetos desenvolvidos sem a intervenção ou investimento de um país do
Anexo I – podem enfrentar mais barreiras para a implementação que os
grandes ou bilaterais (ELLIS; KAMEL, 2007). Podem existir mais dificuldades na captação dos recursos financeiros necessários, ou não haver
conhecimento tecnológico suficiente.
No caso do Brasil, geralmente é muito caro captar empréstimos
para os projetos e, consequentemente, a maioria dos investimentos tem
origem nos recursos próprios das empresas ou de investimento de terceiros. Em virtude do ambiente pouco previsível do marco regulatório do
setor energético brasileiro, que passou por três grandes reformas e
contrareformas nos últimos dez anos, mesmo que o financiamento esteja
disponível os investidores são cautelosos e aversos ao risco.
Em 2002, logo após os maciços blecautes de energia de 2001, o
governo brasileiro lançou o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), um programa federal de apoio ao estabelecimento de fontes renováveis de energia. O objetivo é estimular um
total de 3.300MW de capacidade de geração de novas fontes de energia
eólica, de biomassa e de pequenas centrais hidrelétricas. Em 2006, o
Governo Federal definiu, via decreto, que os RCEs obtidos pelos produtores de energia independentes que participassem do programa Proinfa
seriam de propriedade da Eletrobrás, a empresa que gerencia o Proinfa.
Isto gerou protestos veementes das empresas proponentes de projetos e
está sendo contestado judicialmente. Até novembro de 2007, os projetos
MDL aprovados pela Comissão Interministerial de Mudança do Clima
(CIMGC) foram mais bem sucedidos que o Proinfa na promoção e criação de novas capacidades de energias renováveis no Brasil, mais de
2.500MW comparados aos 430MW do Proinfa (CIMGC, 2007). Este
fato pode ser parcialmente explicado pelas tarifas diferenciadas
introduzidas para a energia eólica e de biomassa. A tarifa do Proinfa para
biomassa, por exemplo, era muito baixa para convencer os usineiros de
2.1 Barreiras em razão da Fonte de Recursos ou Dimensão dos Projetos MDL
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
Um terço dos projetos na amostra são unilaterais, mas apenas um
consultor de projeto mencionou ter enfrentado barreiras em virtude do
127
cana de açúcar a investir no uso do bagaço para a geração conjunta de
vapor e eletricidade. Quando as tarifas de energia elétrica subiram acima
da tarifa garantida pelo Proinfa, a situação mudou e diversos usineiros
decidiram investir na geração conjunta com bagaço, colocando estes investimentos dentro da estrutura do MDL (LA ROVERE, 2008).
O Brasil dispõe de um quadro amplo e crescente de especialistas
que sabem como desenvolver projetos MDL, e existem até novos cursos
universitários para engenheiros em como preparar projetos MDL. Apesar
disto, muitas das grandes empresas de consultoria e validação tem dificuldades para manter a qualidade do trabalho de suas equipes. Muitas firmas
parecem estar sobrecarregadas de trabalho, mas relutantes em ampliar suas
equipes devido ao futuro ainda incerto do MDL no Brasil. O mercado
voluntário está decolando com bancos e postos de gasolina oferecendo
esquemas compensatórios ao consumidor. Porém, a ausência de verificação externa e de um marco regulatório para o mercado voluntário origina
a apreensão de algumas empresas de consultoria de MDL quanto ao risco
futuro do abandono de todo o tipo de projetos e créditos de carbono. Aém
disso, alguns projetos que geram créditos voluntários mediante plantio de
árvores parecem estar baseados em práticas questionáveis, negando aos
verificadores externos o acesso aos dados ou comprovação das atividades.
Para analisar estas e outras barreiras encontradas para os projetos
MDL no Brasil, assim como suas causas e consequências, os consultores
de projetos foram perguntados sobre os problemas que eles enfrentaram
e eventuais barreiras em razão do caráter unilateral ou dimensão reduzida de seus projetos. Além disso, foram analisadas tanto as alterações na
projeção do volume de geração de RCEs, como a alteração da data prevista de início do período de crédito, conforme os projetos avançavam
ao longo do processo de análise normatizado para projetos de MDL,
observando em especial as razões por trás destas mudanças que podem
indicar outras barreiras. As barreiras existentes na argumentação quanto
à adicionalidade dos projetos também foi avaliada, mas estes resultados
serão apresentados na Seção 3.
caráter unilateral do projeto. O proprietário do projeto teve que financiar o projeto sem empréstimos (barreira financeira). Apesar da existência
de programas públicos para promover o investimento em energias
renováveis no Brasil, os entrevistados argumentam que os requisitos são
tão rigorosos que nem todos os proprietários dos projetos conseguem
acesso ao programa. Este é o caso deste projeto, que tentou participar do
programa PCH-COM (implantação e revitalização de pequenas centrais
hidrelétricas) da Eletrobrás e do BNDES, mas não teve sucesso. Se este
projeto tivesse sido iniciado bilateralmente, poderia ter tido acesso mais
fácil a financiamento externo. Os outros projetos unilaterais são de propriedade de grandes empresas, que tiveram menos dificuldade em financiar seus projetos.
Metade dos projetos na amostra é de pequena escala. Apenas um
deles declarou encontrar barreiras financeiras por causa da dimensão do
projeto, relativo às dificuldades existentes na obtenção de empréstimos
para projetos de energia renovável no Brasil. Este é o mesmo projeto
mencionado acima. Estas barreiras, entretanto, podem não ser exclusivas
para projetos de pequena escala. Como descrito, o ambiente de investimento no Brasil é complexo. Todos os documentos de projeto, na argumentação quanto à adicionalidade, afirmam que os projetos enfrentam
barreiras financeiras ou de captação de investidores, além de mais da
metade dos documentos elencar também barreiras tecnológicas.
128
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
2.2 Barreiras que Afetam o Volume de RCEs Gerados e o Início
do Período Creditício
Constata-se globalmente que muitos projetos MDL apresentam
em seu primeiro estágio de elaboração projeções exageradamente otimistas quanto ao volume de redução de emissão de gases de efeito estufa que
irão alcançar quando em funcionamento, bem como a data a partir da
qual irão gerar RCEs (CASTRO; MICHAELOWA, 2007). Uma primeira explicação possível seria que os consultores desejam demostrar grande volume de RCEs para obter acesso a financiamento ou encontrar
compradores com mais facilidade. Eles talvez não estejam sendo suficientemente conservadores em seus cálculos, ou não estão prevendo as
possíveis dificuldades na implementação do projeto. Uma segunda hipótese é de que o ciclo de planejamento e análise do projeto MDL, a con-
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
129
cessão de permissões e licenças internas no país, a captação do financiamento ou a fase de implantação podem demorar bem mais que o previsto, atrasando desta forma o início do período creditício.
Por esta razão, usamos a seguir uma abordagem diferente para avaliar as barreiras encontradas pelos projetos MDL e seus efeitos no desempenho dos projetos: tentamos descobrir em quanto e por qual razão o
volume estimado de RCEs e o início esperado do período creditício foram
sendo alterados conforme a documentação do projeto avança ao longo do
processo de análise e aprovação. Foram comparadas as informações
publicadas nos DCPs durante a validação e o registro. Adicionalmente,
quando disponível, a quantidade de RCEs já emitidos foi extrapolada para
uma estimativa das reduções de emissão totais esperadas uma vez que o
projeto esteja operando. Como o primeiro período do Protocolo de Quioto
e a segunda fase do EU ETS terminam em 2012, apenas as reduções de
emissão previstas até aquele ano são consideradas nesta análise.
A Figura 1 apresenta o percentual de alteração na geração de RCEs
prevista para cada projeto na amostra. Está claro que a maioria dos projetos teve expectativas muito altas de geração de RCE durante os primeiros estágios do desenvolvimento do projeto, mas durante a fase de registro
as projeções diminuíram consideravelmente. Apenas o projeto da hidrelétrica teve um desempenho ligeiramente acima do planejado, atingindo
durante a emissão 102% dos RCEs previstos durante a validação. Dois
dos projetos de biomassa, ao contrário, geraram exatamente a metade de
créditos da meta original e um projeto de dejetos animais gerou apenas
12% dos créditos previstos.
Como exemplo de que este é um problema geral, citamos a
multinacional AgCert Internacional, especializada em projetos de captação de metano de dejetos em granjas de suínos, que relatou perdas de 28,5
milhões de euros no primeiro semestre de 2007. Deste total, uma parcela
de 6,8 milhões de euros de perdas foram geradas pelo cancelamento de
19% dos projetos de carbono que deviam ter sido implementados. A empresa reduziu seu quadro de 318 para 192 funcionários e está tentando
negociar com um investidor a venda de contratos no valor de 4,2 milhões
de RCEs difíceis de cumprir, em virtude da contínua queda no volume de
redução de emissões de gases de efeito estufa. A empresa está diversificando para outros tipos de projetos de carbono para compensar a queda em
seus projetos atuais (REUTERS, 2007).
Mudanças na previsão RCEs
Validação = 100
100
80
Validação
Registro
60
Emissão
40
20
0
BR8 BR9
as
De
ani j e t o s
ma
De is
ani j e t o s
ma
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Bio
ma
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mi
ca
BR5 BR6 BR7
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bio
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BR3 BR4
Hi
Bio
m
At e
r ro
BR1 BR2
130
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
Figura 1: Alterações no Volume Previsto de RCEs ao Longo do Ciclo do Projeto MDL
Observações: O projeto BR 1 ainda não requisitou a emissão de RCEs. Os projetos BR5,
BR7, BR8 E BR9 não foram registrados até junho de 2007, e por esta razão os RCEs não
estão sendo verificados ou monitorados. A projeção dos RCEs previstos no BR8 foram
obtidos no formulário disponível na CIMGC.
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados de DCPs e relatórios de verificação.
De forma similar, para o BR1, um projeto de captação de gás de
aterro sanitário, foi sugerido pelo validador que as previsões devem usar
um fator de desconto de 50%, como recomendado pela agência ambiental
americana EPA, e não desconto de apenas 25% como o projeto estava
usando. O projeto também parece muito otimista ao prever eficiência de
captura de mais que 85% dos gases emitidos pelo aterro, enquanto em
projetos similares a eficiência usada foi de 75% ou 80%, e aqui o validador
novamente sugeriu o uso de uma meta mais conservadora. Durante a fase
de consulta pública, o projeto recebeu um comentário sugerindo uma abordagem mais conservadora para a base de cálculo. Como ainda não foi feito
um pedido de emissão de créditos, não há contas comprobatórias disponíveis sobre a taxa de sucesso do projeto, mas, tendo em vista o fraco desempenho de muitos outros projetos de captura de gases de aterros sanitários
no Brasil, pode-se assumir que a taxa de sucesso será menor que 100%.
A Tabela 2 mostra os atrasos no início esperado do período de créditos dos projetos analisados conforme eles avançaram ao longo do ciclo
de projeto MDL. Deve ser observado que, do BR2 ao BR4, são projetos de
‘início antecipado’: isto significa que eles já estavam em operação quando
apresentaram a documentação e solicitaram registro, tendo nestes casos o
direito de emitir créditos retroativos à data anterior ao registro. Nestes
casos, um atraso no período creditício aconteceria apenas em circunstâncias excepcionais.
Os resultados mostram que os projetos podem atrasar o início da
operação por até um ano, e consequentemente os rendimentos de RCEs
serão menores que o previsto.
BR1 – aterro sanitário
BR2 – biomassa (início antecipado)
BR3 – hidrelétrica (início antecipado)
BR4 – biomassa (início antecipado)
BR5 – Biomassa térmico
BR6 – dejetos animais
BR7 – dejetos animais
BR8 – eólico
BR9 – biomassa térmico
Atraso na validação
registro (dias)
Atraso na validação
emissão (dias)
0
0
0
91
181
0
N/A
90
456
N/A
0
0
91
N/A
0
N/A
N/A
N/A
Legenda: N/A: Não aplicável devido ao fato de que não houve monitoramento e aos
relatórios de verificação não estarem disponíveis ainda
Fonte: elaborada pelos autores com base nos dados de DCPs e relatórios de verificação.
2.3 As Razões Subjacentes
Porque a quantidade de RCEs projetados variou tanto conforme
os projetos avançaram no processo de aprovação? O único projeto que
teve um acréscimo em termos de geração de RCEs, uma hidrelétrica, foi
beneficiado pelo aumento inesperado do fluxo de água maior no rio
131
Projeto
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
Tabela 2: Atrasos no Início do Período de Creditício ao longo do Ciclo de
Projeto MDL
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
132
durante um ano. Este fator está fora do controle do projeto e pode afetar
negativamente o desempenho do projeto em anos futuros caso ocorram
estiagens. Em outros projetos, a redução na geração dos RCEs esperados
foi causada por diferentes fatores, como:
• Um projeto de biomassa incinerou menos material orgânico que o esperado, obtendo menos emissões evitadas durante os primeiros anos.
• Outro projeto de biomassa sofreu um atraso no início do período de
créditos, também teve uma redução na linha de base das emissões e
maiores emissões pelo projeto que o esperado.
• Um projeto de dejetos de animais sofreu grandes reduções nos RCEs
por causa da mudança de metodologia introduzida pelo Comitê Executivo do MDL, o que significou que valores métricos de gás menores
que o previsto e inicialmente calculado puderam ser efetivamente utilizados. Isto reduziu significativamente o benefício para este e outros
projetos similares no país.
• Um projeto de energia eólica foi afetado pelas alterações efetuadas nos
fatores de conversão da emissão de carbono na rede elétrica nacional.
Para o DCP enviado para a validação, o fator de emissão da margem de
operação permitido era de 0,338kg CO2eq/kWh. Quando o DCP foi
enviado para registro, o fator de conversão permitido era de 0,198kg
CO2eq/kWh. Se a nova versão do projeto evita menos emissão, ele
também obtém menos RCEs.
Quais as razões por trás dos atrasos no início do período de crédito para os projetos analisados? No geral, a autoridade brasileira designada para aprovação dos projetos, a Comissão Interministerial de
Mudança Global do Clima (CIMGC), emite uma carta de aprovação
dentro de quatro a seis semanas, evitando deste modo um grande
acúmulo de projetos esperando pela aprovação nacional. Entretanto,
em razão da grande quantidade de projetos MDL em processo, as grandes empresas de validação estão tendo dificuldades em lidar com esta
carga de trabalho. Dois projetos na amostra analisada sofreram atrasos
no processo de registro, um deles especificamente durante a validação,
pelo fato de a empresa validadora ter levado muito tempo para identificar as correções a serem efetuadas, ou porque as empresas proponentes do projeto levaram muito tempo para implementar as correções
solicitadas. Um terceiro projeto sofreu atrasos durante sua implementação.
133
A adicionalidade é o critério central para garantir que os projetos
MDL resultem em redução real de emissões de gases de efeito estufa, e não
sejam apenas a repetição de operações rotineiras. Isto implica que é necessário à empresa proponente demonstrar que o projeto não seria viável sem
o financiamento adicional pelo registro no UNFCCC e a subsequente
venda dos créditos. Esta demonstração normalmente é realizada por meio
de uma ferramenta padrão, a Ferramenta para a Demonstração e Estimativa da Adicionalidade, que inclui passos específicos que necessitam ser seguidos para confirmar que o projeto somente pode ser implementado devido
ao componente de créditos do MDL. Apesar desta ferramenta ser exigida
nas metodologias mais consolidadas e ser já uma prática comum, ela não é
formalmente obrigatória. Especialmente projetos de pequena escala podem seguir procedimentos simplificados para demonstrarem a sua
adicionalidade, e algumas metodologias para projetos de larga escala têm
outros requisitos específicos para demonstrar a adicionalidade.
Esta Ferramenta consiste nos seguintes passos:
Passo
0: diagnóstico preliminar baseado na data inicial das atividades do
•
projeto – apenas para projetos com início entre 1º de janeiro de 2000 e
18 de novembro de 2004, os quais desejam emitir créditos pelo tempo
de operação anterior ao registro sob o MDL. Este passo foi removido da
Ferramenta em fevereiro de 2007.
• Passo 1: identificação das alternativas para o projeto segundo as leis e os
regulamentos em vigor para o respectivo setor.
• Passo 2: análise do investimento.
• Passo 3: análise de barreiras (apenas um dos passos, 2 ou 3, precisa ser
feito).
• Passo 4: análises das práticas usuais no respectivo setor.
• Passo 5: impacto do registro MDL.
Avaliamos, a seguir, os projetos brasileiros de MDL que atendem
aos critérios da ferramenta de análise para demonstração e avaliação da
adicionalidade, assim como a qualidade em geral da argumentação apresentada nos documentos.
Quatro dos nove projetos analisados passaram o Passo 0, pois iniciaram as atividades antes de novembro de 2004. Metade dos projetos apresentou evidências de que tenha considerado o mecanismo MDL desde o
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
3 ARGUMENTAÇÃO QUANTO À ADICIONALIDADE
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
134
início do ciclo de projeto apenas nos documentos para a equipe de validação, sem registrar este fato no DCP.
Sete projetos identificaram cenários alternativos para o empreendimento proposto, contabilizando os requisitos legais e de regulamentos específicos para cada um deles. Os dois projetos que não identificaram
cenários alternativos são de pequena escala e podem, portanto, utilizar
procedimentos simplificados para a argumentação quanto à adicionalidade.
Cinco dos nove projetos realizaram apenas uma análise das barreiras, ao passo que um terço dos projetos fez tanto a análise de barreiras
como a de investimento, e um único projeto realizou apenas a análise de
investimentos. Todos os nove projetos argumentaram ter barreiras de investimento ou financiamento para a implementação, entretanto, apenas
quatro realizaram a análise de investimento completa. As barreiras de investimento registradas não se referem apenas às baixas taxas de retorno
sobre o investimento na falta do componente MDL, mas também a dificuldades no acesso a financiamento bancário.
Três dos projetos que realizaram a análise de investimento completa
escolheram o valor presente líquido (NPV) como indicador, já os demais
projetos utilizaram a taxa interna de retorno (IRR). Um destes projetos
não realizou a análise de sensitividade, e outro projeto declarou tê-la feito,
mas sem incluí-la no documento DCP. Apenas em um destes projetos, o
validador solicitou detalhes adicionais sobre a análise de investimento, assim como a apresentação da taxa interna de retorno usual neste setor no
país, de forma que poderia revisar os cálculos feitos. Este projeto é o único
que realizou apenas uma análise de investimento, sem a descrição de outras barreiras.
Os projetos que realizaram apenas a análise de barreira também incluíram indicadores financeiros no documento para dar fundamento à
barreira de investimento, mas sem apresentar os cálculos completos: um
usou a taxa interna de retorno sem apresentar o valor usual no setor; outro
projeto utilizou a IRR comparando-a com o custo médio ponderado de
capital (WACC) da empresa; um terceiro projeto apresentou uma comparação dos custos de investimentos por KW e os custos de geração por
MWh com outros tipos de usinas de energia; e um quarto apresentou
custos de geração por MWh muito altos.
Em acréscimo, quase todos os projetos relataram encontrar dificuldades em acesso a financiamento. Um terço deles argumentou que falta no
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
135
Brasil um mercado de débitos em longo prazo, de forma que o único fornecedor de empréstimos em longo prazo é o BNDES; dois DCPs mencionaram as taxas de juros excessivamente altas no país; e cinco projetos
argumentam que as novas tecnologias utilizadas nas empresas geram dúvidas junto aos investidores, financiadores e compradores (de energia), dessa
forma aumentando os riscos financeiros do projeto.
Cinco dos projetos também descreveram barreiras tecnológicas para
a implementação. Estas incluem a falta de fornecedores de tecnologia para
turbinas eólicas; limitações técnicas impostas pela rede para alimentação flutuante com a energia eólica; um conflito entre adoção de tecnologias eficientes e a eficiência econômica na geração conjunta de bagaço; tecnologias
avançadas de gerenciamento de dejetos de suínos, com custos de operação,
manutenção e monitoramento crescentes para granjas pequenas; e pouca
experiência do uso de caldeiras com biomassa no setor de bebidas.
Outros tipos de barreiras mencionadas são institucionais, especialmente por causa da instabilidade da regulação do setor de eletricidade no
Brasil, mas também do preconceito contra novas fontes de energia por
parte dos compradores, da falta de compradores garantidos para o excedente de energia, da fragmentação e do conservadorismo do setor com
pouca motivação para investir em geração conjunta; e de contratos inadequados com os compradores de energia. Existem também barreiras legais,
visto os sistemas avançados de gerenciamento de dejetos de suínos não
serem obrigatórios no país, e barreiras relacionadas à baixa confiabilidade
de fornecedores de matéria-prima para um projeto de energia de biomassa.
Em uma análise detalhada da argumentação de barreiras apresentada nos projetos MDL registrados no Brasil, Hild (2007) argumenta que
algumas das barreiras mencionadas não são válidas para fundamentar a
adicionalidade. A respeito das barreiras institucionais, por exemplo, o autor indica que os consultores de projetos não explicaram nos DCPs como
o registro do MDL pode contribuir para remover as barreiras. Por este
motivo, se esta barreira estiver realmente complicando ou impedindo a
implementação do projeto ela não está em conformidade com o requisito
que diz: “se o MDL não alivia as barreiras identificadas que impedem que
o projeto ocorra, então o projeto não é adicional” (Versão 3 da Ferramenta
para Adicionalidade, p. 7).
Sete dos nove projetos analisados incluíram uma análise das práticas usuais ou predominantes em seu setor. Dos dois projetos que não pas-
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
saram este passo, um era de pequena escala e outro grande. E também em
um dos DCPs esta análise não aparenta ser detalhada o suficiente, pois não
oferece nenhum dado quantitativo sobre qual proporção das empresas deste
setor usa a tecnologia.
Finalmente, nem todos os projetos descreveram a forma pela qual
esperam que o MDL auxilie a ultrapassar as barreiras descritas. Um terço
deles apresenta uma descrição detalhada do impacto do registro MDL no
projeto, apesar de um deles o fazer apenas de modo qualitativo. Outros
dois projetos apenas demonstram o impacto do MDL em termos de
melhoria da taxa interna de retorno. E quatro dos DCPs (dois projetos
grandes e dois pequenos) não descreveram o impacto esperado do registro
do MDL – mas, é claro, pode ser deduzido que o MDL tornará o projeto
viável economicamente.
Para embasar a argumentação quanto à adicionalidade, especialmente
nos casos onde não foi realizada a análise de investimento completa, é
importante apresentar fontes independentes de dados. Cinco dos projetos
avaliados citam evidências independentes de forma consistente, enquanto
que dois citam poucas referências, insuficientes, e outros dois não citam
fonte independente de informação.
Uma grande e importante questão é: quando o predomínio dos projetos MDL vai alterar a linha de base daquele setor? Isto se aplica, por
exemplo, aos projetos de geração conjunta de energia de bagaço de cana,
cada vez mais comuns neste setor, assim como ao contínuo aperfeiçoamento do gerenciamento dos dejetos de suínos. Nem a CIMGC nem os
consultores de projeto sabem como lidar com esta questão, ao menos não
no segundo período creditício, quando os projetos estiverem prontos para
a renovação. Nenhum projeto MDL no mundo já chegou na fase de renovação para um segundo período creditício, assim as regras para este passo
ainda não estão claras.
A geração conjunta de energia pela queima do bagaço da cana está
começando a tornar-se uma prática padrão, ao menos para as novas usinas de etanol em construção1. Esta mudança no setor está sendo fomentada tanto pelos incentivos do MDL como pelos altos preços da
136
1
Reequipar usinas antigas, de baixa eficiência energética, continua sendo um investimento caro e enfrenta maiores barreiras que instalar novas usinas, de alta eficiência e já
planejadas para a co-geração.
Aqui, Hild (2007, p. 74) novamente demonstra que esta barreira cultural, apresentada
frequentemente nos documentos dos projetos de co-geração de bagaço, se baseia em um
estudo de 1999 que está ultrapassado e que, além disso, se referia ao setor de modo
genérico, “não considerando nenhum projeto específico”.
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
2
137
eletricidade; e, com a consolidação crescente desta prática na indústria
do etanol, os argumentos quanto ao setor ser fragmentado, conservador
e pouco motivado para inovação tecnológica, e que a comercialização
deste tipo de energia enfrenta muitas barreiras, terão cada vez menos
validade para demonstrar a adicionalidade2. Em situação similar, encontra-se o projeto de troca de fonte de energia em uma fábrica de papel e
celulose, caso no qual todas as tecnologias envolvidas estão disponíveis
no mercado nacional e já são usadas costumeiramente no Brasil. O argumentado apresentado é que existem outras barreiras (acesso a financiamento, falta de apoio do governo) e que esta fábrica de papel é a menor
de todas as fábricas do país a usar esta tecnologia, mas este pode não ser
um argumento forte o suficiente para classificar este projeto como ‘empreendimento fora do padrão do setor’.
Em outro caso, pode ser questionável considerar a adicionalidade
de um projeto que visa substituição de um incinerador que já tem 25
anos de uso. Entretanto, os validadores externos argumentaram que o
aparelho antigo poderia ter uma vida útil de, ao menos, 35 anos, e conseqüentemente classificaram o projeto de sua substituição como apropriado.
Resumindo esta seção, os argumentos quanto à adicionalidade
de todos os projetos analisados são críveis. Em dois deles, porém, os
argumentos foram enfraquecidos em parte, por causa da tecnologia em
questão estar se espalhando rapidamente pelo país, e em outro por causa da vida útil do equipamento que está sendo substituído. Além disso,
em alguns dos projetos a qualidade das argumentações é fraca, faltando
referências independentes ou mais detalhadas, cálculos mais transparentes. Por estas razões, em três casos, a equipe de validação requisitou informações ou fundamentação adicionais para complementar a
argumentação quanto à adicionalidade, e em um quarto projeto o
Comitê Executivo do MDL requisitou uma reavaliação, solicitando,
entre outras observações, uma demonstração mais detalhada da
adicionalidade.
138
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
4 PARTICIPAÇÃO DOS INTERESSADOS E IMPACTOS
NA SUSTENTABILIDADE
Promover o desenvolvimento sustentável nos países hospedeiros dos
projetos constitui um dos principais objetivos dos projetos MDL.
Consequentemente, os projetos MDL devem receber primeiro uma aprovação da Autoridade Nacional Designada (DNA), no Brasil a CIMGC,
com base na projeção dos benefícios de sustentabilidade que o projeto
alcançará no respectivo país. Além disso, os documentos de planejamento
do projeto devem explicar detalhadamente quais são os benefícios de
sustentabilidade esperados, apresentar a documentação relacionada ao
licenciamento ambiental do projeto e, ainda, descrever como os interessados locais e comunidades envolvidas puderam participar e apresentar comentários na elaboração do projeto. Ao engajar os atores locais na elaboração
do projeto, os operadores podem demonstrar que eles atendem às demandas e prioridades de desenvolvimento da população local, enquanto ao
mesmo tempo asseguram a sustentabilidade social e ambiental.
Entretanto, não existem parâmetros internacionalmente reconhecidos para garantir a qualidade dos processos de consulta e participação dos
atores locais em projetos MDL, com exceção dos adotados por sistemas de
certificação voluntária como o Gold Standard3. Respeitando as considerações nacionais quanto à soberania, cada país hospedeiro deve estabelecer
seus próprios requisitos de consulta às comunidades. Alguns países inclusive
não estabelecem requisitos específicos, deixando que o consultor do projeto
decida de qual forma ele convidará os atores locais a participarem nas decisões. No Brasil, apesar de ter sido adotado um procedimento ambicioso para
a comunicação com os atores locais, incluindo a definição pela CIMGC de
uma lista padrão de atores a serem convidados por escrito para apresentarem
comentários, poucos projetos recebem sugestões. De acordo com o Sr. José
Miguez, coordenador da CIMGC, menos que 5% dos projetos MDL brasileiros receberam algum comentário dos interessados, e a maioria das sugestões foi de caráter genérico, não analisando efetivamente os planos do projeto
3
Atualmente, apenas quatro projetos MDL no mundo são oficialmente certificados pelo
Gold Standard. Não existem informações sobre quanto projetos estão solicitando a
certificação, mas ao menos 12 estão em processo (SITE: <http://ww.cdmgoldstandard.org
/projects.php>).
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
139
(por exemplo, o prefeito dando boas-vindas ao empreendimento). Esta situação pode ser parcialmente explicada por uma ausência de capacidades: a
maioria das ONGs brasileiras não possui conhecimento técnico ou tempo
para apresentar comentários sobre as centenas de projetos propostos. Ou
elas priorizam outras questões acerca do MDL (MIGUEZ, 2007).
Este é um problema comum com consultas públicas: mesmo que
exista uma oportunidade para a sociedade civil comentar, não é garantido
que a informação chegue até a comunidade ou que exista um interesse, ou
mesmo capacidade de tempo e recursos, para a participação. Apesar de ser
obrigatório no Brasil um processo detalhado de consulta aos atores locais,
algumas empresas proponentes de projeto incluem processos adicionais de
informação e consulta, como audiências públicas no local do projeto, que
permitem a informação para um conjunto mais amplo de atores do que
previsto no procedimento padrão.
De forma similar, como estabelecido pelo Acordo de Marrakesh, é
prerrogativa do país hospedeiro definir se e como um projeto MDL contribui para o desenvolvimento sustentável (UNFCCC, 2001), e desta forma
não existem indicadores internacionalmente aceitos de desenvolvimento sustentável para os projetos MDL (SUTTER; PARRENO, 2007). Diversos
estudos têm demonstrado que os projetos MDL não estão conseguindo conciliar efetivamente as reduções de emissão e o desenvolvimento sustentável
nos respectivos países (LOHMANN, 2006; BOYD et al., 2007;
MICHAELOWA; MICHAELOWA, 2007; OLSEN, 2007; SIROHI, 2007).
Os parâmetros brasileiros para a contribuição dos projetos MDL ao
desenvolvimento sustentável, conforme definido pela Resolução n. 1, de
11 de setembro de 2003, da CIMGC, preveem que os desenvolvedores do
projeto descrevam a contribuição para: sustentabilidade ambiental local,
desenvolvimento das condições de trabalho e geração de empregos, distribuição de renda, desenvolvimento de capacidade organizacional e
tecnológica, e integração regional e articulação com outros setores.
O primeiro passo para tornar possível a participação é identificar os
atores sociais relevantes. O regulamento brasileiro estabelece que os seguintes atores sociais devem ser informados e convidados por escrito para
participarem da consulta:
• Prefeitura;
• Câmara Municipal;
• órgãos ambientais municipal e estadual;
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
140
• Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS);
• Associações comunitárias;
• Ministério Público.
Sete dos projetos identificaram e contactaram os atores locais de
acordo com a regras da CIMGC. Os outros dois projetos foram instalados
antes que este procedimento fosse adotado (11 de setembro de 2003), de
forma que identificaram os atores locais de forma espontânea. Um dos
projetos identificou cinco grupos (agências do setor público, ONGs, empresas relacionadas, organização internacional de mudança climática,
catadores). O outro projeto considerou que o contato com os órgaõs públicos para obter o licenciamento ambiental seria suficiente para atender
aos requisitos do MDL.
O número de respostas aos convites para participação variou de
zero (em quatro projetos, todos seguiram o procedimento padrão) a quatro respostas (em um projeto). Os outros quatro projetos analisados não
registraram em seus PDCPs quantas pessoas responderam a seus convites.
Estes quatro são projetos que seguiram um processo de consulta diferente
ou adicional ao requisitado pela resolução nacional, e assim abordaram
várias organizações em reuniões públicas ou privadas. Um dos operadores
de projeto declarou que representantes de 14 organizações (públicas, privadas, acadêmica e do terceiro setor) do entorno estiveram presentes às
consultas públicas.
Com respeito aos meios de comunicação utilizados para a consulta
aos interessados, diferenciamos dois elementos para a análise: o meio de
comunicação usado para convidar os interessados, e o meio usado durante
o processo de consulta em si. Um terço dos projetos analisados usou apenas cartas (meio de comunicação fechado) para convidar os interessados a
enviar comentários, em conformidade com a regulamentação brasileira.
Estes projetos não anunciaram publicamente o processo de consulta aos
interessados (no jornal local, rádio ou quadros de avisos), e consequentemente limitaram o grupo de atores aptos a participar. Outro terço da
amostra usou anúncios em jornais e cartas para dar visibilidade ao processo de consulta. Um projeto registrou ter usado e-mails, comunicação pessoal
e aparentemente outra mídia aberta, para convidar os interessados. Outro
projeto não descreveu o meio de comunicação usado, mas declarou haver
seguido o procedimento, então pode-se presumir que este também usou
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
141
cartas para a comunicação com os interessados. O projeto restante não
descreveu que meio de comunicação usou, mas menciona uma consulta
‘pública’.
Cinco dos projetos esperavam que fosse enviados apenas comentários escritos a eles, e apenas um deles recebeu sugestões. Os quatro projetos
restantes organizaram audiências públicas. Destes quatro, um projeto organizou estas reuniões com a comunidade como parte do processo de
licenciamento ambiental exigido pela legislação, e outro projeto organizou
entrevistas adicionais com grupos de interesse específicos.
Quatro projetos declararam haver recebido comentários positivos
dos atores locais. Dois projetos receberam perguntas e pedidos de ações
adicionais por parte dos interessados, mas apenas um destes projetos descreve estas questões no DCP. Nenhum dos projetos declarou haver recebido qualquer comentário negativo.
Algumas das empresas proponentes de projeto realizaram medidas
adicionais para garantir a participação dos grupos interessados. Um projeto de pequena central hidrelétrica, por exemplo, está trabalhando com
comunidades locais em iniciativas de educação ambiental, reflorestamento
de áreas degradadas, avaliação contínua da qualidade da água, apoio a parques ambientais, contratação de mão-de-obra local, controle de erosão e
apoio à agricultura comunitária. Outro projeto realizou uma pesquisa de
opinião sobre o atendimento a pessoas na reunião pública para avaliar a
aceitação do projeto; os resultados desta pesquisa, entretanto, não estão
disponíveis no DCP. Este projeto também tornou público um endereço de
e-mail permanente e um número de telefone para responder as questões
ou esclarecer dúvidas a respeito do projeto MDL. Outro DCP menciona
que, em acréscimo às cartas enviadas aos atores previstos na regulamentação, será publicada uma carta aberta para convidar para comentários aos
documentos do projeto em inglês e português.
Uma das conclusões que pode ser obtida desta análise é que o procedimento padrão brasileiro de consulta, em seu formato atual, não é capaz, por si, de promover com sucesso a participação. Dos projetos
analisados, apenas um resume no DCP as perguntas e preocupações expressadas pelos atores locais, e que isto somente foi possível porque a empresa organizou audiências públicas, onde foi possível promover a discussão
com a comunidade. Apenas este projeto e outro três puderam apresentar
um quadro dos impactos de sustentabilidade esperados pelos atores locais,
conforme apresentado na Tabela 2. Isto também resulta na ausência de
informações sobre as expectativas dos moradores do entorno, que por este
motivo não puderam ser incorporadas no planejamento do projeto.
Tabela 3: Expectativas de Benefícios de Sustentabilidade pelos Atores Locais
Tipo de benefício sustentável
Potencial de mitigação da mudança climática
Replicabilidade do projeto
Geração de empregos formais para catadores
Melhoria no gerenciamento de resíduos
Produção de energia renovável
Impactos ambientais muito baixos na geração de energia
Desenvolvimento da infra-estrutura local (estradas, comunicações)
Reforço da rede elétrica local
Redução do uso de água para a geração de energia, ampliando oferta
de água para região de secas
Número de
projetos
2
2
1
1
1
1
1
1
1
142
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
Fonte: dados elaborados pelos autores.
Na amostra analisada, alguns dos projetos são inerentemente benéficos e de impactos locais limitados (captura de gás de aterro sanitário,
gestão de dejetos animais, energia eólica), de forma que pode ser argumentado que a sociedade civil local não vê necessidade de envolvimento.
Entretanto, dentre os projetos de biomassa, ao menos um usará resíduos
orgânicos adicionais, o que pode competir no uso da matéria-prima.
O projeto de hidrelétrica, apesar de estar localizado à parte do rio e ser de
pequena escala, pode ainda assim aumentar os temores da população local
quanto à disponibilidade de água ou aos impactos no uso do solo. Mesmo que não haja nenhum impacto negativo dos projetos, se as comunidades estiverem bem informadas da natureza do MDL e dos lucros
oriundos dos certificados, elas provavelmente irão demandar uma participação nestes lucros ou ao menos demandar que alguns benefícios acabem chegando aos moradores, como novos empregos ou outras
oportunidades de renda. Os moradores do entorno são normalmente
Tipo de benefício sustentável
Melhoria do meio ambiente local (ar, água, solo, etc.)
Contribuição com a economia local por meio da geração de empregos
e/ou demanda por serviços locais
Contribuição para a redução do acúmulo de gases de efeito estufa
na atmosfera
Aumento das fontes de energia limpa/ diversificação das fontes
de energia
Contribuição para redução do uso de petróleo e carvão mineral
em geração de energia
Demonstração do uso de tecnologias limpas, eficientes e conservação
de recursos naturais
Contribuição para o desenvolvimento e capacitação tecnológica
Contribuição para o desenvolvimento regional, visto a redução
dos custos de energia, permitindo que os recursos economizados
sejam investidos, bem como pagamento de royaltie ao município
Dinamização do setor financeiro local
Prevenção de riscos
Desenvolvimento de infra-estrutura local (estradas, comunicações)
Fonte: dados elaborados pelos autores.
Número de
projetos
8
7
6
4
3
3
2
1
1
1
1
143
Tabela 4: Benefícios Esperados de Sustentabilidade de acordo com os DCPs
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
mais acessíveis a reuniões e discussões abertas, por não estarem aptos a
estudar um documento de projeto ou não estarem interessadas em analisálo. É possível, portanto, argumentar que pode ser mais vantajoso realizar
audiências públicas para conhecer a opinião dos atores locais que apresentar os documentos do projeto por escrito.
Para uma comparação com as expectativas relatadas pelos atores
locais, os benefícios de sustentabilidade que as empresas esperam alcançar, conforme registrado nos DCPs, estão resumidos na Tabela 3. Pode
ser observado que as expectativas das empresas proponentes de projetos
excedem em muito as expectativas dos interessados cuja opinião foi possível registrar. Talvez esta diferença se dê não porque os atores locais não
tenham expectativas ou preocupações com relação ao projeto, mas pode
ser por motivo do baixo grau de participação deles.
144
LARS FRIBERG; PAULA C ASTRO
CONCLUSÕES
Os projetos unilaterais e em pequena escala no Brasil podem enfrentar, mas não necessariamente enfrentam, barreiras especificamente
por causa da fonte de recursos, especialmente quanto ao acesso a financiamentos. O acesso a financiamentos em longo prazo com taxas de juros
adequadas é uma dificuldade geral para os projetos MDL no Brasil.
O volume dos créditos previsto diminui na maioria dos projetos
conforme eles progridem no processo de planejamento, validação, até o
registro e a emissão dos ERCs: apenas um dos projetos analisados teve
um aumento comparado às metas iniciais, mas os projetos de biomassa,
dejetos animais e energia eólica tiveram todos um decréscimo no volume
de créditos. Entre as razões para estas reduções, estão mudanças na
metodologia de monitoramento, mudanças no fator de conversão da taxa
de emissão de carbono, menor rendimento que o esperado e atrasos no
início do período creditício. Estes atrasos se originam em processos de
validação mais longos que o esperado, ou atrasos na implementação do
projeto. No Brasil, os procedimentos de aprovação nacional são complexos, e algumas vezes burocráticos, mas não representam uma fonte significativa de atraso.
Com respeito à argumentação de adicionalidade, todos os projetos
analisados declararam enfrentar barreiras de investimento para a
implementação, mas apenas quatro projetos apresentaram uma análise de
investimento completa no DCP para fundamentar esta afirmação. As barreiras de investimento estão relacionadas não apenas com as baixas expectativas de retorno sobre o investimento, mas também com as dificuldades
em obter acesso a financiamento. Outras barreiras identificadas são de ordem tecnológica, institucional, legal e práticas dominantes no setor.
A argumentação quanto a adicionalidade de todos os projetos avaliados é convincente. Em dois projetos, porém, os argumentos foram
enfraquecidos pelo fato de a tecnologia em questão estar se difundindo
rapidamente pelo país, e, no outro projeto, devido à vida útil do equipamento a ser substituído. Além disso, em alguns dos projetos, a qualidade
da argumentação é fraca, faltando referências independentes ou cálculos
detalhados e transparentes. Assim, em três casos, a equipe de validação
requisitou informações ou fundamentação adicionais para complementar a argumentação quanto à adicionalidade, e em um quarto projeto o
AWMS PROJETOS DE MITIGAÇÃO de gases de efeito estufa BR05-B-16, Bahia, Goiás,
Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. DCP, relatórios de validação,
monitoria e certificação.
BOYD, E., et al. The future of the clean development mechanism: an assessment of current
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
Referências
145
Comitê Executivo do MDL requisitou uma revisão, solicitando, entre
outras observações, uma melhor demonstração da adicionalidade.
A CIMGC estabeleceu um procedimento obrigatório para convidar atores interessados para apresentarem comentários sobre os projetos
MDL, que consiste em uma consulta por escrito a um grupo delimitado
de organizações. Entretanto, menos de 5% dos projetos MDL brasileiros
receberam algum comentário dos grupos interessados, e a maioria dos comentários recebidos foi de característica genérica e não efetivamente a respeito do planejamento do projeto. Na amostra analisada, apenas um dos
projetos que seguiu este procedimento recebeu comentários dos grupos
interessados. Outros projetos organizaram consultas adicionais e/ou entrevistas, e todos estes projetos receberam comentários ou dúvidas sobre o
projeto. Um terço dos projetos adotou medidas adicionais para garantir a
participação, como o trabalho conjunto com as comunidades locais, pesquisa de opinião para avaliar a aceitação do projeto, um endereço de email e um número de telefone permanentes para dúvidas, e publicação de
uma carta aberta para receber comentários. O procedimento padrão brasileiro de consulta, com uma comunicação de mão única que oferece às
organizações locais apenas a chance de enviar comentários escritos, mostrou não ser suficiente para coletar as potenciais preocupações, expectativas ou perguntas dos atores locais.
Para demonstrar a contribuição do projeto ao desenvolvimento sustentável, a CIMGC demanda uma descrição da contribuição prevista para
a sustentabilidade ambiental local; o desenvolvimento de condições de trabalho e geração de empregos; distribuição de renda, desenvolvimento de
capacidade operacional e tecnológica; e a integração e articulação regional
com outros setores. Apesar de todos os projetos preencherem estes requisitos formais, os benefícios do desenvolvimento esperados pelas organizações locais não são realmente conhecidos.
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146
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TROCA DE FONTE DE energia da Nobrecel. DCP, relatórios de validação, monitoria e
certificação.
147
2.2 ANÁLISE EMPÍRICA DO DESEMPENHO DE PROJETOS MDL
UNFCCC. The Marrakech Accords. 2001.
2.3
A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA
E A CONTRIBUIÇÃO AO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
POR PROJETOS MDL NO BRASIL
Carsten Rothballer *
1 A PRECIFICAÇÃO DA ATMOSFERA
A valorização via preço descreve o processo de transformação da
natureza segundo princípios econômicos. Ela objetiva o aproveitamento
ou a utilização em longo prazo de recursos humanos e naturais e por isso se
encontra sempre em uma relação de tensão e sob a pressão da legitimação.
Em ambas as esferas, humana e ecológica, a valorização pode ocorrer no
nível abstrato, imaterial, ou então em um espaço geográfico concreto. Dois
pré-requisitos são centrais para o processo de valorização: a concessão de
direitos individuais de propriedade ou usufruto e um marco institucional
regulamentador. Somente a partir destes elementos a dimensão humana
ou ecológica pode ser apropriada pelo capital.
Nesse sentido, a teoria do direito individual à propriedade argumenta que a exploração excessiva de bens comuns, como os oceanos e a
atmosfera, pode ser evitada mediante sua privatização. Uma empresa ou
um indivíduo pensam duas vezes ao protegerem sua propriedade, ao passo
que a tendência nos bens comuns é se confrontar com o dilema da exploração sem controle e sem medidas. Assim, segundo a teoria, a transição do
bem comum para a propriedade particular teria também utilidade para a
sociedade como um todo. Ainda segundo a teoria, efeitos negativos da
*
Este capítulo constitui uma tradução e adaptação dos resultados obtidos na pesquisa
para o Trabalho de Conclusão de Curso em Desenvolvimento Internacional, apresentado à Universidade de Viena em 2008.
CARSTEN ROTHBALLER
150
privatização de recursos naturais não seriam propriamente uma prova de
falhas do mercado, mas uma falha política por não cumprir com a tarefa
de definir os direitos e limites de usufruto (ALTVATER, 1992, p. 106).
Consequentemente, a evolução da precificação de bens naturais
dependeria do desenvolvimento das estruturas públicas de controle. Sem
um regime institucional regulamentador não é possível o estabelecimento
de circuitos econômicos. O Estado age aqui não apenas estabelecendo ou
mantendo a propriedade privada, ele apoia, além disso, as tendências de
expansão do capital por intermédio de relações diplomáticas, regula a infraestrutura material e burocrática e zela pela conformidade jurídica das relações econômicas.
Portanto, a precificação de recursos naturais não representa apenas
um processo econômico, mas também político e jurídico. Ela depende
ainda de “implicações culturais e pré-requisitos técnico-científicas” (GÖRG,
2004, p. 505). Para o êxito de uma iniciativa neoliberal desta magnitude,
ela tem que estar embasada jurídica e institucionalmente, ser aceita política e culturalmente e ser tecnicamente viável.
No contexto dos instrumentos flexíveis do Protocolo de Quito, isso
significa que o aquecimento global tem que ser comprovado cientificamente, os elementos do efeito estufa têm que ser identificados, seu nível
ideal tem que ser calculado indicando em que padrão a terra permaneceria
estável. Institucionalmente, é preciso criar uma estrutura, embasada juridicamente pela comunidade internacional e ter apoio político. Também
tem que ser tecnicamente possível reduzir os gases de efeito estufa. Com o
avanço da crise ambiental, os recursos naturais têm sido continuamente
privatizados, a natureza e os sistemas ecológicos têm sido decompostos
para atribuir um valor econômico a cada uma de suas partes. Atribuído
um valor, eles se transformam em um produto. Somente então o ser humano passaria a entender qual valor o meio ambiente tem.
Posicionamo-nos de forma crítica a este tipo de valorização pelo
preço, pois ele pode levar ao risco de reduzir a natureza a preços não com
o objetivo de proteção, mas com a finalidade da mera utilização comercial.
A atribuição de valores econômicos à atmosfera pode ter, assim,
efeitos tanto positivos como negativos para a estabilização do clima. Procuramos, portanto, atender aqui à tarefa de analisar se o Mecanismo de
Desenvolvimento Limpo (MDL) no Brasil tem contribuído para o desenvolvimento sustentável, se os impactos são igualmente favoráveis no Sul e
O MDL constitui um dos três instrumentos criados pelo Protocolo
de Quioto, tendo tomado forma apenas nas últimas horas das complexas
negociações. O MDL representa uma adaptação da proposta original dos
negociadores do Brasil. O mecanismo possui um objetivo duplo: uma redução barata das emissões de gases de efeito estufa do hemisfério norte
através de projetos no hemisfério sul e uma transferência de recursos do
hemisfério norte para promover o desenvolvimento sustentável no hemisfério sul. O segundo objetivo representa a expectativa com a qual os países
do G77 deram a sua aprovação ao MDL na Conferência de Quioto.
Mas os países recusaram-se a definir um padrão unificado do que
seria desenvolvimento sustentável, apelando para a soberania nacional. Se
de um lado isto significa a liberdade e a convergência ante as prioridades
de cada governo quanto ao desenvolvimento no seu país, de outro, representa um risco quanto aos critérios do que venha a ser definido como
sustentabilidade. Além do perigo de que, na concorrência pelo acesso aos
recursos internacionais, os países nivelem por baixo os critérios de
sustentabilidade.
Nosso estudo de campo analisou quatro projetos no Brasil e busca
elucidar se o MDL contribui para que o país trilhe um novo caminho para
o desenvolvimento sustentável. A partir dos resultados obtidos, pudemos
elaborar algumas conclusões sobre o sistema como um todo. Obtivemos
um quadro diferenciado, tanto com luzes como com sombras.
Antes de seguirmos no detalhamento de nosso trabalho, vamos apresentar resumidamente a importância e relevância da questão para o debate
sobre o clima. O MDL foi incluído no Protocolo de Quioto a partir da
idéia de criação de um Fundo de Desenvolvimento Limpo, um instrumento de compensação inicialmente pensado pelos negociadores brasileiros para receber as multas a serem pagas pelos países do Anexo I que não
cumprissem as suas responsabilidades quanto às metas de redução de emissões. O fundo deveria indenizar os países do hemisfério sul pelas mudanças climáticas que eles não provocaram. Na articulação entre os negociadores
151
2 O DUPLO OBJETIVO DO MDL
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
no Nordeste, e quais são as influências sociais e econômicas do MDL nestes contextos. Também buscamos analisar para onde está sendo transferido
o valor do MDL.
CARSTEN ROTHBALLER
152
brasileiros e americanos, a idéia da multa foi transformada em investimento externo para projetos locais. Assim, o MDL tem sua origem na concepção da justiça ambiental, o que está fundamentado pelo seu objetivo de
promover o desenvolvimento sustentável.
Por isso, a transferência de tecnologia e recursos financeiros do norte para o sul, previsto pelo MDL, deve ser interpretada como um tipo de
compensação pelos danos causados pelos países industrializados. Em outras palavras, o MDL visa responder a seguinte questão: o que os países do
sul ganham com o fato de emiter certificados a custos efetivos baratos para
os países do norte, sem que estes tenham que mudar de modo radical seu
estilo de vida intensivo na emissão de CO2e para a atmosfera?
Ainda temos que considerar que, na verdade, a redução de emissões
pelo MDL é um jogo sem ganhadores, pois a redução de emissões nos países
do sul somente compensa as emissões dos países do Anexo-I. Desse modo,
observando de maneira global, é muito improvável a redução de emissão e o
cumprimento do objetivo de estabilização climática abaixo de 2°C. Países
como Áustria, Espanha e Itália, que estão longe de cumprir com suas metas
de redução de emissões, em vez de modificar a estrutura de sua economia
podem comprar créditos baratos no mercado para compensarem suas emissões. Se os créditos não atingirem o critério da adicionalidade, ou seja, os
projetos seriam implementados mesmo sem o apoio financeiro do MDL,
como alguns estudos demonstram (SCHNEIDER, 2007), o saldo seria
negativo e haveria ainda mais emissões na atmosfera. No entanto, a mudança climática atingirá primeiro, e muito intensivamente, os países do
sul, embora estes tenham pouca capacidade institucional e financeira para
a adaptação. Os países do norte podem continuar no seu caminho de desenvolvimento com rastros ecologicamente destrutivos. A dívida histórica
parece ser esquecida.
Além disso, a mudança climática tem suas raízes não apenas no
modelo fordista de produção, mas também na estrutura de divisão do trabalho entre norte e sul. O aquecimento global gera perdas financeiras,
sociais e culturais. Se não houver formas de adaptação, estas perdas geram
pobreza. Além disso, estas perdas geram a tendência de um uso mais excessivo ainda dos recursos naturais, por exemplo, o solo, a madeira ou a
biodiversidade. E, ainda, é previsível um fluxo maior de migrantes das
mudanças climáticas para as grandes cidades. Em prognóstico efetuado,
por exemplo, para a região semi-árida no Nordeste do Brasil, Marengo
Como o MDL é um mecanismo voluntário, o país em questão tem
que concordar com sua implantação. Dois anos antes da Conferência COP
7 de Marrakech no Marrocos, em 2001, na qual foram estabelecidas as
regras do MDL, o Brasil já se preparava para a implementação. Em julho
de 1999, foi criada a Comissão Interministerial de Mudança Global do
Clima (CIMGC). A escolha dos 11 ministérios se deu por critério de proximidade das suas ações com as emissões de gases de efeito estufa e as
possibilidades de cada pasta de participar da regulamentação. Com esta
estrutura, o Brasil pretende que os projetos MDL sejam estabelecidos onde
seja mais conveniente do ponto de vista técnico, e que consiga introduzir
alterações na cadeia de valor.
A Comissão Interministerial representa a Autoridade Nacional Designada (DNA) do Brasil (CIMGC, 2003, Art. 2), abrangendo três funções primordiais referentes ao MDL, quais sejam: ela garante a
conformidade com a legislação mediante a revisão das licenças necessárias
aos desenvolvedores de projetos, confirma o critério de adicionalidade do
projeto e garante a contribuição do projeto ao desenvolvimento sustentável por meio do controle de conformidade do Anexo III. Para cumprir
essas tarefas, a Comissão estabeleceu, em agosto de 2000, a Secretaria Executiva (SE). A SE se divide em departamento administrativo, técnico e
jurídico, e participa da definição da política nacional de mudança do clima, das negociações internacionais e orienta o trabalho da CIMGC. Com
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
3 A ESTRUTURA INSTITUCIONAL COMO PRÉ-REQUISITO
153
(2006, 2007) afirma que secas contínuas aumentariam os conflitos de terra e reduziriam a segurança alimentar no sertão. O Brasil teria uma segunda onda de migração do Nordeste para o Sudeste. Este prognóstico é
confirmado pelo Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (NAE), que descreveu em dois estudos os efeitos da mudança climática no Brasil (NAE, 2005a; NAE, 2005b). As consequências do
aquecimento global intensificam a produção da pobreza, e a miséria impulsiona a mudança do clima sobretudo pelo desmatamento.
Por conseguinte, a mensagem é: O MDL deve ser apoiado apenas
no caso de uma comprovação clara da contribuição para o desenvolvimento sustentável! Lutar contra pobreza é proteger o clima! A integridade ecológica e o desenvolvimento sustentável são igualmente importantes.
CARSTEN ROTHBALLER
154
a clara atribuição de tarefas entre a CIMGC e a SE o Brasil procura ser um
ator relevante para a solução da crise ambiental por meio de um ciclo de
projetos MDL que efetivamente funcione.
O ciclo do projeto MDL na DNA brasileira integra diferentes perspectivas. As propostas detalhadas, compostas pelo Documento de Concepção do Projeto (DCP) e o relatório de validação de auditores externos,
são analisadas primeiramente quanto ao conjunto completo de documentos, depois à conformidade aos critérios de Marrakech e à metodologia a
ser utilizada para a aferição do volume de carbono. Paralelamente, ocorre a
interlocução entre três ministérios. O Ministério da Ciência e Tecnologia
(MCT) executa uma análise técnica da proposta. O Ministério do Meio
Ambiente (MMA) controla as licenças ambientais e a emissão de substâncias nocivas. O Ministério das Minas e Energia (MME) examina os cálculos de energia, assim como as licenças para funcionamento. Adicionalmente,
ocorre uma análise quanto ao cumprimento da legislação trabalhista em
especial para excluir o risco de ocorrer trabalho infantil (CIMGC, 2003,
p. 1). Os resultados da análise da proposta pelos três ministérios e pela SE
são apresentados na reunião da CIMGC. Os representantes dos demais
ministérios examinam também criticamente a contribuição ao desenvolvimento sustentável descrita pelo projeto no Anexo III. Neste documento, o
proprietário do empreendimento [!] descreve quais consequências o projeto tem sobre o sistema ecológico local, em relação às condições de trabalho
e à produção de vagas de emprego, à distribuição de renda, ao desenvolvimento tecnológico e à integração na economia regional. O Anexo III é
debatido a partir das diferentes perspectivas dos ministérios representados
na Comissão. Em não havendo objeções ao MDL e se sua contribuição ao
desenvolvimento sustentável for considerada satisfatória, a CIMGC expede a carta de autorização do projeto (CIMGC, 2006, Art. 8).
Este processo complexo e interligado de resoluções na DNA brasileira é considerado e reconhecido pelo Conselho Executivo do MDL em
Bonn, Alemanha, como “transparente, previsível e argumentativo”. Os
consultores de projetos entrevistados para este estudo ressaltaram ainda
positivamente que a CIMGC analisa o critério de adicionalidade da proposta, o que não seria obrigatório pela regulamentação internacional, mas
aumenta a confiabilidade das propostas brasileiras. Além disso, os entrevistados enfatizaram que a análise metodológica pela CIMGC reduz os
riscos na continuidade do processo de registro do projeto. Porém, este
O proprietário do projeto expõe seu ponto de vista sobre o desenvolvimento sustentável, esboçando, se for o caso, cenários de comparação
entre a situação com e sem o projeto, e submete estas informações por
meio do Anexo III. Com base na leitura deste documento, a CIMGC
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
4 O CENÁRIO DE SOMBRAS E LUZES DO MDL NO BRASIL
155
elogio foi conquistado às custas de dedicação de muito tempo e trabalho.
Pelo alto número de projetos MDL no país, tanto a CIMGC como o
Conselho Executivo têm pesada carga de trabalho.
Mesmo assim, a CIMGC defende com bons argumentos a manutenção dos procedimentos de análise jurídica do projeto e a realização desta análise depois da validação externa. Para os órgãos públicos, é mais
racional analisar a documentação de um projeto após este já ter sido verificado externamente. Isto aumenta a pressão para que os consultores do
projeto obtenham previamente todas as licenças e concessões necessárias.
Assim, foi possível a CIMGC integrar uma pressão regulamentadora no
ciclo de registro do projeto. A Comissão pode utilizar este poder para fazer
valer a observância à legislação brasileira quanto ao critério de adicionalidade
ou ainda quanto à contribuição para o desenvolvimento sustentável. Desse
modo, a Comissão e a Secretaria Executiva se veem na posição de motivadores e educadores, catalisadores para os investimentos externos, assim
como reguladores do ciclo de projeto MDL no Brasil. Para tanto, a CIMGC
vem se dedicando a regulamentar o registro de modo simples, porém focado
no problema do aquecimento global. Isto explica a verificação da adicionalidade do projeto.
O prazo de tempo necessário para o registro, porém, enfrenta certo
mal-estar entre alguns dos consultores de projeto. A CIMGC argumenta
que o Brasil não possui recursos para compensar danos climáticos. Se a
comissão simplificasse sua autorização para quaisquer projetos, no final o
Brasil estaria frente a um aquecimento global mais forte ainda. Por esta
razão, a Comissão não estaria disposta a permitir a maximização do benefício privado em detrimento dos benefícios para toda a população.
Esta argumentação da CIMGC evoca mais uma vez a reflexão sobre
a justiça climática. Mas o quão justo tem sido o MDL no Brasil? O Anexo
III tem garantido efetivamente a contribuição ao desenvolvimento sustentável no Brasil? Estas são as perguntas de fundo deste estudo.
CARSTEN ROTHBALLER
156
decide então sobre o projeto. Como não existe nenhuma escala de pontuação para avaliar o documento, nem foram definidos parâmetros quantitativos ou qualitativos de avaliação do Anexo III, a decisão da comissão sobre
o projeto está carregada de um alto nível de autonomia e subjetividade
(COLE, 2007, p. 14). Apenas as posições diferentes dos representantes
dos ministérios na Comissão põem um elemento democrático nesta forma
de tomada de decisão. O coordenador da SE confirmou, em entrevista,
que os critérios são genéricos e simples para serem respondidos no formulário (MIGUEZ, 2008). Segundo o entrevistado, esta formulação aberta e
simplificada do Anexo III não tem origem na busca por uma vantagem
competitiva em relação a outros países, mas porque o benefício para o
Brasil, de modo geral, será maior com o MDL do que sem o projeto. Por
esta razão, a comissão não exige uma comprovação restritiva quanto à contribuição do MDL ao desenvolvimento sustentável, e deixa à critério da
empresa proponente esclarecer seu entendimento sobre o desenvolvimento sustentável no Anexo III.
Este procedimento tem gerado críticas. Em um estudo comparativo
entre Peru e Brasil, por exemplo, os pesquisadores chegaram à conclusão
que os requisitos brasileiros ao MDL são “favoráveis à iniciativa privada,
dada a sua previsibilidade”, entretanto, “comparativamente ineficazes para
o cumprimento de objetivos sociais” (COLE, 2007, p. 19). Os autores
ressaltam, ainda, que os critérios do Anexo III nunca foram objeto de uma
avaliação política ou amplo debate público. Do mesmo modo, a organização CARE Brasil criticou em entrevista que as cinco questões do Anexo III
podem ser respondidas arbitrariamente pelo consultor, porque não existem critérios de exclusão (BROSE, 2008). Nos documentos existentes,
frases genéricas se alternam com declarações de boas intenções e não permitem operalizar uma medição quanto à eficácia do projeto. Para a CARE
Brasil, com base na concepção de três dimensões do desenvolvimento sustentável, e após a análise de projetos MDL, a dimensão social do tripé da
sustentabilidade está faltando. De acordo com o entrevistado, os indicadores para a redução dos gases de efeito estufa são documentados nos projetos de modo claro, detalhado e objetivo, são examinados pelas Nações
Unidas e avaliados externamente. A componente social, entretanto, fica
aberta à interpretação e não há instância externa para definir os indicadores. Além disso, os projetos não passam por um acompanhamento externo
quanto ao impacto social. Nesse sentido, com base em estudo de caso de
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
157
12 projetos MDL brasileiros, o pesquisador Cole argumenta que a
efetividade do CIMGC como regulador poderia ser incrementada se os
critérios do Anexo III fossem incorporados no processo de validação,
monitoramento e verificação do MDL (COLE, 2007, p. 6).
O coordenador da SE confirmou, em entrevista, que o conteúdo do
Anexo III não é aferido localmente. A CIMGC não realiza visitas de auditoria ou verificação contínua do impacto do projeto, na medida em que
não existe previsão de recursos para esta atividade. Segundo o entrevistado, porém, alguns membros da Comissão são convidados a visitar o projeto pelos proprietários do empreendimento. Além disso, a Comissão está
planejando a publicação de um livro sobre os primeiros 100 projetos MDL
no Brasil, visando documentar a contribuição destes ao desenvolvimento
sustentável do país. Entretanto, permanece válida a crítica apresentada,
pois os convites de visita certamente não foram feitos pelos projetos mais
polêmicos, e as informações para o livro não são oriundas de auditorias
independentes, mas são fornecidas pelas próprias empresas. Até aqui, portanto, a CIMGC tem se contentado com um papel passivo e indireto na
avaliação da componente social do MDL, e os projetos estão sujeitos apenas ao controle da sociedade civil pelas notícias da imprensa. Porém, tendo em vista que a mídia não tem apresentado uma cobertura completa
sobre o MDL em toda a sua abrangência, a Comissão está considerando
rever o Anexo III buscando uma possível melhoria do processo de registro.
Porém, a CIMGC tem defendido o ponto de vista de que, por intermédio do MDL, o país já alcançou diversos êxitos em curto prazo como: as
granjas de suínos não contaminam mais os rios e riachos com dejetos; têm
sido implantados projetos de reflorestamentos; a co-geração de energia pelo
uso do bagaço de cana foi implantada apenas dois anos após criação do
MDL no Brasil, embora já existissem estudos desde os anos 1970; pequenas
centrais hidroelétricas foram repotencializadas; os depósitos de lixo começam a ter uma administração mais efetiva e a operar com base na legislação
ambiental, uma inovação que somente se tornou possível pela lucratividade
do sequestro de metano nos aterros. A comissão enfatiza que 51% das reduções de emissão brasileiras foram realizadas mediante projetos de energia
renovável (CIMGC, 2009, p. 7). Além disso, o MDL impulsionou a
descentralização da geração de energia no país. Até o início de julho de 2009,
foram instalados no Brasil, por meio do MDL, 3.517MW de capacidade de
geração de energia. Isto gerou um ciclo de competição entre as empresas.
CARSTEN ROTHBALLER
158
Empresas que investem em eficiência energética e utilizam para isto
o MDL são mais competitivas em nível nacional, mas também internacional. Com isso, outras empresas seguirão o exemplo. De acordo com o
coordenador da SE, este é apenas o começo da história. Os projetos estão
desenvolvendo novas possibilidades de reuso de gases. O MDL estimula a
busca por inovações de redução dos gases de efeito estufa. Dessa forma, o
MDL tem modificado a economia e melhorado a capacidade das empresas. Ao mesmo tempo, ocorre uma melhoria das competências técnica,
jurídicas e administrativa, tanto dos órgãos públicos como das empresas
envolvidas, para acompanhar a evolução do MDL e enfrentar a mudança
climática. De acordo com o entrevistado, o MDL gera, consequentemente,
mudanças maiores do que normalmente tem sido registrado nos estudos,
pois sua contribuição é difusa e, portanto, de difícil quantificação. No
entanto, a contribuição não pode ser negada.
Porém, a distribuição dos benefícios é desigual no país. Sozinhos, os
estados de São Paulo e Minas Gerais concentram em seu território 39% dos
projetos brasileiros do MDL. Mais um terço se acumula nos três estados do sul
(CIMGC, 2009, p. 13). No Nordeste, seis dos nove estados contam com
apenas 11% do volume total de projetos. A região Norte do país apresenta
um resultado mais baixo ainda. Apenas três dos sete estados tem 4% dos
projetos. Os estados restantes não apresentam nenhum projeto. Da perspectiva do desenvolvimento sustentável, porém, as regiões Norte e Nordeste são exatamente aquelas que figuram abaixo da média nacional no
Índice do Desenvolvimento Humano (IDH) (PNUD, 2008). De acordo
com uma pesquisa na Amazônia, o MDL poderia ser uma ferramenta para
melhorar o acesso à energia elétrica em áreas remotas (CUNHA; WALTER;
REI, 2007, p. 111). Porém, o baixo volume de créditos gerados por este
tipo de projeto afasta os potenciais investidores.
Aqui, surge um problema fundamental do MDL, seu financiamento. Os motivos para a desigualdade geográfica do MDL, tanto internamente no Brasil, como em escala global, são variados. Podemos citar
variações no potencial de redução de emissões, nos custos de oportunidade e na capacidade administrativa. A explicação central, porém, reside no
fato de que a transferência de recursos financeiros dos investidores externos ocorre em 90% dos projetos apenas após a implantação do empreendimento (LÜTHEN; MICHAELOWA, 2008). Somente a venda de
créditos de carbono (CER) traz novos recursos financeiros para os países
Para garantir uma contribuição ao desenvolvimento sustentável no
local, os atores sociais interessados locais têm que estar integradas ao projeto. Desde a introdução do MDL no Brasil, a CIMGC já estava preocupada, em sua primeira resolução, em envolver as organizações da sociedade
civil, sensibilizá-las para o assunto e possibilitar às organizações locais expressarem seus pontos de vista (CIMGC, 2003). Nesse sentido, foram
definidos dois canais de comunicação entre o projeto MDL e o seu entorno. Em primeiro lugar, a CIMGC estabeleceu uma plataforma virtual de
informação na internet e, em segundo lugar, desenvolveu regras para a
informação local e audiências públicas.
O estabelecimento de um portal online ocorreu há mais de nove
anos. Até hoje, o site da CIMGC continua sendo uma referência e fonte
de informação para os atores sociais dos países lusófonos, pois os docu-
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
5 A INTEGRAÇÃO DOS GRUPOS LOCAIS NO MDL
159
do sul, e os investimentos iniciais precisam ser realizados, portanto, com
capital próprio. Apenas alguns países do sul possuem capacidade financeira para tanto. Dos 5.074 projetos MDL registrados até 10 de julho de
2009 nas Nações Unidas, 79% estão localizados em apenas cinco países.
O Brasil ocupa o terceiro lugar, com 397 projetos, após China e Índia
(CIMGC, 2009, p. 3). A distribuição interna desigual do MDL no Brasil
fornece outras evidências para esta constatação. Tal como na escala global,
a distribuição do MDL reflete a desigualdade de renda. Torna-se evidente
que os motivos não estão na escassez de informações ou em falhas na capacidade técnica da CIMGC. Ao contrário, esta logrou, pela relação
estabelecida entre diferentes instituições, um amplo entendimento sobre o
MDL tanto no setor público como na iniciativa privada.
As causas para a desigualdade na localização devem ser procuradas
substancialmente nas condições econômicas das regiões. Salvo exceções,
apenas regiões industrialmente desenvolvidas e capitalizadas detêm a capacidade para pré-financiamento de projetos MDL. Por isso, o Nordeste e o
Norte continuam marginalizados, pois o risco do investimento inicial e os
custos da transação do MDL não são cobertos pelos países do Anexo-I.
Assim, o questionamento deste estudo continua relevante: O que a região na qual o MDL se estabelece recebe como compensação ao projeto?
O desenvolvimento sustentável?
CARSTEN ROTHBALLER
160
mentos essenciais, como o Protocolo de Quioto, o Acordo de Marrakech e
as resoluções sobre o MDL, estão disponíveis em língua portuguesa. Além
disso, a comissão requer dos consultores dos projetos a entrega de todos os
documentos tanto em português como em inglês. E os DCPs, relatórios de
verificação e validação, assim como os Anexos III, são publicados na página de internet do MCT. Dessa forma, a CIMGC contribui ativamente
para romper as barreiras da língua e promover maior transparência, melhor fluxo de informação e acessibilidade para o público interessado.
Em segundo lugar, foi determinado, já na primeira resolução da
comissão, no artigo 3, inciso II, que os operadores do projeto devem obrigatoriamente informar os principais atores interessados na região (CIMGC,
2003, p. 2). Devem ser informados, por registro escrito, a administração
municipal, a Câmara Municipal, as agências ambientais estadual e federal,
o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Desenvolvimento Sustentável e o Meio Ambiente (FBOMS), as associações comunitárias e o Ministério Público sobre o projeto, bem como motivados para
um posicionamento sobre o empreendimento. A CIMGC partiu do princípio de que este processo seria suficiente para mobilizar a opinião pública. A lisura do processo deve ser auditada por terceiros. Em havendo
comentários dos atores locais sobre o MDL, estes devem ser anexados ao
relatório de validação do projeto e disponibilizados na internet. Na entrevista, o representante da CIMGC ressaltou que a Comissão não está plenamente satisfeita com a eficiência deste processo, e está buscando
alternativas. A CIMGC considera a ausência de um “canal efetivo de troca
de informação com a sociedade civil” uma barreira para avaliar ou verificar
a sustentabilidade do projeto (MIGUEZ, 2008). Dessa forma, a Comissão tem concordado com as opiniões críticas das pesquisas recentes.
A integração exclusiva do FBOMS no processo de participação é
“insuficiente e ineficiente”, ressalta a Profa. Biderman, da FGV-SP, e defende uma maior democratização do MDL (Biderman, 2008). Segundo a
entrevistada, o FBOMS não dispõe de recursos humanos e dos meios financeiros necessários para envolver ativamente as organizações locais e não
basta que uma pessoa que atua em Brasília ou em São Paulo expresse sua
opinião sobre projetos nos mais diferentes locais no país. Ainda segundo a
entrevistada, seria importante desenvolver um mecanismo que integre as
organizações locais. Em entrevista, a organização CARE Brasil também
compartilha deste ponto de vista e enfatiza que a CIMGC tomou um
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
161
caminho decisivo com a integração obrigatória da consulta a grupos e atores locais no processo de registro do projeto. Ela ressalta, porém, que o
tipo de participação prevista, a qual se restringe à publicação de documentos do projeto por trinta dias em uma página de internet e de convites por
escrito a algumas poucas partes interessadas é demasiadamente tecnocrata
e fraca para a abrangência necessária da participação. Até agora, mesmo
que um projeto não tenha recebido comentário ou carta-resposta, este recebe o certificado de que conduziu a participação. Ainda segundo a entrevista, seriam desejáveis regras mais precisas para consultas públicas e a
utilização de várias formas de mídia para a distribuição de informação.
Um estudo que analisou 63 projetos registrados pela CIMGC chegou à conclusão de que a comunicação entre os projetos e a sociedade civil
local ocorre “de modo evidente e observável” apenas com a intenção de
atender aos requisitos legais, e não para promover ativamente o debate entre
os atores interessados locais (LEAL, 2008). Este estudo analisou o processo
de consulta às agências ambientais, ao Ministério Público e à sociedade civil,
tanto na forma escrita como por meio de reuniões públicas no início do
projeto, bem como os comentários que chegaram aos projetos. O estudo
representativo, que selecionou projetos desde o início do MDL no Brasil até
2008, documenta que apenas 17 dos 63 projetos realizaram consultas públicas. E a maioria das perguntas feitas nestas reuniões se restringiu a detalhes
técnicos. O Ministério Público esteve presente uma única vez. Dos 46 projetos restantes, que optaram pelas cartas, apenas 13 receberam um comentário. Neste contexto, a pesquisa de Cole constata que, em geral, os
desenvolvedores dos projetos selecionam antecipadamente os grupos de interesse para evitar receber comentários negativos (COLE, 2007, p. 52).
Em geral, os acordos com as prefeituras são realizados antes da fase
aberta de consulta aos atores interessados. Algumas empresas de consultoria
entrevistadas relataram, porém, que estão ocorrendo mudanças: em alguns
locais, associações e organizações locais começaram, em articulação com o
Ministério Público, a exercer pressão sobre os projetos para obter melhoria
na qualidade de vida por meio dos créditos de carbono. Pois seria aconselhável que as partes interessadas da sociedade civil fossem envolvidas estrategicamente por meio da participação ativa tanto no planejamento como
na execução do projeto.
As informações reunidas até aqui fundamentam o texto a seguir,
que relata o estudo de campo. Analisamos os pontos críticos do MDL
mediante as visitas de campo, e buscamos identificar como o MDL promove o desenvolvimento sustentável.
162
CARSTEN ROTHBALLER
6 METODOLOGIA PARA O LEVANTAMENTO EM CAMPO
Para que seja possível avaliar detalhadamente os impactos em desenvolvimento sustentável, diferenciamos entre: a) a contribuição intrínseca, ou seja,
a contribuição inerente ao tipo de projeto, e b) uma contribuição adicional,
gerada voluntariamente pelo operador do projeto. Utilizando esta tipologia,
analisamos quatro projetos MDL. Diversos critérios foram utilizados para esta
seleção. O projeto do aterro sanitário Battre, em Salvador, Bahia, foi selecionado por ter sido o primeiro projeto MDL para o qual a Conselho Executivo
emitiu certificados (BATTRE; EB, 2005). Assim, era de se esperar que este
projeto já tivesse hoje em dia uma contribuição consolidada para o desenvolvimento sustentável. O projeto de aterro sanitário CRA, em Belém, Pará, foi
selecionado porque paga royalties para a Prefeitura, que utiliza os recursos em
investimentos para a população local no entorno do projeto. O projeto da
siderúrgica Cosipar, em Marabá, no Pará, foi selecionado porque ele não foi
aceito pela CIMGC. E o projeto da hidrelétrica da Energest, em Mascarenhas,
Espírito Santo, foi selecionado porque ele utiliza a metodologia do Carbono
Social para medir a contribuição ao desenvolvimento sustentável e usa parte
do rendimento oriundo da venda dos créditos de carbono para contribuir com
quatro organizações comunitárias.
O objetivo da escolha desta amostra pouco homogênea de projetos
não foi gerar dados para uma comparação quantitativa entre os projetos, o
que é impossível tendo em vista o total de 397 projetos inscritos no processo de aprovação da CIMGC (CIMGC, 2009, p. 3). Seguimos aqui a
afirmação de Sutter e Parreño (2007) de que é difícil uma comparação
objetiva entre os impactos do desenvolvimento sustentável entre projetos
diferentes, pois cada tipo de projeto gera efeitos intrinsecamente diferentes. Esta a razão de nossa escolha por uma análise qualitativa com base em
quatro estudos de caso, para obter conclusões sobre o funcionamento do
sistema do MDL como um todo no país.
Para nos aproximarmos da pergunta central desta pesquisa, foram
analisados os documentos do ciclo do projeto: DCP, relatórios de validação
e verificação, bem como o Anexo III. O objetivo consiste em comparar as
declarações por escrito dos operadores dos projetos com a situação encon-
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
163
trada localmente. Com base na análise inicial dos documentos, foram elaborados os questionários que foram aplicados junto aos representantes das
empresas, seus funcionários, bem como representantes das organizações locais. Com estas entrevistas, surgiram novos tópicos, que foram inseridos nas
entrevistas feitas junto a representantes de organizações atuantes no mercado
do carbono: especialistas do Conselho Executivo do MDL, integrantes tanto da CIMGC, como de DNAs em outros países da América Latina, especialistas de organizações acadêmicas, de ONGs, das Nações Unidas, do Banco
Mundial, de empresas de consultoria, assim como organizações de desenvolvimento locais e nacionais. As entrevistas foram registradas em vídeo, e o
presente estudo se baseia nos depoimentos de um total de 77 entrevistados.
Adicionalmente a este enfoque, foi utilizada a metodologia do Carbono Social para avaliar as condições de vida das comunidades no entorno
dos projetos. Dessa forma, foi possível realizar uma comparação entre os
impactos e intenções registradas no Anexo III e as condições existentes na
realidade local. Esta componente foi estudada mediante a aplicação do
mesmo questionário de 18 perguntas em entrevistas com 82 pessoas. As
outras 49 perguntas adicionais foram feitas somente a uma parte dos funcionários e vizinhos dos projetos, que foram diferenciados estatisticamente mediante uma Escala de Likert.
Para a análise dos canais de comunicação utilizados pelos projetos e sua
integração com a sociedade civil local, desenvolvemos duas escalas de pontuação, com subdivisão em categorias e componentes próprios. Adicionalmente,
foram distribuídos pesos aos pontos, de acordo com critérios mínimos ou
máximos. Dessa forma, foram calculadas médias, que foram atribuídas a seis
cenários. A comunicação e a participação nos projetos foram calculadas e distribuídas entre 12 componentes. Além dos atores sociais pré-selecionados pela
CIMGC, foram ainda incluídos nesta análise os seguintes:
• o Ibama, por sua função nacional de controle e fiscalização;
• o posto de saúde local, pelo conhecimento detalhado sobre a situação da
saúde pública;
• universidades e centros de pesquisa públicos.
Poderiam ter-se incluído ainda outras organizações na amostra, de
acordo com a situação específica de cada projeto, mas preferimos não sobrecarregar o presente estudo. Os atores da sociedade civil foram descritos
de acordo com o seu raio de ação, bem como suas prioridades organizacionais. A pontuação que utilizamos para medir a participação se distri-
bui, assim como a pontuação que utilizamos para analisar a comunicação,
em seis cenários. Os pontos foram atribuídos de acordo com:
1) a comprovação de que a informação escrita sobre o projeto chegou aos
atores locais;
2) a comprovação da realização de audiência pública para apresentar e
debater o projeto, mediante registro em lista de presença;
3) a participação ativa das organizações locais no retorno financeiro gerado pelo projeto.
A análise da Tabela 1 demonstra que uma notificação simples dos respectivos 12 atores locais sobre o projeto pode ser classificada como precária.
Além disso, é possível afirmar que somente a realização de assembléias e audiências públicas permitiria gerar um nível mínimo suficiente de participação
com a comunidade. A análise também ressalta que organizações comunitárias
e ambientalistas ganham prioridade na pontuação, mas que a sua participação
fica sempre a dever em relação ao envolvimento das organizações públicas.
Tabela 1: O Triângulo de Participação entre o Projeto, Órgãos Públicos e
a Sociedade Civil
164
CARSTEN ROTHBALLER
Categoria
Componente
Ponto por unidade
Por escrito Reunião Co-gestão
Prefeitura
Câmara municipal
Órgão estadual do
meio ambiente
Secretaria Municipal
do Meio Ambiente
Ibama
Ministério Público
Instituições Posto de saúde
públicas
Universidade
Valores
por escala
1
1
1
1
1
1
1
1
1
0 > 12 Precário
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
> 20 Baixo
> 28 Suficiente
> 36 Significativo
> 44 Alto
Sociedade
civil
Associações
comunitárias
ONG social local
ONG ambiental ou social
nacional/internacional
Fonte: dados elaborados pelo autor.
1
1
2
2
4
4
1
2
4
45>
Máximo
Os dados coletados foram analisados e comparados. Com base ainda na análise de estudos nacionais e internacionais sobre o mesmo tema,
geramos as conclusões apresentadas neste estudo.
7.1.3 Contribuição intrínseca do projeto ao desenvolvimento sustentável
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
Eliminação do gás metano; redução do mau cheiro e do risco de
doenças; diminuição da erosão e infiltração de água no subsolo; redução
165
7 DESCRIÇÃO DOS ESTUDOS DE CASO
7.1 Projeto Battre
7.1.1 Caraterísticas básicas
• Tipo: captura de gás em aterro sanitário, projeto de grande escala, queima de metano, planejado de 2004 a 2019 para gerar 13.958.155 t CO2e
Local:
Salvador, Bahia, na APA Joanes Ipitanga.
•
• Proprietário: Bahia Transferência e Tratamento de Resíduos SA (Battre),
grupo belgo-francês GDF Suez.
• Tipo de contrato: A Battre possui uma concessão da prefeitura para a
administração do aterro sanitário até 2019.
• Investimento: R$45 milhões durante 16 anos (incluindo custos de operação)
• Volume de créditos de carbono: R$285 milhões (R$20 por crédito em
um cenário conservador).
• Cronologia: Desenvolvimento 2000-2003; início em 01.01.2004; aprovação pela CIMGC em 02.06.2004; registro na UNFCCC em 15.08.2005;
45.988 créditos certificados em 30.12.2005; relatório de verificação em
03.10.2008; até 16.08.2009 sem outras emissões de créditos.
• Empresa de validação: Det Norsk Veritas (DNV).
7.1.2 Condições básicas de vida da comunidade do entorno
Área pouco habitada, comunidade pouco organizada socialmente,
politicamente inativa, habitações com energia elétrica, sem sistema de água
encanada ou esgoto, alto nível de desemprego, renda incerta proveniente de
empregos temporários, baixa qualidade da educação escolar e profissional.
da infiltração do chorume; criados 12 postos de trabalho indiretos e 6
diretos; durante as obras, 30 postos de trabalho, maioria recrutado localmente; 40% da tecnologia instalada é internacional; adaptação da tecnologia
importada foi feita por técnicos nacionais; transferência do conhecimento
gerado a outros projetos mediante parceria com UFBA, USP e palestras.
7.1.4 Contribuição adicional ao desenvolvimento sustentável
De acordo com o documento DCP, a empresa efetua uma contribuição voluntária no valor de 5% dos créditos vendidos para:
• projeto de viveiro e reflorestamento (24.000 mudas produzidas por trimestre);
• cursos de informática para jovens da comunidade: dois grupos recebem
capacitação no total de 80 horas com computadores, 24 pessoas capacitadas por trimestre;
• programa de educação ambiental para crianças (até 2007 um total de
1.459 crianças e professores participaram deste projeto, ao custo de
R$84.670,20);
• formação e capacitação dos funcionários.
No total, a empresa gastou para todos os projetos voluntários até
2007 um total R$198.732,00.
166
CARSTEN ROTHBALLER
7.1.5 Comunicação, participação e integração com a comunidade
• Em conformidade com o regulamento international do MDL, o DCP
do projeto foi publicado na internet durante trinta dias a partir de 29 de
novembro de 2002 para comentários. A empresa DNV registrou três
comentários técnicos, que foram respondidos. Em dezembro de 2003,
foi repetido o mesmo procedimento por causa das alterações no DCP.
Não houve novos comentários.
• Em outubro de 2002, o projeto foi apresentado ao debate público, após
ter sido anunciado nos jornais locais (duas vezes), no rádio e no canal de
televisão. Um grupo de 26 pessoas do setor privado, de órgãos públicos
e de organziações da sociedade civil estiveram presentes.
• Depois disso, não houve outros eventos abertos ao público. Nenhum
dos moradores do entorno entrevistados para este estudo estava ciente
da geração de créditos de carbono pelo projeto e da destinação de 5% do
resultado das vendas para ações na comunidade.
É realizada avaliação interna pela empresa de 12 indicadores (essencialmente quantitativos), nas áreas de desenvolvimento econômico (4),
impactos ecológicos e sociais (7) e transferência tecnológica (1).
7.1.7 Observações
• Os projetos de educação ambiental e de reflorestamento são obrigatórios
pelo licenciamento ambiental. Porém, a empresa ampliou os dois projetos. A linha divisória entre a obrigatoriedade e a contribuição voluntária
não está clara, o que torna difícil identificar se a empresa está investindo
5% da venda de créditos na “comunidade local, o meio ambiente e na
economia local” (BATTRE; DCP, 2005, p. 4).
• O curso de computação é uma ação deliberada para combater os altos
índices de desemprego da juventude local, porém, não ocorre uma avaliação sobre a taxa de empregabilidade. Os alunos entram no curso com
conhecimento muito diferente entre si e a oferta de capacitação deveria
ser segmentada de acordo com o perfil dos alunos.
7.2 Projeto CRA
7.2.1 Caraterísticas básicas
• Tipo: captura de gás em aterro sanitário, projeto de grande escala, queima de metano, planejado de 2007 a 2016 para gerar 3.201.764 t CO2e
• Local: bairro de Aurá, Belém, Pará, a leste do Parque Ambiental de Belém
• Proprietário: Conestoga-Rovers & Associados Engenharia S/A, grupo
canadense CRA
• Tipo de contrato: CRA possui uma concessão da prefeitura para a queima de metano
• Investimento: R$6,5 milhões, além de R$720.000/ano de custos
operacionais
167
7.1.6 Monitoramento
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
· A empresa não impôs restrições ao pesquisador. As entrevistas com os
funcionários puderam ocorrer livremente sem supervisão. Os gestores
do projeto colaboraram ativamente para este estudo.
• Volume de créditos de carbono: R$64 milhões (R$20 por crédito em
cenário conservador)
• Cronologia: desenvolvimento 2005-2006; aprovação pela CIMGC em
15.12.2006; início oficial do projeto em 01.01.2007; registro na
UNFCCC em 30.04.2007; primeiro relatório oficial em outubro de
2008; 32.265 créditos certificados em 12.08.2009; 51.524 créditos certificados em 13.08.2009
• Empresa de validação: SGS do Brasil Ltda.
7.2.2 Condições básicas de vida da comunidade do entorno
Periferia metropolitana, ocupações irregulares de lotes, sem água
encanada, com acesso à energia, acesso limitado a transporte público, alto
nível de criminalidade, socialmente isolada, conflitos dentro da comunidade, demandas nas áreas de saúde e educação, tem escola com apenas o
Ensino Fundamental incompleto, alta taxa de desemprego, renda proveniente da catação de lixo em grupos informais.
168
CARSTEN ROTHBALLER
7.2.3 Contribuição intrínseca do projeto ao desenvolvimento sustentável
Eliminação do gás metano; redução do mau cheiro e do risco de
doenças, diminuição dos riscos de incêndio ou explosão; capacitação dos
funcionários; criados 3 postos de trabalho indiretos e 3 diretos; durante
as obras, 50 postos de trabalho, maioria recrutado localmente; são pagos
royalties à prefeitura pela concessão, até setembro de 2008 haviam sido
pagos R$180.000,00; tecnologia instalada de origem nacional e internacional; adaptação da tecnologia importada foi feita por técnicos nacionais; transferência de conhecimento por meio da participação em
seminários.
7.2.4 Contribuição adicional ao desenvolvimento sustentável
• Programa de formação profissional para os catadores de lixo (não verificado);
• 70 bolsas de estudos para filhos de catadores de lixo (não verificado);
• Curso de informática para a comunidade (não existente).
7.2.6 Monitoramento
É realizada avaliação interna pela empresa de sete indicadores (essencialmente quantitativos), nas áreas de: número de postos de trabalhos;
distribuição de renda; nível do mau cheiro; explosões no aterro; transferência de tecnologia mediante a participação em seminários e publicação
de artigos; formação e capacitação dos funcionários.
169
• A empresa SGS publicou o DCP do projeto para comentários, na internet,
de 02 de dezembro de 2005 a 1º de janeiro de 2006. Dois comentários
recebidos: um comentário questionou o procedimento da concessão do
projeto, e o outro requereu a publicação do contrato firmado entre a
prefeitura e a CRA. A verificadora SGS respondeu que a prefeitura não
considera necessário uma licitação para a concessão. Além disso, como o
contrato entre a empresa CRA e a prefeitura não faz parte do projeto
MDL, ele não precisa ser apresentado ao público.
• Durante a primeira inspeção do projeto realizada pela SGS, os auditores
registraram a falta de uma consulta pública, de acordo com o regulamento da CIMGC. A empresa CRA convidou então os atores locais
para uma apresentação do projeto. Foram enviadas cartas para os atores
listados pelo regulamento da CIMGC. Adicionalmente, foram publicados anúncios, por duas vezes, nos dois maiores jornais locais. Na consulta pública realizada em 1º de fevereiro de 2006, compareceram 51 pessoas
para a apresentação do projeto. Os comentários feitos foram todos positivos, não foi debatido o pagamento dos royalties.
• Depois disso, não houve outros eventos abertos ao público. A maioria
dos moradores do entorno não tem conhecimento sobre o pagamento
dos royalties à prefeitura. Representantes da comunidade exigem uma
comunicação mais transparente e o cumprimento das promessas (bolsas
de estudo, curso de computação) feitas no dia 1º de fevereiro de 2006.
Porém, os moradores não apresentaram sua demanda diretamente à empresa.
• A empresa não impôs restrições ao pesquisador. As entrevistas com os
funcionários puderam ocorrer livremente sem supervisão. O gerente do
projeto colaborou ativamente para este estudo.
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
7.2.5 Comunicação, participação e integração com a comunidade
7.2.7 Observações
• A metodologia do cálculo dos royalties a pagar para a prefeitura não é
transparente e não está disponível ao público;
• O Ministério Público recebeu uma denúncia anônima, pois o contrato
firmado entre a prefeitura de Belém e a empresa CRA não ocorreu de
acordo com os requisitos dos procedimentos de licitação pública;
• A prefeitura anunciou que irá utilizar os recursos recebidos dos royalties para
criar uma cooperativa de catadores. No entanto, essa idéia enfrenta resistência pelos grupos informais de catadores que moram no entorno do aterro.
7.3 Projeto Cosipar
7.3.1 Características básicas
• Tipo: Energia renovável, projeto de pequena escala, geração de energia
termoelétrica, planejado para evitar 345.786 t CO2e em 21 anos
• Local: Marabá, Pará
• Proprietário: Cosipar – Cia. Siderúrgica do Pará, Grupo Cosipar
• Empresa de consultoria: EcoSecurities Brasil Ltda.
• Investimento: R$5.048.426
• Volume de créditos de carbono: R$6,75 milhões (R$20 por crédito
em cenário conservador)
• Empresa de validação: Bureau Veritas Certification do Brasil (BVQI)
170
CARSTEN ROTHBALLER
7.3.2 Cronologia
• Abril de 2005, primeiro DCP: prevenção da emissão de gases de efeito
estufa em volume total de 491.649t CO2e, redução anual planejada de
23.412t CO2e; o cálculo do fator de emissão de energia não foi aceito
pela CIMGC;
• Outubro de 2005, terceiro DCP: redução de gases de efeito estufa em
volume total de 389.249t CO2e, com redução anual planejada de 18.536t
CO2e;
• A CIMGC emite a sua carta de aprovação em 20.01.2006;
• Cosipar/EcoSecurities modificam novamente o cálculo de emissão de
energia e enviam um quarto DCP para o Conselho Executivo do MDL;
• O relacionamento entre a empresa Cosipar e as autoridades de proteção
ao meio ambiente, bem como com os movimentos sociais, é conflituoso.
A comunicação ocorre basicamente por meio de notificações judiciais.
• Conforme os relatórios de validação da empresa BVQI, os atores locais foram informados sobre o projeto MDL. A partir de 02 de agosto de 2004, o
público foi convidado a apresentar comentários na internet. Não houve nenhum comentário. Não houve uma apresentação pública do projeto. Os
atores aqui entrevistados, Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará
(Semma) (Antonio Rosa, 2007), Ibama (Leo Bento, 2007), Ministério Público e as maiores organizações sociais e ambientais da região (Raimundo
Gomes de Cruz Neto, 2007) não tomaram conhecimento do projeto MDL.
Consequentemente, o monitoramento da consulta das partes interessadas
pela BVQI torna-se questionável. A única comprovação de que houve algum tipo de consulta se encontra no DCP (na página 26), onde um ofício
da prefeitura de Marabá confirma o recebimento de uma carta sobre o MDL.
• O pesquisador não recebeu autorização da empresa para entrar na área
do empreendimento, nem para conduzir entrevistas com os funcionários. A gerência em Marabá não concedeu entrevista. A alta gerência estava ausente. Foi possível apenas um encontro com o diretor da Cosipar
responsável pelo projeto MDL, no Rio de Janeiro.
7.3.4 Observações
• A demanda crescente por ferro-gusa no mercado internacional gerou a
rápida industrialização em Marabá. O que, por sua vez, gerou uma explosão da demanda por carvão vegetal que somente pode ser atendida
por madeira de corte ilegal.
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
7.3.3 Comunicação, participação e integração com a comunidade
171
• A CIMGC não concorda com o procedimento e invalida a carta de aprovação;
• Cosipar/EcoSecurities dão entrada no quarto DCP na CIMGC;
• CIMGC exige um esclarecimento sobre a atitude de Cosipar/EcoSecurities;
• Como a Cosipar não apresenta justificativa, após 60 dias o projeto é
retirado pela CIMGC do processo de registro.
• Até março de 2007, as multas aplicadas contra a Cosipar apenas pelo
Ibama somaram um total de R$65 milhões. Em final de 2007, a Cosipar
e o Ibama assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)
com o Ministério Público, pelo qual a empresa se obriga a reflorestar
32.000ha.
• Nos arquivos do escritório local da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
estão disponíveis os registros de diversas denúncias contra a Cosipar
pelo desrespeito à legislação trabalhista.
• O estudo de caso Cosipar demonstra a relação existente entre clima e
pobreza: certamente, a adoção de uma nova tecnologia no processo
produtivo da empresa pode gerar alguma redução de emissão de gases
de efeito estufa. Porém, se, no contexto do arco do desmatamento do
Pará, o projeto MDL não contribuir para a melhoria da qualidade de
vida das comunidades da região, o desmatamento ilegal tende a continuar.
• Este projeto MDL não foi recusado pelas repetidas infrações da empresa contra a legislação ambiental ou trabalhista, mas por um detalhe
técnico no DCP.
7.4 Projeto Energest
172
CARSTEN ROTHBALLER
7.4.1 Características básicas
• Tipo: energia renovável, projeto de grande escala, repotenciação
energética por meio de instalação de uma unidade geradora adicional,
planejado de 2007 a 2014 para reduzir 353.451t CO2e
• Local: Baixo Guandu, Espírito Santo
• Proprietário: Energest S/A, Grupo Energias do Brasil
• Empresa de consultoria: CantorCO2e Brazil
• Investimento: R$19,5 milhões
• Volume de créditos de carbono: R$7 milhões (R$20 por crédito em
cenário conservador)
• Cronologia: desenvolvimento 2006-2007; aprovação da CIMGC em
27.04.2007; início do projeto em 2007; registro no Conselho Executivo do MDL em 26.05.2008; 1º relatório de verificação em outubro de
2008; nenhuma emissão de créditos até 16.08.2009
• Empresa de validação: SGS do Brasil Ltda
7.4.3 Contribuição intrínseca do projeto ao desenvolvimento sustentável
Energia hidroelétrica, estabilização da tensão elétrica no estado, receita fiscal da prefeitura de Baixo Guandu, postos de trabalho temporários
durante as obras, não gerou novos postos de trabalho.
7.4.4 Contribuição adicional do projeto ao desenvolvimento sustentável
A CantorCO2e Brasil analisa as condições de vida, e Energest apóia
os projetos comunitários:
• Grupo informal de mulheres de Vila Mascarenhas: criação de uma cooperativa para produção e comercialização de bordados;
• Associação de pescadores do Baixo Guandu: construção de tanques para
produção e comercialização de pescado;
• Associação de pequenos produtores rurais de Queixada: proteção de
nascentes e fontes através de reflorestamento;
• Associação de pequenos produtores rurais de Ibituba: reativação da associação para a comercialização de produtos agrícolas.
7.4.5 Comunicação, participação e integração com a comunidade
• A relação entre a empresa Energest, os órgãos públicos e as organizações
da sociedade civil é boa. Porém, as reuniões e a troca de informações são
raras, e não ocorrem de modo regular.
• A empresa Energest informou e convidou comprovadamente 24 atores
dos órgãos públicos, do setor privado e da sociedade civil para se manifestarem sobre o projeto MDL. Não houve registro de comentário. Todas as organizações contactadas foram listadas no DCP, com o nome da
organização informada, telefone, endereço, fax e email, bem como o
nome da pessoa de contato.
173
Área rural, renda basicamente agrícola de lavoura extensiva, maioria das mulheres não tem renda própria, escassez de água no período seco
do ano, forte erosão, população politicamente inativa, acesso frágil aos
serviços de saúde e de educação.
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
7.4.2 Condições básicas de vida das comunidades do entorno
• A partir de 06 de julho de 2006, a empresa SGS convidou todas as partes
interessadas a expressarem comentários durante 30 dias na página da
internet. Nenhum comentário foi feito.
• Por meio da aplicação da metodologia do Carbono Social, foram organizadas duas reuniões com cada um dos quatro grupos comunitários.
Adicionalmente, foi realizada uma assembléia para troca de informações
e consolidação das demandas. No período deste estudo, as demandas
estavam sendo transformadas em projetos, que ainda não se iniciaram.
Todos os entrevistados para este estudo manifestaram seu contentamento com a iniciativa da Energest no uso do Carbono Social. Os grupos
comunitários se sentem informados e envolvidos.
7.4.6 Monitoramento
A empresa utiliza 26 indicadores externos e 48 internos, tanto qualitativos como quantitativos, para avaliar o projeto. Estes são aplicados
externamente, pela comunidade, conforme a metodologia do Carbono
Social, em seis áreas, que são: biodiversidade, recursos naturais, recursos
sociais, recursos humanos, recursos econômicos e carbono.
7.4.7 Observações
• O projeto não está relacionado a nenhum impacto negativo novo adicional, pois consiste na repotenciação de uma barragem já existente.
• A licença de operação da hidroelétrica prevê projetos, programas e estudos adicionais para a proteção ambiental, por exemplo, um programa de
formação para os 254 professores e mais de 5.000 alunos.
174
CARSTEN ROTHBALLER
8 PONDERAÇÕES SOBRE A ATUAÇÃO DA CIMGC
Através da verificação rígida do licenciamento ambiental e do cumprimento das obrigações trabalhistas, a CIMGC estimula as empresas que
querem utilizar as oportunidades do MDL a cumprir a legislação. Este é o
primeiro impacto positivo do MDL para o país. O operador do projeto
deve assinar duas declarações nas quais atesta que irá operar dentro da
legislação ambiental e trabalhista (CIMGC, 2006, p. 23). Uma vez informado sobre o projeto, o Ministério Público pode exercer sua função de
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
175
controle e apresentar eventuais irregularidades. Com base nos comentários recebidos, a CIMGC decide sobre a aprovação do projeto.
No final de 2006, a Comissão determinou que os proprietários de
projetos que operarem contrariando a legislação podem perder a autorização (CIMGC, 2008, p. 1), levando o Conselho Executivo do MDL a impedir a emissão de créditos de carbono pela empresa. Desse modo, a
CIMGC mantém seu poder regulador durante todo o ciclo do projeto
MDL. Porém, este poder licenciador pela Comissão depende fortemente
da capacidade de análise e de comunicação por parte dos atores locais, na
medida em que a Comissão atua apenas de acordo com os documentos
recebidos. O estudo de caso da Cosipar confirma esta conclusão.
Visando garantir que o Brasil contribua com um MDL efetivo para
uma solução à mudança climática, a CIMGC estabeleceu uma estrutura
que permite que ela examine o critério de adicionalidade do projeto. Por
meio deste procedimento, a Comissão Interministerial reduziu o ritmo do
processo de aprovação nacional. Mas, ao mesmo tempo, a CIMGC diminuiu o risco do investidor ao estabelecer regras claras e transparentes.
A preocupação da CIMGC com a integridade ecológica do MDL garante,
desse modo, a efetividade do Protocolo de Quioto. Os créditos emitidos
pelo Brasil são avaliados em três instâncias, pela empresa de verificação
externa, pela CIMGC e pelo Conselho Executivo do MDL. Já ressaltamos
que esta garantia de qualidade do crédito é essencial para que a compensação das emissões em escala global funcione efetivamente, pois o risco consiste em que o operador do projeto tente maximizar a rentabilidade do
empreendimento pela sobrevalorização do volume de créditos a serem gerados. Um cálculo inflacionado do volume de créditos de carbono gerados
em um projeto gera um aumento das emissões de gases de efeito estufa em
escala global. Nesse sentido, o trabalho da CIMGC merece um reconhecimento positivo.
Porém, quanto mais rígida e exigente a CIMGC tem sido quanto à
integridade ecológica dos projetos, menos restritiva e exigente ela tem sido
em relação ao objetivo do desenvolvimento sustentável. Enquanto diversos projetos não receberam a aprovação da CIMGC porque não atendiam
à legislação ou ao critério de adicionalidade, segundo nossa pesquisa não
houve projeto que tenha sido recusado devido à sua fraca contribuição ao
desenvolvimento sustentável. Os projetos que não apresentaram estes dados apenas foram chamados a preencherem o Anexo III. Dessa forma, as
CARSTEN ROTHBALLER
176
empresas de consultoria que desenvolvem os projetos entenderam que,
para a CIMGC, o desenvolvimento sustentável constitui um impacto secundário que ocorre automaticamente em todo projeto. Segundo as entrevistas, não existem dúvidas na Comissão de que todo MDL contribui
intrinsecamente para o desenvolvimento sustentável, e os resultados de
nossa pesquisa confirmam esta conclusão de forma geral para o país. Porém, as condições de vida das comunidades no entorno do projeto podem
ser precárias, como mostra o estudo de caso do projeto CRA, sem que a
empresa, ou o comprador dos créditos, tenha qualquer responsabilidade
para com os moradores.
A Comissão Interministerial solicita a opinião somente do operador do projeto, que descreve em uma formulação bastante geral os impactos para o desenvolvimento sustentável. Não existe uma verificação das
afirmações feitas no Anexo III nem durante a fase de aprovação, nem durante a fase de implementação do projeto. Nesse sentido, o Anexo III se
transformou em um formulário obrigatório sem implicações práticas, e os
consultores redigem o texto de acordo com o que imaginam que a comissão gostaria. O conteúdo usado em um Anexo III é novamente aproveitado para redigir outros projetos, sem que o texto tenha surgido do contexto
específico de cada projeto. A formulação genérica dos cinco parâmetros
definidos para o Anexo III estimulam respostas vagas, sem que sejam apresentados indicadores que permitam a verificação dos impactos no desenvolvimento sustentável. Assim, não há garantia quanto à componente social
do empreendimento, e a contribuição ao desenvolvimento sustentável é
generalista, sem metas, cronograma ou obrigações, impossibilitando a
mediação ou controle.
Como a CIMGC justifica sua posição? O secretário executivo da
Comissão detalhou na entrevista que a complexa realidade brasileira não
pode ser modificada de uma só vez (Miguez, 2008). São necessários muitos pequenos passos, buscando cumprir cada vez mais a legislação ambiental
e trabalhista, pois o mundo do Brasil não é o mundo do desenvolvimento
sustentável. Se a CIMGC buscasse estabelecer requisitos muito altos, o
MDL brasileiro ficaria isolado dentro de uma redoma. Com a generalidade dos critérios do Anexo III, a comissão busca trocar um pequeno mundo
com uma alta contribuição para o desenvolvimento sustentável por um
mundo maior e mais integrado, mesmo que isto signifique um impacto
apenas relativo ao desenvolvimento.
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
177
Não resta dúvida de que este ponto de vista é muito promissor para
a promoção da legislação trabalhista e ambiental. Porém, essa concepção
representa uma alteração significativa diante da idéia original do MDL,
que se originou de uma proposta de justiça climática e compensação do
país por impactos negativos gerados por outros países. As poucas exigências sociais contidas no Anexo III não guardam proporção com os altos custos que a sociedade brasileira terá que enfrentar pelos danos ao clima global
e que já começam a ter efeito no país. O Brasil não tem recebido adequada
compensação pela exportação de créditos que permitem a países do hemisfério norte a manutenção de seu alto padrão de emissão, sem que haja
obrigatoriedade do MDL de contribuir para a melhoria da qualidade de
vida das comunidades brasileiras. Como a prioridade declarada do governo brasileiro é o combate à fome, à miséria e à pobreza, os critérios sociais
do MDL não deveriam ser vistos como frágeis. O potencial de impacto do
MDL deveria ser usado e ampliado na melhoria da qualidade de vida da
população. Mesmo que o ponto de vista da CIMGC seja compreensível,
as conclusões de nosso estudo não permitem que compartilhemos da mesma posição.
Uma segunda falha na estrutura institucional do MDL chama a
atenção. O exame e a avaliação dos indicadores para a redução dos gases de
efeito estufa ocorre de forma clara, detalhada e objetiva. Além disso, a verificação ocorre contínua e repetidamente durante os 7 ou 21 anos vida do
projeto. O plano de monitoramento obrigatório permite comprovar a redução de emissão. Enquanto essa parte do projeto é controlada detalhadamente pela Comissão Interministerial, ela não estruturou nenhum
mecanismo direto de controle para a contribuição ao desenvolvimento
sustentável. Não existe um monitoramento obrigatório de indicadores do
desenvolvimento sustentável.
Dessa forma, a CIMGC não possui instrumento de controle para as
projeções feitas pelos operadores do projeto, nem mecanismo de sanção
no caso do não cumprimento das obrigações assumidas no planejamento.
Consequentemente, não existe garantia para o cumprimento da componente social. Mesmo que nos estudos de caso aqui analisados não tenham
sido encontradas fortes divergências entre o Anexo III e a realidade local,
parece claro que, sem que haja um controle externo, por exemplo pela
sociedade civil, não é possível eliminar o risco do não cumprimento das
metas sociais nos projetos. Até que esta deficiência tenha sido corrigida
pela CIMGC, a aferição do desenvolvimento sustentável, como a que ocorre
no caso do projeto Energest, é voluntária e constitui uma exceção. Sem um
controle externo, com base em metas e cronogramas, não é possível apresentar uma avaliação objetiva sobre a contribuição do MDL ao desenvolvimento sustentável. Neste contexto, os 11 ministérios integrantes da
CIMGC ficam limitados em sua função de enriquecer o MDL com múltiplos pontos de vista e a reforçar a transversalidade do impacto.
178
CARSTEN ROTHBALLER
9 CONTRIBUIÇÕES INTRÍNSECAS E ADICIONAIS
PARA A SUSTENTABILIDADE
Os três projetos aqui analisados apresentam uma multiplicidade de
efeitos intrínsecos para o desenvolvimento sustentável nas suas diferentes
fases de planejamento, operação e construção. Porém, a contribuição voluntária tem se confundido com as ações obrigatórias de compensação
ambiental. Mesmo assim, vale ressaltar que os projetos contribuíram para
a componente ambiental do desenvolvimento sustentável e ampliaram a
geração de energia renovável no país. Adicionalmente, os lixões passaram
a ter maior valor por causa do MDL e têm sido transformados em aterros
sanitários. Os projetos Battre e Energest, além disso, ainda complementaram
o seu entorno com ações de reflorestamento. Os postos de trabalho criados
pelos projetos são insignificantes em relação ao volume dos investimentos,
mas são empregos de alta qualidade. O projeto CRA irá pagar royalties durante toda sua duração à prefeitura de Belém, que pretende investir estes
recursos nas comunidades do entorno do aterro. Os projetos no Norte e
Nordeste receberam uma transferência de tecnologia tanto do Sudeste como
do exterior, equipamentos foram adaptados às condições locais de operação. O caso do projeto Energest demonstra que através do MDL é possível
subsidiar investimentos que não ocorreriam de outra forma, e o projeto
Battre demonstra que é viável transformar lixões em aterros sanitários que
contribuem para a melhoria da saúde pública.
Além disso, foi possível identificar em nosso estudo que estes projetos
têm caráter piloto, pois as empresas operadoras replicaram o modelo com
investimentos em outros setores. O grupo GDF Suez está utilizando o conhecimento gerado com o aterro em Salvador em um projeto em São Paulo.
O projeto MDL em Belém, da CRA, constitui resultado do aprendizado que
a empresa teve com os aterros de Receife e Salvador. A Energias do Brasil
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
179
implementou seu primeiro projeto no Espírito Santo e vem replicando o
modelo. Assim, quando o MDL obtém sucesso, os investidores se sentem motivados a repetir a experiência em outros territórios, o que gera
novas competências e permite a sistematização dos novos conhecimentos pelas universidades públicas. Estes processos têm gerado um novo tipo
de concorrência nos setores envolvidos, pois as demais empresas do mesmo
setor também buscam replicar o modelo. O que, por sua vez, tem estimulado a inovação da legislação. O interesse privado por estabelecer um projeto MDL gera inovações e mobiliza investimentos que, por exemplo, no
caso da hidrelétrica de Mascarenhas não ocorreram ao longo dos trinta
anos, ao passo que o empreendimento era estatal, ou, no caso do lixão de
Belém, para o qual a prefeitura não tinha uma solução própria.
Especialmente o estudo de caso do lixão de Belém ressalta que o
MDL gera impactos positivos inclusive ao trazer a atenção internacional
para empreendimentos antes esquecidos. Concluimos, assim, que o MDL
gera investimentos privados para bens públicos e demonstra capacidade
em superar barreiras políticas e sociais para sua implementação. Importa
ressaltar, porém, que estas conclusões se referem essencialmente a projetos
MDL de grande porte.
Podemos concluir da análise desta pesquisa que os resultados gerais
da avaliação interna e externa para os projetos implementados foram positivos. Apenas no caso do projeto CRA, em Belém, a avaliação externa pelas
comunidades adjacentes é levemente negativa. Atribuímos esta situação
aos poucos empregos gerados e à baixa oferta de capacitação pelo projeto
CRA. O projeto Energest é o que recebeu a avaliação externa mais positiva, o que se deve à sua estratégia de comunicação, envolvimento da comunidade e investimento na melhoria da qualidade de vida das comunidades.
O projeto Battre recebeu sua pontuação positiva pelo projeto de inclusão
digital com jovens, a capacitação dos seus funcionários, o plano de cargos
e salários, gerando alta satisfação pelos seus funcionários. Nenhum dos
três projetos implementados chegou a um dos extremos da escala de Likert,
seja a rejeição completa ou o apoio irrestrito. Este resultado pode ser atribuído ao curto período de funcionamento destes projetos, com o MDL
Battre no seu quarto ano, e os MDL CRA e Energest ainda no segundo
ano de implementação. Os moradores vizinhos a estes projetos ressaltaram
nas entrevistas a sua esperança de melhoria de qualidade de vida por meio
do MDL.
180
CARSTEN ROTHBALLER
10 CONCLUSÕES
Os efeitos diretos e indiretos do MDL, seu estímulo ao cumprimento da legislação, assim como as contribuições intrínsecas e voluntárias
ao desenvolvimento sustentável, geram a resposta positiva à pergunta inicial deste estudo: em nossa opinião, o MDL contribui para que o Brasil
promova o desenvolvimento sustentável. As avaliações internas e externas
não são unânimes, mas no conjunto são positivas. Os dados coletados para
os três projetos comprovam isto. O MDL possibilita formas comprovadas
para melhoria, solução ou minimização de externalidades negativas. Sem a
ação inovadora, determinados problemas ambientais não teriam encontrado soluções.
Entretanto, os impactos positivos dependem muito dos efeitos intrínsecos do respectivo tipo de projeto, pois as contribuições voluntárias
ao desenvolvimento sustentável são pequenas, visto que não são garantidas
institucionalmente. A dimensão social do desenvolvimento sustentável não
é considerada sistematicamente no ciclo do projeto e não adquire um significado real na implementação dos projetos. Se podemos confirmar a integridade ecológica do MDL, que é assegurada em três instâncias diferentes,
a integridade social não recebe a mesma atenção. A componente social
depende da ação voluntária do empreendedor e se apresenta, portanto,
apenas de modo fraco e descontínuo.
Portanto, a próxima pergunta é: a contribuição do MDL é suficiente para a dimensão social e a garantia da melhoria das condições básicas de
vida em longo prazo? Em nossa opinião, a resposta a esta pergunta é negativa. Apresentamos a seguir quatro argumentos para justificar esta posição.
• Primeiro: a dimensão social é fortemente dependente das contribuições
voluntárias, e os efeitos intrínsecos do projeto privilegiam as dimensões
ecológicas e econômicas. Na análise dos projetos, pudemos identificar esta
situação tanto no caso da Battre como da Energest, no projeto CRA a
tendência à contribuição voluntária é menor. Portanto, não há certeza de
uma ação para as contribuições sociais adicionais. Em princípio, a componente social do MDL deveria estar resguardada no Anexo III pela criação
de postos de trabalho e geração de renda para as famílias. Entretanto, o
projeto Battre criou apenas 18 postos de trabalho e o projeto CRA, apenas
seis postos diretos e indiretos. Na Energest, a instalação de uma turbina
adicional na barragem não gerou nenhum novo posto de trabalho. Portan-
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
181
to, a melhoria da contribuição social dos projetos MDL é fundamental,
senão as ações continuarão sendo meramente voluntárias.
• Segundo: a integridade social do MDL não demanda apenas contribuições adicionais de qualquer tipo, mas demanda intervenções planejadas,
selecionadas de acordo com os problemas e os potenciais locais. Para
tanto, é necessário realizar um diagnóstico do território, definir indicadores exigentes e repetir a avaliação continuamente, comparando com a
linha de base. É deste contexto que pode surgir uma estratégia de objetivos para o desenvolvimento local. As dimensões do desenvolvimento
local devem ser tratadas de modo integrado, visando obter um impacto
positivo que seja sustentável. Apenas a repetição periódica das avaliações
pode garantir a efetividade dos impactos. Somente o projeto Energest é
adequado a este segundo argumento.
A ausência de uma avaliação qualitativa das contribuições voluntárias dos projetos MDL à dimensão social é evidente. Os indicadores criados para abranger as dimensões sociais no Anexo III não são suficientes.
A monitoria no projeto CRA, por exemplo, se restringe a registrar o número dos postos de trabalho criados e a renda familiar dos funcionários
em comparação com a média regional. Como o empreendimento criou
apenas três postos de trabalho permanentes, a representatividade estatística deste banco de dados é questionável. Da forma como a avaliação da
dimensão social ocorre atualmente no MDL, não é possível verificar, ou
mesmo estimular, sua validade e representatividade.
• Terceiro: a fragilidade da dimensão social está relacionada com a desigualdade entre o baixo volume de investimento social dos projetos de grande
porte em relação à sua margem de lucro e a falta de transparência na
orçamentação dos gastos obrigatórios. O caso do projeto CRA reafirma
esta argumentação. Também no caso do projeto Energest, o relatório de
auditoria externa ressalta a ausência de um orçamento para os investimentos sociais para corresponder às expectativas das comunidades no município de Baixo Guandu. A empresa Battre, que, como a empresa CRA, tem
sua lucratividade baseada na valorização de um bem público, se comprometeu voluntariamente a doar 5% do valor da venda dos créditos de carbono para a comunidade do entorno. A partir do momento em que este
valor foi registrado nos documentos do projeto, ele deixou de ser voluntário e passou a constituir uma contribuição social obrigatória. Até agora, o
projeto MDL do aterro emitiu 45.988 créditos de carbono referentes ao
CARSTEN ROTHBALLER
182
ano de 2004. A empresa pretende solicitar a autorização para emissão dos
créditos referentes ao período de 2005 a 2008 de uma vez só, em 2009,
para evitar os altos custos da verificação externa. Mas, utilizando as projeções de redução de emissão de gases de efeito estufa apresentadas pela
empresa no DCP, projetamos um total de 2.735.937t CO2e nos quatro
anos. Pelas limitações da tecnologia utilizada no aterro, a empresa tem que
aplicar uma taxa de perda da ordem de 30%, e restam 1.915.155t CO2e
(Zulauf, 2007). Precificadas de forma conservadora a R$20 a tonelada, a
empresa teria que doar um valor da ordem de R$1,9 milhões. Cabe agora
à empresa demonstrar que este valor está sendo investido em projetos que
beneficiam as comunidades locais, o meio ambiente e a economia local,
conforme definido no DCP. Como este volume de doação foi registrado
no DCP aprovado pela CIMGC, cabe ao auditor externo do projeto Battre
confirmar este investimento social. Porém, no seu primeiro relatório, a
empresa verificadora lista apenas o total de doações com base no ano de
2004. A composição das despesas não é detalhada no relatório, o que é
problemático frente à sobreposição existente entre a doação para investimentos sociais e as ações obrigatórias de compensação ambiental. Além
disso, a comunidade não recebe informações diretamente, os dados estão
disponíveis apenas virtualmente e em inglês, no portal da UNFCCC, o
que torna bastante improvável o controle social sobre o projeto por parte
da comunidade. Fica adiada, pois, uma análise mais detalhada acerca da
contribuição social do projeto Battre, dependente do próximo relatório de
verificação.
• O quarto argumento: sustenta nossa afirmação sobre a precariedade da
componente social do MDL, que é a insuficiente participação dos grupos e atores locais no desenvolvimento e na execução dos projetos. As
comunidades não dispõem de um canal garantido para influenciar as
decisões acerca da aplicação das contribuições voluntárias dos projetos,
nem em participar da definição das prioridades sociais. Este argumento
será aprofundado no próximo segmento.
11 ENVOLVIMENTO E INFORMAÇÃO DOS ATORES
SOCIAIS NO MDL
Ao contrário da dinâmica da iniciativa privada, as instituições políticas enfrentam dificuldades em acompanhar o ritmo do MDL. Portanto,
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
183
é muito importante estabelecer um marco institucional que garanta a participação das organizações da sociedade civil. A análise da regulamentação
definida pela UNFCCC demonstra que não é suficiente apenas pedir que
ONGs reconhecidas por essa instância apresentem comentários aos projetos. Não só os resultados deste processo de consulta têm sido frágeis, como
não está claro como os comentários recebidos devem ser classificados e
analisados. No caso do projeto CRA, por exemplo, foi respondido pela
empresa que não havia necessidade de a prefeitura realizar uma licitação
para a concessão do uso do aterro sanitário. Porém, o Ministério Público
em Belém recebeu denúncias e abriu um processo de investigação sobre as
falhas no processo de concessão do aterro. Isto demonstra que as regras
estabelecidas pela UNFCCC buscando garantir a legitimidade do projeto
junto à sociedade civil não são suficientes para abranger os conflitos potencialmente existentes. A CIMGC percebeu esta fragilidade e procurou
descentralizar o processo de consulta para a esfera local, desta forma sensibilizando a população para o tema das mudanças climáticas e buscando
esclarecer a contribuição que o projeto MDL vai trazer para o desenvolvimento sustentável. As entrevistas conduzidas para este estudo demonstram que, para 80% das pessoas entrevistadas, o aquecimento global representa
um problema sério. Um total de 91% dos entrevistados relata que os impactos da mudança do clima já estão sendo sentidos, e por esta razão 82% das
pessoas elogiaram a presença de um projeto MDL em sua vizinhança e
73% confirmou que a contribuição do projeto é positiva. Concluimos, assim, que a população no entorno dos projetos MDL detém um certo conhecimento sobre a mudança do clima e valoriza os objetivos propostos pelo
Protocolo de Quioto. Podemos afirmar, assim, com exceção do caso Cosipar,
que os operadores dos projetos atuam em um ambiente favorável e estão
dispostos a contribuir com a comunicação. O fato de que pudemos visitar
repetidas vezes as instalações dos projetos para este estudo confirmam este
argumento. Importa ressaltar, porém, que as porcentagens das respostas
registradas nas entrevistas não esclarecem a qualidade da informação que
as pessoas receberam, nem a diversidade e independência dos canais de
informação.
Para além das marcantes diferenças na escala da comunicação à população pelos projetos, porém, a seletividade das informações providenciadas pelas empresas não garante a integridade social dos projetos. Os efeitos
ecológicos, com suas influências positivas na comunidade, são destacados
CARSTEN ROTHBALLER
184
na comunicação, ao passo que o contexto financeiro-econômico, ou o papel das comunidades nos projetos, não são tematizados, ou são pouco comunicados. Por exemplo, no caso do projeto Battre, a informação da
comunidade é limitada a tal ponto que os moradores não têm clareza que
a coleta e queima do gás metano no aterro gera lucro para a empresa. E, no
caso do projeto CRA, as organizações presentes nas audiências públicas
criticaram que o contrato entre a empresa e a prefeitura de Belém não
tenha sido divulgado, e que as pessoas presentes nas reuniões só ficaram
sabendo de um acordo secreto entre a empresa e a prefeitura após terem
participado da reunião e assinado a lista de presença. Para fortalecer a integridade social do MDL, importa, portanto, que a CIMGC estabeleça regras claras para a consulta aos atores locais. Por enquanto, vale a regra
estabelecida em 2003 de que a empresa precisa apenas informar por carta
um grupo seleto de organizações. O caso da Cosipar coloca em dúvida a
qualidade deste tipo de comunicação. Mesmo a empresa Energest, que
informou 24 atores sociais por carta, não recebeu uma única resposta.
Permanece, pois, o desafio para a CIMGC em estabelecer mecanismos
participativos para o MDL.
A CIMGC deveria, por exemplo, estabelecer regras mais detalhadas
quanto aos atores que o operador do projeto deve informar e envolver,
evitando que cada empresa escolha os representantes para a comunicação
de modo aleatório. A esse respeito, Leal (2008) formula propostas claras.
Também deverá ser necessário esclarecer nas regras qual o conteúdo de
informação mínimo necessário na carta a ser enviada. Com base em nosso
estudo, recomendamos que as cartas informem em especial como o projeto vai contribuir para a dimensão social do desenvolvimento sustentável e
quais as funções a serem exercidas pela comunidade local no projeto. Todas as organizações envolvidas deveriam ser registradas no DCP com endereço, tipo da organização, telefone, email e pessoa de contato, o que
permitiria ampliar a capacidade de supervisão do projeto pela CIMGC, a
empresa de verificação e pela sociedade civil em geral.
Havendo pagamento de royalties pelo projeto, sugerimos que seja
obrigatório que o contrato correspondente seja anexado ao DCP e colocado à disposição do público. Propomos, ainda, que o Anexo III, um plano
de monitoria a ser elaborado para a componente social, bem como os resultados da auditoria social anual sejam obrigatoriamente publicados na
página da internet do projeto.
Por escrito
Reunião
CO
En
BA
CA
CO En
Instituição pública
BA CA CO En BA CA
Co-gestão
Prefeitura
Câmara municipal
Órgão ambiental
estadual
Secretaria Municipal
Meio Ambiente
IBAMA
Ministério Público
Postos de saúde
Universidade pública
1
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Cooperativas, associações
ONG social local
ONG ambientalista local
ONG social ou ambiental
nacional ou internacional
1
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0 16
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0 0
1
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1
1
0
0
0
0
0
0
0
Total
7
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7
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9
16
0
11
0
0
0 17
0
COSIPAR 7 (precário), BATTRE 16 (baixo),
CRA 26 (suficiente), Energest 44 (alto)
Fonte: dados elaborados pelo autor com base nos DCPs, relatórios de validação e en-
trevistas próprias.
A avaliação da participação em três formas diferentes para cada um
dos quatro estudos de caso na Tabela 2 permite a comparação entre os
projetos. Concluímos que os atores sociais foram mais amplamente infor-
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
Componente
Sociedade civil
Categoria
Tabela 2: Resumo dos Resultados de Análises – Integração e Participação
de Partes Interessadas Públicas e Civis no MDL
185
Identificamos que existem pólos extremos na comunicação pelos
projetos. Por esta razão, o projeto deveria ser obrigatoriamente divulgado
pelos diversos canais de comunicação existentes em toda a região. Sugerimos, ainda, que a informação dirigida através de carta seja obrigatoriamente sucedida por uma consulta pública. Este procedimento miniza o
risco social e amplia a legitimidade do projeto. Esta conclusão gerou a
pontuação que utilizamos para avaliar os estudos de caso na Tabela 1.
Ampliamos a análise na Tabela 2.
mados no caso Energest. O projeto CRA, por sua vez obteve maior
mobilização social, pois na perspectiva da co-gestão apenas os quatro grupos comunitários da Energest tinham um poder decisivo sobre a distribuição dos benefícios sociais. Assim, entendemos que a CIMGC ao rever os
procedimentos de participação no MDL, além de sanar falhas no processo
de comunicação, também deveria estabelecer regras para o envolvimento
dos atores ao longo da vida do projeto.
186
CARSTEN ROTHBALLER
12 IMPLICAÇÕES DE NOSSO PONTO DE VISTA
Já no começo deste trabalho, ressaltamos que o MDL sem impacto
social deveria ser rejeitado pelo país, pois corre-se o risco de que os países
do hemisfério norte possam compensar suas emissões de forma barata sem
que os países do hemisfério sul sejam adequadamente remunerados por
este benefício. Os resultados de nosso estudo demonstram que o Brasil
obtém impactos no seu desenvolvimento sustentável pelo MDL mas que a
componente social é frágil. Assim, os créditos de carbono que estão sendo
exportados para os países do norte não contribuem obrigatoriamente para
a qualidade de vida das populações que estão viabilizando de forma direta
ou indireta o MDL. Os países do norte deveriam saber que mais uma vez
estão subsidiando seu consumo insustentável.
Nosso ponto de vista se baseia na concepção da justiça climática
entre nações. Consideramos que o MDL deva ser aprovado somente nos
casos em que ele possua não apenas integridade ecológica, mas também
social, possibilitando que a população do entorno, que pouco ou nada
contribui para o aquecimento global, possa se preparar e adaptar às mudanças do clima e alcance um padrão de vida mais justo.
Em nossa opinião, o MDL possui o potencial de alterar as cadeias
produtivas de certos setores da economia. No Brasil, 51% dos projetos MDL
estão no setor de geração de energia renovável (CIMGC, 2009, p. 7). Porém, uma mudança estrutural das cadeias produtivas somente deve ocorrer
se todos os recursos essenciais para a produção sejam analisados de forma
integrada, o que depende da ativa participação dos atores sociais, sendo esta
não uma opção, mas uma condição para o desenvolvimento sustentável. Até
o momento, as decisões e regras da CIMGC não garantem uma integração
participativa e efetiva dos atores sociais. Isto prejudica a efetividade em longo prazo do MDL, e alterações institucionais são, portanto, necessárias.
BATTRE: Projeto Vega Bahia – Projeto de Gás de Aterro de Salvador da Bahia:
2.3 A VALORIZAÇÃO DA ATMOSFERA E A CONTRIBUIÇÃO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...
BATTRE: Projeto Vega Bahia – Projeto de Gás de Aterro de Salvador da Bahia: ANEXO
III. Disponível em: <http://www.mct.gov.br/upd_blob/0017/17877.pdf>. Acesso em: 08
out. 2008.
187
Nossa primeira recomendação considera o ponto de vista da CIMGC,
sua estrutura, assim como seu modo de operação e busca integrar de modo
construtivo as conclusões do presente, propondo uma nova versão do Anexo
III. Este deve contribuir para a valorização da componente social e para a
melhoria do meio de vida sustentável das comunidades em todas as suas
dimensões. Os operadores do projeto devem também elaborar um plano
de monitoria que contemple indicadores quantitativos e qualitativos, que
permita a verificação externa quanto à contribuição do MDL ao desenvolvimento sustentável. O plano de monitoria e a escolha dos indicadores
não deve apenas ser auditado externamente pelas empresas privadas, como
deve ter sido aprovado e também auditado pelos atores sociais. Esta proposta não considera a implicação econômica deste processo de participação, por esta razão apresentamos ainda outra recomendação.
Nossa segunda recomendação considera a justiça climática e os custos que as mudanças do clima ocasionarão para toda a sociedade. Propomos
que a CIMGC defina um valor mínimo a ser investido pelo projeto MDL
na promoção do desenvolvimento sustentável, variável de acordo com o
volume de créditos gerados e o tipo de projeto. Os recursos recolhidos
pelo projeto podem ser aplicados parte em um fundo municipal de desenvolvimento, por exemplo, 65% do valor. Os 35% da outra parte poderiam
contribuir para um fundo nacional de mudança do clima que financiaria
projetos de adaptação e capacitação de comunidades em relação ao MDL.
Estes fundos seriam geridos paritariamente por empresas, poder público e
organizações da sociedade civil. Dessa forma, seria ampliada a democratização do MDL no país, a integridade ecológica e social seriam equivalentes à viabilidade econômica, e o MDL se fortaleceria em sua posição de
ferramenta para promoção da justiça climática.
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PARTE III
O CONFLITO SOCIAL EM
PROJETOS MDL
3.1
QUEIMANDO EUCALIPTO: O CASO DA
PLANTAR *
Marcelo Calazans; Tamra Gilbertson
1 INDO ALÉM DAS APARÊNCIAS
A Plantar Reflorestamento integra o Grupo Plantar, um dos maiores conglomerados de gestão de monoculturas de eucalipto e siderurgia
do Brasil. O projeto Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) da
Plantar no estado de Minas Gerais, denominado Projeto de Biomassa
Cultivada como Fonte de Energia Renovável para a Produção de Ferro
Gusa, foi um dos primeiros a serem apoiados pelo Fundo Protótipo de
Carbono (PCF) do Banco Mundial. Trata-se da primeira operação financeira do mundo que foi estruturada com lastro em créditos de carbono. O PCF antecipou a compra de mais de 1,5 milhões de CERs (o que
equivale a cerca de US$25 milhões, presumindo-se que os créditos sejam
vendidos a US$15) em reduções de emissões até 20121 .
*
1
Este texto constitui tradução e adaptação do capítulo Plantar SA Case Study, a ser publicado em 2009 em livro sobre o mercado de carbono editado por Tamra Gilbertson e
Oscar Reyes. A pesquisa para este capítulo vem sendo realizada por Marcelo Calazans e
Tamra Gilbertson no âmbito do programa Carbon Trade Watch, realizado em escala
global pelo Transnational Institute.
Documentação disponível no site: <http://wbcarbonfinance.org/Router.cfm?Page=
PCF&FID=9707&ItemID=9707&ft=Projects&ProjID=9600>. Este projeto é parte de
um esquema maior para gerar créditos de carbono equivalente a 13 milhões de toneladas em reduções de emissões de carbono, grande parte dos quais serão vendidos no
mercado voluntário.
MARCELO CALAZANS; TAMRA GILBERTSON
196
A Plantar e o Banco Mundial implementaram o empreendimento
sob o pretexto de servir como um projeto-modelo que demonstraria como
plantar árvores, aumentar a segurança dos trabalhadores rurais e promover ações de educação ambiental para crianças. Como já documentado
em nossa publicação anterior, Comércio de carbono: uma discussão crítica sobre mudança climática, privatização e poder (LOHMANN, 2006),
contudo, as atividades da empresa acabaram desalojando grande número
de pessoas de suas terras, eliminaram empregos e fontes alternativas de
renda no meio rural, secaram ou poluíram mananciais de água, esgotaram solos e a biodiversidade do bioma Cerrado, representam um risco à
saúde da população local e exploraram a mão-de-obra sob condições
aviltantes. Este projeto MDL, que alega promover a redução de emissões
de gases de efeito estufa, na realidade contribui para um modelo insustentável de monocultura de espécies exóticas e siderurgia que não melhora em nada a situação do clima.
A proposta original foi apresentada como sendo um projeto MDL
de sequestro de carbono por florestas, e foi rejeitada pela Secretaria Executiva do MDL na UNFCCC. Inicialmente, a Plantar alegou que sem o
projeto de carbono ocorreria uma “redução acelerada na base de produção florestal no estado de Minas Gerais”. A empresou apresentou suas
plantações em monocultura como sendo florestas e argumentou que, uma
vez que as árvores tivessem sido cortadas e queimadas para produzir ferro-gusa, ela não faria o replantio a menos que recebesse o financiamento
do mercado de carbono. Quando foi lembrada de que as regras do MDL
não permitem créditos de carbono por “desmatamento evitado”, a empresa reformulou os documentos do projeto de modo a enfatizar outras
justificativas. Na segunda tentativa de ter seu projeto aprovado para o
mercado MDL, a Plantar afirmava que estava tentando evitar a troca de
fonte de energia e que, se o projeto não fosse aprovado para o mercado
de carbono, ela passaria a utilizar carvão mineral ou coque, fontes de
energia mais poluentes em gases de efeito estufa, em sua indústria.
Em outras palavras, a empresa afirmou que os recursos dos créditos de carbono para seu projeto de 23.100 hectares em Curvelo seriam a
única forma de assegurar o fornecimento de carvão vegetal para sua linha de produção, embora o estado de Minas Gerais sozinho conte com
mais de dois milhões de hectares de plantações de eucalipto para abastecer este tipo de empresa. A própria Plantar possui fazendas que cobrem
mais de 180.000 hectares, na maior parte produzindo eucalipto para
produzir carvão vegetal em Minas Gerais. Além de prover serviços de
gestão para mais de 590.000 hectares de plantações para seu próprio
absatecimento com carvão e de outras empresas no Brasil.
A rejeição também da segunda versão deste projeto para o MDL
deveria ter encerrado o assunto, tendo em vista que cerca de 143 grupos
comunitários e pessoas físicas de Minas Gerais assinaram uma carta à
Diretoria Executiva da MDL em junho de 2004 protestando que:
2
Documentação disponível em: <http://cdm.unfccc.int/Projects/DB/DNVCUK1175235
824.92/view>.
197
Mas este não foi o fim da questão. Pelo contrário, o projeto foi
redesenhado e reapresentado ao MDL agora decomposto em suas diversas partes, o que inclui um projeto para reduzir a emissão de gás metano
no processo de queima das árvores e um projeto de reflorestamento.
A Plantar propôs ainda um terceiro projeto, no qual alega promover a
instalação de um novo sistema de redução de minério de ferro na produção do ferro-gusa.
Em 2007, a Plantar conseguiu a aprovação no MDL do seu projeto de redução de metano, que planeja gerar 112.689 certificados (CER)
ao longo de um período de sete anos, de 2004 a 2011. O projeto não
consiste em nada mais do que adequar a regulagem da temperatura dos
fornos da Plantar, bem como a garantia de que eles sejam ventilados
adequadamente – um processo simples disfarçado em jargão técnico com
referência a um estudo conduzido por uma universidade local2.
3.1 QUEIMANDO EUCALIPTO: O CASO DA PLANTAR
A afirmação de que, sem créditos de carbono, a Plantar [...] teria
que mudar para carvão mineral como fonte de energia é absurda
[...]. Contudo, agora, a Plantar está usando esta ameaça para exigir
créditos de carbono a fim de continuar com o que têm feito há
décadas: plantar monoculturas insustentáveis de eucalipto para a
produção de carvão [...]. Isto seria o mesmo que madeireiras exigirem dinheiro para não cortar árvores [...]. Não se deve permitir
que o MDL seja usado pela indústria de plantação de árvores para
ajudar a financiar suas práticas insustentáveis.
MARCELO CALAZANS; TAMRA GILBERTSON
198
Consumo de mata nativa pela siderurgia impacta biomas do país
A relevância da siderurgia no Brasil contudo, também conta com capítulos menos
nobres, que remetem a impactos socioambientais menos divulgados. Um deles
está relacionado a uma matéria-prima essencial ao setor que nem sequer é conhecida por boa parte da população: o carvão vegetal. Como combustível, aquece os
alto-fornos das siderúrgicas onde o minério de ferro é fundido. Além disso, durante a fusão, é um dos reagentes no processo que extrai o metal do minério. O ferrogusa, produto final desse beneficiamento, é a principal matéria-prima para a
fabricação do aço.
Ainda hoje, grande parte desse carvão vegetal provém de matas nativas. É feito em
fornos rústicos, popularmente conhecidos como “rabo quente”, nas regiões de
fronteira agrícola do país. Desmatamento, trabalho escravo e conflitos territoriais
são alguns dos problemas associados às carvoarias. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Siderurgia mostram que cerca de um terço do parque nacional
recorre ao carvão vegetal. Nesse universo, os principais consumidores são as chamadas guseiras, indústrias de médio porte que não fabricam aço, vendendo apenas
o ferro-gusa para outras siderúrgicas e setores como o de autopeças.
Somente em 2007, segundo a Associação Mineira de Silvicultura, o consumo de
carvão vegetal no Brasil foi de 9,2 milhões de toneladas – mais de 90% destinouse ao setor siderúrgico. Para se ter uma idéia, são necessárias 48 árvores para produzir apenas uma tonelada de carvão. Em outras palavras, naquele ano mais de
440 milhões de árvores foram para o forno. No século 19, as florestas próximas ao
Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais já eram parte da equação que viabilizou as
primeiras fundições importantes do país. Atualmente, são mais de 60 guseiras em
MG, 18 no Pólo Carajás - que perpassa o PA e o MA - além de outras no Mato
Grosso do Sul e no Espírito Santo.
Do Cerrado a Amazônia, no rastro da expansão dos alto-fornos, um mercado de
carvão vegetal foi estabelecido com base numa vasta gama de fornecedores independentes. Somente no Pará, segundo estimativa do governo estadual de 2007, existem
cerca de 25 mil carvoarias, número que ajuda a dimensionar a quantidade de pessoas
envolvidas na atividade. [...] A mão-de-obra é, em grande medida, formada por
trabalhadores sem-terra que vivem de serviços temporários. Carvoarias são palco de
denúncias frequentes envolvendo jornadas excessivas, alimentação inadequada e alojamentos insalubres – para não falar na corriqueira ausência de carteira assinada. [...]
Situações como essas fazem dos donos de carvoarias uma presença significativa na
“lista suja” do trabalho escravo – um cadastro do Ministério do Trabalho e Emprego
com os empregadores flagrados incorrendo no crime.
Também o desmatamento ilegal é motivo de constantes denúncias associadas ao
carvão. Esse é um impacto de difícil mensuração, visto que muitos trabalham à
margem da lei, na informalidade. [...] Paulo Cícero de Vasconcellos, presidente
do Sindicato da Indústria do Ferro no Estado de Minas Gerais, vê incompetência
na ação do IBAMA e revela que o setor recorreu das multas. [...] Em todos os
3
Veja o projeto: Reforestation as Renewable Source of Wood Supplies for Industrial Use
in Brazil, 04/03/08. Documentação disponível em: <http://www.netinform.net/KE/
files/pdf/PDD_AR_Plantar.pdf>.
4
Documento disponível em: <https://cdm.unfccc.int/UserManagement/FileStorage/
FJZUI99VFCYK55BIM0FQ9X51SOB6S3>.
199
No momento de redação deste texto, em 2009, o novo projeto de
reflorestamento da Plantar ainda se encontrava no estágio de validação no
ciclo do MDL. O projeto agora promete plantações reservadas de eucalipto
em sua fazenda exclusivamente para a produção deste tipo de carvão vegetal, agora eufemisticamente denominado de “biomassa renovável”3. A empresa afirma que a rejeição do projeto original não se deveu a falhas no
próprio projeto, mas por que os regulamentos da MDL sobre projetos de
florestamento e reflorestamento ainda não estavam prontos quando o projeto foi apresentado pela primeira vez. Baseando-se nesta argumentação, a
Plantar está tentando fazer retroagir os créditos de carbono até o ano de
2000, a despeito do fato de que as atividades econômicas de produção
florestal descritas no projeto já estão em andamento há nove anos, demonstrando que o projeto não atende ao critério de adicionalidade.
O segundo projeto que também espera registro visa o “Uso de carvão vegetal de biomassa renovável plantada no processo de redução de
minério de ferro”. A Plantar argumenta que o MDL deveria criar uma
nova metodologia quanto ao que descreve como uma forma inovadora
para reduzir emissões de CO2 advindas de altos-fornos. Na verdade, o projeto está recheado de discrepâncias. Por exemplo, o Documento de Concepção do Projeto (DCP) admite que serão utilizados diversos fornecedores
de madeira para produzir o carvão vegetal supostamente sustentável, mas
não foi feita nenhuma avaliação de impacto ambiental das plantações além
das pertencentes à própria Plantar4.
3.1 QUEIMANDO EUCALIPTO: O CASO DA PLANTAR
biomas, o Pantanal é hoje um dos principais focos de preocupação. Mato Grosso
do Sul já figura como importante fornecedor do pólo guseiro de Minas Gerais. ‘A
instalação do complexo minero-siderúrgico, [...] aumenta a pressão sobe as áreas
remanescentes de florestas nativas, configurando-se um cenário de desenvolvimento claramente insustentável’, relata texto de 2008 da FGV (REVISTA DIGITAL ENVOLVERDE, 2009).
200
MARCELO CALAZANS; TAMRA GILBERTSON
A Plantar calcula que o projeto de reflorestamento reduzirá em mais
de três milhões de toneladas as emissões de CO2 ao longo de seus 30 anos de
vida, o que poderia gerar para a empresa cerca de US$45 milhões oriundos
do comprador, o Fundo Holandês de MDL, um fundo público do Governo da Holanda gerenciado pelo Banco Mundial. O projeto de redução
de minério de ferro visa gerar 2.133.551 de créditos CERs (valendo cerca de US$30 milhões) ao longo de um período de sete anos.
Biocombustível sólido é alternativa para o ferro-gusa
O governo mineiro está empenhado em patrocinar um novo lobby verde que pode
ajudar a indústria siderúrgica a encontrar uma saída para o impacto da crise internacional. Trata-se de promover o que está sendo chamado de ‘biocombustível
sólido’ ou ‘carvão vegetal renovável’ e que vem a ser o plantio de florestas de
eucalipto para produzir ferro-gusa sem pressionar as matas nativas. [...]
O primeiro passo é mudar a imagem negativa do setor, construída por décadas de
desmatamento de florestas naturais. Há cerca de 70 siderúrgicas a carvão em Minas.
Os dados oficiais estimam que 50% do carvão vegetal produzido no estado vêm de
florestas plantadas. “Dos 50% de carvão vegetal que vêm de mata nativa, o produzido em Minas corresponde a uns 15%”, estima José Carlos Carvalho, Secretário
Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, que participa da delegação brasileira nas conferências climáticas internacionais. “O resto vem, na forma
de carvão, do oeste da Bahia, de Goiás, do Tocantins, do sul do Maranhão. [...].”
O lobby verde da siderurgia mineira ganhou pontos na semana passada quando
15 cientistas do IPCC, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas,
estiveram ali conhecendo o viveiro e o processo de carbonização da Plantar SA, a
primeira siderúrgica do país a se tornar autosustentável. [...]
“O processo implementado pela Plantar parece um bom exemplo de como combustíveis fósseis podem ser substituídos de uma maneira sustentável e que leva em
consideração não só os impactos ambientais como tem efeitos sociais positivos”,
diz o professor Manfred Fischedick, vice-presidente do Wuppertal Institut für
Klima, Umwelt, Energie e coordenador do grupo de mitigação do relatório de
renováveis do IPCC. “Replicar esta experiência no Brasil e em outras partes do
mundo parece ser muito recomendável.” [...]
Em 1988 a Plantar quase quebrou quando o governo retirou os incentivos para as
atividades de reflorestamento. Mas em 2000, com o Protocolo de Quioto em
vigor, vislumbrou uma oportunidade de saída ao desenvolver um projeto de MDL.
O projeto de MDL da Plantar prevê que, em 28 anos, a empresa consiga um
ganho de 12,8 milhões de toneladas de CO2. [...]
Foi fazendo estes cálculos que a Plantar conseguiu montar seu projeto de MDL,
reerguer-se e se tornar um modelo setorial. Não foi fácil, porque a empresa precisava de recursos imediatos para algo que levaria sete anos para dar retorno. Mon-
tou uma operação triangular. Negociou os créditos com o Fundo Protótipo de
Carbono do Banco Mundial e conseguiu US$ 5 milhões com o banco holandês
Rabobank. [...]
Os cientistas do IPCC, evidentemente, perguntaram se o eucalipto não exige água
demais e seca o solo, e como evitam os males da monocultura. Fabio Marques, gerente
de projetos de carbono da Plantar, mostrou a área de cerrado, que representa 20% da
área total plantada da empresa. “Estamos fazendo isso a 40 anos. Se o eucalipto secasse
o solo, isso aqui seria um deserto”, rebateu Geraldo Alves de Moura, diretor da Plantar
SA, apontando para o eucaliptal (JORNAL O VALOR, 2009a, p. B5).
5
Veja: <http://www.plantar.com.br/portal/page?_pageid=73,91138&_dad=portal&_
schema=PORTAL>.
201
A Plantar anuncia suas operações de carvão vegetal como “neutras
em carbono”5. Contudo, este conceito é falho, pois se baseia na idéia de
que o lançamento de dióxido de carbono na atmosfera advindo da queima
de combustíveis fósseis pode ser neutralizado com rapidez e segurança pelo
plantio de eucaliptos, ignorando os impactos sociais e ambientais mais
amplos de monoculturas de espécies exóticas.
A Plantar não planta espécies nativas em florestas sustentáveis. A empresa produz espécies de árvores exóticas em um modelo de plantação industrial com o único propósito de posteriormente queimar as árvores para
produzir carvão, liberando, assim, CO2 e outros poluentes na atmosfera.
As árvores são incineradas em pequenos fornos para produzir carvão
vegetal, o qual é usado na produção de ferro-gusa pela empresa. Contudo,
um volume considerável de destruição foi necessário previamente para abrir
caminho para este ramo industrial. Florestas naturais e pastagens foram
destruídas em Minas Gerais a fim de dar lugar a plantações de eucalipto,
liberando, no processo, o CO2 aprisionado no solo. Adicionalmente, a extração de minério de ferro do solo é um outro requisito para a produção de
insumos para as operações de ferro-gusa e, na outra extremidade da cadeia
3.1 QUEIMANDO EUCALIPTO: O CASO DA PLANTAR
2 PLANTAR ÁRVORES COM O ÚNICO OBJETIVO
DE QUEIMAR ÁRVORES
produtiva, temos outros poluentes advindos das siderúrgicas. De modo geral, o projeto MDL da Plantar contribui para gerar emissões de gases de
efeito estufa pela queima de árvores, bem como de uma cadeia produtiva
que envolve mineração, fundição, transporte, exportação e assim por diante.
A Plantar afirma que, compensando as emissões, suas plantações industriais de eucalipto absorvem carbono da atmosfera ao crescer. Mas o eucalipto
produzido industrialmente tem um ciclo de vida muito curto, sendo colhido
aos sete anos, e não há evidência para demonstrar que um ciclo de vida tão
breve, de crescimento rápido, possa realmente contribuir para ‘neutralizar’ o
carbono. De fato, pesquisas em silvicultura indicam que plantações de árvores
nem sequer começam a equilibrar o CO2 emitido pela perturbação do solo
antes de passados dez anos de crescimento. Podemos considerar razoável, portanto, a hipótese de que as monoculturas em larga escala de eucalipto na verdade liberam mais CO2 do que jamais seriam capazes de absorver. Outra pesquisa
demonstrou recentemente que, na realidade, florestas maduras acumulam mais
carbono que plantações jovens (REVISTA NEW SCIENTIST, 2002).
202
MARCELO CALAZANS; TAMRA GILBERTSON
3 PROMOVENDO REPRESSÃO COMO DE COSTUME
As afirmativas feitas pela Plantar acerca de seus programas sociais
são igualmente falhas e servem como pouco mais que uma tentativa de
obscurecer o papel destrutivo de plantações industriais de larga escala, que
causam perturbações sociais significativas e exacerbam conflitos em torno
da posse de terras.
O premiado filme The carbon connection (A Conexão do Carbono)
documentou como uma comunidade local foi despejada pela Plantar por
causa dos 12.540 hectares necessários para seu projeto de desenvolvimento
sustentável para o fundo do carbono PCF. Na época da filmagem, membros
da referida comunidade se reuniram para protestar contra a empresa e os
impactos que as plantações estavam tendo sobre suas vidas. Depois de quatro anos, todas as pessoas que participaram do filme sofreram ameaças ou a
empresa ofereceu emprego para um membro da família a fim de silenciá-los.
Hoje em dia, estas pessoas se encontram sob uma pressão tão severa que a
comunicação com eles representa perigo (GILBERTSON, 2005).
Algumas comunidades se organizaram para atuar de forma unida
contra as práticas da Plantar, mas foram silenciadas por um padrão contínuo de manipulação e intimidação por parte da empresa, que, geralmente,
começa com a oferta de um emprego a um membro da família a fim de
criar tensão e divisão. Caso não funcione, a empresa toma medidas mais
drásticas, incluindo telefonemas que sugerem que “acidentes” poderão
ocorrer, ameaças mais claras à vida das pessoas, ou mesmo ameaças dirigidas
a outros membros da família (GILBERTSON, 2006).
6
7
Estimativas baseadas no Relatório Anual de 2007 da Aracruz Celulose, que apresenta a
venda a US$15 por tonelada de emissões de CO2.
Para maiores informações sobre a Aracruz Celulose, veja <http://www.wrm.org.uy/
bulletin/106/Brasil.html>; <http://www.foei.org/en/publications/pdfs/briefing-paperfor-the-peoples-tribunal-on-human>.
203
Novos acontecimentos sugerem que o pior ainda pode estar por vir.
A Plantar SA está para formar uma parceria com Erling Lorentzen, fundador do megaprodutor de polpa de papel Aracruz Celulose, com a intenção
de ampliar os investimentos na indústria de ferro-gusa com base em créditos de carbono.
A Aracruz Celulose está listada na Bolsa do Clima de Chicago (CCX)
como uma empresa de produtos florestais que comercializa voluntariamente créditos de carbono em compensação no âmbito do Programa Fase
1 de 2003 a 2006. A Aracruz ingressou na Bolsa CCX em 2005. As metas
assumidas pela empresa junto à CCX estabelecem a redução de emissão de
gases de efeito estufa de suas operações de um por cento em 2003, dois por
cento em 2004, três por cento em 2005 e quatro por cento em 2006, em
relação à linha de base. Dependendo da precificação destes créditos, a
Aracruz Celulose pode receber até US$2,5 milhões por estas transações6.
Sob a direção do empresário Lorentzen, a Aracruz cresceu historicamente até se tornar um dos fabricantes de polpa de papel mais controversos do mundo. Suas plantações, muitas das quais em terras pertencentes
originalmente aos povos indígenas Tupiniquim e Guarani e quilombolas
do Sapê do Norte, levaram ao despejo de milhares de famílias, além de
severas restrições no acesso destas comunidades a fontes de água, produção
de alimentos e posse de terra. A empresa foi responsável pela destruição de
milhares de hectares de Mata Atlântica, além de atividades envolvendo o
desvio de rios e o secamento de nascentes e cursos d’água7.
3.1 QUEIMANDO EUCALIPTO: O CASO DA PLANTAR
4 A CONEXÃO ARACRUZ
Em 2008, a Aracruz Celulose foi atingida por um escândalo de grandes proporções envolvendo contratos de derivativos em moeda estrangeira, levando o valor da empresa a despencar e resultou em um processo por
parte dos acionistas, alegando uma violação da Lei de Títulos do Governo
Federal dos EUA. Na esteira destas perdas, a família Lorentzen vendeu
seus 28 por cento de ações na empresa para a Votorantim Celulose em um
acordo financiado com US$1 bilhão pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Com o socorro disfarçado para a Aracruz pelo governo brasileiro,
Lorentzen está deixando o setor de celulose e papel e mudando para outros
setores. A Plantar e a família Lorentzen estão fechando um negócio para
comprar mais terras em Minas Gerais. Lorentzen afirmou, em uma entusiástica entrevista sobre sua entrada no setor do carvão “verde”: “Eu comprei áreas em Minas Gerais planejando produzir carvão para a indústria de
ferro-gusa. As terras se encontram ao oeste de Minas, próximo a
Diamantina” (O VALOR, 2009b).
204
MARCELO CALAZANS; TAMRA GILBERTSON
5 CLIMA, FOGO E RESISTÊNCIA
Há um fio de esperança no norte do Espírito Santo, onde comunidades quilombolas atearam fogo a plantações de eucalipto como um ato
de resistência e uma tentativa desesperada de recuperar suas terras das
monoculturas da Aracruz Celulose e da Plantar. Naquela região, a Plantar
está a cargo das operações dos monocultores, incluindo o plantio, a aplicação de agroquímicos e fertilizantes e toda a manutenção em campo, ao
passo que a Aracruz é responsável pela briga jurídica pela titulação da terra
e gerencia as operações de colheita.
Uma nuvem de fumaça cobriu o maciço de eucaliptos no extremo
norte do Espírito Santo entre 11 e 13 de março de 2009. No mundo do
mercado de carbono, do MDL e das plantações em escala industrial de
árvores, os quilombolas do Sapê do Norte são vistos como criminosos,
responsáveis por desequilíbrio florestal e do clima. Contudo, não é ali que
esta história começou.
A região conhecida como Sapê do Norte engloba um grupo de
quilombos, comunidades rurais nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra. Hoje, existem 39 comunidades rurais, 25 das quais têm certificados de posse de suas terras concedidos pelo Programa Território da
3.1 QUEIMANDO EUCALIPTO: O CASO DA PLANTAR
205
Cidadania e/ou pela Fundação Cultural Palmares. O atual modelo de desenvolvimento da região foi iniciado em plena ditadura militar e baseia-se
em monocultura em larga escala de eucalipto de rápido crescimento, causando graves impactos ambientais, culturais, econômicos e sociais. As
mudanças foram abruptas, começando com o desmatamento da Mata Atlântica, seguida pelo desaparecimento de rios e nascentes, a expulsão de famílias de suas casas e terras e a migração massiva da população rural para as
periferias urbanas.
Nos anos 1970, contavam-se 12.000 quilombolas nas áreas rurais
da região. Hoje em dia, a Comissão Quilombola do Sapê do Norte calcula
que cerca de 6.000 pessoas continuam residindo na região. No município de
São Mateus, há mais de 50.000 hectares de eucaliptos plantados e, no município de Conceição da Barra, mais de 70 por cento do território municipal
está coberto por plantações de cana de açúcar e eucalipto (FASE, 2003).
As comunidades locais recordam que diversas nascentes, lagos e rios não
existem mais e que a fauna e a flora que garantiram a segurança alimentar
por mais de dois séculos foram eliminadas. De acordo com o Relatório de
Violação de Direitos Ambientais, Culturais, Sociais e Econômicos organizado pela ONG Fase/ES de 2003, o acesso a terra, água, trabalho e alimento são os principais direitos que estão sendo violados pela expansão da
monocultura do eucalipto.
Cinco anos mais tarde, em 2008, o Fórum Nacional de Segurança
Alimentar apresentou uma pesquisa nutricional das comunidades
quilombolas no país. Reportou que a falta de segurança alimentar e
nutricional chegou a um ponto tão grave que a proporção de crianças
quilombolas mal nutridas com idades de 0 a 5 anos era 76% mais alta
que a da população brasileira como um todo e 44,6% mais alta que a da
população rural em geral (FASE, 2008). O novo relatório da Fase/ES
verificou que estas estatísticas eram consistentes com as comunidades
quilombolas do Espírito Santo. Outro indicador que ilustra a
vulnerabilidade social dos quilombolas é o Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH). O IDH das 39 comunidades quilombolas na região do
Sapê do Norte apresenta uma clara desvantagem quando comparado à
média do restante do Espírito Santo nas áreas de educação, expectativa
de vida e reprodução, indicando que o modelo de crescimento econômico planejado para a região não promoveu a inclusão social (SILVA; CARVALHO, 2008).
As lideranças quilombolas lutam contra a tentativa de criminalização,
demonstrável pelo aumento de ações na Justiça contra as associações
quilombolas. Foram 82 quilombolas processados desde 2003, a maioria
em Conceição da Barra, por causa do acesso aos eucaliptos e à pouca mata
nativa que ainda resta. As comunidades têm o direito de exigir o acesso às
suas terras e aos recursos hídricos que, em muitos casos, são essenciais para
tradições culturais, com base na Convenção da OIT e na Constituição do
Brasil (OIT, 1989; BRASIL, 1988, 2003a, 2003b).
206
MARCELO CALAZANS; TAMRA GILBERTSON
6 UMA FLORESTA TROPICAL SEMI-ÁRIDA
Em 2008, ocorreu uma seca de mais de sete meses no norte do
Espírito Santo. Os moradores da região culpam a monocultura de eucalipto
que, dizem, alterou o microclima local. A Plantar gerencia as plantações da
Aracruz Celulose na região e, com o período de seca prolongado, somado
à crise financeira internacional, no final de 2008 a empresa suspendeu o
replantio e demitiu mais de 500 trabalhadores subcontratados. Esta seca
afetou também profundamente a agricultura de subsistência dos
quilombolas, além de ter efeitos negativos sobre os empregos locais e o
comércio.
Com apoio do grupo de segurança privada da Aracruz, a Plantar
buscou impedir a coleta do facho, os galhos de árvores e pedaços de madeira que são deixadas no campo após a colheita do eucalipto. O facho é
queimado pelos quilombolas para produzir carvão artesanal, que constitui
uma fonte alternativa de renda e criou um mercado informal que ajuda na
sobrevivência de cerca de 1.000 quilombolas na região. Este ato de repressão em início de 2009 foi a gota d’água para os quilombolas. Sem acesso à
mata, à água ou ao carvão artesanal, sem opções de trabalho e sem posse de
terra, as comunidades começaram a atear fogo aos maciços de eucaliptos.
Os incêndios consumiram milhares de hectares de eucalipto.
Grupos de segurança privada foram enviados para acabar com os
protestos. Ironicamente, com o seu histórico de enfrentar protestos sociais
a empresa possui forte investimento em forças de segurança particular, que
tiveram um lucro adicional com os protestos.
À medida que a região se aquece e se torna semi-ária, a Aracruz
passou a investir em variedades de eucaliptos geneticamente modificados,
mais resistentes ao fogo e mais adaptados a longos períodos de seca.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 05 de outubro
de 1988. Disponível em: <.http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 2009.
BRASIL. Decreto n. 4.886. Institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial
- PNPIR e dá outras providências. Brasília, 20 de novembro de 2003a.
BRASIL. Decreto n. 4.887. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias. Brasília, 20 de novembro de 2003b.
FASE/Comissão Quilombola/Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Diagnóstico da Segurança Alimentar Quilombola do Sapê do Norte/ES. 2008.
FASE/Rede Deserto Verde. Relatório de Violações de Direitos Econômicos, Sociais, Culturais, Ambientais, 2003.
GILBERTSON, Tamra. Entrevista, Minas Gerais, 2005.
GILBERTSON, Tamra. Entrevista, Minas Gerais, 2006.
JORNAL O VALOR. 06 fev. 2009a. p. B5.
JORNAL O VALOR. Lorentzen mantém empreendedorismo que criou a Aracruz. 16
207
REFERÊNCIAS
3.1 QUEIMANDO EUCALIPTO: O CASO DA PLANTAR
Os quilombolas de Sapê do Norte estão sendo afetados pela
desertificação verde no extremo norte do Espírito Santo e lutam por seu
território por meio da reconversão da monocultura de espécies exóticas
em Mata Atlântica e zonas ecológicas como uma forma de resistência produtiva. A agroecologia, por exemplo, mobiliza mulheres, jovens e idosos
em atividades de adaptação raramente valorizadas na Convenção para
Mudanças do Clima ou nos fóruns e eventos oficiais que regulam as políticas públicas do clima.
Enquanto as comunidades quilombolas fazem justiça climática com
suas próprias mãos, os instrumentos de política oficiais para mudanças climáticas concedem créditos de carbono e rendimentos extras, com apoio do
Banco Mundial e do Governo Holandês, empresas como a Plantar SA, cujas
atividades tendem a contribuir para a mudança climática, esgotam recursos
hídricos, contaminam rios, deixam trabalhadores rurais à mercê do desemprego e ameaçam a sobrevivência e a cultura das comunidades tradicionais.
mar. 2009b.
LOHMANN, L. Carbon trading: a critical conversation on climate change, privatisation
and power. Dag Hammerskjöld Foundation; Durban Group; The Corner House, 2006.
OIT: Organização Internacional do Trabalho. Convenção n. 169. dispõe sobre os povos
indígenas e tribais em países independentes. 07 de junho de 1989.
REFLORESTATION AS RENEWABLE SOURCE of Wood Supplies for Industrial Use
in Brazil, 04 de março de 2008. Disponível em: <http://www.netinform.net/KE/files/
pdf/PDD_AR_Plantar.pdf>. Acesso em: 2009.
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SILVA, S. J. ; CARVALHO, E. N. Saúde das populações quilomblas no Espírito Santo:
vulnerabilidade e direitos humanos. In: ROSA, Edinete maria; SOUZA, Lídio de;
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89-109, 2008.
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&ft=Projects&ProjID=9600>. Acesso em: 2009.
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_schema=PORTAL>. Acesso em: 2009.
SITE: <http://www.wrm.org.uy/bulletin/106/Brasil.html>. Acesso em:
208
MARCELO CALAZANS; TAMRA GILBERTSON
SITE: <https://cdm.unfccc.int/UserManagement/FileStorage/FJZUI99VFCYK55BIM0F
Q9X51SOB6S3>. Acesso em: 2009.
THE CARBON CONNECTION. 40 minutes. Fenceline Films presentation in
partnership with the Transnational Institute Environmental Justice Project and Carbon
Trade Watch, the Alert Against the Green Desert Movement, FASE-ES, and the
Community Training and Development Unit. Disponível em: <http://
www.carbontradewatch.org>. Acesso em: 2009.
3.2
BARRA GRANDE : A HIDRELÉTRICA E A
FLORESTA COM ARAUCÁRIA
Miriam Prochnow, Bruna Cristina Engel, Isabel Bergling*
1 O CONTEXTO
Barra Grande é uma localidade no vale do rio Pelotas, na divisa de
Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. Integrando a Bacia do Rio Uruguai, a região pertence, do lado catarinense, ao município Anita Garibaldi,
e, do lado gaúcho, ao município Pinhal Grande. A geografia traça belíssimos
desenhos na paisagem, formando uma calha de rio com declives acentuados, cobertos ora por uma exuberante floresta de araucárias, ora por campos nativos ou por propriedades de agricultura familiar.
Esta região integra o bioma da Mata Atlântica, que originalmente
correspondia a 15% de todo o território nacional. Um mapeamento realizado pelo Ministério do Meio Ambiente, em 2006, indica 27% de remanescentes da Mata Atlântica, incluindo florestas, campos naturais, restingas
e manguezais. Entretanto, o percentual de remanescentes bem conservados gira em torno de apenas 8%, de acordo com levantamento da Fundação SOS Mata Atlântica e do Instituto Naccional de Pesquisas Espaciais
em 2008.
Em Santa Catarina, restam, das diversas fromações componentes
da Mata Atlântica, cerca de 20%, distribuídos de forma bastante fragmentada. A Floresta Ombrófila Mista, conhecida como Floresta com Araucárias,
está à beira da extinção, uma vez que apenas 2% da área dessa floresta, que
*
A redação final deste artigo contou com a colaboração de Markus Brose e Lucia Ortiz.
MIRIAM P ROCHNOW; BRUNA CRISTINA ENGEL; ISABEL BERGLING
210
cobria originalmente 42% do estado ainda existe com algum grau de conservação.
No Rio Grande do Sul, as formações da Mata Atlântica cobriam
originalmente 48% do território e hoje se encontram reduzidas a cerca de
7% da cobertura original.
Algumas das preciosas manchas da floresta com araucárias encontram-se no vale do rio Pelotas e estão na área de influência direta da Usina
Hidrelétrica (UHE) de Barra Grande, cuja barragem, com 190 metros de
altura, foi concluída com base em uma fraude. A formação de seu lago,
previsto para gerar 690MW (equivalente a uma turbina de Itaipu), inundou em 2005 uma área de aproximadamente 8.140 hectares, que em 90%
eram recobertos por rara floresta primária, sem intervenção humana, além
de florestas em regeneração e campos naturais.
Entre a mata que foi tragada pelas águas, sobrevivia um dos mais
bem preservados e biologicamente ricos fragmentos de Floresta Ombrófila
Mistado da região. Na sua população de araucárias, foram identificados os
mais altos índices de variabilidade genética já verificados em todo o
ecossistema. Além da araucária, a mata compreendia outras árvores nativas
ameaçadas, como canela sassafrás, canela preta, imbuia, além de orquídeas, bromélias e xaxim. E, ainda, animais ameaçados como gralha azul,
macuco e inambu.
2 OS RITOS ADMINISTRATIVOS
A obra da barragem já estava quase pronta quando o empreendedor –
a empresa Energética Barra Grande SA (Baesa), cuja composição acionária
é compartilhada pela Alcoa Alumínio SA, Camargo Corrêa Cimentos SA,
Companhia Brasileira de Alumínio (CBA Votorantim), CPFL – Geração
de Energia SA e DME Energética Ltda – solicitou ao Ibama um pedido de
corte das florestas a serem inundadas.
Descobriu-se, só então, que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e
o Relatório de Impacto Ambinetal (Rima) – documentos necessários para obter
a licença de operação do empreendimento, elaborados pela empresa Engevix
Engenharia SA e protocolados no Ibama em 1999 – omitiam a existência
desses remanescentes de floresta primária de auracária. “A maior parte a ser
encoberta é constituída de pequenas culturas, capoeiras ciliares e campos
com arvoredos esparsos”, resumia o documento, omitindo a existência de
3.2 BARRA GRANDE: A HIDRELÉTRICA E A FLORESTA COM ARAUCÁRIA
211
espécies ameaçadas de extinção. O EIA/Rima Barra Grande fora licitado
pela Agência Nacional de Energia Eletrica (Aneel) em 1997, ao custo de
R$12 milhões e com Termo de Referência elaborado pelo Ibama.
O próprio Ministério do Meio Ambiente, no estudo intitulado Avaliação e Identificação das Áreas Prioritárias para Conservação, Utilização
Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade reconheceu a importância ecológica da região, que integra a Reserva da Biosfera da Mata
Atlântica da Unesco e segundo o mapeamento da biodiversidade deveria ser
objeto de criação de uma unidade de conservação de proteção integral.
O processo de licenciamento iniciou-se no Governo Fernando
Henrique. A licença ambiental prévia foi concedida pelo Ibama em 1999,
e a licença de instalação foi concedida em 2001. Em 2003, já no Governo
Lula, ao analisar o pedido de supressão, o Ibama solicitou um inventário
florestal. Somente este novo documento, elaborado e apresentado pelo
empreendedor, demonstrou a real situação da cobertura florestal na área a
ser inundada, contendo árvores de até 180 metros de altura e 300 anos de
idade. Técnicos do Ibama haviam realizado sobrevoos da área em 1998 e
2001 sem identificar a existência de floresta primária.
O texto do Rima, apresentado em 1999, havia reduzido a cobertura
florestal primária da área a ser alagada de 2.077 hectares para 702 hectares.
A área de floresta em estágio avançado de regeneração foi reduzida no
documento de 2.158 hectares para 860 hectares, e a floresta em estágio
inicial de regeneração foi reduzida de 2.415 hectares para 830 hectares.
O texto menciona “capoeirões de pouco interesse ecológico”. Além disso,
o Rima não fazia menção clara aos campos naturais, que somam mais de
1.000 hectares. “Fizemos vôos e sobrevôos na área da Barra Grande. Mas,
de cima, as árvores ficam pequenininhas e não foi possível distinguir as
florestas primárias”, afirma Cristiano Kok, Diretor da Engevix, (REVISTA ÉPOCA, 2005).
A licença de instalação foi concedida em pleno vigor da Resolução
Conama n. 278, de 27 de maio de 2001, que protege as espécies ameaçadas
de extinção, com base em documentos que falsificaram a situação dos remanescentes de Mata Atlântica. O EIA/Rima omitia não somente a existência de um raro fragmento de floresta com araucária com alto índice de
diversidade genética como a existência de uma das últimas populações da
rara e endêmica bromélia Dyckia distachya, informação que poderia
inviabilizar o empreendimento.
Até o enchimento da represa em 2005, a Baesa não havia indenizado nenhuma das famílias atingidas pela barragem, e de um total de aproximadamente 1.600 famílias listadas pelo Movimento dos Atingidos pelas
Barragens (MAB) a empresa reconhecia como beneficiários apenas 350
famílias. Em 2009, parte das famílias ainda aguarda reassentamento.
212
MIRIAM P ROCHNOW; BRUNA CRISTINA ENGEL; ISABEL BERGLING
As madeiras não foram totalmente retiradas e a que foi retirada teve
outro fim, que não foi repassado para o MAB. Foi passado madeira
para algumas casas via Prefeituras. Somente foram cortadas algumas
árvores na cota que o lago oscila conforme as chuvas, que é onde
pode aparecer na seca, ficar a árvore fora da água, pois a oscilação
varia até de 16 metros abaixo do nível máximo. Abaixo desta cota
é onde nunca vai ficar seco, e podemos afirmar que nenhuma árvore
foi cortada. E era onde existiam muitas árvores grandes. Até hoje
também queremos saber onde foi a madeira, pois os caminhões saiam
carregados, as serrarias da região serraram muita madeira, mas o destino não sabemos. Fizemos muitas denúncias, nunca tivemos retorno (Rosana Mendes, 2009).
A represa da UHE Barra Grande inundou ainda o Parque Municipal do Estreito dos Encanados, no município de Vacaria, que não existe
mais. O quadro a seguir resume notícias pesquisadas pelos autores na
internet sobre projetos correlatos:
Experiências correlatas de geração de energia
Terras indígenas e MDL - Entre os municípios de Nonoai e Faxinalzinho/RS a
Engevix construiu no rio Passo Fundo a UHE Monjolinho. Investimento de R$220
Milhões, parte do BNDES, que atinge terras do povo Kaingang. A empresa fechou as comportas antes das indenizações ou do reassentamento, à revelia da Justiça. O Tribunal Regional Federal da 4ª. Região expedira em maio de 2009 liminar
proibindo o enchimento do lago por danos à comunidade indígena. Em junho de
2009 a polícia atacou com bombas de efeito moral o protesto dos indígenas, furou
a bala os pneus dos ônibus e obrigou os motoristas a trancarem as portas para que
os indígenas não pudessem mais se locomover. O projeto MDL de Monjolinho,
elaborado pela empresa Enerbio Consultoria Ltda, foi aprovado sob No.221/2008
para crédito de carbono pela CIMGC.
Proibição de acesso - Entre os municípios de Pinhal da Serra e Baracão/RS, a
Engevix está construindo no rio Bernardo José a PCH Moinho. Investimento de
R$77 Milhões, parte do BNDES. A empresa se nega sistematicamente a indenizações com o argumento de que não havia moradores. Em início de 2009 cinco
agricultores foram presos, os barracos destruídos pela polícia. O Juiz da Comarca
de Vacaria proibiu a entrada na empresa nas terras dos agricultores.
3 O EMBATE
Diante deste quadro, as ONGs ambientalistas realizaram uma visita à
região de Barra Grande e, constatando a gravidade do risco, seguiu-se uma
série de ações civis públicas, ações cautelares, mandados de segurança, recursos e pedidos de reconsideração. Foram anexados aos diversos processos um
grande número de laudos técnicos comprovando a fragilidade, tanto dos
estudos ambientais prévios, quanto das medidas compensatórias adotadas.
O Poder Judiciário reconheceu a gravidade do caso e foram concedidas duas
liminares na primeira instância, porém, estas foram logo revertidas e a autorização para o enchimento do lago seguiu a lógica do fato consumado.
A Federação de Entidades Ecologistas Catarinenses (Feec) e a Rede
de ONGs da Mata Atlântica (RMA) impetraram em setembro de 2004
uma ação civil pública na Justiça Federal em Florianópolis visando reverter a situação. Dias depois, o Governo Federal assinava com a empresa um
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que viabilizou a emissão da
autorização de desmatamento pelo Ibama.
213
Realoação no sertão - A barragem Riacho Seco no rio São Francisco vai impactar
nos municípios de Santa Maria da Boa Vista e Lagoa Grande em Pernambuco, e
Curaçá e Juazeiro na Bahia. Ela será erguida pela Engevix e vai desalojar no mínimo 8.000 pessoas em uma região até hoje traumatizada pela construção das UHE
Itaparica e Sobradinho. Desde 1988 a CHESF destina anualmente milhões de
reais às famílias que foram desalojadas na região de Itaparica.
3.2 BARRA GRANDE: A HIDRELÉTRICA E A FLORESTA COM ARAUCÁRIA
Parque Foz do Iguaçu - Em 2009 a Engevix foi multada em R$250.000 pela
Vara Federal de Francisco Beltrão/PR, devido a má fé no licenciamento ambiental
da hidrelétrica do Baixo Iguaçu, a poucos metros dos limites do Parque Nacional
de Foz do Iguaçu. O Ministério Público argumentou sobre lacunas e omissões nos
procedimentos do EIA, pelo qual a empresa recebeu R$5,7 Milhões.
MIRIAM P ROCHNOW; BRUNA CRISTINA ENGEL; ISABEL BERGLING
214
“Tribunal nenhum vai mandar desmanchar uma hidrelétrica de R$ 1,5
bilhão”, afirmou Nazareno Wolff, procurador da República (ÉPOCA, 2005).
Em janeiro de 2005, o Núcleo Amigos da Terra Brasil ajuizou uma
ação civil pública com pedido de liminar na Vara Federal de Caxias do Sul
denunciando o caso como crime ambiental e questionando o TAC, que
em seguida foi igualmente questionado pelas entidades catarinenses.
Frente ao fato consumado da barragem construída, a extinção da
bromélia, e possivelmente de outras espécies, foi consentida pelo poder
público. Somente pela pressão de pesquisadores e ONGs, o Ibama e a
empresa Baesa foram obrigados a assumir a coleta de indivíduos da bromélia,
realocá-los em outras regiões e monitorar sua readaptação.
Em maio de 2005, o Núcleo Amigos da Terra Brasil interpôs ação
cautelar e obteve nova liminar autorizando a realização de prova pericial
na região ameaçada de inundação, com o intuito de quantificar a extensão
dos danos ambientais decorrentes da supressão da flora e fauna existentes e
da posterior inundação, em razão da inexistência de estudos conclusivos
sobre o patrimônio natural prestes a se perder.
A batalha nos tribunais e o embate pela opinião pública teve vários
episódios, mas, como as liminares foram caçadas, o Ibama acabou emitindo, em junho de 2005, a licença de operação da hidrelétrica sem que o
mérito da ação tivesse sido julgado. A ação ainda continua em trâmite.
Quadro 1: Linha do Tempo da UHE Barra Grande
15/12/1999
27/01/2001
Ago 2003
Jan 2004
Abr 2004
Ibama concede Licença Prévia (LP) n. 059 com
validade por 12 meses
Ibama concede Licença de Instalação (LI) n. 120 com
validade por quatro anos
Ibama identifica omissões no EIA/Rima e nega a
licença à Baesa e exige TAC
Funcate apresenta inventário florestal de Barra Grande
Ibama anuncia multa de R$10 milhões à Engevix e
cassa registro no Cadastro Técnico Federal. Portaria n.
922/2004 instaura Processo Administrativo Disciplinar
Continua...
08/09/2004
15/09/2004
15/09/2004
19/10/2004
25/10/2004
05/11/2004
16/12/2004
22/12/2004
01/01/2005
12/01/2005
26/01/2005
30/01/2005
29/03/2005
Resultados da sindicância interna são encaminhados
pelo Ibama ao Ministério Público
FEEC e RMA ingressam com ação civil pública
pedindo liminar contra Baesa e Ibama na 3ª Vara
Federal de Florianópolis
Assinado TAC com Ibama e Baesa permitindo o
desmatamento e definindo medidas compensatórias
Ibama concede autorização de supressão n. 12 para
desmatar 2.686 hectares em Barra Grande
MAB monta acampamento com 800 famílias na área
de desmatamento visando impedir o corte
Liminar do juiz Osni Cardoso Filho, da 3ª Vara
Federal de Florianópolis, suspende o desmatamento
e enchimento do lago
Liminar derrubada pelo presidente do Tribunal
Regional Federal 4ª Região (TRF4) em Porto Alegre,
desembargador Vladimir Passos de Freitas
Desembargador Vladimir Passos de Freitas
reconsidera sua decisão e marca para 21/12/04
tentativa de mediação entre as partes
Novo TAC é assinado, também pelo MAB, e concede
benefícios em troca do término do acampamento.
Baesa retoma o corte da vegetação
Liminar do juiz Élcio Pinheiro de Castro, do TRF4,
em Porto Alegre, autoriza o desmatamento
Núcleo Amigos da Terra ingressa com ação civil
contra TAC de Barra Grande na 4ª Vara Federal de
Caxias do Sul
Agapan ingressa com mandato de segurança coletivo
no Tribunal Regional Federal da 4ª Região
FEEC e RMA ingressam com réplica na 3ª Vara
Federal de Florianópolis
Engevix anuncia que vai processar Ibama pela multa
...Continua...
215
18/08/2004
3.2 BARRA GRANDE: A HIDRELÉTRICA E A FLORESTA COM ARAUCÁRIA
...Continuação
...Conclusão
04/04/2005
12/05/2005
24/05/2005
04/07/2005
04/04/2006
14/01/2008
20/09/2008
Ibama concede a Licença de Operação (LO) n. 477,
24h antes do início do enchimento do lago com
validade por 12 meses
Relatório do Departamento de Botânica da UFSC,
sobre bromélia em extinção, encaminhado ao Ibama
Liminar da ação cautelar derrubada pelo
desembargador Vlamidir Passos de Freitas, Presidente
do TRF4
Ibama concede a Licença de Operação (LO) n. 477/
2005 com prazo de 12 meses
Renovação da LO n. 477 não foi aprovada pelo
Ibama, pois condicionantes da licença não foram
atendidos
Ibama renova a LO n. 477 até 14/01/2014
Início da fase de validação do projeto MDL para
registro sob Protocolo de Quioto
216
MIRIAM P ROCHNOW; BRUNA CRISTINA ENGEL; ISABEL BERGLING
Fonte: dados elaborados pelos autores
4 UM ERRO AQUI, UMA HIDRELÉTRICA ACOLÁ
Em estudo publicado em 2008 pela Universidade do Planalto
Catarinense (Uniplac), os pesquisadores procederam a uma revisão de 8 EIAS/
Rimas que abrangem 15 barragens no Planalto Catarinense para analisar
como estes relatórios descrevem e caracterizam a fauna de grande porte.
Segundo os EIAs analisados, a onça-pintada, o cachorro-vinagre, a
ariranha e o gato-do-mato-grande são mamíferos que ainda sobrevivem na
região. No entanto, nenhum destes animais existe naquele território. Os
pesquisadores identificaram nos 8 estudos um total de 55 erros de nomenclatura
para 32 espécies, 37 casos de registros não-documentados de 20 espécies
de ocorrência improvável e 25 identificações incompletas e não-justificadas de
15 espécies. Além disso, nenhum dos EIAs/Rimas quantificou impactos sobre populações e não há qualquer menção a programas ou sugestões de acom-
panhamento das flutuações na diversidade biológica e/ou na densidade
populacional de animais ou de plantas. O trabalho enfatiza que
5 O PROJETO MDL
A Baesa contratou em 2007 a empresa gaúcha Enerbio Consultoria
Ltda para elaborar um projeto MDL para a UHE Barra Grande e monitorar
as emissões de créditos de carbono para o mercado do Protocolo de Quioto,
bem como a empresa Bureau Veritas Certification Holding SAS (BVC
Holding SAS) para a validação do projeto.
Após elaboração do DCP, o projeto esteve aberto a comentários
públicos de 20 de setembro a 19 de outubro de 2008 na internet. Neste
período, o FBOMS, com base nos subsídios fornecidos pelas organizações
217
Em junho de 2008, o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou relatório sobre os problemas de licenciamento no Ibama, enfatizando, em capítulo próprio, os problemas de recursos humanos no
órgão, que sofre com o limitado número de servidores e com a falta de
capacitação.
Segundo a pesquisa da Uniplac, as causas dos problemas nos EIA/
Rima são múltiplas, como: uso de inventários desatualizados de fauna e
flora como única fonte para avaliar impactos ambientais, avaliação de espécies apenas na área de alagamento e entorno imediato, falta de
detalhamento de campo e de critérios científicos nas avaliações, imaturidade profissional dos técnicos de campo, além do despreparo dos profissionais de órgãos públicos ligados ao meio ambiente que aceitam relatórios
sofríveis. Há ainda falhas na legislação, que não detalha os requisitos necessários para estudos de melhor qualidade.
3.2 BARRA GRANDE: A HIDRELÉTRICA E A FLORESTA COM ARAUCÁRIA
Os erros e omissões verificados confirmam a baixa qualidade dos
relatórios, levando a crer que os empreendedores e pessoal técnico
tem uma grande parcela de responsabilidade pelo atraso nos
licenciamentos, e não apenas os órgãos ambientais, como divulgado
na imprensa. Em última instância, não há indicações fidedignas para
o melhor aproveitamento dos recursos oriundos da compensação
ambiental e para implantação de políticas ambientais adequadas
(MAZZOLLI et al., 2008, p. 2).
locais, encaminhou ofício à UNFCCC no qual denuncia o desrespeito à
legislação ambiental brasileira, nega a contribuição ao desenvolvimento
sustentável e coloca em dúvida o critério de adicionalidade do projeto.
Esta carta está publicada, na versão em inglês, no site da UNFCCC
(FBOMS, 2009). Até junho de 2009, o projeto MDL ainda não fora apresentado para registro na CIMGC e se encontra em fase de validação.
De modo preventivo, o consórcio contratou simultaneamente a elaboração de um projeto para o mercado voluntário pela BVC Holding SAS.
No relatório de monitoria datado de 18 de março de 2009, referente ao
perído de operação da usina que vai de janeiro de 2006 a dezembro de
2008, a empresa validadora registra que a usina
218
MIRIAM P ROCHNOW; BRUNA CRISTINA ENGEL; ISABEL BERGLING
utiliza um reservatório pequeno, de baixo impacto ambiental [...]
para gerar energia renovável que contribui, assim, para o desenvolvimento ambientalmente, socialmente e economicamente sustentável
(VCS Monitoring Report. Baesa project p. 2).
Ainda segundo o relatório da BVC Holding SAS, os pontos relevantes do projeto são:
• geração de mais de 5.000 empregos diretos e indiretos, durante a construção e a operação da barragem, bem como pelo fortalecimento das
atividades econômicas locais durante a obra, contribuindo assim ao desenvolvimento regional;
• promoção do desenvolvimento local, por meio de taxas, impostos e aquisição local de insumos e serviços, com a previsão de gerar para as prefeituras receita anual da ordem de R$25,5 milhões através da Compensação
Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH), que contribuirá para o desenvolvimento social-econômico em longo prazo;
• compensação ambiental da ordem de R$209 milhões, por intermédio
de 26 programas, entre outros, plantando um milhão de mudas;
• sucesso na realocação de famílias ribeirinhas pobres, que agora vivem em
habitações com excelente qualidade, graças à parceria com órgãos públicos e os movimentos sociais;
• formação de multiplicadores de educação ambiental, que capacitam professores da rede pública, organizações da sociedade civil e órgãos públicos para que contribuam com a melhoria do nível educacional nos
municípios afetados.
3.2 BARRA GRANDE: A HIDRELÉTRICA E A FLORESTA COM ARAUCÁRIA
O FBOMS - Fórum Brasileiro de ONGS e Movimentos Sociais para o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento, vem, através desta, solicitar ao Comitê Executivo do MDL – Mecanismo de Desenvolvimento Limpo a rejeição do BAESA CDM
Project como projeto do MDL por desrespeitar seus princípios básicos,
notadamente o critério de sustentabilidade e o critério de adicionalidade. [...]
O FBOMS não acredita que um projeto de uma grande usina hidrelétrica deva ser
considerado uma ferramenta de desenvolvimento sustentável. O projeto desta
hidrelétrica foi elaborado em 1979, e atingiu a Zona Núcleo da Reserva da Biosfera
da Mata Atlântica, patrimônio da UNESCO, eliminando as formações mais contínuas e exuberantes da Floresta com Araucária no Brasil.
Durante a fase de construção do reservatório da UHE Barra Grande houve graves
impactos ambientais. Na sua extensão total, o reservatório desta UHE já inundou
8.138 hectares, 90% dos quais cobertos por florestas primárias, florestas em vários estágios de recomposição e campos naturais, áreas consideradas dos mais ricos
fragmentos remanescentes de Floresta Ombrófila Mista do Sul do Brasil. [...]
219
De acordo com o relatório de validação, como o Ibama concedeu,
em 04 de julho de 2005, a Licença de Operação para a UHE Barra Grande, atestou desta forma que a empresa antendeu a todas as demandas
ambientais, provando que todos os programas e ações de mitigação de
impacto ambiental foram realizados.
Atendendo aos critérios do padrão Voluntary Carbon Standard
(VCS), em 1º de setembro de 2008 a BVC Holding SAS enviou carta
informativa sobre o projeto ao Governo do Estado de Santa Catarina, ao
Governo do Estado do Rio Grande do Sul, às respectivas Assembléias
Legislativas, ao Ibama, MMA, ao Ministério Publico e FIESC, à FIERGS
e ao FBOMS, além de publicar o relatório no site da empresa Enerbio.
Como não recebeu nenhum comentário até 30 de setembro de 2008, a
empresa de consultoria deu o processo de participação como encerrado.
Assim o relatório conclui que, como a UHE Barra Grande integra
o crescimento econômico ao desenvolvimento sustentável e não recebeu
comentários, ela atende aos critérios da certificação do VCS e é justificável a venda de 1,02 milhões de créditos de carbono no mercado voluntário. O projeto foi registrado no site APX VCS Registry da empresa
americana APX Inc, especializada em oferecer créditos oriundos de projetos de energia no mercado americano.
O envolvimento da população local afetada ficou restrito às negociações sobre as
compensações e busca de atendimento das medidas mitigadoras de impactos. Muitas
foram as ações a favor da floresta realizadas por entidades ambientalistas, e do
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Até hoje, inúmeros problemas
sociais ainda não foram resolvidos e muitas famílias esperam pelo reassentamento.
[...]
Queremos questionar a adicionalidade apresentada no DCP. A hidroelétrica é prática comum no Brasil, com décadas de experiência e planejamento. Mais de 70%
da capacidade geradora do país provém de fontes hídricas. É difícil imaginar que
um projeto em tal escala que necessite de créditos de carbono para ser financeiramente viável. É errônea a concepção de que essas hidrelétricas fornecem energia
limpa. No caso da UHE Barra Grande, grande quantidade de madeira não foi
retirada apesar da autorização de supressão. [...] (FBOMS, 2009).
220
MIRIAM P ROCHNOW; BRUNA CRISTINA ENGEL; ISABEL BERGLING
6 O ALERTA CONTINUA
O próximo crime ambiental de proporção similar poderá ser cometido pelo Ibama caso conceda a licença prévia para outra hidrelétrica no rio
Uruguai, a usina de Pai Querê. O TAC de Barra Grande previa, entre as
compensações, a compra de uma área similar à inundada pela hidrelétrica
para fins de conservação da Mata Atlântica. O pleito das organizações gaúchas, com apoio do Ministério Público Federal em Caxias do Sul, era pela
aquisição da área de Pai Querê, mediante uma série de laudos que comprovavam sua similaridade única em termos de biodiversidade e relevância ecológica com a área alagada. Entretanto, o recurso acabou sendo destinado
pelo Ministério do Meio Ambiente para formação de unidades de conservação em Santa Catarina fora da bacia do rio Uruguai. E a região de Pai Querê
permanece ameaçada.
ONGs e movimentos sociais já identificaram também falhas significativas no EIA de Pai Querê, que subestima os danos para a fauna e flora,
elaborado pelo mesma empresa Engevix.
Desta vez, com base nas lições aprendidas, a sociedade civil reagiu
mais rapidamente para evitar a repetição do desastre. Técnicos e pesquisadores foram a campo e colheram, por conta própria, dados ambientais do
local onde a nova barragem está prevista, entre os municípios de Bom
Jesus, no Rio Grande do Sul, e Lages, em Santa Catarina. Enquanto o EIA,
BVC HOLDING SAS. Voluntary Carbon Standard Monitorig Report. Version 5. BAESA
Project. São Paulo, 18 mar. 2009.
ÉPOCA. Hidrelétrica obtém licença apesar de escândalos. n. 376, 2 ago. 2005. Disponível em: <http://homologa.ambiente.sp.gov.brproclima/noticias>. Acesso em: 06 jul. 2009.
FBOMS. Ofício dirigido à UNFCC, Bonn, Alemanha. 17 out. 2008. Disponível em:
<http://www.cdmbazaar.net>. Acesso em: 20 jul. 2009.
LIMA, Maíra. Licenciamento ambiental e gestão de riscos: o caso da Usina Hidrelétrica de
Barra Grande (RS). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina,
2006. Disponível em: < www.maternatura.org.br2006>. Acesso em: 02 jul. 2009.
MAURY, Cilulia (Org.). Biodiversidade brasileira: avaliação e identificação de áreas
prioritárias para a conservação, utilização sustentável e repartição de benefícios. Brasília:
3.2 BARRA GRANDE: A HIDRELÉTRICA E A FLORESTA COM ARAUCÁRIA
REFERÊNCIAS
221
produzido ao longo de um ano pela Engevix, catalogou 140 espécies da
flora local, em apenas cinco dias de caminhada, o grupo de pesquisadores
e estudantes registrou mais de 250 espécies da flora.
Com base nos dados do EIA, a estimativa é de que cerca de 5
milhões de árvores serão submersas, das quais cerca de 180.000 araucárias.
O local é habitado pelo urubu-rei, uma espécie ameaçada que não é mencionada no relatório da Engevix. Existem ainda registros da presença de
onça-parda, jaguatirica, veados e outros mamíferos que não possuem outro habitat. Sem mencionar as espécies endêmicas de peixe que vivem naquela parte do rio Pelotas.
Diversos instrumentos compensatórios previstos no TAC de Barra
Grande foram largamente desrespeitados. Assim como os recursos de compensação não beneficiaram a bacia do rio Uruguai conforme previsto no
TAC, este previa ainda que quaisquer novas licenças para hidrelétricas só
poderiam ser concedidas após conclusão do Estudo Integrado da Bacia do
rio Uruguai. Porém, antes da conclusão deste, a UHE Passo São João e a
UHE São José, na sub-bacia do rio Ijuíno Rio Grande do Sul, receberam
licença da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), o que levou à impetração de nova ação civil pública pelo Núcleo Amigos da Terra,
em setembro de 2005, desta vez contra a Fepam. A ação foi julgada deferindo-se o pedido da entidade ambientalista em junho de 2009, paralisando o já adiantado processo de instalação das duas usinas.
MMA/SBF, 2002.
MAZZOLLI, Marcelo et AL. Análise crítica de estudos de mastofauna em projetos de
aproveitamento hidrelétrico no Planalto Catarinense, Brasil. Revista Natureza & Conservação, Curitiba, jul. 2008.
MCCULLY, Patrick. Rios silenciados: Ecologia y politica de lãs grandes represas. Proteges, 2004.
MENDES, Rosana. Entrevista a Amigos da Terra Brasil, Capão Alto, 20 jun. 2009.
MONTEIRO, Káthia. Carvão e mudanças climáticas. Porto Alegre: Núcleo Amigos da
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O ECO Revista Digital. Um erro aqui, uma hidrelétrica acolá. 02 out. 2008. Disponível
em: http://www.oeco.com.br>. Acesso em: 10 maio 2009.
ORTIZ, Lucia (Coord.). Hidrelétricas na bacia do rio Uruguai: um guia para ONGs e
movimentos sociais. Porto Alegre: Núcleo Amigos da Terra, 2006.
ORTIZ, Lucia et al. Novos caminhos para o mesmo lugar: a falsa solução dos
agrocombustíveis. Porto Alegre: Núcleo Amigos da Terra, 2008.
222
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PROCHNOW, Miriam (Org.). Barra Grande: a hidrelétrica que não viu a floresta. Porto
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ROTHMAN, Franklin. A emergência do Movimento dos Atingidos pelas Barragens da
Bacia do Rio Uruguai, 1979-1983. In: XVII ENCONTRO PIPSA, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Anais..., v. II, 24-28, p. 186-216, nov. 1994.
SOS Mata Atlântica. Atlas dos remanescentes florestais da Mata Atlântica. Disponível em:
<http://mapas.sosma.org.br/site_media/download/atlas%20mata%20atlanticarelatorio2005-2008.pdf2009>. Acesso em: 19 mar 2009
3.3
PERUS – O CAMINHO MAIS
CURTO PARA QUIOTO: A CONQUISTA
DA PARTICIPAÇÃO PELA SOCIEDADE CIVIL
Ana Maria Ribeiro, Luzia Maria Honorato, Mário Sérgio Bortoto,
Markus Brose, Messias Pereira Moraes, Nelson Aparecido Bueno de
Camargo, Nilton de Moraes Bertacchini, Paulo Rodrigues, Roberta
Pardo Mendes, Sebastião Alves Gonçalves, Vanessa Silva*
São Paulo é insustentável. A terceira maior macrometrópole do
mundo absorve diariamente um volume imenso de ar puro, água potável, energia, alimentos, madeiras, plantas, produtos animais e vegetais e
gera uma quantidade insustentável de poluentes, resíduos e dejetos tóxicos. O volume de lixo gerado em São Paulo, o maior do país – com 10
mil toneladas diárias –, cresce cinco vezes mais rápido que a população.
Os dois aterros sanitários, um público e um privado, estão à beira do
colapso, o que estimula a proliferação de lixões e depósitos irregulares.
Com o crescimento urbano, a impermeabilização do solo e o contínuo corte de árvores nas praças, quintais e ruas, sobraram apenas 3%
de área coberta de vegetação nas áreas centrais, a cidade tornou-se uma
ilha de calor e raramente ocorre o fenômeno da garoa, sendo mais comuns as chuvas fortes. A superexploração dos reservatórios fez diminuir
entre 2002 e 2007 a disponibilidade de água potável em um volume que
seria suficiente para abastecer 2,5 milhões de pessoas. A represa Billings,
por exemplo, perdeu nos últimos 30 anos mais de 25% de sua área por
assoreamento com esgotos e urbanização desordenada das margens.
A Grande São Paulo tem um volume de água potável disponível por
habitante inferior ao Ceará ou à Paraíba, e a Secretaria Estadual de Sane*
A redação deste capítulo foi possível tendo como base o trabalho da jornalista Vanessa
Silva, que compilou e sistematizou as memórias, depoimentos e informações fornecidas
pelos co-autores, que revisaram e aprovaram a versão final. A sistematização de dados
secundários coube a Markus Brose.
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
224
amento e Energia estuda a possibilidade de importar água de outras regiões distantes até 300km.
Porém, dados da Cetesb indicam que a nuvem de fuligem gerada pela
cidade é levada por ventos a até 600km de distância, cobrindo não só o
interior do estado, como chegando até o Mato Grosso do Sul. Estudos sobre
o teor de metais pesados em cascas de árvores e solos de parques públicos no
município de São Paulo indicam presença de chumbo, arsênico, cobre, zinco, antimônio e bário em concentrações que extrapolam até duas vezes os
limites considerados seguros pela legislação.
O que significa que os alimentos produzidos no interior do estado,
em roças e lavouras ao ar livre, são cobertas por uma fina chuva de partículas
poluentes emitidas pela capital. Isso explica porque a concentração de
monóxido de carbono alcançada em pequenas cidades do interior paulista é
até cinco vezes acima do limite para o ar ser considerado puro. Trazendo
água potável de longas distâncias do interior, São Paulo estará reimportando
na água a fuligem que gerou e que o vento distribuiu.
Além da menor disponibilidade de água, há o desperdício. Em dias
de muito calor, a cidade gasta em média 400 litros/pessoa de água potável, o
que é quatro vezes o consumo recomendado pela ONU. Um exemplo do
potencial ainda inexplorado de redução de consumo: a Escola Estadual Fernão
Dias Paes aderiu ao Programa de Uso Racional da Água da Sabesp, e reduziu
seu consumo de 4.160m3/mês para 250m3/mês. Para troca de equipamentos
e adequação das instalações, o investimento necessário foi de cerca R$5.000,00
e as contas mensais de água da escola caíram de R$37.400,00 para
R$2.250,00, dando o retorno do investimento em apenas cinco dias.
Adicionalmente, a cidade paga um alto preço pela impermeabilização
das várzeas. Nos anos 1960, ainda havia a possibilidade de São Paulo ter o
maior parque linear urbano do mundo, ao longo dos 50km das várzeas dos
rios Tietê e Pinheiros. Mas a gestão Faria Lima (1965-1969) atendeu aos
interesses do mercado imobiliário retificando os cursos dos rios e córregos,
impermeabilizando as várzeas e valorizando áreas antes desocupadas, gerando o fenômeno das enchentes regulares. Financiamentos internacionais
agilizaram este processo, que foi retomado na gestão Maluf (1993-1996)
com a construção das avenidas Jacu-Pêssego e Roberto Marinho, novamente
em várzeas.
De acordo com a pesquisa Origem-Destino do Metrô, todos os dias
a população realiza 37,6 milhões de viagens – sendo 25 milhões motoriza-
1 O DESENVOLVIMENTO DE PERUS E SEU ENTORNO
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
O território no extremo noroeste da cidade de São Paulo, que administrativamente compreende a Subprefeitura de Perus, é composto por dois
225
das, 12,3 milhões a pé e 300.000 de bicicleta. Se em 1967 cerca de 68%
das viagens era em transporte coletivo, até 2007 este percentual caiu para
55%. A poluição provocada pelos 9 milhões de veículos vai acelerar a morte
de, em média, 20 pessoas por dia em 2009. Foi quase o dobro de 2004,
quando com 6,6 milhões de veículos a média era de 12 mortes indiretas
por dia. A poluição dos veículos foi responsável por 13,1 mil internações
em 2008, com custos de R$343 milhões, dos quais 25% pagos pelo SUS.
O ar de São Paulo é quase três vezes mais pesado que o limite tolerável pela
OMS.
Em 2009, a Cetesb divulgou que descobriu que a poluição gerada
pelos veículos é pior do que se imaginava. Pela primeira vez, a agência
ambiental reuniu dados de presença de poeira fina, quase invisível, e comparou com as medições realizadas durante sete anos com os padrões considerados seguros para a saúde humana. O ar metropolitano foi reprovado em
todos os anos, tanto no padrão máximo de poeira fina tolerado nos Estados
Unidos, como no do valor que a Organização Mundial da Saúde (OMS)
considera ideal. Comparado com os Estados Unidos, a Grande São Paulo
chega a registrar até 48% mais de poeira fina no ar. Esta poeira é mais agressiva no pulmão e na corrente sangüinea que a poeira medida rotineiramente
pelos órgãos ambientais.
Além disso, a cidade é envolta por um cinturão de municípios
poluentes. Segundo o mapa de emissões de gases de efeito estufa do estado
de São Paulo, as oito indústrias que sozinhas emitem 63% de todo o CO2
industrial do estado estão localizados na vizinhança da região metropolitana, em Santo André, Cubatão, Alumínio, Salto do Pirapora, São José dos
Campos e Paulínia.
Sendo assim, como a cidade e sua economia continuam funcionando? A resposta está no fato de que os territórios do entorno da cidade fornecem diariamente os serviços ambientais necessários para manter suas atividades
funcionando, absorvendo, reciclando e armazenando a poluição gerada pela
metrópole e fornecendo, em troca, o ar, a água e a energia de que ela necessita para funcionar e viver. Um destes territórios é o bairro de Perus.
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
226
distritos, Perus e Anhangüera. Está situado entre a paisagem montanhosa
do Pico do Jaraguá, de um lado, e da Serra da Cantareira, de outro,
sendo cortado pelo vale do rio Juqueri. Caracteriza-se pela transição entre a zona rural e a área urbana da metrópole, conta em seu território de
57km2 com um total de 48km2 sob florestas. Destes, um total de 9,5km2
são constituídos pela cobertura vegetal do Parque Anhangüera, o maior
parque municipal de São Paulo.
Já em 1597 foram descobertas jazidas de ouro nas nascentes ao pé
do Morro do Jaraguá, gerando um povoamento inicial. Mas o rápido
esgotamento da produção de ouro no início do próximo século impulsionou a busca de novas jazidas pelo interior, até que os paulistas chegassem às Minas Gerais.
Por sua posição geográfica privilegiada, o território servia de pouso para as tropas de mulas que, entre o final do século XVIII e início do
século XIX, mantinham a comunicação entre a vila de São Paulo e as
minas de Goiás e Mato Grosso, pelo Caminho dos Guaianazes, além dos
tropeiros responsáveis pelo comércio entre Santos e Jundiaí. A região
também era ponto de parada das tropas de soldados, nas enormes fazendas de capitães da guarda responsáveis pela defesa do Caminho do Mar
até Santos.
Ao longo do Século XIX, sua posição geográfica tornou-se ainda
mais estratégica, dado o avanço da cultura do café pelo interior de São
Paulo. Perus, então um simples vilarejo, teve sua estação de trem inaugurada em 1867, com a construção da ferrovia São Paulo Railway Company,
posteriormente Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. A estação, ainda parcialmente preservada, possui características arquitetônicas peculiares do
estilo britânico.
A abertura da estrada de ferro representou o início de um novo
ciclo econômico. A urbanização do vale e a instalação de fábricas e do
comércio estimularam o povoamento. Além de diversos empreendimentos menores, alguns dos maiores são dignos de registro. Por causa
do acesso à ferrovia e à ampla oferta de terras, em 1890 foi instalada a
fábrica de papel da Companhia Melhoramentos, que implantou áreas
de reflorestamento na região. Em 1898, foi inaugurado, em uma fazenda, o Hospital de Alienados do Juqueri, onde foi implantado pela primeira vez no país um modelo mais humano de atendimento e tratamento
psiquiátrico. Como resultado destes processos de ocupação, foram sendo
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
227
criados novos núcleos urbanos que hoje compõem a microrregião: Parada de Taipas, Caieiras, Franco da Rocha, Francisco Morato e Cajamar.
Entre 1910 e 1914, foi construída, a partir da estação de Perus, a
Estrada de Ferro Perus-Pirapora, que não somente possibilitou a abertura de novos loteamentos responsáveis pela transformação da paisagem
agrícola, como impulsionou a instalação de um empreendimento que
marcou o território pelas próximas décadas. Projetada para o transporte
de romeiros para a cidade de Pirapora de Bom Jesus, um dos mais importantes santuários do país depois de Aparecida, a linha acabou sendo
levada somente até Cajamar, por causa das jazidas de calcário na região
que abasteciam o ramo de construção civil. As caieiras passaram a abastecer também a Brazilian Portland Cement Company, inaugurada em
1926.
A fábrica foi pioneira na indústria de cimento do país, produzindo um artigo que constituiu uma revolução tecnológica, uma vez que as
primeiras obras com o uso de concreto no país datam de 1910. A Cimento Perus surgiu da associação de investidores nacionais com uma
empresa canadense e abasteceu pelas décadas seguintes cerca de um terço
do mercado nacional de cimento. Neste período, de 1920 a 1950, a cidade de São Paulo passou de cerca de 600 mil a cerca de 3 milhões de
habitantes e teve a maior parte dos seus edifícios e obras públicas
construídos com cimento Perus.
Dada a complexidade do processo produtivo, a Portland Company
trouxe operários especializados da Europa e atraiu grande número de trabalhadores de São Paulo e outros estados. Em função da escassez de moradias, a empresa construiu duas vilas para operários dentro do perímetro da
empresa, e três vilas no entorno. Estas vilas foram as primeiras construções
urbanas do Brasil realizadas em concreto. A chegada contínua de novos
moradores originou a elevação da vila a distrito pela Câmara Municipal de
São Paulo, em 1934. A economia e a sociedade local giraram por décadas
ao redor da fábrica de cimento, maior empregador local.
As primeiras favelas de Perus se originaram no início da década de
1970, a partir da construção da Rodovia dos Bandeirantes, quando foram
desapropriadas famílias da Vila Inácio e do Jardim do Russo. Esse processo
gerou, seja pela ausência de indenização para as famílias deslocadas, seja
pelo pagamento desta apenas décadas mais tarde, as primeiras ocupações
espontâneas. Equipamentos sociais como creches ou poços artesianos para
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
228
abastecimento destas famílias foram providenciados não pelo Estado, mas
pelo trabalho social da Igreja Católica.
Com o fechamento definitivo da fábrica de cimento, as décadas
de 1980 e 1990 foram marcadas pela transformação de Perus e
Anhangüera em bairros-dormitório da periferia metropolitana. A expansão maciça da população que nos anos 1990 foi expulsa de tradicionais
bairros operários localizados perto do centro da cidade, tanto pela queda
do poder de compra dos salários como pela perda de empregos industriais
em São Paulo, acarreta a baixa qualidade de vida das famílias em Perus,
espremidas em pequenos sobrados de auto-construção, expandindo de
forma desordenada a marcha urbana e impermeabilizando o solo. Fenômeno que resulta em enchentes agravadas a cada ano durante o período
das chuvas. Além disso, a população cresceu em áreas onde não há emprego, oportunidades de lazer ou equipamentos culturais, o que agrava o
inchaço dos transportes em circulação na cidade e fomenta a violência.
Ao longo da década, o número de domicílios em Anhangüera passou de
3 mil para 12 mil residências, sem que os serviços públicos tenham sido
adequados de modo proporcional, e o número de homicídios cresceu
1.800% no mesmo período.
Desta forma, um território que apresentava originalmente boa qualidade de vida, tornou-se com cerca de 160 mil habitantes, uma das áreas
de maior concentração de pobreza da cidade de São Paulo. O bairro de
Anhangüera, sozinho, teve um crescimento de 210% da sua população
entre 1990 e 2000. A omissão do Estado possibilitou que as famílias
comprassem lotes com preços entre R$1,5 mil a R$6 mil cada, o que
representa um subsídio cujo custo foi – e está – sendo pago pela sociedade como um todo, na medida em que os loteamentos clandestinos e as
ocupações irregulares em Anhangüera geraram impacto ambiental ao eliminarem cerca de 84 hectares de mata em reserva de manancial, prejudicando a produção de ar puro e de água potável.
A falta de infraestrutura urbana, o desrespeito ao Plano Diretor da
cidade, o descumprimento da legislação ambiental e do zoneamento urbano acarretam agora continuadamente custos sociais, econômicos,
ambientais e políticos para a cidade como um todo. A situação mais
grave de descaso pelo Estado é a precariedade da política pública da saúde na região, conforme se pode ver no quadro mostrado pela Folha de
São Paulo.
Em 1998, foram iniciadas as obras do Rodoanel de São Paulo, que
cortaram parte da vegetação florestal remanescente de Perus. A compensação ambiental devida, no valor de R$2,2 milhões, pela Dersa não foi objeto de discussão com a população e não se registra transparência no processo
de definição e uso destes recursos. As experiências negativas com a implan-
229
Ontem às 21h45, 120 horas depois de dar entrada no Pronto Socorro Municipal
de Perus com sintoma de infarto, o motorista Luiz Emilio Bride, 48, morreu.
Todas as suas últimas horas de vida, menos a final, ele passou em uma sala de
emergência do PS, separada apenas por uma porta de vaivém do saguão do prédio,
que está em obras. Os familiares do motorista pediam desde o domingo a transferência dele para uma UTI, em qualquer hospital.
Bride, que foi levado ao PS depois de um desmaio, entrou falando. Foi piorando,
acabou entubado, e só no início da tarde de ontem teve sua remoção autorizada
para os cuidados intensivos do Hospital do Ipiranga. No caminho, ele começou a
morrer. Ainda tentaram ressuscitá-lo no Pronto Socorro de Santana. Mas foi tarde
demais. [...]
“Isso aqui é um matadouro”, acusou a dona de casa Andressa Nanni, 33, mãe de
uma menina de nove anos. A criança estava com dor de garganta e dor de cabeça.
Saiu sem ser atendida porque não havia nem sequer um pediatra de plantão. “Esse
PS é a única base de saúde que a gente tem no bairro, e ele é um lixo”, afirmou ela.
Na noite de quinta feira, as cerca de 20 pessoas que esperavam ser atendidas no
PS de Perus se comoviam com o caso da menina Vitória Açucena Sarambelli, 8.
A criança caiu da bicicleta, fraturou o maxilar em três pontos, quebrou dentes.
O acidente aconteceu às 14h. A menina foi levada para o PS, que a enviou ao
Hospital Estadual do Mandaqui. Diagnóstico: traumatismo craniano.
Mas o Hospital do Mandaqui, em vez de atender a menina, devolveu-a ao PS. Ela
passou toda a noite em uma sala com a luz apagada, para ver se conseguia dormir.
Como cuidados, apenas dois sacos plásticos colocados nas orelhas (para recolher o
sangue que escorria-lhe dos dois ouvidos) e analgésico por via venosa.
Ontem, desfigurada pelo inchaço total da cabeça que a impedia até de abrir os
olhos, Vitória foi enviada de novo ao Mandaqui. As 22h, ela chorava de dor. Não
conseguia se alimentar por causa dos ferimentos. Sua última refeição foi no almoço de quinta feira.
Quando a reportagem da Folha chegou ao Pronto Socorro, na noite de quinta
feira, oito pais e mães carregando seus filhos no colo estavam parados na frente do
prédio. Discutiam o que fazer já que o médico que estava no local, um clínico, recusara-se a atender as crianças doentes. [...]. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2009b, p. C6).
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
Homem morre após esperar 120h por UTI
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
230
tação do Trecho Oeste e o descumprimento de compensações previstas no
licenciamento geraram não somente o receio quanto aos impactos negativos em outros trechos da rodovia junto a movimentos sociais e ONGs,
como também junto ao Ministério Público, que iniciou investigações a
respeito dos impactos sociais e ambientais de uma das maiores obras de
infraestrutura do país. Os críticos do processo de implantação da rodovia
têm sido desqualificados como sendo “inimigos do desenvolvimento”.
O Conselho de Gestão da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde
da Cidade de São Paulo emitiu em 2000 e 2006 pareceres críticos ao
Rodoanel e seus impactos ambientais, sociais e energéticos, mas as obras
prosseguiram e desencadearam um boom imobiliário na região, ampliando tanto em Perus quanto em Anhangüera as favelas e ocupações irregulares em razão da maior mobilidade via ônibus e vans até os bairros centrais.
Além disso, também provocou a implantação de um grande número de loteamentos para a classe média alta em Cotia. Em especial com
a inauguração do trecho oeste do Rodoanel, o acesso dos veículos oriundos de Cotia para a Rodovia Raposo Tavares gerou forte incremento do
fluxo de veículos e, por consequência, da emissão de gases de efeito estufa e de poluentes que contribuem para a incidência de doenças nos moradores do entorno das rodovias. O trecho que liga Cotia a São Paulo
tinha em 1997 um fluxo de 88.000 veículos/dia e em 2007 chegou a
160.000 veículos/dia.
Em função da facilidade do acesso viário, as empresas Camargo
Corrêa Desenvolvimento Imobiliário e Companhia Melhoramentos anunciaram em dezembro de 2007 um novo loteamento para 80 mil moradores
em Caieiras, nas bordas do Parque Estadual da Cantareira. Com este empreendimento imobiliário, que foi anunciado ainda sem dispor de
licenciamento, deve dobrar ao longo da próxima década a população do
município de Caieiras.
O complexo logístico das rodovias que cortam a região tem gerado
uma nova riqueza no norte da cidade. Um exemplo de empresa com
lucratividade na região é a CCR Rodovias SA, que administra tanto o
sistema Anhangüera-Bandeirantes como o trecho Oeste do Rodoanel, segundo divulgado pela mídia em meados de 2009, computando, por meio
dos pedágios, um lucro líquido da ordem R$56 milhões/mês. A nova riqueza gerada por esta e diversas outras empresas de transporte e distribuição localizadas na região, porém, não tem contribuído para a melhoria da
qualidade de vida da população do entorno. Ao contrário, por mecanismos de injustiça ambiental, está contribuindo para piorar a saúde dos
moradores.
231
Fundado em 1933, o sindicato da categoria cimenteira, Sindicato
dos Trabalhadores na Indústria do Cimento, Cal e Gesso de São Paulo –
que incluía os operários da fábrica, da estrada de ferro Perus-Pirapora e das
pedreiras em Cajamar – constitui a mais antiga entidade da sociedade civil
de Perus. Logo depois, a partir de 1940, foram criadas diversas novas organizações sociais: a Paróquia Santa Rosa de Lima, a Igreja Presbiteriana da
Esperança e o Centro de Amigos de Perus (CAP). O CAP foi sucedido em
1949 pela Sociedade Amigos do Distrito de Perus (Sadip).
O esforço de mobilização social coordenado pela Sadip possibilitou
em 1954 a ligação de energia elétrica para todos os moradores do bairro,
serviço público antes restrito às instalações da fábrica de cimento. Mediante o sucesso da iniciativa, a Sadip liderou em 1958 nova mobilização
social, desta vez a favor da emancipação do distrito. Foi criada uma Comissão Pró-Emancipação, mas a proposta não teve o apoio da maioria no
plebiscito.
O ano de 1958 marca também o início da organização ativa dos
trabalhadores, com a deflagração da primeira greve dos operários da Cimento Perus. A atuação do advogado Mário Carvalho de Jesus, liderança
formada na Juventude Universitária Católica e no Movimento de Economia e Humanismo do padre francês Lebret, junto ao Sindicato dos Trabalhadores do Cimento, levou o conceito da não-violência ativa para as
atividades sindicais. Esta característica da ação sindical em Perus, única no
país, conferiu visibilidade nacional e internacional aos trabalhadores e às
greves da fábrica. Os pesquisadores McManus e Schlabach publicaram em
1991 uma coletânea sobre experiências da não-violência na América Latina, com introdução de Leonardo Boff, contendo um capítulo sobre as
greves em Perus.
Não somente Dr. Mário foi convidado a falar para os bispos reunidos na assembléia da CNBB em plena ditadura militar, como seu trabalho
constituiu referência para militantes da não-violência. Foi a partir da experiência com os operários de Perus, que em 1960 o Dr. Mário, com um
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
2 AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE PERUS
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
232
grupo de militantes, criou a ONG Frente Nacional do Trabalho (FNT),
que prestou assessoria jurídica a diversos movimentos populares e sindicatos urbanos e rurais no estado de São Paulo.
Um dos primeiros movimentos ambientais do país também teve
sua origem nos pátios da fábrica. A grossa fumaça emitida pela fábrica
cobria terrenos, casas, quintais e os próprios moradores com uma camada tóxica de pó de cimento. A Sadip passou a informar e mobilizar os
moradores, convocando representantes da direção da fábrica e da Cetesb
para reuniões no bairro. Foi criado o Grupo de Vigilantes Comunitários, composto por vinte voluntários, moradores que, divididos em grupos de cinco, passaram a monitorar as atividades da fábrica e informar a
população. Houve passeatas de donas de casa e operárias nos anos 1970
no centro de São Paulo em protesto contra a poluição do pó de cimento.
Em 1982, a Cetesb concedeu licença para a ampliação da linha de produção e instalação de equipamentos de controle da poluição. A Cetesb e
a Sadip consultaram o Banco Mundial sobre a viabilidade de um financiamento, mas o grupo proprietário da fábrica não dispunha das garantias necessárias, e, em 1987, a Cetesb determinou o fechamento definitivo
da fábrica.
O fortalecimento do sindicato e as diversas greves dos operários da
Cimento Perus serviram como ações- piloto para a atualização da legislação trabalhista na CLT:
• em 1960 os mil operários de Perus conquistaram a criação do saláriofamília;
• também foi estabelecida a obrigatoriedade da presença do sindicato da
categoria nos atos de contratação e demissão do trabalhador;
• em 1967 conquistaram o reconhecimento da legalidade de greve por
atraso de pagamento.
Em virtude das denúncias do Sindicato dos Trabalhadores de Cimento, o complexo cimenteiro de Perus foi o primeiro caso de intervenção
federal em uma empresa no Brasil, em 1970, seguido pelo confisco por
acúmulo de dívidas em 1973. Em 1978, foi confiscado, por motivo de
dívidas também, o Sítio Santa Fé, uma fazenda de reflorestamento, que foi
comprada em seguida pela prefeitura de São Paulo e uma gleba do sítio foi
transformada no Parque Municipal Anhangüera.
A gleba vizinha ao parque, uma área de mata onde a população
local buscava água potável nas bicas, foi destinada pela gestão Colassuono
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
233
(1973-1975), para a instalação do aterro de São Paulo. A Prefeitura realizou na época duas audiências públicas, nas quais os engenheiros explicaram à população que não haveria impactos negativos para os moradores e
que o aterro teria prazo de operação de apenas 10 anos. Como os representantes da Sadip se recusaram a aceitar o projeto, o prefeito deu as negociações por encerradas e anunciou a construção do aterro sanitário, sendo
inaugurado em 1979 pela administração Setubal.
Ao longo das décadas de 1980 e 1990, foram inúmeras as mobilizações, protestos, abaixo-assinados, vigílias e inclusive o fechamento do acesso
ao aterro sanitário Bandeirantes. A quantidade crescente de resíduos sólidos ali acumulados, o risco de doenças, o intenso trânsito diário de caminhões e o risco de contaminação do lençol freático, sem que a Prefeitura se
apresentasse para o diálogo ou promovesse adequada política de informação, acirrou os ânimos das lideranças contra o aterro. Embora o movimento não tenha obtido êxito nem em obrigar a prefeitura a estabelecer um
canal de diálogo, e menos ainda em paralisar o aterro, a mobilização logrou obrigar os caminhões a não passarem mais pelo bairro e a utilizarem
a Rodovia dos Bandeirantes, além disso impediu o projeto da administração Maluf de instalar um incinerador de resíduos sólidos e uma usina de
compostagem no Parque Anhangüera.
Estas mobilizações possibilitaram uma maior integração entre os
moradores dos bairros de Perus e de Anhangüera, e durante a gestão Marta
foi possível coordenar uma nova mobilização, incluindo moradores de
Caieiras, que durou cinco meses contra um segundo aterro em Perus, previsto para a área conhecida como Sítio Manquinho. Os moradores barraram
o acesso ao distrito pela ocupação das rodovias Bandeirantes e Anhangüera,
foram também ocupados os trilhos da CPTM, aulas foram realizadas em
praça pública, o comércio e os bancos fecharam as portas e foi boicotada a
audiência pública marcada pela empresa Vega-Ecolar em uma vila remota.
Em junho de 2001, a Prefeitura teve que admitir a derrota, e o Secretário
Estadual do Meio Ambiente foi até Perus para assinar o despacho contrário à instalação de um segundo aterro.
Ao final da mobilização, as organizações locais se reuniram e formaram
três comissões a favor do desenvolvimento da região: a Comissão de Revitalização do Patrimônio Histórico da Estrada de Ferro, a Comissão de
Revitalização da Fábrica de Cimento como Centro Cultural do Trabalhador e a Comissão de Meio Ambiente, que deu origem à Cooperativa de
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
234
Trabalhadores da Coleta, Triagem e Comercialização de Materiais
Recicláveis e Prestadores de Serviços (Coopercose).
Com o fechamento da fábrica de cimento e a redemocratização do
país, vinham sendo criadas novas organizações na região. Destacamos, a
título de exemplo, a União dos Moradores do Parque Anhangüera; a obra
jesuíta Centro Pastoral Santa Fé; a Associação dos Comerciantes, Industriais e Prestadores de Serviços de Perus (Acisper), a Aliança da Misericórdia,
com serviços sociais no bairro Recanto dos Humildes, o Instituto de Ferrovias e Preservação do Patrimônio Cultural (IFPPC), a Associação dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra e a Associação Pró-Centro Cultural do
Trabalhador.
Com base na experiência de formação das comissões, a partir de
2003 foi criado o Fórum de Desenvolvimento Local Perus-Anhangüera,
que uniu, de forma voluntária, para o debate suprapartidário sobre a região, mais de 20 organizações locais e representantes de órgãos públicos,
aproveitando a oferta de assistência técnica e administrativa oferecida pela
CARE Brasil. Esse serviu de referência para a criação, dois anos mais tarde,
do Fórum Socioambiental de Parada de Taipas-Jaraguá.
A história de Perus constitui exemplo de que quando se acusa lideranças comunitárias, movimentos sociais e ONGs que defendem a justiça
ambiental de serem “contra o desenvolvimento”, na verdade se distorce o
olhar. Quando jornalistas e editores, os gestores da grande mídia que influenciam e moldam a opinião pública, passam a acreditar que a defesa do desenvolvimento sustentável vai contra o ‘crescimento’, estão errando o alvo,
pois ao promover este tipo de acusação está se tirando a atenção do debate
sobre um elemento central do desenvolvimento ou do crescimento: a formação de preços.
Na verdade, o debate não é ser a favor ou contra o desenvolvimento,
ou o crescimento, mas sim como são formados os preços deste crescimento. Se destruir florestas, poluir rios, jogar gases de efeito estufa no ar, desalojar moradores pobres, realocar cidades inteiras etc. não tem preço, existe
um subsídio público embutido neste desenvolvimento ou crescimento que
depois será pago pela sociedade como um todo, mediante políticas públicas ou ações de ONGs para reparar os danos.
O que o debate sobre justiça ambiental traz de novo é a pergunta:
como está sendo calculado esse preço? Em outras palavras: quem está pagando pelos serviços ambientais necessários para o desenvolvimento?
Os territórios de Perus e Anhangüera, com cerca de 160 mil habitantes, constituem um exemplo adequado para este questionamento. Eles
estão rodeados pela maior densidade de projetos MDL no país, conforme
o Quadro 1.
Quadro 1: Projetos MDL – Territórios Perus e Anhangüera
Título
Projeto de redução de emissões de gás de aterro –Caieiras
Projeto Bandeirantes de gás de aterro e geração de energia
Projeto de substituição de combustível em Caieiras –
fábrica MD papéis
N. CIMGC
Data
11/2005
13/2005
16.08.2007
16.08.2007
183/2007
23.08.2007
Fonte: dados elaborados pelos autores.
1
Sidney Fernandes Cruz, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Cimento, Cal e Gesso de São Paulo.
235
Sustentabilidade é você ter na mesma balança e com o mesmo peso
a questão econômica, ambiental e social. Então, é por esse prisma
que deveríamos analisar a ação da prefeitura. Esse recurso do carbono não pode ser utilizado apenas na questão da emissão de gases, é
preciso que ele seja utilizado de forma mais ampla e olhando a
sustentabilidade dessa forma, como três elementos na mesma balança (CRUZ, 2009)1.
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
Cada empresa que compra milhares de hectares para cortar mata
nativa sem indenização ou compensação para a sociedade, está recebendo
um subsídio da mesma, pois, uma vez destruída a floresta, nossos netos e
bisnetos não poderão usufruir dos serviços ambientais por ela oferecidos.
A pergunta central que movimentos sociais, lideranças comunitárias e ONGs de Perus estão fazendo é: por que os grandes projetos de desenvolvimento não pagam adequadamente os custos ambientais? Por que em
nossa economia a formação de preços sempre embute o subsídio da injustiça ambiental? E por que a população de Perus e Anhangüera sempre
perde qualidade de vida ante os grandes projetos e as grandes obras?
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
236
Este território, que conta com os remanescentes de Mata Atlântica do Parque do Jaraguá, do Parque Anhangüera e da Serra da Cantareira, e remanescentes do Cerrado no Parque do Juqueri, integram a
Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo reconhecida pela Unesco. A secretaria executiva da reserva é mantida pelo
Instituto Estadual de Florestas, e foi criada no final dos anos 1980,
quando os protestos contra o primeiro plano de construção do Rodoanel
geraram comoção na opinião pública, ocasionando a busca pelo reconhecimento internacional do patrimônio natural pela Unesco. A Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo visa tanto garantir
que este território de remanescentes urbanos de Mata Atlântica e Cerrado seja espaço de iniciativas inovadoras de desenvolvimento sustentável, como também integra a rede nacional e a rede mundial de Reservas
da Biosfera para promover o desenvolvimento sustentável.
Adicionalmente, desde início dos anos 1990 a criação do Comitê de Bacia Hidrográfica do Alto Tietê possibilitou a criação do Subcomitê de bacia do Juqueri-Cantareira. Este Subcomitê congrega
majoritariamente os representantes do poder público e da iniciativa
privada para debater o futuro da região. Por meio desta estrutura, o
Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro) já liberou mais de R$3
milhões para cerca de 30 projetos realizados no entorno do rio Juqueri.
Quais os benefícios para a população deste acúmulo de ações de
desenvolvimento sustentável na periferia norte de São Paulo? Difícil
dizer. Ao longo das diversas administrações municipais, os moradores
têm sido consultados repetidamente sobre suas prioridades, seja por
intermédio do Plano Diretor Participativo, seja por intermédio do Orçamento Participativo, da Agenda 21 Municipal ou das muitas entrevistas conduzidas por órgãos públicos no bairro. E uma das prioridades
recorrentes citadas pelas organizações comunitárias é a precariedade
das políticas públicas universais, em especial o frágil atendimento à
saúde pública.
Mas as respostas do poder público não têm sido pautadas pelas
demandas das comunidades. No momento, a prefeitura prioriza a utilização dos recursos oriundos dos créditos de carbono para a instalação
de praças e a construção em Perus de um dos maiores hospitais veterinários do país a custo de cerca de R$5 milhões, obras estas que deveriam ser custeadas pelo orçamento municipal.
237
A Usina Termoelétrica Bandeirantes (Uteb), com potência de 22MW
prevista para funcionar por 15 anos, foi instalada em 2003 em pouco mais
de 100 dias, ao custo de R$60 milhões, pela sociedade de propósito específico Biogás Energia Ambiental SA. Por conta deste investimento, a empresa divide os créditos de carbono com a Prefeitura de São Paulo, já que o
aterro sanitário Bandeirantes é de propriedade da mesma, sendo concessionária de operação a empresa Logística Ambiental de São Paulo SA (Loga),
anteriormente vinculada da empresa franco-belga GDF Suez.
A Biogás foi formada em 2003 pela união de capital de três sócios:
a Heleno & Fonseca Construtécnica SA, a empresa Logos Energia SA (integrante da rede mundial Arcadis NV) e a empresa Ecair Brasilie BV (integrante da holding holandesa Van der Wiel BV). Enquanto a Biogás é
responsável pela implantação e manutenção dos moto-geradores, a empresa Sotreq SA é responsável pela captação, beneficiamento e direcionamento
do gás no aterro, e o Unibanco atua como administrador e usuário final da
energia gerada.
Foi somente após a inauguração da usina, em janeiro de 2004, com
a presença da então ministra das Minas e Energia Dilma Roussef, e de
alguns poucos moradores de Perus, que o Fórum de Desenvolvimento
Local de Perus e Anhangüera começou a se inteirar do que são créditos de
carbono. A população estava mais envolvida com o aterro em si porque
este estava no limite de sua capacidade e suspeitava-se que houvesse acúmulo
de gás. Circulava à época a informação de que, junto ao aterro São João,
em São Mateus, houve vazamento de gás, que subira pelos vasos sanitários
das residências e, como o aterro Bandeirantes funcionava sem as devidas
licenças, a comunidade priorizava discutir a segurança.
Por sua vez, a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente (SVMA), também pouco familiarizada com o tema de créditos de
carbono, contratou em maio de 2004 o Centro Clima da Coppe/UFRJ
para realizar o inventário de emissões de gases de efeito estufa da cidade de São Paulo, capacitar 30 funcionários públicos em mudanças climáticas e MDL, elaborar cenários em emissões de gases de efeito estufa
da cidade para médio e longo prazos, além de produzir um estudo sobre o potencial de obtenção de créditos de carbono com os aterros
sanitários do município.
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
3 UM DOS MAIORES PROJETOS MDL DA AMÉRICA LATINA
O inventário de emissões de gases de efeito estufa, que foi concluído em março de 2005, registra que no ano de 2003 o município de São
Paulo lançou 15,7 milhões de toneladas de CO2 equivalente na atmosfera, o que significa em média 1,47 toneladas de CO2 equivalente por
habitante/ano. O uso de energia (combustíveis e eletricidade) gerou 75%
das emissões, ao passo que a disposição final de resíduos sólidos contribuiu com 23%.
Naquela época, a população não teve notícia da aprovação do
projeto de MDL em Perus, e este não foi discutido com a comunidade.
A empresa de consultoria, de origem norueguesa, Det Norske Veritas
Certification (DNV), afirma em seu relatório de validação que houve um
processo de consulta à comunidade, na medida em que publicou no seu
site na internet, de 28 de janeiro a 27 de fevereiro de 2005, os documentos
do projeto para consulta, mas como não recebeu nenhum comentário, deu
o processo de participação por concluído.
238
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
Quando se trata de um projeto de MDL em aterro é necessário que se
venha até o bairro, se divulgue na imprensa local, coloque faixas para
explicar o que está acontecendo e o que vai acontecer. Por isso é que
discordamos. Discordamos que houve divulgação do processo de validação do projeto de MDL, discordamos que fomos consultados,
questionamos o fato de a Biogás ter direito a 50% dos créditos e questionamos a falta de democracia do processo (RODRIGUES, 2009)2.
Assim, a Usina Bandeirantes começou a funcionar sem que os moradores soubessem exatamente do que se tratava e sem que houvesse maiores
explicações, divulgação ou transparência sobre a obra. À época, a população
deparou-se com uma série de notícias desencontradas. A imprensa, por
exemplo, noticiara que, com a usina, a população do território seria beneficiada com redução de 10% a 15% na conta de luz, o que nunca ocorreu,
enquanto o então vice-prefeito da gestão Serra afirmava na mídia que com
os novos recursos a Prefeitura poderia comprar mais leite para a merenda
escolar.
2
Paulo Rodrigues, diretor do Instituto de Ferrovias e Preservação do Patrimônio Cultural
(IFPPC).
A desinformação é em todas as esferas. Como professora que sou,
percebo a desinformação tanto dos alunos quanto dos professores
e diretores. Você tem uma gama imensa de professores que não
residem na região e não têm nenhum vínculo com os problemas
coletivos da comunidade (BUGANA, 2009)3.
Em 12 de setembro de 2005, a Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima (CIMGC) expediu o ofício no qual confirma
que o projeto da empresa Biogás e da Prefeitura de São Paulo, no aterro
Bandeirantes, irá possibilitar ao país atingir o desenvolvimento sustentável.
Para entender o processo, o Fórum de Desenvolvimento Local convidou em 2006 o advogado e ambientalista Pinheiro Pedro para uma
palestra. E em 2007 foram convidados o empresário e ambientalista
Divaldo Rezende e a advogada Daniela Stump. Foi somente a partir das
informações trazidas pelos palestrantes que os integrantes do Fórum de
Desenvolvimento Local Perus-Anhangüera começaram a entender mais
detalhadamente o que era um projeto MDL, os créditos de carbono e o
que representava a Biogás, e foi possível entender porque o Unibanco
3
4
Sueli Bugana, moradora de Perus.
Nelson de Camargo, microempersário e liderança comunitária.
239
Depois de toda a luta contra o lixão, agora estão transformando o
lixo em energia, e no fim, quem está se beneficiando com isso é o
banco, que vai usar a energia por dez anos. Ela poderia servir para
o próprio bairro, mas não. Serve para quem já tem benefícios. No
nosso raciocínio, já que fomos tão prejudicados pelo lixão, tivemos nossas casas desvalorizadas... Seria justo que o governo nos
retribuísse e destinasse 50% da energia produzida por esse aterro
para o bairro, em forma de compensação (CAMARGO, 2009)4.
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
Ao lado da nova usina de energia renovável, em uma ocupação
irregular com cerca de 30 mil pessoas, a maioria das residências são
abastecidas de energia através de inúmeras ligações clandestinas, o que
gera quedas frequentes de energia em todo o distrito.
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
240
vinha apregoando a usina como um projeto de desenvolvimento sustentável nos comerciais em suas salas de cinemas em todo o país.
Em abril de 2006, a empresa Biogás efetua o maior contrato de
venda de créditos de carbono do mundo, vendendo os créditos relativos a
1 milhão de toneladas de CO2 equivalente gerados nos anos de 2004 e
2005 ao banco público alemão Kreditanstalt für Wiederaufbau (KfW).
O preço total pago foi de cerca de R$70 milhões.
Em junho de 2006, durante audiência pública da Comissão de Solos Contaminados da Câmara Municipal, lideranças comunitárias de Perus interpelaram publicamente o presidente da empresa Loga quanto ao
adiamento do fechamento do aterro e lembraram a necessidade de seu
monitoramento ambiental pelos próximos 50 anos. O representante da
empresa confirmou o fechamento do aterro para outubro daquele ano.
Mas em reunião na Subprefeitura de Perus com representantes da comunidade, em início de 2007, técnicos da Prefeitura sugeriram que a continuidade de funcionamento do aterro permitiria gerar maior número de
créditos de carbono. As lideranças comunitárias não aceitaram o acordo
e continuaram exigindo o fechamento imediato do aterro, o que ocorreu
em março de 2007.
Em outubro de 2006, foi realizada uma audiência pública na Câmara Municipal, tendo como participantes principalmente funcionários
públicos, advogados e representantes de bancos, para debater a comercialização de créditos de carbono em bolsa de valores. Logo após, o vereador
Paulo Frange foi autor de uma emenda à nova legislação referente ao IPTU,
que foi integrada à Lei n. 14.256, de 29 de dezembro de 2006, permitindo que
a Prefeitura comercialize seus créditos de carbono.
Conforme foram tendo mais acesso à informação, as lideranças comunitárias passaram a questionar o acordo celebrado entre a Biogás e a
Prefeitura sem intervenção ou consulta à população. As lideranças se mobilizaram e em novembro de 2006 foi feita uma denúncia ao Ministério
Público Federal. A Tutela do Meio Ambiente do Ministério Público em
São Paulo publicou resolução em setembro de 2007 recomendando à
CIMGC a revisão do projeto MDL do aterro Bandeirantes, indicando
que ele funciona com base em uma operação de licença precária e que as
pendências ambientais são objeto de uma investigação pelo Ministério
Público do Estado no inquérito civil público n. 016/1993 da 3ª Promotoria de Justiça do Meio Ambiente da Capital.
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
Até hoje a implantação da Agenda 21 pela Prefeitura em Perus não
deu certo porque não teve impacto, nem sequência. Ela deveria discutir o que foi estabelecido no Protocolo de Quioto e deveria contribuir com o debate a respeito dos créditos de carbono. Mas quem fez
esta discussão na região foi o Fórum de Desenvolvimento Local,
241
Foi durante seminário realizado na Câmara Municipal, em abril de
2007, com o título Perus: O Caminho Mais Curto para Quioto, que começou o debate sobre como os recursos oriundos da venda dos créditos de
carbono deveriam ser utilizados, já que não existia uma legislação sobre a
sua destinação e a Prefeitura havia decidido que os recursos não seriam
destinados para atender às demandas da comunidade, mas iriam para o
Fundo Especial do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, criado em 2001. No mesmo período, a SVMA publicou, em seu site artigo
informando que a Prefeitura decidira pela criação de 22 parques lineares
em São Paulo com conclusão prevista para o próximo ano.
Ainda em abril de 2007, os vereadores Paulo Frange, Juscelino
Gadelha e Antonio Carlos Rodrigues apresentaram à Câmara Municipal
o Projeto de Lei n. 239/2007 instituindo a Política Municipal de Mudanças Climáticas. A minuta prevê que quando da participação da Prefeitura em projeto MDL, esta deve deter no mínimo 70% dos créditos
oriundos do projeto. Dos recursos uma vez recebidos, ao menos 50%
tem que ser investidos na comunidade ou no bairro onde o projeto MDL
está localizado. O projeto encontra-se em tramitação.
Em junho de 2007, a Prefeitura e a Bovespa assinaram contrato
para o leilão da venda dos créditos. E foi somente quando da realização
do primeiro leilão de créditos de carbono que a SVMA divulgou uma
planilha simples, sem maiores explicações ou comentários, listando as
obras que a Secretaria iria implementar com a nova fonte de recursos.
Esta primeira listagem contemplava apenas ações ambientais, e a construção do parque linear de Perus foi uma das prioridades indicadas.
A Seccional São Paulo da Defensoria da Água, uma defensoria social apoiada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pela
Cáritas, encaminhou em início de setembro de 2007 representação à
CIMGC, em Brasília, e ao IPCCC, na Alemanha, solicitando a suspensão
da autorização para a comercialização dos créditos de carbono do aterro
Bandeirantes.
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
O primeiro leilão de créditos da Prefeitura, em setembro de 2007,
referentes a 808 mil toneladas de CO2 equivalente, rendeu R$34,05 milhões. O comprador foi o banco belga-holandês Fortis Bak NV, que pagou
16,2 euros pela tonelada. Deste valor, não existe até o momento prestação
de contas ou transparência para com os moradores. Apesar da presença de
várias lideranças comunitárias e de integrantes do Fórum carregando faixas, concedendo entrevistas e divulgando mensagens de protesto no centro
de São Paulo neste dia, somente um representante do Fórum conseguiu,
por intermédio de contatos políticos, o acesso ao prédio da Bovespa, onde
estava sendo realizado o leilão, relatando os fatos por celular aos demais
moradores postados no lado de fora.
Em outubro de 2007, o Conselho do Fundo Especial do Meio
Ambiente e Desenvolvimento Sustentável publicou resolução definindo
que os recursos do leilão serão aplicados:
1) na construção dos parques lineares Perus e Bamburral;
2) na implantação de ciclovias;
3) no viveiro e hospital veterinário do Parque Anhangüera;
4) em programa de educação ambiental;
5) na melhoria da coleta seletiva em Perus e Pirituba.
Diante dessas experiências negativas, o Fórum de Desenvolvimento
Local cobrou da Prefeitura a realização de uma audiência pública. A primeira resposta foi de que o consórcio Biogás já havia realizado uma consulta à população na fase de elaboração do projeto. As lideranças do Fórum
contestaram esta posição, na medida em que não havia registro nos bairros
de pelo menos um morador que tivesse participado desta consulta, nem
o registro de audiência aberta. A Prefeitura, por fim, cedeu, e em novembro
de 2007 foi realizada, no auditório do Centro Educacional Unificado (CEU)
Perus a primeira audiência pública aberta sobre o projeto MDL.
Porém, a audiência foi conduzida de tal forma que as falas das autoridades convidadas para a mesa ocuparam quase todo o tempo disponível
e restou às lideranças comunitárias breves comentários de três minutos
242
porque na verdade, ele estava mais bem informado até que a
Subprefeitura (HONORATO, 2009)5.
5
Luzia Honorato, integrante da Coopercose.
cada. Nas suas falas, os moradores priorizaram a construção de um hospital e unidades básicas de saúde. Os integrantes do Fórum entregaram aos
representantes da Prefeitura um documento contendo propostas para a
destinação dos recursos oriundos do pagamento por serviços ambientais,
contemplando ações nas áreas de educação, saúde, cultura, moradia, coleta seletiva e proteção ambiental.
Em uma das muitas reuniões que se seguiram entre a comunidade e
representantes da Subprefeitura de Perus, foi divulgada uma segunda planilha,
contendo uma nova listagem de obras prioritárias para a SVMA. As lideranças comunitárias voltaram a apresentar as demandas da comunidade e as
prioridades de desenvolvimento definidas no Fórum. Estas demandas e prioridades foram também apresentadas ao Grupo de Trabalho Meio Ambiente, do Movimento Nossa São Paulo, formado em 2007, que tem como
objetivo definir um novo modelo de gestão participativa para a cidade.
Paralelamente, a Prefeitura encarregou a Fundação Getúlio Vargas
(FGV) e a organização internacional Iclei da formulação da Política Municipal de Mudanças Climáticas. O financiamento é oriundo do Projeto Ambientes Verdes e Sustentáveis (Pavs), que é implementado, desde 2006, em
conjunto pelas Secretarias Municipais do Meio Ambiente, da Saúde e da
Assistência Social, para a formação de agentes locais de desenvolvimento
sustentável. O Pavs tem apoio da ordem de US$4,5 milhões do Ministério
da Saúde e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
A minuta de lei foi apresentada em primeira audiência pública na
Câmara Municipal em setembro de 2007. Após tramitação, o Projeto de
Lei n. 530, da nova versão da Política Municipal de Mudanças Climáticas,
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
6
243
As audiências públicas são a grande mentira desta região. Por audiência, eu entendo que é uma consulta à sociedade civil organizada e
esta deve decidir onde a prefeitura vai gastar o dinheiro, no caso, dos
créditos de carbono. Mas não foi assim que aconteceu. Quando chegamos ao CEU, eles entregaram uma planilha onde já estava definido o que iam fazer com o dinheiro. Oras, então a população vai lá
apenas para sentar e ouvir? (MENDES, 2009)6.
Roberta Mendes, Comunidade Chácara Maria Trindade, Anhanguera.
foi encaminhado à Câmara Municipal em agosto de 2008, subsidiado por
uma exposição de motivos publicada posteriormente em forma de livro.
Uma segunda consulta pública foi realizada pela Câmara ainda em novembro de 2008. Neste livro, a Prefeitura lista o que considera importante
na participação do cidadão:
244
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
a) mudar seu padrão de consumo, preferindo produtos sustentáveis;
b) se organizar, participar de mobilizações, integrar o quadro de
ONGs;
c) atuar como educador, conscientizando a sociedade sobre os problemas inerentes às mudanças climáticas;
d) votar em representantes que defendem as causas socioambientais;
e) recorrer ao Judiciário para exigir posturas condizentes com as leis;
f ) exercer pressão sobre órgãos de imprensa, através de contatos com
jornalistas ou envio de opinião de leitores para exercer a cidadanian
(PREFEITURA DE SÃO PAULO; ICLEI, 2009).
Em 26 de dezembro de 2007, a Prefeitura publicou a Lei n.
14.658, pela qual a gestão Kassab define que os novos recursos oriundos da alienação de créditos de carbono devem ser destinados ao Fundo
Especial do Meio Ambiente, devendo ser utilizados preferencialmente
na região de execução do projeto MDL. E, em janeiro de 2008, o Fórum
de Desenvolvimento Local Perus-Anhangüera entregou ao Conselho
do Fundo sua proposta para promoção do desenvolvimento nos dois
bairros.
Em março de 2008, houve intensa mobilização popular na região,
fechando por algum tempo a rodovia Anhangüera em protesto contra a
iminente instalação de um novo aterro sanitário no km 21, pela gestão
Kassab. Em comemoração ao sucesso da mobilização, um ano mais tarde, em abril de 2009, a Pastoral da Ecologia, o Conselho Regional de
Pastoral e o Núcleo de Fé e Política da Região Episcopal de Brasilândia,
da Arquidiocese de São Paulo, realizaram o I Simpósio O lixo Nosso de
Cada Dia, visando qualificar o debate da sociedade civil local.
O vereador Paulo Fiorilo apresentou, em abril de 2008, o Projeto
de Lei n. 265 dispondo sobre a aplicação da renda auferida com a venda
de créditos de carbono, propondo sua utilização em equipamentos públicos e melhorias urbanísticas nos bairros de Perus e Anhangüera e defi-
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
245
nindo que a Prefeitura deveria publicar balanços trimestrais da utilização dos recursos. Em audiência pública realizada em outubro de 2008 na
Câmara, o representante da SVMA pronunciou-se contrário ao projeto
de lei, argumentando que os recursos devem ser aplicados somente em
projetos de requalificação ambiental.
Diante da ausência de respostas ou propostas de diálogo pela Prefeitura, o Fórum de Desenvolvimento Local reinvindicou uma segunda
audiência pública, que foi realizada em julho de 2008. O interesse da comunidade aumentou e, no dia desta segunda audiência, houve uma manifestação pública prévia nas ruas e chegou a ocorrer um tumulto na portaria
do CEU Perus, pois o auditório não comportava todos os interessados.
A Guarda Municipal jogou gás pimenta nos moradores para ‘controlar’ a
multidão, mas acabou havendo negociação para o ingresso de uma delegação no auditório. Ante as indagações vindas do público, os integrantes da
mesa e representantes da Prefeitura continuaram a negar a possibilidade
de aplicação de recursos dos créditos de carbono em prioridades definidas pela comunidade, pois a SVMA somente poderia realizar obras no
âmbito da readequação ambiental.
Esta argumentação mudou pouco tempo depois, quando lideranças comunitárias de Perus que haviam participado de uma reunião do
Fundo Municipal do Meio Ambiente trouxeram a público a informação
de que a SVMA havia contratado, com os recursos do leilão de carbono,
a consultoria de um arquiteto no valor de R$950 mil para elaborar mais
um plano de desenvolvimento sustentável de Perus, agora sob o nome de
Plano de Bairro. Os representantes da Prefeitura, que chegaram a informar em debates anteriores que, como o desenvolvimento sustentável não
estava regulamentado em lei, as demandas da comunidade não tinham
prioridade, passaram a distribuir uma terceira versão da planilha com
obras. Os valores orçados na primeira planilha foram modificados e algumas das ações propostas pelo Fórum, entre elas o apoio na revitalização
da ferrovia, foram incluídos entre os projetos da Prefeitura.
Em setembro de 2008, a Prefeitura comunica, via internet, que irá
comercializar os créditos de carbono oriundos não somente do aterro
Bandeirantes, mas também do aterro São João, localizado no bairro de
São Mateus, cuja usina havia sido inaugurada em janeiro de 2008. Na
nota, o Subprefeito de São Mateus convida os conselheiros do meio
ambiente e a população em geral a apresentarem projetos para a utiliza-
ção dos recursos e sugere visitas a Perus para conhecer os benefícios que
os créditos estariam gerando. Mas a nota enfatiza que, de acordo com o
Protocolo de Quioto, os recursos não podem ser utilizados para outros
fins que não a readequação ambiental. E que ações na área de saúde,
como construção de hospitais, não são permitidos pelo Protocolo de
Quioto.
E eles dizem que a construção das praças e esses projetos que estão
apresentando foram aprovados pela população, mas não sabemos
que população foi essa que aprovou, porque nas nossas reuniões,
nas audiências realizadas para discutir isso, não concordamos com
o que eles colocaram. Mas, eles vão fazendo assim, do jeito deles e
a nós só resta a decepção, porque lutamos tanto para melhorar a
vida do povo e eles gastam o dinheiro com obras que não são
prioritárias, que não melhoram nossa vida (GONÇALVES, 2009)7.
Recém-inaugurados, parques lineares já têm problemas
246
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
A Prefeitura de São Paulo promete entregar até o final deste ano mais sete parques
lineares, construídos nas margens de córregos para melhorar a permeabilidade do
solo, diminuindo as enchentes. A reportagem visitou os três parques lineares inaugurados na atual gestão, e constatou problemas.
No parque linear Recanto dos Humildes, em Perus, o piso onde estão os brinquedos está cheio de cascalho e pedras, que colocam em risco as crianças. ‘Do jeito
que está o piso, elas podem se machucar’, alerta a diarista Adriana de Souza, 31.
Ela disse que quando o parque foi inaugurado em dezembro, a prefeitura tentou
‘maquiar os defeitos’ que apareciam.
Muitos brinquedos foram feitos com pneus reciclados. Eles estão com furos, para
que não acumulem água. Mesmo assim, na quarta-feira, após uma noite de chuvas, muitos deles tinham água parada. ‘O risco de dengue é enorme’, disse Adriana.
Outro problema é que a prefeitura esqueceu de colocar cestas de lixo no entorno
do parque. O córrego que corta o local também está cada vez mais sujo. [...]
(FOLHA DE SÃO PAULO, 2008, p. C5).
7
Sebastião Gonçalves, liderança comunitária.
Diante da comoção que todo este debate gerou entre os moradores
de Perus e Anhangüera, na campanha eleitoral de 2008 o vereador Netinho abraçou a causa e criou o jornal Publi-carbono, explicando aos eleitores que os créditos de carbono representam uma conquista das lutas do
povo e seu uso pela Prefeitura irá beneficiar a todos.
Como a cidade de São Paulo participa do programa C40 Cities,
que congrega representantes das 40 maiores cidades do mundo com financiamento pela Fundação Bill Clinton e Governo da Suíça, em maio de
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
8
247
Por ocasião do segundo leilão de créditos da Prefeitura, em setembro de 2008, foi realizada uma mobilização mais intensa. Os associados da
cooperativa de reciclagem Coopercose se organizaram para ir até o prédio
da Bovespa, no centro da cidade, para protestar junto com lideranças comunitárias, demais moradores e integrantes do Fórum. Quando da chegada dos repórteres, o prefeito Kassab concedeu entrevista coletiva enaltecendo
o caráter ambiental e sustentável de sua gestão, enfatizando que os recursos
seriam usados na melhoria dos serviços de saúde. Questionado por uma
liderança de que a SMVA seguia informando que os recursos do carbono
somente poderiam ser utilizados para implantação de praças, o prefeito
respondeu que a saúde era prioridade, fosse com créditos de carbono ou
com recursos do orçamento.
O segundo leilão de créditos de carbono da Prefeitura, referente a
cerca de 714 mil toneladas de CO2 equivalente, rendeu cerca de R$37
milhões. Os certificados eram 455 mil referentes ao aterro Bandeirantes, e
259 mil do aterro São João, na Zona Leste. A compradora foi a empresa
americana Mercuria Energy Trading, que pagou 19,2 euros a tonelada. Do
valor, não existe até o momento prestação de contas ou transparência para
com os moradores.
Até fevereiro de 2009, nem a Prefeitura, nem a Secretaria do Verde e
Meio Ambiente, prestaram contas de como os recursos estão sendo
utilizados. A Secretaria tem o dever de apresentar as planilhas de
como ela gastou esse dinheiro e o Fórum de Desenvolvimento Local
vai continuar insistindo para que isso aconteça (BORTOTO, 2009)8.
Mário Bortoto, microempresário e liderança comunitária.
2009 o prefeito Kassab esteve na conferência realizada na Coréia do Sul
onde foi palestrante na mesa redonda com o tema Os Benefícios Financeiros Decorrentes da Redução de Gases de Efeito Estufa.
A inauguração da ponte estaiada sobre o rio Pinheiros, em 2008,
com custo de R$230 milhões em um dos bairros mais ricos da cidade,
gerou nova comoção entre as organizações comunitárias e movimentos
sociais de Perus e Anhangüera. Estes voltaram a questionar a razão pela
qual investimentos básicos tenham que ser disputados com a Prefeitura,
que agora quer usar os créditos de carbono para obras correntes, em vez
de utilizar recursos orçamentários, enquanto o orçamento geral da Prefeitura é utilizado para grandes obras de infraestrutura e urbanismo nos
bairros centrais.
248
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
4 RESUMINDO
O Protocolo de Quioto prevê em seu Artigo 12 que os países signatários devem “Estabelecer modalidades e procedimentos com o objetivo
de assegurar transparência, eficiência e prestação de contas das atividades
de projetos”.
A inovação que ocorreu em Perus e Anhangüera é que a transparência e a prestação de contas previstas no Protocolo, que deveria ser apenas
da empresa para com o Governo e deste para com o órgão das Nações
Unidas encarregado da supervisão do MDL, foram descentralizadas. Por
mérito das organizações da sociedade civil, o Estado foi pressionado a iniciar a transparência e prestação de contas à população. Uma inovação no
ciclo do MDL no país.
Os distritos de Perus e Anhangüera, situados em meio à conturbação
das regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas, que integram a Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Unesco e o território do Sub-comitê de
bacia do Juqueri-Cantareira, historicamente prestaram e continuam prestando serviços ambientais que são essenciais para o funcionamento destas
grandes cidades, como produção de alimentos, celulose, matéria-prima
para produção de cimento e cerâmica, mineração, produção de ar puro,
geração de energia, produção de água potável, produção de areia, pedras
e cascalhos para a construção civil, produção de água mineral, serviços de
logística para o transporte, reciclagem de nutrientes e de resíduos, manutenção da biodiversidade com matas e animais silvestres, beleza cênica,
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
249
serviços de lazer e de saúde, reabilitação dos animais silvestres capturados na cidade, somente para mencionar os serviços diretos. O serviço
ambiental mais recente é a geração de créditos de carbono em três projetos MDL.
O valor destes serviços é incalculável e eles têm sido utilizados pela
economia e pela população das cidades de São Paulo, Campinas e seu
entorno sem a adequada remuneração, originando a degradação e a
dilapidação dos recursos naturais de Perus e Anhangüera, através do corte
das matas, da impermeabilização do solo, da perda da capacidade de produção de água, entre outros. Os impactos ambientais são mais facilmente
visíveis na degradação contínua da Serra da Cantareira, e os impactos humanos, na pobreza em áreas como o Recanto dos Humildes, ou na miséria
das aldeias da etnia Guarani, aos pés do Pico do Jaraguá.
O território norte de São Paulo não é prioritário para as políticas
públicas. A Secretaria Estadual do Meio Ambiente, por exemplo, não incluiu os parques e rios de Perus no Programa de Recuperação de Parques e
Promoção do Ecoturismo, que tem recurso de R$36 milhões do Banco
Interamericano (BID), ou no Projeto de Preservação da Mata Atlântica na
Serra do Mar, com financiamento do banco alemão KfW, ou ainda no
plano de pagamento por serviços ambientais do Projeto Estadual de Recuperação de Matas Ciliares, com R$15 milhões do Fundo para o Meio
Ambiente Global (GEF). Por sua vez, a Secretaria Estadual de Cultura
decidiu, em 2009, doar R$3 milhões para que a organização não-governamental Academia Paulista de Letras reformasse o seu prédio no centro da
cidade, enquanto os 160 mil moradores de Perus e Anhangüera não dispõem de um único equipamento cultural.
No entanto, o território Perus-Anhangüera deveria ser prioritário.
Segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe) e a Fundação SOS Mata Atlântica, no período de 2005 a 2008 a
região metropolitana de São Paulo registrou um aumento de cinco vezes
no desmatamento da Mata Atlântica em relação aos anos anteriores. Metade do desmatamento se deu na Serra da Cantareira, e do total de 437
hectares de mata perdidos no período, só as obras do Rodoanel foram
responsáveis pela perda de 201 hectares a menos de vegetação nativa.
Se a parceria da Unesco com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente na gestão da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo, ou
a ação do Conselho de Gestão de Bacia do Alto Tietê por intermédio do
ANA MARIA RIBEIRO ET AL.
250
Fehidro, não foram suficientes para gerar um modelo de desenvolvimento
sustentável na periferia norte de São Paulo, também a implantação de três
projetos MDL naquele território não criou um modelo de desenvolvimento sustentável. Os serviços ambientais gerados pelos bairros de Perus e
Anhangüera continuam sendo precificados e apropriados pelas organizações, empresas e órgãos públicos situados no centro da cidade sem a adequada remuneração para os moradores da periferia.
Nos primeiros cinco anos de funcionamento do MDL no aterro
Bandeirantes, os sócios do projeto, que investiram algo em torno de R$70
milhões, tiveram um retorno de aproximadamente R$128 milhões apenas
com a venda dos créditos de carbono. Adicionalmente, o Unibanco vende
a energia elétrica gerada na usina para clientes como a Eletropaulo ou a
rede de locadora de vídeos Blockbuster.
A perseverança e a persistência das lideranças comunitárias dos bairros de Perus e Anhangüera, formadas por décadas no enfrentamento dos
técnicos e gestores autoritários do setor público, permitiram que o debate
sobre os projetos de MDL na cidade de São Paulo saísse dos gabinetes e
fosse levado à praça pública. Com a conquista da participação e o acesso à
informação, coloca-se em dúvida até que ponto projetos MDL podem ser
classificados como de desenvolvimento sustentável e podem receber por
esta classificação um sobrepreço no mercado internacional.
Houve ganhos consideráveis com o projeto Bandeirantes. Se na
implantação do MDL não havia uma opinião pública, hoje ela existe e é
crítica ao projeto. A Câmara Municipal de São Paulo se envolveu ativamente e gerou uma legislação ainda embrionária, mas que será estruturada
com o tempo, internalizando um debate antes ausente. Se, no início do
MDL do aterro, o nível de participação segundo a escada de Arnstein se
resumia à manipulação, hoje em dia foi alcançado o nível de consulta,
ainda muito longe do nível da co-gestão, mas de qualquer modo um avanço na participação em Perus.
O enfrentamento com as organizações da sociedade civil obrigou a
Prefeitura a reagir, o que foi feito em geral de modo desarticulado, mas
iniciou-se um processo de resposta às demandas da sociedade pelo poder
público. Fato que deve ser considerado de modo positivo, pois a ausência
de transparência e participação em processos de desenvolvimento não é
uma exceção, é antes o paradigma da administração pública, conforme
registrado, por exemplo, já em 1991:
O G-7, grupo de governos dos setes países mais desenvolvidos,
começou a discutir, em julho de 1991, o apoio a um Programa Piloto para a proteção das florestas tropicais no Brasil. Precária e tardiamente informada através da imprensa, restou à sociedade civil,
excluída do debate pelas instâncias governamentais, assistir passivamente à negociação das políticas públicas (ACSELRAD, 1991,
p. 53-4).
ANJOS, Ana et al. O rio pelos trilhos: introdução à história de Perus e Cajamar. Caieiras:
Inst. de Pesquisas em Ecologia Humana, 2008.
3.3 PERUS: O CAMINHO MAIS CURTO PARA QUIOTO
BORGES, Rubens. Fundo Especial do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
do município de São Paulo: a importância e as possibilidades de novas captações de recursos para os fundos socioambientais. In: TATAGIBA, Fernando; LEME, Taciana (Orgs.).
251
Resume o texto do parecer do procurador da República sobre o
MDL aterro Bandeirantes: “Foi aprovado com base em exame meramente
formal da documentação apresentada, não existindo análise ampla e integrada dessa comissão (CIMGC) sobre como ele estaria contribuindo para
o desenvolvimento sustentável do país (ou mesmo para a sustentabilidade
ambiental local)” (AMARAL FILHO, 2007).
O processo de democratização no país tem demonstrado que não se
constrói a democracia apenas com harmonia. A qualidade da democracia
surge do conflito social, e as organizações da sociedade civil nos bairros de
Perus e Anhangüera levaram a Prefeitura de São Paulo a sair dos gabinetes
e se envolver com o debate em praça pública. Talvez esse seja um primeiro
passo rumo a um desenvolvimento mais sustentável. O segundo seria o
maior envolvimento também das empresas operadoras do MDL com a
comunidade.
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PARTE IV
TESTE E INOVAÇÃO EM
PAGAMENTO POR SERVIÇOS
AMBIENTAIS E ADAPTAÇÃO/
MITIGAÇÃO ÀS MUDANÇAS
CLIMÁTICAS
4.1
O RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL COM OS
QUILOMBOLAS NO VALE DO RIBEIRA (SP)
Nilto Tatto; Raquel Pasinato
1 QUILOMBOLAS NO BRASIL
A questão quilombola foi inserida no cenário da política nacional
com a Constituição Federal de 1988, que instituiu, em seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o artigo 68: “Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
respectivos títulos”. Os artigos 215 e 216 estabelecem a proteção ao patrimônio histórico-cultural dessas comunidades de forma abrangente.
Levantamento realizado pelo pesquisador Rafael Sanzio Araújo dos
Anjos identifica 2.847 comunidades quilombolas distribuídas em 24 estados da federação. Já o movimento quilombola nacional e outros pesquisadores falam em mais de 3.500 comunidades remanescentes quilombos
(Quadro 1).
A partir da Constituição, os governos estaduais e nacional vêm
propondo e implementando ações que visam a reparação de parte da
dívida social com os afrodescendentes, em especial com as comunidades
negras rurais, os quilombolas. Tais ações, entretanto, visam apenas a inserção dos quilombolas no mercado ou simplesmente a implementação
de políticas assistencialistas por meio das diversas formas de incentivo,
como bolsa-escola, bolsa-família etc. Poucas destas ações têm surtido
efeitos concretos no sentido de incluí-las nas estratégias de desenvolvimento do País. Estratégias estas que não contemplam a rica
sociobiodiversidade brasileira.
Quadro 1: Número de Comunidades Quilombolas Identificadas por Estado
258 NILTO TATTO; RAQUEL PASINATO
Comunidades Quilombolas nos Estados Brasileiros
Região
Estado
Norte
Amapá
Tocantins
Rondônia
Pará
Amazonas
Nordeste
Alagoas
Ceará
Paraíba
Pernambuco
Piauí
Rio Grande do Norte
Maranhão
Bahia
Centro-Oeste
Mato Grosso
Goiás
Mato Grosso do Sul
73
33
25
131
Sudeste
Minas Gerais
São Paulo
Espírito Santo
Rio de Janeiro
Santa Catarina
Paraná
Rio Grande do Sul
204
85
52
34
19
8
148
550
TOTAL BRASIL
N. de Comunidades
15
16
5
403
3
442
52
79
17
102
174
68
734
469
1.724
2.847
Fonte: ANJOS, Rafael Sanzio Araújo (pesq.).Quilombolas: tradições e cultura da
resistência.São Paulo: Aori Comunicação, 2006.
259 4.1 O RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL COM QUILOMBOLAS NO VALE DO RIBEIRA (SP)
A sustentabilidade das comunidades quilombolas e de seus territórios passa pelo imediato reconhecimento de seus direitos territoriais,
fundamental para a reprodução social, cultural e natural destas comunidades. Nesse sentido, pouco temos avançado como sociedade brasileira.
De acordo com levantamento da Comissão Pró-Indio de São Paulo (CPI-SP) de março de 2009, desde a promulgação da Constituição
em 1988 somente 185 terras de quilombos foram tituladas. Considerando a pesquisa de Rafael dos Anjos, a qual identifica 2.847 comunidades,
neste ritmo o Brasil levará mais de 300 anos para garantir a principal
reivindicação destas comunidades. Ainda de acordo com a CPI-SP, em
2007 o governo federal entregou apenas dois títulos. Quadro pior temos
em 2008, ano no qual o governo federal não titulou terra quilombola
alguma.
A situação se agrava à medida que o Incra, órgão federal responsável pela demarcação dos territórios quilombolas, não tem realizado as
titulações, nem tampouco conseguido avançar na condução dos processos de terras quilombolas.
Existem atualmente mais de 600 processos abertos no Incra. Desse total, somente 220 processos efetivamente se iniciaram. O restante
apenas recebeu um número de protocolo. Em 2008, só dez portarias de
reconhecimento de terras quilombolas foram assinadas pelo presidente
do Incra. E somente 19 Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) foram publicados.
Essa realidade, infelizmente, não apresenta perspectiva de melhora em curto prazo. Especialmente depois da aprovação pelo órgão, em
1º de outubro de 2008, de novas regras para a titulação das terras
quilombolas, por meio da Instrução Normativa Incra nº 49. Esta mudança foi duramente criticada pelo movimento quilombola e por diversas organizações não-governamentais, porque torna o processo muito mais
burocratizado, mais lento e difícil de ser concluído.
Os quilombolas se organizaram na Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Remanescentes de Quilombos (Conaq) e, com o
apoio de outras organizações da sociedade civil, vem conquistando alguns avanços para estabelecer um marco legal mais favorável.
Algumas ações visando o reconhecimento dos territórios vêm sendo implementadas no campo governamental, como a criação da Secretaria Especial para a Promoção de Políticas de Igualdade Racial (Seppir)
260 NILTO TATTO; RAQUEL PASINATO
com área específica para tratar da questão quilombola, a Fundação Cultural Palmares, que assumiu papéis no processo de reconhecimento, e a
criação de áreas específicas em outros ministérios para tratar da pauta
quilombola.
Ocorreram também avanços na legislação, como o Decreto Federal nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, e a Instrução Normativa nº
20, de 19 de setembro de 2005, que regulamenta e cria procedimentos
para o Incra, bem como o Decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007,
que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais, entre outras.
Já no estado de São Paulo, o Decreto nº 40.723 de 1996 criou um
Grupo de Trabalho para definir conceitos e diretrizes visando a plena
aplicabilidade do artigo 68 da ADCT em solo paulista. Em 15 de setembro de 1997, foi promulgada a Lei nº 9.757, que dispõe sobre a
legitimação de posse de terras públicas estaduais aos remanescentes das
comunidades de quilombos. Em 13 de maio de 1997, o Decreto estadual nº 41.774 criou o programa de cooperação técnica e de ação conjunta
de diversas secretarias estaduais para identificação, discriminação,
legitimação e regularização fundiária das terras de quilombos em São
Paulo. Em 04 de fevereiro de 1998, o Decreto nº 42.839 regulamentou o
artigo 3º da Lei nº 9.757, de 15 de setembro de 1997, que dispõe sobre
a legitimação de posse de terras públicas estaduais aos remanescentes das
comunidades quilombolas, a partir de dados histórico-sociais, escritos e/
ou orais, por meio de Relatório Técnico-Científico (RTC), a ser elaborado pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp).
Mas, apesar dos avanços no campo da organização dos quilombolas
e do marco legal, eles são insuficientes para garantir de fato os direitos
assegurados na Constituição Federal, na Convenção n. 169 da OIT e no
Decreto nº 4.887/2003. Falta definir o cumprimento das leis como prioridade política e consequentemente alocar os recursos necessários para
levar a cabo o direito fundamental que é a posse de seus territórios.
Além de o governo não avançar no processo de reconhecimento
das comunidades quilombolas e de seus territórios, outros problemas e
dificuldades vêm preocupando as comunidades, como a ausência de
políticas públicas que promovam alternativas econômicas compatíveis
com a diversidade cultural e ambiental capazes de proporcionar o desenvolvimento sustentável das comunidades e de seus territórios.
O território é uma condição essencial porque define o grupo humano que o ocupa e justifica sua localização em determinado espaço.
Portanto, a terra, o terreiro, não significam apenas uma dimensão
física, mas antes de tudo é um espaço comum, ancestral, de todos
que têm o registro da história, da experiência pessoal e coletiva do
seu povo, enfim, uma instância do trabalho concreto e das vivencias
do passado e do presente (ANJOS, 2006, p. 49).
Como bem definiu Rafael dos Anjos em seus estudos, para estas
comunidades a terra é muito importante e, ao longo dos anos, elas se organizaram e travaram uma luta que resiste até hoje em busca do reconhecimento e da titulação destas terras.
No Vale do Ribeira, esta organização político-social teve início na década de 1980, com o trabalho de base realizado pela Comissão da Pastoral da
Terra (CPT). Nos anos 1990, foi criada a Equipe de Articulação e Assessoria as
Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), formada por lideranças
das comunidades quilombolas do Vale e por apoiadores. Iniciava-se, assim, o
processo de discussão e organização dos quilombolas do Vale do Ribeira.
Também nasceu nos anos 1980 o Movimento dos Ameaçados por
Barragens (Moab), composto por integrantes da Igreja Católica,
ambientalistas, sindicatos urbanos e rurais, lideranças das comunidades
rurais e, especialmente, por representantes das comunidades quilombolas.
O movimento faz parte até hoje do cenário político-social das comunidades quilombolas, indígenas e caiçaras locais no enfrentamento dos projetos de barragens (Hidrelétrica de Tijuco Alto, Funil, Batatal e Itaóca) no
rio Ribeira de Iguape.
Tais barragens ameaçam diretamente a sobrevivência das comunidades quilombolas, seja pela ameaça de expulsão de suas terras, com o
alagamento, seja pelos impactos sociais e ambientais previstos. Todos estes
fatores indicam uma desestruturação na forma de organização social e
cultural das comunidades, a qual é fundamental para a manutenção do
modo de vida dos remanescentes de quilombos.
Mas as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira vêm resistindo e são os principais protagonistas na luta pela conquista da terra e contra
261 4.1 O RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL COM QUILOMBOLAS NO VALE DO RIBEIRA (SP)
2 ORGANIZAÇÃO SOCIAL E POLÍCITA DOS QUILOMBOLAS
DO VALE DO RIBEIRA
a construção de barragens no rio Ribeira de Iguape. Contribuem assim
para a manutenção da sociodiversidade e ao mesmo tempo pela manutenção da rica biodiversidade de um dos mais importantes remanescentes de
floresta no Bioma da Mata Atlantica, prestando relevantes serviços para
toda a humanidade.
262 NILTO TATTO; RAQUEL PASINATO
3 OCUPAÇÃO E USO DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS
DO VALE DO RIBEIRA
Os registros de extração de ouro no rio Ribeira de Iguape datam de
meados do século XVII e mantiveram-se até o início da mineração na
região das Minas Gerais. Nos primeiros anos do século XIX, a atividade
entrou em decadência e muitos dos fazendeiros e exploradores de ouro da
região abandonaram suas terras, muitas já habitadas por ex-escravos. Estes
ex-escravos formaram comunidades negras que habitam territórios às margens do rio Ribeira até os dias de hoje, entre os municípios de Iporanga e
Eldorado. As populações descendentes de escravos mantiveram seus laços
históricos e de parentesco, como é o caso das comunidades de Nhunguara,
Pilões, Maria Rosa, Sapatu, André Lopes, Pedro Cubas e Ivaporunduva
(SANTOS; TATTO, 2008).
O Itesp1 identificou 57 comunidades quilombolas localizadas no
Litoral Norte, na região de Sorocaba e na região Sul (Vale do Ribeira),
onde se concentram em maior número no estado de São Paulo, totalizando
41. Os municípios onde essa concentração é mais significativa são Itaóca e
Iporanga, localizados no Alto Vale, Eldorado, no Médio Vale, Iguape e
Cananéia, no Baixo Vale.
A realidade das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, em
relação ao reconhecimento e demarcação de seus territórios, não difere
muito da realidade nacional. De acordo com os dados oficias do Itesp, até
2008 foram reconhecidas 16 comunidades, que, somadas àquelas levantadas pela Eaacone, totalizam 59 no lado paulista do Vale. Destas, apenas
seis foram tituladas.
1
De acordo com os dados oficiais do Itesp, até 2007 foram reconhecidas no estado de
São Paulo 21 comunidades quilombolas, das quais 15 estão localizadas no Vale do Ribeira e destas, 6 foram tituladas. Outras 10 estão na fase de reconhecimento.
263 4.1 O RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL COM QUILOMBOLAS NO VALE DO RIBEIRA (SP)
Estudos antropológicos afirmam a existência de comunidades
quilombolas no Vale do Ribeira com até 300 anos, caso de Ivaporunduva
(STUCHI, 1998).
Ao olhar para estas comunidades, é impossível não observar ao mesmo
tempo o modo de vida secular e as transformações da contemporaneidade.
São comunidades que possuem fortes vínculos com o uso da terra, baseados na
centenária agricultura de corte e queima, e do uso dos recursos da Mata Atlântica para sua sobrevivência, mas que estão na era digital por meio de telecentros
comunitários e cursando a universidade.
Com as restrições ambientais da legislação da Mata Atlântica, os
quilombolas, assim como outras populações tradicionais da região, tiveram
de assimilar outras práticas de acesso aos recursos para a sobrevivência. Entre
elas, destaca-se a bananicultura. Atualmente, quando se caminha pelas comunidades, observa-se que grande parte da terra agriculturável possui plantações de
banana, que representam boa parte do sustento de muitas famílias.
Assim como a banana, o palmito juçara, conhecida e cobiçada espécie
da Mata Atlântica, representa uma importante fonte de renda para muitos
quilombolas. Atualmente, a extração desta palmeira é permitida somente em
áreas com manejo autorizado. No entanto, a exploração ainda ocorre, sobretudo por falta de alternativas de desenvolvimento e geração de renda sustentáveis
para a população do Vale do Ribeira. Esta situação acarreta diversos problemas, visto que o cortador de palmito é obrigado a trabalhar, geralmente, durante a noite, em dias de chuva e em condições bastante precárias, exaustivas e
de risco, colocando em prejuízo suas próprias atividades e funções no âmbito
familiar e no papel de pequeno produtor. Além disso, arcam com o ônus da
marginalidade e de processos de ordem administrativa, civil e penal.
Para encontrar soluções para estes e outros problemas relacionados ao
uso dos recursos dos territórios, as comunidades estão se organizando com a
ajuda de parceiros e buscando alternativas para a diversificação da produção e
o aproveitamento de outras opções de desenvolvimento comunitário. Entre
estas, destacam-se o turismo sustentável, a produção orgânica de alimentos, o
repovoamento da palmeira juçara para futuro manejo de polpa e palmito, o
resgate e valorização da roça tradicional e busca de outras oportunidades que
possam ao mesmo tempo desenvolver as comunidades e manter a biodiversidade
de seus territórios.
Outro aspecto importante, além dos serviços ambientais (biodiversidade, proteção de solos, proteção contra os raios solares, funções
hídricas e similares) oferecidos pelos territórios quilombolas em função da
cobertura florestal ainda existente, é a manutenção por parte das famílias
quilombolas de uma rica biodiversidade, com mais de 60 espécies diferentes de frutíferas, hortaliças, plantas medicinais e muitas outras sementes
tradicionais em suas roças.
4 POSSIBILIDADES DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL PARA OS QUILOMBOLAS DO VALE DO RIBEIRA
264 NILTO TATTO; RAQUEL PASINATO
4.1 Contexto Regional
A região do Vale do Ribeira está inserida no Bioma da Mata Atlântica,
um dos mais ameaçados de extinção do planeta, só perdendo para as florestas
de Madagascar, na África. Localizado em dois dos estados mais urbanizados
do País – São Paulo e Paraná –, o Vale do Ribeira se estende por 2,1 milhões
de hectares de florestas que equivalem a aproximadamente 21% dos remanescentes de Mata Atlântica existente no Brasil, transformando-o na maior área
contínua desse Bioma. Nesse conjunto de áreas preservadas, são encontradas
não apenas florestas, mas 150 mil hectares de restingas e 17 mil hectares de
manguezais (PROCHNOW, 2008, p. 144).
Em 1999, a reserva de Mata Atlântica do Sudeste, distribuída por 17
municípios do Vale do Ribeira, foi considerada pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) Patrimônio Natural da
Humanidade. Esta área abriga uma série de unidades de conservação, como:
Mosaico da Juréia, Parque Estadual da Ilha do Cardoso, Mosaico do
Jacupiranga, Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – PETAR, Parque Estadual da Campina do Encantado, Estação Ecológica dos Chauás, Parque Estadual de Intervales.
Nesse contexto regional, além da biodiversidade, há uma sociodiversidade considerável: populações tradicionais2 (quilombolas, caiçaras, e indígenas), grupos étnicos que compartilham sua identidade, história, memória
2
Populações tradicionais é como têm sido chamados aqueles povos ou grupos que, vivendo em áreas periféricas à nossa sociedade, em situação de relativo isolamento face ao
mundo ocidental, capitalista, construíram formas de se relacionar entre si e com os
seres e coisas da natureza muito diferentes das formas vigentes na nossa sociedade
(ESTERCI, 2008, p. 223).
e formas de uso e ocupação de seus territórios, além de pequenos agricultores
que praticam agricultura de subsistência. Embora rico em diversidade cultural
e em biodiversidade, o Vale apresenta baixos índices de desenvolvimento humano (IDH) e conflitos socioambientais.
Para pensar o desenvolvimento sustentável local das comunidades
quilombolas, o ISA vem desenvolvendo com elas trabalhos e projetos específicos que considerem os aspectos sociais, culturais, ambientais e econômicos
desta população e da região em que estão inseridas.
O primeiro passo foi a elaboração e publicação da Agenda
Socioambiental de Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, seguindo
os preceitos da Agenda 21, que envolveu 14 comunidades (Sapatu,
Ivaporunduva, André lopes, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, Nhunguara,
São Pedro, Galvão, Poça, Bombas, Mandira, Morro Seco, Porto Velho e
Cangume). O processo de construção centrou-se na discussão e sistematização
dos conhecimentos e percepções coletivas sobre as formas de uso e ocupação
de seus territórios, bem como no levantamento das principais necessidades e
desafios destas comunidades, listadas a seguir:
• incentivo para integração de crianças e jovens na comunidade;
• fortalecimento do artesanato;
• planejamento socioeconômico e ambiental das comunidades;
• rede de esgoto e tratamento de água;
• cursos de formação para a cidadania;
• acabar com a ameça das barragens no rio Ribeira de Iguape;
• retirada de terceiros do território;
• aumento e regularidade da frequência do atendimento médico e odontológico;
• melhoria na qualidade do serviço de saúde;
• cursos profissionalizantes para jovens;
• adequação da legislação ambiental para permitir abertura de roça;
• divulgação das coisas tradicionais da comunidade;
• manutenção das estradas existentes nas comunidades;
• atividades de geração de renda que incentivem a permanência dos jovens nas
comunidades;
• curso de informática;
• regularização fundiária/titulação.
265 4.1 O RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL COM QUILOMBOLAS NO VALE DO RIBEIRA (SP)
4.2 Como os Quilombolas Estão Construindo o Futuro de seus Territórios
A maior parte das demandas não representa necessariamente alteração no espaço físico ocupado pela comunidade. Por outro lado, o atendimento das demandas que resultam em interferência nas formas de uso da
terra pode ser negociado, como, por exemplo, a autorização para a abertura de áreas de roça. As alternativas para atender tais demandas não passam
apenas por acordos relacionados com desmatamento e queimadas, mas
também pela pesquisa e disseminação de tecnologias sociais que já existem
e possibilitem o melhor aproveitamento dos espaços.
Com este quadro de demandas, o passo seguinte é a reflexão dos
comunitários sobre o que desejam para seu território no futuro. Um território pensado na dimensão mais ampla, considerando as relações entre
indivíduos, grupo social e seu meio de referência, com um sentimento de
pertencimento dentro de um dado espaço geográfico, um espaço coletivo
que reforça as interações sociais e a identidade do grupo ou comunidade.
Como observado na Tabela 2, nos territórios das comunidades
quilombolas aproximadamente 65% de sua área é ocupada por matas nativas e 11% por vegetação em estágios primários e secundários de regeneração (capoeiras).
Tabela 2: Distribuição das Formas de Uso Existentes nas Terras
Quilombolas, em Valores Relativos
266 NILTO TATTO; RAQUEL PASINATO
Classes de uso
da terra
Roça de coivara
Bananal
Cultivos diversos
Pastagem
Vegetação rasteira
Capoeira
Mata
Mangue
Restinga
Vila/estrada
Corpos d’água
Repovoamento de
palmito/concentração de caixeta/
André
Lopes
1,22
0,37
0,05
4,41
2,97
15,31
74,45
0
0
0,51
0,72
São
Pedro
Sapatu
Bombas
Galvão
0,25
0,22
0,22
3,94
0,72
12,76
81,57
00
00
0,27
01,89
0,58
3,15
0,11
4,07
2,63
10,33
76,8
0
0
0,22
0
1,69
0
0
0,83
0,28
13,23
83,87
0
0
1,15
0,71
0,17
0,38
0,2
7,69
1,24
8,3
81,08
0
0
1,15
0,06
Ivaporunduva Mandira
1,86
3,09
0,03
4,51
1,25
12,36
76,36
1,11
6,04
0,34
0,21
0,02
0,5
0
0,04
1,33
2,51
87,11
0,8
Continua...
...Conclusão
manejo de espécies
para artesanato
Outros
Área total da
comunidade (ha)
Reserva legal
estimada 20%
(ha)
Classes de uso
da terra
Roça de coivara
Bananal
Cultivos diversos
Pastagem
Vegetação rasteira
Capoeira
Mata
Mangue
Restinga
Vila/estrada
Corpos d’água
Repovoamento de
palmito/concentração de caixeta/
manejo de espécies
para artesanato
Outros
Área total da
comunidade (ha)
Reserva legal
estimada 20%
(ha)
André
Lopes
São
Pedro
Sapatu
0,47
0
0,74
0,05
0
0,22
Bombas
0
0
Galvão
0,34
0,08
Ivaporunduva Mandira
2,17
0,14
6,22
0
3.200,16 4.688,26 3.711,62 1.200,022 2.234,34 2,754,36 2.054,65
640,03
André
Lopes
937,65
742,32
446,88
446,88
550,87
410,83
São
Pedro
Sapatu
Bombas
Galvão
0,21
0,47
0,06
7,44
3,55
15,78
72,03
0
0
0,33
0,11
0,22
0,33
0,14
2,13
0,3
3,91
92,8
0
0
0,19
0,04
0
16,22
9,12
0
12,6
11,54
49,29
0
0
1,19
0,04
0,21
0,02
1,09
4,69
0,88
5,28
87,6
0
0
0,08
0,15
0
44,7
0,15
24,15
2,4
1,7
25,71
0
0
0,44
0,06
4,23
0
1,04
61,47
20,71
11,66
0
0
0
1,69
0
1,35
0,9
0,84
36,77
6,57
29,52
20,73
0
0
0,51
0
0,13
0,02
1,5
0,12
3,09
0
0,01
0
0
0,89
0
0,0
2,71
2,81
8.100,98 3.806,23
1.620,20
761,25
Ivaporunduva Mandira
150,00 6,875,22
-(1)
724,60
941,00
30,00 1.375,05
-(1)
144,92
188,20
Nota: (1) Sem dados
Fonte: SANTOS, K. M. P.; TATTO, N. (Ed.). Agenda socioambiental de comunidades quilombolas
do Vale do Ribeira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2008.
267 4.1 O RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL COM QUILOMBOLAS NO VALE DO RIBEIRA (SP)
Classes de uso
da terra
268 NILTO TATTO; RAQUEL PASINATO
As atividades produtivas e socioculturais ocupam cerca de 24% de
seus territórios, e são basicamente agrícolas e pastoris3, voltadas para subsistência como a roça. As áreas destinadas à habitação e transporte não
superam os 2% destes territórios.
Considerando as formas existentes de uso da terra e a imensa
biodiversidade das áreas florestadas que os territórios apresentam, há diversas possibilidades para que estas populações reorganizem seus espaços
territoriais na busca de um desenvolvimento local sustentável. Por exemplo, o diálogo com políticas nacionais e regionais de recomposição florestal e o crescente debate sobre Pagamento de Serviços Ambientais (PSA)
representam opções possíveis.
Nessa perpectiva, não se pode esquecer do Código Florestal Brasileiro, que determina que todas as áreas rurais devem estabelecer suas reservas legais, mesmo em terras coletivas, como é o caso das terras quilombolas.
Onde há ocorrência de Mata Atlântica, as reservas legais devem ocupar
uma área correspondente a 20% da propriedade. Nas terras quilombolas, a
implantação da reserva legal só será efetivada quando ocorrer sua averbação
definitiva e titulação, apesar de existirem de fato, já que 65% destas áreas
mantém sua cobertura vegetal.
Há muitas questões ligadas ao planejamento territorial das comunidades quilombolas que precisam ser negociadas, A principal questão,
nestes casos, é a aplicabilidade do Código Florestal para os territórios
quilombolas, que se traduz no fato de que “o que diz a lei não condiz
com a realidade vivida”. O modo de vida da população quilombola do
Vale do Ribeira implica uma agricultura de subsistência chamada corte e
queima que também esbarra no que diz o Código Florestal a respeito do
assunto. Outras formas de uso, caso do cultivo de banana em pequena
escala, muitas vezes é feito às margens de córregos e outras áreas consideradas Áreas de Preservação Permanente (APPs)4. A legislação determina
que estas áreas precisam ser recompostas com Mata Atlântica, no entan3
4
Na Tabela 2, podemos observar que as maiores áreas ocupadas para pastagens estão nas
comunidades de Poça, Cangume e Porto Velho. Estas comunidades têm seus territórios
ainda ocupados por terceiros, que têm como atividade econômica a criação de gado.
Definição de Área de Proteção Permanente: área coberta ou não por vegetação nativa, com
a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica,
a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem estar
das populações humanas. (BRASIL. Código Florestal Brasileiro, artigo 2º, inciso II).
269 4.1 O RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL COM QUILOMBOLAS NO VALE DO RIBEIRA (SP)
to isto significa reduzir a área de cultivo e comprometer o sustento das
famílias quilombolas.
Para desenhar um futuro sustentável, estas comunidades precisam
ter capacidade de diálogo com seus parceiros. Por exemplo, ao estabelecer
as áreas de Reserva Legal (RLs), é estratégico o diálogo com o poder público e os responsáveis pelas UCs vizinhas, já que estes poderiam, por exemplo, contribuir para a implantação de corredores ecológicos, de vital
importância para a preservação da biodiversidade local.
Nesse sentido, não só as reservas legais, mas também outras legislações ambientais específicas, como as que se referem às APPs, precisam ser
especificadas e mapeadas, facilitando o entendimento com os órgãos
ambientais competentes e auxiliando no processo de titulação dos territórios, na obtenção de licenças para roças e no planejamento da reorganização e redimensionamento das áreas voltadas às atividades econômicas.
Para buscar soluções ao problema da falta de licenciamento para
roças, o ISA vem discutindo com as comunidades a introdução de sistemas alternativos de cultivo, como a agrofloresta. Trata-se de uma forma de
cultivo que mistura sementes para recompor as matas ciliares em áreas de
APP e outras para diversificar a produção agrícola voltada para o sustento
das famílias.
A recomposição florestal destas áreas está sendo pensada também
com a produção de mudas nativas em viveiros comunitários, que representam, além da recomposição, possibilidades de geração de renda com a venda das mudas para áreas de recuperação.
À medida que as comunidades se apropriam de informações sobre
as possibilidades e oportunidades relacionadas às alternativas de uso de
seus territórios e compartilham estas informações com seus pares, poderão
gerar conhecimento e tecnologias sociais que possibilitarão o equacionamento de suas demandas, no médio e longo prazos.
Há inúmeras alternativas sustentáveis para o desenvolvimento destes territórios, ricos em biodiversidade ambiental e sociocultural: desde
sistemas agroflorestais com diversificação de produtos para segurança alimentar e geração de renda até a possibilidade de estas comunidades participarem de projetos de PSA em sistemas de compensação, por exemplo.
Observando os mapas de localização dos territórios quilombolas
do Vale do Ribeira, nota-se que, nestas áreas, excetuando-se as áreas
desmatadas por terceiros (fazendeiros e outros não quilombolas), cerca
270 NILTO TATTO; RAQUEL PASINATO
de 65% do território é coberto pela Floresta Atlântica em diferentes
estágios. A biodiversidade mantida pelos quilombolas em suas terras
contribui para a conservação da Mata Atlântica formando imensos corredores ecológicos interligados com as Unidades de Conservação vizinhas.
Os territórios quilombolas apresentam as condições ideais para o
desenvolvimento de proposta-piloto de PSA. Pensando em compensação
de reserva legal, existem áreas contínuas e florestadas nos territórios que
podem contemplar reservas legais de imóveis rurais vizinhos que precisam
determinar e averbar tais reservas e não têm área ou não querem limitar
suas áreas de cultivo.
Basicamente os grandes proprietários poderiam pagar aos quilombolas para manter suas reservas legais nos territórios, desde que estejam
formando corredores. Utilizam-se assim de um serviço ambiental que
manterá a biodiversidade e proporcionará alternativa de renda aos
quilombolas pelo serviço prestado. Além do mais, as RLs podem ter manejo sustentável de palmito, de outras espécies e ecoturismo. A idéia de ter
RLs contínuas é coerente com a garantia de biodiversidade das mesmas.
Afinal, uma área isolada de mata em uma propriedade rural sem ligação
com outras matas não atingirá o objetivo de manter a biodiversidade, visto
que os ecossistemas são sistêmicos.
No entanto, estabelecer tais acordos para que isto se concretize implica diálogo entre as partess, acompanhar permanentemente as políticas
públicas voltadas aos temas de PSA, desenvolver e implantar sistemas de
monitoramento das áreas-piloto onde forem estabelecidos acordos de compensação e, particularmente, considerar a diversidade socioambiental destes territórios.
Deve-se considerar, ainda, que as comunidades quilombolas são
peças-chave dos serviços dos ecossistemas no Vale do Ribeira. E, para
que uma política de PSA seja bem- sucedida, as comunidades quilombolas
devem se envolver em todas as fases do projeto. Entendemos que projetos locais de PSA só fazem sentido se expressarem os projetos de futuro
destas comunidades, donas de fato e de direito da floresta e do estoque de
carbono de seus territórios. Tanto estas, quanto outras também tradicionais, têm o direito de realizar ou rejeitar projetos de PSA, segundo o seu
próprio entendimento e interesse, ou segundo as condições específicas
de reconhecimento dos seus direitos.
REFERÊNCIAS
ANJOS, A; CYPRIANO, A. Quilombolas: tradições e cultura da resistência. São Paulo:
Aori Comunicação, 2006.
BRASIL. Código Florestal Brasileiro, artigo 2º, inciso II. 1965
ESTERCI, N. Populações tradicionais. In: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL.
Almanaque Brasil Socioambiental, São Paulo, 2008.
PROCHNOW, M. Mata Atlântica. In: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Almanaque
Brasil Socioambiental. São Paulo, 2008.
SACHS, 2002. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamound,
2002. (Coleção Idéias Sustentáveis).
SANTOS, K. M. P.; TATTO, N. (Ed.). Agenda socioambiental de comunidades
quilombolas do Vale do Ribeira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2008.
STUCHCHI, Deborah (Coord.). Laudo antropológico: comunidades negras de
Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Sapatu, Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e
Pilões. São Paulo: Ed. do MP, 1998.
271 4.1 O RESGATE DA DÍVIDA SOCIAL COM QUILOMBOLAS NO VALE DO RIBEIRA (SP)
PASINATO, R. ; RETTL, K. Desenvolvimento local sustentável: a contribuição das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. In: Saúde nos quilombos. Imprensa Oficial,
2008. (No prelo).
4.2
PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
Devanir Garcia dos Santos
1 COMPREENDENDO A SUSTENTABILIDADE1
A conservação dos recursos hídricos, tema que preocupa o homem
há muito tempo, assume atualmente caráter prioritário e vital, dada à escassez de água observada em várias regiões do mundo e as projeções, nada
animadoras, de crescentes conflitos pelo uso da água.
Na natureza, a permanência dos recursos hídricos, em termos de regime de vazão dos córregos, ribeirões e rios, assim como da qualidade da água
que emana das sub-bacias hidrográficas, decorre de mecanismos naturais de
controle desenvolvidos ao longo de processos evolutivos da paisagem, que
constituem os chamados serviços proporcionados pelo ecossistema.
Um destes mecanismos é a estreita relação que existe entre a cobertura florestal e a água, particularmente nas regiões de cabeceiras, onde estão as nascentes e os nascedouros dos rios.
Esta condição natural de equilíbrio vem sendo constantemente alterada pelo homem por meio do desmatamento, da expansão da agricultura, da abertura de estradas, da urbanização e de vários outros processos de
transformação antrópica da paisagem, que alteram os ciclos biogeoquímicos
e o ciclo da água.
Levando em conta a população atual e as projeções de seu crescimento, não há dúvida de que os impactos ambientais destas transforma1
Baseado em apostila de Maurício Roberto Fernandes (Emater/MG), preparada para o
convênio ANA/Emater de Capacitação Técnica, 2002.
274 DEVANIR GARCIA DOS SANTOS
ções proporcionalmente maiores começam a ameaçar a sustentabilidade
dos recursos hídricos.
Pode-se dizer mesmo que, entre os grandes desafios que a humanidade enfrenta hoje, a recuperação, a conservação e o manejo sustentável dos
recursos hídricos são, sem dúvida, dos mais críticos e urgentes.
Em razão da complexidade natural dos sistemas ecológicos e do
próprio conceito de sustentabilidade, que é multidimensional por natureza, envolvendo aspectos econômicos, sociais, ambientais e culturais, o
manejo sustentável deve ser entendido como uma busca de passar das condições existentes, de contínua degradação, para condições ambientalmente
mais desejáveis, que possam ser medidas por indicadores que envolvam as
noções de integridade e de saúde da sub-bacia.
A integridade de uma sub-bacia reflete as condições decorrentes dos
processos de evolução natural do ecossistema, ou seja, é o resultado da
integração natural da sub-bacia na paisagem ao longo do processo evolutivo.
Dessa forma, fornece a base ou a referência para a comparação das mudanças ocorridas em função das mudanças causadas pela atividade humana.
Por outro lado, a saúde da sub-bacia deve ser entendida como
uma condição viável, um estado sustentável de equilíbrio dinâmico que
seja compatível com a necessidade de uso dos recursos naturais para a
produção de bens demandados pela sociedade. Uma boa condição dessa
saúde pode ser avaliada pela sua capacidade de sustentar, concomitantemente com o uso dos recursos naturais pelo homem, os seguintes atributos ou indicadores:
• perpetuação de seu funcionamento hidrológico (regime de vazão, quantidade e qualidade da água);
• potencial produtivo do solo ao longo do tempo (biogeoquímica);
• biodiversidade (mata ciliar, zonas ripárias, reservas de vegetação natural etc.).
Na realidade, esta separação é meramente didática, uma vez que os
três fatores são interdependentes.
O monitoramento da saúde da sub-bacia hidrográfica, levando em
conta estes três fatores-chave, pode fornecer indicações sistêmicas a respeito de mudanças desejáveis ou indesejáveis que estejam ocorrendo com os
recursos hídricos como consequência de práticas de manejo. E, deste ponto de vista, pode-se definir manejo de sub-bacias hidrográficas como a
estratégia de uso da terra que leva em conta a manutenção da saúde da subbacia ao longo do tempo.
275 4.2 PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
As práticas de manejo dos recursos naturais que estejam em sintonia
com esta estratégia holística ou sistêmica são práticas que concorrem para
a sustentabilidade dos recursos hídricos.
Por outro lado, identificam-se várias ações incompatíveis com esta
sustentabilidade, ações estas que podem ocorrer em diferentes escalas.
Na escala micro, ou seja, na escala da unidade de manejo da propriedade rural, a compactação do solo, a destruição da matéria orgânica do
solo e a destruição dos microorganismos do solo, para citar algumas, prejudicam a manutenção dos recursos hídricos, uma vez que degradam o
mais importante fator hidrológico desta manutenção, o processo de infiltração de água no solo.
Na escala meso, que é a própria escala da sub-bacia hidrográfica,
identificam-se outros indicadores de sustentabilidade dos recursos hídricos,
tais como o traçado das estradas e as condições da zona ripária. Um traçado de estradas que não leva em conta os valores da sub-bacia sempre constitui um foco permanente de erosão, voçorocas e assoreamento dos cursos
de água, que degradam o potencial produtivo do solo, além de reduzir a
quantidade da água e afetar a sua qualidade.
As zonas ripárias, por sua vez, que incluem as áreas permanentemente saturadas das cabeceiras e das margens dos cursos de água, ocupam
as partes mais dinâmicas da paisagem, tanto em termos hidrológicos, como
ecológicos e geomorfológicos.
Elas estão intimamente ligadas aos cursos de água e participam de
processos vitais para a manutenção da saúde da sub-bacia e, consequentemente, dos recursos hídricos, que dizem respeito à geração do escoamento
direto nas sub-bacias em decorrência das chuvas.
Para que estas áreas críticas possam exercer esta função hidrológica de
maneira eficaz, é fundamental que elas estejam adequadamente protegidas
com a vegetação que, normalmente, se desenvolve nestas áreas, chamada
de vegetação ripária, floresta beiradeira, mata ciliar, mata de galeria etc.
A mata ciliar, isolando estrategicamente o curso de água dos terrenos mais elevados da sub-bacia, onde são realizadas as práticas de manejo,
desempenha ação eficaz de filtragem superficial dos sedimentos, assim como
reduz significativamente a chegada de herbicidas e defensivos químicos
aos cursos de água. Similarmente, tem também capacidade de filtrar superficial e sub-superficialmente nutrientes que, de outra forma, poderiam
chegar aos cursos de água, alterando a qualidade da água.
276 DEVANIR GARCIA DOS SANTOS
Do ponto de vista quantitativo, a destruição da mata ciliar pode,
em médio e longo prazos, pela consequente degradação da zona ripária,
diminuir a capacidade de armazenamento de água da sub-bacia, o que
concorre para a alteração do regime de vazão dos rios. Aliado a esta função
hidrológica, já em si vitalmente importante para a manutenção dos recursos hídricos, a mata ciliar pode, também, contribuir para a melhoria do
nível de diversidade biológica ao longo da paisagem, como corredores de
fluxo gênico e para o movimento da fauna.
É importante salientar, entretanto, que o elevado impacto erosivo
da água de chuvas a partir de topos de morros ‘pelados’ e encostas sem
vegetação, com pastagens degradadas ou submetidas a plantio por métodos convencionais, tornam a mata ciliar (já escassa em nossa realidade)
incapaz de cumprir seu papel.
Numa escala macro ou regional, um indicador de sustentabilidade
dos recursos hídricos, em função do manejo ou uso dos recursos naturais,
seria, por exemplo, a própria disponibilidade natural de água, a qual pode
ser quantificada pelo balanço hídrico. Uma ação nesse sentido, é, por exemplo, a necessidade do zoneamento agroecológico, com a finalidade de disciplinar a ocupação dos espaços produtivos da paisagem de acordo com as
suas potencialidades naturais, que deve incluir a análise das disponibilidades hídricas para os vários usos.
Destaca-se assim a necessidade imperativa da busca da agricultura
sustentável e do manejo florestal sustentável, ou seja, a busca ‘do desenvolvimento rural sustentável’, que inclui, além de outros critérios, a manutenção dos recursos hídricos, que deve estar comprometida com a
manutenção da saúde da sub-bacia hidrográfica.
2 O CONCEITO DOS PAGAMENTOS POR SERVIÇOS
AMBIENTAIS 2
O pagamento pela provisão de serviços ambientais é uma política
recente e inovadora que está atraindo muita atenção tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento. A inovação envolve um afasta2
Baseado na apostila Pagamento por Serviços Ambientais (PSA): conceitos e ensinamentos
do campo, de autoria de Leslie Lipper, economista da Organização das Nações Unidas
para a Agricultura e Alimentação (FAO).
277 4.2 PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
mento das políticas ambientais de comando e controle, utilizando as forças de mercado para obter maiores resultados ambientais, e recompensando os provedores de serviços ambientais, os quais não vinham, até então,
recebendo qualquer compensação.
Conectar os Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) com desenvolvimento econômico e redução de pobreza é assunto de importância
nos países em desenvolvimento por várias razões. Os PSA podem representar uma nova fonte de apoio financeiro para objetivos políticos de desenvolvimento econômico e ambiental desses países mediante a utilização
de fundos da comunidade global em favor dos provedores de serviços
ambientais.
Programas de PSA, para fornecimento de bens ambientais globais,
podem contribuir para o desenvolvimento econômico, o crescimento do
emprego e a geração de oportunidades de renda e a diversificação das atividades nas propriedades agrícolas.
O desenvolvimento de programas para pagamento do fornecimento de serviços ambientais em âmbito local é muito importante do ponto
de vista econômico, pois, além do impacto dos pagamentos no emprego e
na renda, pode haver significativos benefícios ao desenvolvimento econômico associado ao próprio serviço ambiental. Em muitos casos, problemas
ambientais criam maiores barreiras ao desenvolvimento econômico. Por
exemplo, solos degradados resultam em redução na produtividade agrícola, prejudicam a qualidade da água, causando doenças e problemas de saúde, além de reduzirem a disponibilidade de água, em muitas partes do
mundo. Os PSA podem ser meios efetivos de lidar com estes problemas.
O conceito de externalidades é conceito-chave para entender as
motivações para os programas de PSA. A humanidade usa os recursos naturais e o meio ambiente gerando externalidades positivas ou negativas,
que impactam a sociedade atual e as futuras gerações. A premissa básica
para o pagamento por serviços ambientais é compensar os agentes econômicos que manejam o meio ambiente e os recursos naturais gerando bens
ambientais e serviços que beneficiam não somente ele mesmo, mas sobretudo a sociedade, seja a sociedade local, a sociedade regional ou mesmo a
sociedade global. Estes bens e serviços podem, também, gerar benefícios
privados, mas o objetivo principal dos programas de PSA é o fornecimento de incentivos para aqueles que geram os benefícios que vão além de seu
benefício privado. Então, quando alguém planta árvores de espécies nati-
278 DEVANIR GARCIA DOS SANTOS
vas, que podem desempenhar um importante papel na melhoria da infiltração da água no solo, ou na redução do nível de sedimentos carreados
para os cursos de água, ou, ainda, mediante este mesmo plantio promove
seqüestro de carbono, contribuindo para a redução do efeito estufa, ou
gera habitat para a vida selvagem, esse alguém, acima de tudo, é um fornecedor de serviços ambientais e, portanto, passível de compensação pela
prestação destes serviços pelos beneficiários dos mesmos.
Contudo, o conceito de pagamento por serviços ambientais é ainda
relativamente novo; apenas recentemente os governos, as agências internacionais e as pessoas têm começado a reconhecer o importante papel que os
agricultores e usuários das áreas rurais podem ter na melhoria do manejo
ambiental.
PSA são transferências financeiras de beneficiários de serviços
ambientais para os que, em virtude de práticas que conservam a natureza,
fornecem esses serviços. Os PSA podem promover a conservação por intermédio de incentivos financeiros para os fornecedores de serviços
ambientais.
Um sistema de PSA ocorre quando aqueles que se beneficiam de
algum serviço ambiental gerado por certa área realizam pagamentos para o
proprietário ou gestor da área em questão. Ou seja, o beneficiário faz uma
contrapartida visando o fluxo contínuo e a melhoria do serviço demandado. Os pagamentos podem ser vistos como uma fonte adicional de renda,
sendo uma forma de ressarcir os custos encarados pelas práticas
conservacionistas do solo que permitem o fornecimento dos serviços
ambientais. Esse modelo complementa o consagrado princípio do usuário-pagador, dando foco ao fornecimento do serviço: é o princípio do provedor-recebedor, no qual os usuários pagam e os conservacionistas recebem.
Além do caráter econômico, os sistemas de PSA contribuem na educação
(conscientização) ambiental na medida em que insere uma nova relação
entre os fornecedores dos serviços e os beneficiados, e entre esses e a natureza – real prestador do serviço.
Se os beneficiários são todos os agentes, privados ou públicos, que
são favorecidos pelos serviços ambientais oriundos de práticas que conservam a natureza, então nesta categoria encontram-se órgãos gestores como
os Comitês de Bacias Hidrográficas. Já no grupo dos fornecedores de serviços destacam-se áreas onde o uso do solo por parte dos proprietários
(como agricultores), em sua maioria, enfraquece a geração dos serviços, mas
onde uma mudança nas práticas correntes pode alterar esse quadro e assim
fortalecer a oferta desses serviços.
É de conhecimento geral que a conservação de água e solo, para ser
efetiva, deve-se apoiar no uso de diversas tecnologias (terraços, barraginhas,
adequação de estradas, melhoria das pastagens, recuperação de nascentes,
reflorestamento etc.) as quais devem ser implementadas, preferencialmente, em toda a extensão da sub-bacia hidrográfica e no maior número possível de sub-bacias de uma bacia hidrográfica.
Advoga-se sempre que os custos de implementação dessas práticas
devem ser integralmente suportados pelos produtores rurais, baseando-se
na falsa premissa de que eles são os únicos beneficiários. Na realidade, os
benefícios advindos dessas práticas ultrapassam as fronteiras das propriedades rurais e geram externalidades positivas, na forma de benefícios sociais, os quais são apropriados por todos os usuários da bacia que se encontram
à jusante da área onde foi executada a prática conservacionista.
Dessa forma, o produtor rural que executa adequadamente um programa de conservação de água e solo e com isso consegue reduzir a poluição difusa, por meio da redução da erosão, e reter e fazer infiltrar nos solos
de sua propriedade maior parcela da água de chuva, está prestando um
serviço ambiental à bacia hidrográfica, devendo, portanto, receber por isso,
observando-se o princípio do provedor-recebedor. Este princípio se baseia
no mesmo fundamento teórico de externalidades, base do conceito do usuário-pagador, que sustenta a cobrança pelo uso da água; no caso do provedor-recebedor, gerando externalidades positivas, e, no do usuário-pagador,
externalidades negativas.
Nesse sentido, a Agência Nacional de Águas (ANA) vem desenvolvendo um programa denominado Programa Produtor de Água, com o
objetivo de criar incentivos para que os produtores rurais implementem,
no âmbito das bacias hidrográficas, práticas conservacionistas que contribuam para ampliar a oferta de água e a melhoria de sua qualidade.
Paralelamente aos estudos para implementação da cobrança pelo
uso da água no setor agrícola, a ANA vem desenvolvendo estudos relativos
à certificação do uso sustentável da água e ao estabelecimento desses incentivos. O objetivo principal é motivar a adoção de práticas conser-
279 4.2 PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
3 O PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
280 DEVANIR GARCIA DOS SANTOS
vacionistas em toda a extensão da bacia, contando para isso com a participação efetiva dos produtores rurais, únicos capazes de universalizar o uso
dessas práticas.
O Programa Produtor de Água é um programa voluntário de controle da poluição difusa rural dirigido prioritariamente a bacias hidrográficas
de importância estratégica para o País. Pagamentos serão efetuados pelos
agentes participantes aos produtores rurais que, por meio de práticas e manejos conservacionistas, venham a contribuir para o abatimento efetivo da
erosão e da sedimentação e para o aumento da infiltração de água, segundo
o conceito provedor-recebedor. Estes agentes podem ser entidades federais e
estaduais, comitês e agências de bacias, prefeituras municipais etc.
Os pagamentos serão feitos durante ou após a implantação de um
projeto específico, previamente aprovado e cobrirão total ou parcialmente
os custos da prática implantada, dependendo de sua eficácia de abatimento da poluição difusa. Para tanto, contratos serão celebrados entre os agentes financiadores e os produtores participantes.
O Programa Produtor de Água tem os seguintes objetivos:
• reduzir os níveis de poluição difusa rural em bacias hidrográficas estratégicas para o País, especialmente aqueles decorrentes dos processos de
sedimentação e eutrofização;
• difundir o conceito de manejo integrado do solo e da água em bacia
hidrográficas, por meio do treinamento e do incentivo à implantação de
práticas e manejos conservacionistas, comprovadamente eficazes contra
a poluição difusa rural;
• garantir a sustentabilidade socioeconômica e ambiental dos manejos e
práticas implantadas, por meio de incentivos financeiros aos agentes selecionados.
O Programa é flexível no que diz respeito ao tipo de prática ou manejo
conservacionista a ser implantado (ou já em uso) pelo participante. Entretanto, eles devem obedecer a alguns critérios básicos no que diz respeito à relação
benefício/custo e à eficácia de abatimento da erosão. Para tanto, parâmetros
básicos largamente usados na literatura técnica são empregados na análise das
performances das diferentes práticas e manejos conservacionistas.
A certificação do abatimento efetivo da erosão na propriedade é
pré-requisito para o pagamento do programa. Para tanto, o titular do empreendimento aprovado deverá, nas épocas estipuladas no contrato, solicitar a autorização para iniciar o processo de certificação.
281 4.2 PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
O Programa, ainda que possa gerar, adicionalmente, algum benefício
individual, tem como principal objetivo a execução de ações que alteram,
de modo considerado benéfico à coletividade, a qualidade, a quantidade e
o regime de vazão das bacias hidrográficas.
Tem foco na redução da erosão, por meio da execução de obras de
conservação de solo (terraceamento, barraginhas e outros), readequação
das estradas vicinais, construção de fossas sépticas nas propriedades rurais,
que são práticas voltadas para a redução da poluição difusa e melhoria da
infiltração de água no solo. Estas ações influenciam diretamente no aumento e permanência das vazões dos rios e melhoria de sua qualidade.
Também é prevista a recuperação das áreas de Reserva Legal (RL) e
de Proteção Permanentes, as APP’s (recuperação das matas ciliares e revegetação dos topos de morro) e o incentivo à manutenção das áreas hoje
vegetadas. A re-vegetação de áreas resulta em ganhos para a comunidade
da bacia hidrográfica, apesar de serem executadas em áreas particulares.
Trata-se de um programa de interesse da coletividade. Para que
tenha sucesso, depende de uma adesão maciça dos produtores rurais da
região, razão pela qual o projeto prevê o pagamento de incentivos financeiros a todos aqueles agentes que, voluntariamente, aderirem ao programa, conservando suas matas, liberando áreas para o plantio de novas
florestas, conservando adequadamente seu solo e contribuindo para a
implementação e manutenção das ações previstas no projeto.
A tarefa de conservação de água e solo nas bacias hidrográficas é
uma atividade que, além de ser executada na propriedade particular, depende grandemente da participação dos proprietários rurais, e como nem
sempre há uma percepção de que os ganhos com esta prática extrapolam as
fronteiras das propriedades rurais, gerando externalidades positivas na forma de benefícios sociais, ela acaba por não ser realizada; de um lado, por
que os produtores rurais não estão dispostos ou não têm, na maioria das
vezes, renda suficiente para suportá-la sozinho, e, de outro, porque, pela
falta de percepção dos beneficiários, não existe disposição para investir
recursos públicos nestas áreas.
O Programa inova, ao sair da vala comum do repasse de recursos
para a execução de ações ou obras em propriedades públicas ou particulares de interesse público, e inaugura uma nova era na qual os pagamentos
são feitos pelos serviços ambientais prestados por agentes (públicos ou
privados), serviços esses tecnicamente avaliados e valorados à luz de um
manual operativo que define, antecipadamente, as regras para ingresso e
participação no projeto.
282 DEVANIR GARCIA DOS SANTOS
4 A EXPERIÊNCIA DOS PROJETOS-PILOTO
O Programa Produtor de Água foi idealizado pela ANA no ano de
2001 e modificado em 2005, quando foi ampliado seu escopo, passando a
considerar também o pagamento de incentivos para as práticas vegetativas.
Uma das dificuldades na sua implementação sempre foi a identificação de fontes de recursos financeiros capazes de garantir o efetivo pagamento dos incentivos ao longo do período de maturação do projeto, prazo
mínimo de cinco anos.
Com o início da cobrança pelo uso da água nas bacias hidrográficas
do Paraíba do Sul e Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), entre São Paulo e
Minas Gerais, vislumbrou-se a possibilidade de utilização de parte desses
recursos no pagamento dos incentivos e iniciou-se um trabalho junto aos
comitês das duas bacias. Esse trabalho culminou com a decisão conjunta
dos Comitês do PCJ de alocar recursos com esse objetivo.
Isso permitiu iniciar a primeira experiência prática do programa no
ano de 2006. Diversos parceiros uniram-se à ANA na gestão do projeto: a
Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo (SMA), a Coordenadoria de
Assistência Técnica Integral (Cati), a ONG The Nature Conservancy
(TNC), a Prefeitura Municipal de Extrema e a Agência de Bacia PCJ.
Cada instituição tinha uma proposta de atuação num segmento específico, segundo programas por elas desenvolvidos, e, num trabalho conjunto,
foi possível definir previamente as atribuições de cada participante.
A proposta da experiência piloto foi então elaborada sob a coordenação da ANA, e materializou-se no Projeto: Difusão e Experimentação
de um Sistema de Pagamentos por Serviços Ambientais para Restauração
da Saúde Ecossistêmica de Micro-bacias Hidrográficas dos Mananciais da
Sub-Bacia do Cantareira.
O projeto prevê que a remuneração dos produtores rurais pelos serviços ambientais seja feita com recursos da cobrança pelo uso da água nas
sub-bacias do Moinho e Cancã e com recursos do orçamento da Prefeitura
Municipal de Extrema, na sub-bacia das Posses.
Além da redução da erosão e do aumento da infiltração, também
está previsto no projeto a construção de fossas sépticas, recuperação das
5 O PROJETO CONSERVADOR DAS ÁGUAS
O município de Extrema está localizado no Espigão Sul da Serra da
Mantiqueira, que em tupi-guarani significa “local onde nasce as águas”,
denominação essa decorrente da ocorrência de inúmeras nascentes na região. Está situado no extremo sul de Minas Gerais, foi criado em 1901,
tem uma população de aproximadamente 25 mil habitantes e ocupa uma
área de 24.370 hectares.
As águas que nascem nessa região constituem um dos principais
mananciais de abastecimento do Sistema Cantareira, construído com o
283 4.2 PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
APP’s (matas ciliares e topos de morro) e o incentivo à manutenção das
áreas hoje vegetadas, as quais, a partir da construção de barragens na região, passaram a ser ameaçadas pela pressão imobiliária.
As micro-bacias selecionadas para a realização da experiência piloto
situam-se na região definida pelo Plano de Recursos Hídricos das bacias
do PCJ como áreas prioritárias para a produção de água. Integram o Sistema Cantareira, construído para possibilitar o abastecimento de uma população de nove milhões de habitantes da região metropolitana de São
Paulo. Apesar da importância estratégica do Sistema Cantareira, sua área
de contribuição está bastante degradada, e tem hoje apenas um terço de
suas áreas de proteção permanente florestadas.
A área do projeto engloba 4.000 hectares nas cidades de Extrema,
Joanópolis e Nazaré Paulista. Até a sua conclusão, serão plantadas 300 mil
mudas de árvores nativas e cercados 1.000 hectares de áreas de preservação
permanente ou de florestas existentes. Serão implementadas práticas
conservacionistas em 1.500 hectares, com a construção de 1.200 bacias de
infiltração (barraginhas) para captação e infiltração de água, além da execução de práticas de readequação de estradas e educação ambiental.
O Programa, já na concepção do primeiro projeto piloto, demonstrou ser bastante atrativo, ao agregar diversos parceiros, o que alavancou
significativos recursos para a execução das ações. No orçamento do projeto, para cada R$1,00 investido pelo Comitê, obteve-se uma participação
de outras entidades no valor de R$8,00, possibilitando que, com poucos
recursos da cobrança, se possa executar muito, e sem riscos, uma vez que
os recursos do Comitê somente são aplicados quando for verificado e
quantificado o serviço ambiental.
284 DEVANIR GARCIA DOS SANTOS
objetivo de abastecer a região metropolitana de São Paulo, além de abastecer uma série de outros municípios pertencentes à bacia do rio Piracicaba.
Extrema é um dos quatro municípios mineiros que integram a bacia do PCJ, que juntos são responsáveis por 22m3/s dos 33m3/s que são
destinados ao abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo.
A preocupação do município na preservação e conservação de suas
áreas com o objetivo de proteção dessas nascentes decorre de longa data,
sendo em parte fruto da permanência no poder do mesmo grupo político
há mais de 20 anos e em parte devido à competência técnica da equipe que
constitui o Departamento Municipal de Serviços Urbanos e Meio Ambiente (DSUMA).
Isso reforça a tese de alguns autores sobre a importância da qualidade da governança local e da capacitação de lideranças municipais para
ações ambientais na obtenção de resultados positivos em relação ao meio
ambiente.
O município de Extrema vem desenvolvendo nos últimos anos uma
série de iniciativas referentes ao meio ambiente, sendo o Conservador das
Águas a iniciativa mais recente. O município já recebeu por três vezes
consecutivas o Prêmio Minas Ecologia, concedido pela parceria entre a
Associação Mineira de Defesa do Meio Ambiente e a Unicentro Newton
Paiva, na categoria Prefeitura Municipal nos anos de 2001, 2002 e 2003.
Desde os anos 1990, o município de Extrema vem articulando
com o Ministério do Meio Ambiente na busca de financiamentos que
apoiassem a elaboração de um plano de gestão dos recursos hídricos no
município.
O conceito do projeto Água é Vida, do qual o Conservador das
Águas é um desdobramento direto, nasceu em 1999, após a experiência
municipal de execução do Projeto de Execução Descentralizada (PED),
componente do Plano Nacional de Meio Ambiente (PNMA), direcionado
para o manejo de bacias hidrográficas, realizado em 1996 e 1998.
Utilizando recursos do MMA somados a recursos municipais, desenvolveu-se uma série de estudos avaliando a situação das sete sub-bacias3
da bacia hidrográfica do rio Jaguari e propondo ações com vistas à proteção do meio ambiente, em especial dos recursos hídricos.
1
Ribeirão das Posses, Córrego do Salto de Cima, Ribeirão do Juncal, Córrego das Furnas,
Córrego dos Tenentes, Córrego do Matão e Córrego dos Forjos.
285 4.2 PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
A Prefeitura desenvolveu o diagnóstico, utilizando-se de imagens
de satélite, um sistema de informações geográficas e um banco de dados
digital contendo o cadastro de todas as propriedades rurais e empreendimentos identificados. Com base nesse diagnóstico, foi possível, ainda no
âmbito do projeto Água é Vida, realizar melhorias nas estradas rurais com
a construção de sistemas de drenagem e captação de água e iniciar o monitoramento quali-quantitativo dos principais cursos de água do município.
Este trabalho, associado com a ativa participação dos representantes municipais no PCJ e a interação com a equipe técnica da ANA que estava
desenvolvendo estudos com vistas à implementação do Programa Produtor de Água, constituíram a base do novo projeto.
A partir daí, numa ação inédita, a Prefeitura Municipal de Extrema
desenvolveu o projeto Conservador das Águas, que previa, entre outras
ações, a utilização de recursos municipais no pagamento de incentivos aos
produtores rurais que se dispusessem a fazer uma adequação ambiental de
suas propriedades.
Apesar de baseado nos mesmos conceitos do Programa Produtor de
Água, o projeto Conservador das Águas tem peculiaridades próprias,
notadamente na forma de remuneração dos prestadores de serviços
ambientais. Ele considera a adequação ambiental da propriedade e, em
função disso, remunera a propriedade como um todo. Já o Programa Produtor de Água avalia e remunera a área que comprovadamente fornece os
serviços ambientais.
O projeto Conservador das Águas teve seu início oficial com a promulgação da Lei Municipal n. 2.100, de 21 de dezembro de 2005, que cria
o projeto e se torna a primeira lei municipal no Brasil a regulamentar o
PSA relacionados com a água.
A grande novidade da Lei é o seu artigo 2º, que autoriza o Executivo a prestar apoio financeiro aos proprietários rurais que aderirem ao Projeto Conservador das Águas mediante cumprimento das metas estabelecidas.
Este apoio será dado a partir do início da implantação das ações e se estenderá por um período mínimo de quatro anos.
A Lei definiu também o valor de referência a ser pago aos produtores rurais que aderirem ao projeto, o qual foi fixado em 100 (cem) Unidades Fiscais de Extrema (Ufex), equivalente em 2009 a R$169,00 por hectare/
ano, e que as despesas de execução da Lei correrão com verbas próprias
consignadas no orçamento municipal.
286 DEVANIR GARCIA DOS SANTOS
Ela também autorizou o município a firmar convênios com entidades governamentais e da sociedade civil possibilitando tanto apoio
técnico, como financeiro ao projeto, o que facilitou em muito a construção de parcerias.
Os principais objetivos do projeto são:
aumentar
a cobertura vegetal nas sub-bacias hidrográficas e implan•
tar micro-corredores ecológicos;
• reduzir os níveis de poluição difusa rural decorrentes dos processos
de sedimentação e eutrofização e de falta de saneamento ambiental;
• difundir o conceito de manejo integrado de vegetação, solo e da
água na bacia hidrográfica do Rio Jaguari;
• garantir a sustentabilidade socioeconômica e ambiental dos manejos e práticas implantadas, por meio de incentivos financeiros aos
proprietários rurais.
A base conceitual do projeto é a mesma do Programa produtor
de Água, ou seja:
• voluntário, baseado no cumprimento de metas;
• flexibilidade no que diz respeito a práticas e manejos propostos;
• pagamentos baseados no cumprimento de metas pré-estabelecidas;
• Os pagamentos serão feitos durante e após a implantação do projeto.
O Poder Executivo Municipal promulgou em abril de 2006 o
Decreto n. 1.703, que regulamentou a Lei Municipal n. 2.100/2005,
estabelecendo que o apoio financeiro aos proprietários rurais que aderirem ao Projeto Conservador das Águas se dará quando os mesmos
cumprirem as seguintes metas:
• Meta 1: adoção de práticas conservacionistas de solo, com finalidade de abatimento efetivo da erosão e da sedimentação;
• Meta 2: implantação de sistema de saneamento ambiental rural;
• Meta 3: implantação e manutenção de APP’s;
• Meta 4: implantação por meio de averbação em cartório da Reserva
Legal.
Como o município de Extrema tem um grande número de chácaras de veraneio e sítios de lazer, o Decreto também estabeleceu que o
produtor rural, potencial beneficiário do Projeto, deve: a) ter domicílio na propriedade rural ou estar inserido na sub-bacia hidrográfica
trabalhada no projeto; b) ter propriedade com área igual ou superior a
dois hectares; c) desenvolver atividade agrícola com finalidade econô-
mica na propriedade rural; e d) que o uso da água na propriedade rural
esteja regularizado.
O projeto é executado conforme determina a Lei Municipal n.
2.100/2005 e seus regulamentos – Decretos n. 1.703/2006 e n. 1.801/
2006 – e é implantado por sub-bacias. Nos critérios de escolha, foi estabelecido que o início dar-se-ia pela sub-bacia com menor cobertura vegetal, que, no caso, foi a sub-bacia das Posses, que possui 1.200 ha.
Segundo o que estabelecem os decretos, o projeto individual de
cada propriedade tem início com o levantamento plani-altimétrico e a
elaboração da planta digital do imóvel rural, indicando a situação atual e
a situação futura projetada para o imóvel.
O DSUMA elaborou o projeto técnico de cada propriedade, definindo as ações a serem implementadas e as metas a serem atingidas em função
das características da propriedade. Com base nesse projeto técnico, foi celebrado um termo de compromisso entre o proprietário e o município de
Extrema com o objetivo de execução das ações e cumprimento das metas.
Os decretos também determinam que o Conselho Municipal de
Desenvolvimento Ambiental (Codema) deverá analisar e deliberar sobre os projetos técnicos a serem implantados nas propriedades.
Os pagamentos serão realizados mensalmente, em 12 parcelas
iguais, após o relatório expedido pelo DSUMA atestando o cumprimento das metas. O não cumprimento das metas acarretará a interrupção do apoio financeiro.
A sub-bacia hidrográfica do ribeirão das Posses, com relação ao
critério cobertura vegetal, é a mais impactada no município e foi por
este motivo escolhida para iniciar o projeto.
Além desse critério, buscando-se evitar questionamentos em relação a impessoalidade na aplicação do Projeto, estabeleceu-se que, dentro
da sub-bacia selecionada, as ações seriam implementadas seguindo a ordem das propriedades de montante para jusante ao longo do curso d’água.
Foram cadastradas e mapeadas 120 propriedades rurais na subbacia das Posses, cuja área total é de 1.202 hectares. Essas propriedades
rurais guardam suas particularidades, no entanto a atividade predominante é a pecuária leiteira de baixa tecnificação.
287 4.2 PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
5.1 Metodologia
Previamente à implementação no campo, os técnicos do município4 empreenderam um série de reuniões com os representantes dos produtores rurais da sub-bacia das Posses e com os primeiros beneficiários do
Projeto para as devidas explicações sobre o projeto, bem como buscar a
adesão para sua implementação.
Paralelamente a esse processo, iniciaram-se os entendimentos para o
estabelecimento de parcerias que pudessem apoiar as ações de campo, uma vez
que estava claro que os recursos para pagamento dos serviços ambientais teriam sua origem no orçamento municipal.
O caráter inovador do projeto, baseado no PSA, atraiu diversos parceiros: no âmbito federal, a ANA, que já tinha em curso o Programa Produtor de
Água; em nível estadual, o Instituto Estadual de Florestas (IEF-MG); em nível
de bacia, o Comitê PCJ Federal, e, da sociedade civil, as ONG’s focadas em
conservação da biodiversidade, a TNC e a SOS-Mata Atlântica. Ficou assim
definido o papel das diversas entidades parceiras conforme o Quadro 1.
Quadro 1: Papel das Entidades Parceiras
288 DEVANIR GARCIA DOS SANTOS
- Apoio técnico
- Monitoramento Água
Agência Nacional de Águas (ANA) - Conservação de Solo
Prefeitura Municipal de Extrema
- Pagamento dos Serviços Ambientais- Assistência
técnica e extensão rural
- Mapeamento das Propriedades- Gerenciamento
do Projeto
IEF-MG (Pró-Mata)
- Insumos (cercas, adubos, calcáreo herbicidas)
- Apoio ao processo de comando e controle
- Averbação da reserva legal das propriedades
- Financiamento das ações de Plantio, manutenção e
cercamento das áreas (mão-de-obra e alguns
insumos)
TNC
- Monitoramento Biodiversidade e Comunidade
SOS Mata Atlântica
- Fornecimento de mudas
Comitê PCJ
- Apoio às ações de conservação de solo
Fonte: dados elaborados pelo autor.
4
Gestor ambiental do município Paulo Henrique Pereira e o agrônomo Mário Barbosa
289 4.2 PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
A validade do Termo de Compromisso é de quatro anos, e nele o produtor rural se compromete a manter as ações executadas em sua propriedade e
seguir criteriosamente as instruções contidas no Projeto Técnico, mantendo
e executando todas as fases corretamente e protegendo a área contra fogo, de
animais e de terceiros, fazer o controle de pragas, mantendo os sistemas de saneamento rural e de controle da erosão. O proprietário rural declara também o
conhecimento das leis e normas que regulam a Política Florestal e de proteção da
biodiversidade e assume compromisso de acatá-las fielmente.
Caso o produtor rural não tenha suas metas de manutenção previstas
no Termo de Compromisso aprovadas no Relatório Técnico Mensal emitido pelo engenheiro agrônomo do DSUMA até o último dia do mês, ele não
recebe o incentivo.
Os trabalhos de implantação do projeto se iniciaram pela propriedade n. 01, no final do ano de 2006, e o exemplo dado por essa propriedade
estimulou diversos outros proprietários a aderir ao projeto no ano de 2007,
tendo a prefeitura iniciado o trabalho de construção de cercas no entorno
das APP’s e o plantio dessas áreas.
No final de 2008, quase todo o trabalho de construção de cercas e
plantio das APP’s de cabeceira da bacia estavam concluídos. O pagamento
aos produtores rurais começou a ser realizado em 10 de abril de 2007.
Por meio de Contrato de Repasse celebrado via Caixa Econômica
Federal (CEF), a Agência Nacional de Águas repassou recursos financeiros
para a realização dos trabalhos de conservação de água e solo relacionados
com as práticas mecânicas. A Prefeitura Municipal de Extrema celebrou convênio com a Universidade Federal de Lavras (UFLA) para apoio técnico à
execução dessas ações.
As práticas de conservação de solo já foram iniciadas e foram executadas melhorias nas estradas (reconstrução dos taludes, leitos, cascalhamento)
e construção de um sistema de drenagem e captação de água ao longo das
estradas, com a construção de bacias de infiltração (barraginhas).
A ANA instalou sete estações, sendo duas fluviométricas e cinco
pluviométricas, na área do projeto, com vistas ao monitoramento, bem como
alocou recursos para que a Agência de Bacia do PCJ possa contratar uma
equipe técnica específica para o monitoramento das ações.
Em 11 de fevereiro de 2009, foi publicada a Lei n. 2.482, que institui
o Fundo Municipal para Pagamentos por Serviços Ambientais, parte da estratégia pensada pelos parceiros com vistas a viabilizar a continuidade dos
PSA, após os quatro anos previstos no Termo de Compromisso. É preciso
considerar que os proprietários rurais continuarão a prestar os serviços
ambientais, bem como a viabilizar a replicação do projeto nas demais subbacias do rio Jagarí existentes no município de Extrema.
A expectativa dos executores e parceiros do projeto Conservador das
Águas é de que a adequação ambiental das propriedades rurais e a geração de
renda aos proprietários direcionarão o desenvolvimento sustentável da região.
290 DEVANIR GARCIA DOS SANTOS
6 REPLICAÇÃO DO PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
O sucesso alcançado pelo Programa Produtor de Água tem despertado o interesse dos estados e municípios na sua replicação, e são inúmeras as
propostas de parceria apresentadas à ANA.
A partir da implementação do primeiro projeto em Extrema, atualmente a ANA, em parceria com diversas outras entidades5, está desenvolvendo o Projeto Produtores de Água no PCJ, neste caso, os pagamentos
de incentivos serão efetuados com recursos da cobrança pelo uso da água.
O edital para seleção de produtores rurais interessados em participar do
projeto está previsto para ser lançado em maio de 2009.
A Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Espírito Santo, por meio do Instituto Estadual de Meio Ambiente desenvolveu, com o
apoio da ANA, o Projeto ProdutorES de Água, o primeiro projeto estadual
a ser desenvolvido no âmbito do Programa Produtor de Água. Os primeiros
pagamentos de incentivos aos produtores rurais ocorreram no dia 19 de
março de 2009 no município capixaba de Alfredo Chagas e foram utilizados
recursos do Fundágua.
No momento, a ANA está desenvolvendo estudos para implementação
do Programa na bacia hidrográfica do Pipiripau, importante manancial de
abastecimento do Distrito Federal e conta com diversos parceiros6.
5
6
Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (SMA), Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati), The Nature Conservancy (TNC), Prefeitura Municipal
de Extrema, Comitês PCJ e a Agência de Bacia PCJ.
Agência Reguladora de Águas e Saneamento do Distrito Federal (Adasa), Companhia
de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb), ONG The Nature Conservancy
(TNC), Universidade de Brasília (UnB), Fundação Banco do Brasil, Banco do Brasil e
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-DF).
Além dos projetos em andamento, já manifestaram interesse em
desenvolver projetos no âmbito do Programa Produtor de Água o Ministério Público de Goiás, na sub-bacia do ribeirão João Leite, a Empresa Municipal de Água e Saneamento de Balneário de Camboriú (Emasa), na
bacia hidrográfica do rio Camboriú, e a Prefeitura Municipal de Itajubá
(MG), em sub-bacias do rio Sapucaí.
Finalizando, estão sendo desenvolvidos estudos com vistas à extensão do Projeto Produtor de Água no PCJ a outras sub-bacias do Sistema
Cantareira.
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291 4.2 PROGRAMA PRODUTOR DE ÁGUA
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SILVA, D. David; PRUSKI, F. Falco. Recursos hídricos e desenvolvimento sustentável da
agricultura. Brasília: MMA, 1997,
292 DEVANIR GARCIA DOS SANTOS
VEIGA NETO, Fernando César da. A construção dos mercados ambientais e suas implicações para o desenvolvimento sustentável no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. da UFFR, 2008.
4.3
OS BENEFÍCIOS PARA AS COMUNIDADES
LOCAIS EM PROJETOS DE CARBONO
FLORESTAL NO BRASIL
Guilherme Monteiro do Prado Valladares
Renata Everett do Prado Valladares
O mercado voluntário de carbono florestal é o meio de interação
entre as organizações interessadas em financiar projetos que geram como
resultado a manutenção e/ou o incremento da biomassa florestal e as organizações interessadas em desenvolver este tipo de projeto. Neste caso, as organizações interessadas em financiar os projetos buscam meios de neutralizar,
ou compensar, de forma voluntária, suas emissões de gases do efeito estufa.
Participam deste mercado uma ampla gama de atores, tanto do lado
dos financiadores como das organizações que desenvolvem e executam os
projetos. Este mercado se iniciou em âmbito mundial em meados de 2002
e vem crescendo e amadurecendo significativamente nos últimos anos.
Segundo a publicação O estado do mercado voluntário de Carbono2009, realizada pela organização norte-americana Ecosystem Marketplace,
a evolução deste mercado se deu da seguinte forma: em 2002, foram investidos 43 milhões de dólares em projetos de carbono no chamado mercado
voluntário; em 2006, foram investidos 99 milhões de dólares; em 2007,
335 milhões; e, em 2008, foram investidos 705 milhões. Esses dados demonstram a importância atual deste mercado e seu enorme potencial de
crescimento.
O Brasil é um dos países que possui maior número de projetos em
execução, e outros vários projetos em processo de estruturação. A empresa
Ambiental PV Ltda. está inserida neste processo desde o início, participando de projetos florestais de destaque no Brasil e no exterior.
No início do processo, em 2002, a preocupação maior em relação
aos projetos florestais era quantitativa, referente à mensuração das redu-
294 GUILHERME MONTEIRO DO PRADO VALADARES; RENATA EVERETT DO PRADO VALLADARES
ções ou remoções líquidas de gases do efeito estufa que um projeto iria
realmente apresentar. Foi necessário um longo período para que
metodologias de linha de base e de monitoramento fossem aprovadas pela
United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC)1,
e temas como critérios de elegibilidade, permanência e adicionalidade fossem mais bem qualificados.
Uma vez aprovadas as primeiras metodologias, em meados de 2005,
e consolidadas e revisadas por especialistas do mundo todo, o mercado se
fortaleceu significativamente. Superadas as questões puramente técnicas, o
mercado começou a evoluir para uma visão mais ampla em relação à
sustentabilidade dos projetos, demandando atenção aos benefícios para a
biodiversidade e para as comunidades locais.
Atualmente, uma grande parte dos executores e compradores de
créditos de carbono florestal no mercado voluntário buscam apoiar projetos que, além de utilizarem rigorosas metodologias de aferição das
reduções e/ou remoções de gases de efeito estufa, gerem também impactos positivos e mensuráveis para a biodiversidade e para as comunidades locais.
Nos projetos de longo prazo envolvendo a mudança de uso do solo,
como o reflorestamento e/ou o desmatamento evitado, a participação efetiva e os ganhos palpáveis para as comunidades são inseparáveis dos resultados para o clima. Considerando o prazo desses projetos, que podem durar
mais de uma geração, os benefícios positivos para a população local devem
ser concretos e contínuos para assegurar sua sustentabilidade.
Com o intuito de promover e assegurar a credibilidade dos projetos de
carbono florestal que visem ganhos comunitários foram criados alguns
padrões internacionais passíveis de serem auditados por terceiras partes
independentes e que orientam os executores de projetos no desenvolvimento das ações e no monitoramento dos resultados.
Projetos que cumprirem as exigências destes padrões poderão obter
uma certificação, oferecendo um diferencial importante perante os compradores, que assim poderão também assegurar melhor a sustentabilidade
de seu investimento em longo prazo.
1
Convenção Quadro das Nações Unidas para Mudança do Clima, fundada durante o
evento Eco92 no Rio de Janeiro, no ano 1992.
1 A CLIMATE COMMUNITY AND BIODIVERSITY
ALLIANCE (CCBA)
A Aliança para o Clima, Comunidade e Biodiversidade (CCBA) é
uma parceria entre instituições de pesquisa, empresas e organizações nãogovernamentais criada em 2003 com o intuito de formular padrões para
projetos florestais que assegurem ganhos para os três componentes de seu
nome, o clima, as comunidades e a biodiversidade.
A CCBA tem como objetivo incentivar políticas e mercados para
promover o desenvolvimento de projetos agroflorestais e de proteção e
restauração florestal. Os membros da CCBA incluem as seguintes organizações: Conservação Internacional, Rainforest Alliance, The Nature
Conservancy, Wildlife Conservation Society, CARE International, BP, GFA
Envest, Intel, SC Johnson, Sustainable Forestry Management Ltd., e
Weyerhaeuser. Para maiores informações sobre a CCBA, é possível acessar
a página da internet <http://www.climate-standards.org>.
Atualmente, em torno de 20 projetos estão sob avaliação da CCBA,
sendo um aprovado no Brasil e três tramitando. Os respectivos Documentos de Concepção de Projeto são accessíveis na página da internet. Um dos
projetos em tramitação teve seu Documento de Concepção de Projeto elaborado pela Ambiental PV, e está à disposição do público no site do CCBA.
2 A EXPERIÊNCIA E OS SERVIÇOS DA AMBIENTAL PV
A Ambiental PV é uma empresa de consultoria criada em 2001 em
Salvador (BA), especializada em projetos florestais e de energia renovável.
O objetivo principal da Ambiental PV é assessorar os clientes no desenho
e estruturação de projetos que assegurem ganhos mensuráveis financeiros,
sociais e ambientais de longo prazo.
Os clientes da PV incluem associações comunitárias, proprietários
de terras, empresas privadas de diferentes fins, organizações-não-governamentais e governos municipais, estaduais e federais.
295 4.3 OS BENEFÍCIOS PARA AS COMUNIDADES LOCAIS EM PROJETOS DE CARBONO FLORESTAL NO BRASIL
Adicionalmente, os padrões do mercado voluntário de carbono tornam os projetos abertos para o público em geral, com períodos de consultas públicas na internet, onde contribuem e participam especialistas de
todo o mundo.
296 GUILHERME MONTEIRO DO PRADO VALADARES; RENATA EVERETT DO PRADO VALLADARES
Desde 2004, a Ambiental PV vem trabalhando com projetos de carbono, tanto para o setor florestal como para o setor energético. Os serviços
incluem as seguintes atividades: definição de macroestruturas operacionais
e de gestão; coleta, compilação e tratamento de dados; identificação e desenvolvimento de metodologias de linha de base e monitoramento; elaboração
de Documentos de Apresentação de Projeto (PIN) e de Concepção de Projeto (PDD); estruturação financeira e determinação de preços dos créditos;
apoio na negociação, contratação e agregação dos créditos junto aos usuários
das terras e os compradores dos créditos.
A Ambiental PV atualmente trabalha com oito projetos de carbono
florestal que visam os padrões CCBA no Brasil. A Ambiental PV interage
com a organização certificadora durante o processo de certificação para
assegurar o pleno cumprimento das exigências e/ou solicitações de esclarecimentos e ajustes, e apoia os parceiros executores do projeto na obtenção
da aprovação final.
3 AS OPORTUNIDADES DE PROJETOS DE CARBONO
FLORESTAL PADRÃO CCBA NO BRASIL
O Brasil é um dos países que mais oferecem oportunidades para
projetos de carbono florestal no mercado voluntário. Dois dos biomas presentes no Brasil apresentam enorme potencial de emissão/remoção decorrente das florestas, sendo estes os biomas Mata Atlântica e Amazônia.
Mais de 90% do território original do bioma Mata Atlântica foi
desmatado nos últimos 400 anos, e hoje apresenta vastas áreas de baixo estoque de carbono e baixa produtividade econômica. Estas áreas são em grande
parte habitadas por famílias em situação de pobreza, que carecem de oportunidades de trabalho e renda. Milhões de hectares de áreas degradadas estão
localizados em terras ocupadas pela agricultura familiar e, em muitos casos,
ainda predomina a agricultura familiar de subsistência. Outras centenas de
milhares de hectares de áreas degradadas e em degradação da Mata Atlântica
se encontram em assentamentos da reforma agrária do Incra.
A recuperação de áreas degradadas em pequenas e médias propriedades rurais dentro do território original da Mata Atlântica, por meio da
restauração florestal com essências nativa, é um caminho de grande potencial dentro do mercado voluntário de carbono florestal que busca seguir os
padrões CCBA.
297 4.3 OS BENEFÍCIOS PARA AS COMUNIDADES LOCAIS EM PROJETOS DE CARBONO FLORESTAL NO BRASIL
Os remanescentes de floresta nativa existentes, muitos tendo alto
índice de endemismo de fauna e flora, estão sob extrema pressão, afogados
pela expansão urbana, pelos grandes projetos de infraestrutura, pela pecuária, pelo cultivo da cana-de-açúcar, Eucaliptus e Pinus, e pela subsistência
de milhões de brasileiros com a mandioca, a banana, o milho etc.
A floresta Atlântica ainda contem uma quantidade significativa de
carbono estocado em seus fragmentos remanescentes, que, somado ao valor
de biodiversidade e à relação direta com milhões de residentes rurais, torna o
potencial para projetos de desmatamento evitado CCBA de grande valor.
Todos os projetos de carbono florestal CCBA em que a Ambiental
PV está trabalhando no planejamento neste momento estão localizados no
bioma Mata Atlântica.
A Amazônia hoje é o grande sumidouro de carbono florestal do
planeta, armazenando bilhões de toneladas de carbono. Porém, essa função não recebe seu devido reconhecimento oficial, já que as políticas governamentais brasileiras em relação à Amazônia continuam sendo
desenvolvimentistas, em que a proteção das florestas ainda é, para a grande
maioria, um impedimento ao desenvolvimento. As comunidades tradicionais da Amazônia brasileira, ou seja, os povos indígenas e as comunidades
ribeirinhas e seringueiras originalmente habitavam e utilizavam a floresta
em uma escala que não resultava em tendências de desmatamento significativo. Entretanto, depois de décadas de políticas que favoreceram a conversão de florestas em pastos e lavouras e de projetos de assentamentos
rurais e infraestrutura de energia e transporte, a pressão na floresta aumentou significativamente. Hoje, esta pressão é evidente nos diversos meios
que monitoram esta região, até mesmo nos dados oficiais do governo federal do Brasil. A pressão é exercida hoje inclusive por parte de algumas
comunidades tradicionais, porém em maior escala por parte de famílias de
colonos vindos de outras partes do Brasil e do agronegócio, em busca de
terras para produzir e se auto-sustentar.
É evidente o potencial para projetos de desmatamento evitado na
Amazônia – claramente na ausência dos mesmos a tendência de desmatamento continuará grande e crescente.
O povo que habita a Amazônia necessita de trabalho e renda, e a
floresta em pé não oferece ainda nenhuma perspectiva de receita financeira
atrativa, sendo que a pecuária e a agricultura apresentam condições muito
mais interessantes.
Um primeiro projeto de carbono florestal visando o desmatamento
evitado na Amazônia já foi aprovado junto ao CCBA, e acreditamos que
muitos outros seguirão.
298 GUILHERME MONTEIRO DO PRADO VALADARES; RENATA EVERETT DO PRADO VALLADARES
4 REFLORESTAMENTO COM GANHOS EM CLIMA,
COMUNIDADE E BIODIVERSIDADE
A restauração florestal por meio do reflorestamento e da assistência à regeneração natural tem sido uma opção para muitos projetos de
recuperação de áreas degradadas em todo Brasil. Além de sequestrar carbono atmosférico, a restauração florestal promove a biodiversidade por
meio da criação de corredores ecológicos unindo áreas de habitat, melhora as características do solo, reduz a erosão, protege os corpos d’água
de sedimentação e restaura a paisagem nativa. São descritos a seguir alguns projetos de reflorestamento CCBA em planejamento no Brasil.
4.1 Caso 1: Restauração de Matas Ciliares nos Municípios de Ijui
e Ajuricaba, no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil
A ocorrência da Mata Atlântica tem como limite sul a região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, onde atualmente existem apenas
poucos fragmentos remanescentes, todos já impactados com diferentes
graus de intervenção. Nesta região, predominam a produção de grãos e,
em menos grau, a pecuária, divididos em sua grande maioria em pequenas e médias propriedades, com forte presença da agricultura familiar e
do cooperativismo.
Nesta região, o descumprimento do Código Florestal brasileiro
no que tange às áreas de preservação permanente é uma realidade histórica iniciada desde que chegaram os primeiros colonos europeus na região, primeiro os portugueses e, posteriormente, os italianos, alemães e
poloneses.
Atualmente, o poder público vem atuando de forma mais efetiva
nesta região do Rio Grande do Sul no que tange ao cumprimento do
código florestal. Como resultado, os proprietários das terras estão sendo
obrigados a regularizar situações que, na maioria das vezes, foram criadas por gerações anteriores, quando o poder público aceitava – e até
encorajava – as práticas hoje condenadas.
299 4.3 OS BENEFÍCIOS PARA AS COMUNIDADES LOCAIS EM PROJETOS DE CARBONO FLORESTAL NO BRASIL
Nesse contexto, os proprietários rurais da agricultura familiar da
região se encontram com o enorme desafio de ter que custear ações de
restauração florestal e ao mesmo tempo perder o valor produtivo de grande partes de suas terras. Ademais, esta pressão tem aumentado a desvantagem dos produtores familiares em relação ao agronegócio, com a potencial
tendência de venda de terras pela impossibilidade de arcar com os custos
de adequação ambiental.
Conhecendo bem esta situação local, a CARE Brasil buscou a parceria da Ambiental PV Ltda. para apoiar atores locais na estruturação de
uma concepção de projeto que cumpra com os critérios do CCBA. A idéia
é que estes pequenos proprietários agregadamente possam alavancar no
mercado voluntário de carbono os recursos para a restauração de suas áreas
de preservação permanente. Posteriormente, poderá ser acrescentado o
componente de serviços de proteção de microbacias e produção de água,
assim provendo uma compensação pela perda do uso econômico das áreas
restauradas.
Os parceiros locais da CARE Brasil são o Departamento de Agronomia e o viveiro florestal da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijui), bem como as prefeituras de Ijuí e
Ajuricaba.
Os benefícios esperados pela CARE Brasil são os seguintes:
• na esfera individual: os pequenos proprietários poderão adequar suas
propriedades e continuar em suas terras praticando a agricultura familiar e potencialmente ainda gerando receitas por serviços ambientais;
• no âmbito de comunidades: novo fluxo de capital estrangeiro financiando trabalhos a serem realizados por pessoas e grupos locais;
• na esfera institucional: a Unijui, como centro de ensino e pesquisa, promoverá a transferência, apropriação e disseminação de tecnologia
operacional e financeira relativa ao mercado de carbono florestal. Este centro
de ensino poderá se tornar centro de referência neste tipo de projeto e
formar profissionais que servirão como multiplicadores deste mecanismo.
Há um grande potencial de replicação deste projeto que está em
planejamento, uma vez que existem outras dezenas de municípios da região com condições extremamente similares. Cabe ressaltar que a CARE
Brasil construiu em torno deste projeto um amplo alinhamento entre o
poder público local, a promotoria pública de meio ambiente, os sindicatos
rurais e o meio acadêmico.
A combinação da capacidade operacional do parceiro Unijui, da experiência e abrangência da CARE Brasil, dos efetivos ganhos para as comunidades locais, e o amplo alinhamento institucional local faz deste projeto
um caso a ser seguido como exemplo dentro dos conceitos do CCBA.
300 GUILHERME MONTEIRO DO PRADO VALADARES; RENATA EVERETT DO PRADO VALLADARES
4.2 Caso 2: Corredor Ecológico Monte Pascoal – Pau Brasil
Este projeto de reflorestamento foi o primeiro projeto brasileiro a ser
listado pelo CCBA, e está sendo realizado em parceria entre The Nature
Conservancy, Conservação Internacional, Instituto Bioatlântica, Instituto Cidade e as organizações locais (Associação dos Nativos do Povoado de Caraíva –
ANAC, Associação Beneficente de Nova Caraíva – ASBENC e Grupo
Ambiental Naturezabela e a Cooperativa de Reflorestadores de Mata Atlântica
do Extremo Sul da Bahia – Cooplantar). Localiza-se na bacia hidrográfica do
rio Caraíva, no sul do estado da Bahia, entre os parques nacionais de Monte
Pascoal e Pau Brasil. O objetivo do projeto é criar conectividade entre estas
duas unidades de conservação.
A região é caracterizada atualmente pela presença de grandes áreas de
plantações de eucalipto e pela pecuária extensiva. Ainda existem importantes fragmentos de mata atlântica neste território entre os dois parques nacionais, porém não existe conectividade entre estes fragmentos de floresta.
O grande desafio deste projeto tem sido o engajamento dos proprietários, uma vez que poucos estão dispostos a ceder terras atualmente produtivas. Neste caso, a Ambiental PV e a TNC optaram por desenvolver
uma nova concepção de projeto, adaptando uma modalidade já empregada para projetos de carbono não-florestais, o chamado Program of Activities
(PoA). Esta abordagem permite que um conceito de projeto possa ser certificado pelo CCBA tendo áreas iniciais específicas, mas aberto a continuar engajando participantes uma vez iniciado o projeto.
Um elemento bastante positivo do projeto é a existência na região
de uma cooperativa de reflorestamento especializada em restauração florestal com espécies nativas, a Cooplantar. Este elemento assegura aos proponentes a qualidade necessária do ponto de vista silvicultural para alcançar
as taxas de crescimento preconizadas no modelo de negócio.
Este projeto possui um componente de biodiversidade muito forte,
uma vez que se localiza justamente entre dois parques nacionais dentre os
quais se encontram os maiores índices de diversidade biológica do planeta.
A Ambiental PV está trabalhando no planejamento de outros seis
projetos cujas informações técnicas e institucionais ainda não são públicas.
Mencionaremos a seguir alguns pontos de contexto a respeito destes projetos no intuito de servir como parâmetros para aqueles interessados em desenvolver este tipo de projeto, ou para potenciais investidores
deste mercado.
Dois dos projetos em que estamos trabalhando podem ser considerados muito similares, pois ambos visam especificamente a melhoria da
qualidade de habitat para espécies de primatas ameaçadas de extinção – o
mico-leão-dourado (Leontopithecos rosalia), e o muriqui-do-norte
(Brachyteles hypoxanthus). Em ambos os casos, os projetos ocorrem em
regiões contendo unidades de conservação onde os primatas estão protegidos, porém as populações existentes agora necessitam de mais área de floresta para garantir sua viabilidade comportamental e genética.
Os projetos se propõem a vender os créditos de carbono oriundos
da conversão de áreas de baixo estoque de carbono em áreas de alto estoque. Dessa forma, pretende-se viabilizar a formação de corredores entre os
remanescentes de mata atlântica existentes, bem como a redução das bordas e o aumento das zonas-núcleo destes fragmentos de floresta.
Apesar de distantes geograficamente, estes dois projetos têm outra
característica comum: a grande maioria dos proprietários de terras locais
não está interessada em ceder parte de suas áreas desmatadas para a criação
de corredores ecológicos nem em aumentar as áreas dos fragmentos de
mata atlântica que eventualmente se encontrem em suas propriedades. Ficou claro para quem se propõe a desenvolver projetos como este que o
principal ganho para as comunidades locais deverá ser o retorno financeiro direto para os proprietários de terras, seja na forma de pagamentos pelos serviços ambientais ou na forma de modelos de restauração florestal
com fins econômicos madeireiros e não-madeireiros. Juntos, estes dois
projetos visam restaurar milhares de hectares por meio do financiamento
do carbono.
Outros dois projetos em que estamos trabalhando também podem
ser agrupados para fins de análise e entendimento contextual, sendo que
ambos ocorrem em áreas de propriedade de empresas de grande porte.
Nestes casos, o engajamento não é o principal desafio, mas sim a definição
301 4.3 OS BENEFÍCIOS PARA AS COMUNIDADES LOCAIS EM PROJETOS DE CARBONO FLORESTAL NO BRASIL
4.3 Outros Casos
302 GUILHERME MONTEIRO DO PRADO VALADARES; RENATA EVERETT DO PRADO VALLADARES
clara dos benefícios para as comunidades locais. São projetos tecnicamente mais fáceis, pois muitas das capacidades operacionais já existem nas
organizações proponentes e/ou as áreas geralmente são próximas e de fácil
acesso.
Está sendo um grande desafio definir benefícios concretos para as
comunidades e os respectivos indicadores de monitoramento para estes
tipos de projeto. A resolução desta situação, quando aceita pelas organizações empresariais, pode trazer importantes ganhos, mas apresenta também incertezas e riscos. Dessa forma, aceitamos junto a nossos clientes o
desafio de ajudar a definir e construir as estratégias para que os projetos
de restauração florestal que claramente trarão benefícios para o clima e
para a biodiversidade possam também trazer ganhos para as comunidades locais.
Por fim, temos também um exemplo de projeto cujo principal proponente é uma prefeitura. Neste caso, existe um forte componente de legitimidade ao processo, ao mesmo tempo em que também existem
componentes limitantes de ordem prática e operacional. O componente
carbono neste caso vem para agregar valor a um programa de pagamento
por serviços ambientas já existente no município, focado inicialmente na
produção de água.
5 DESMATAMENTO EVITADO: OPORTUNIDADE PARA
REDD NA MATA ATLÂNTICA
Embora a Amazônia tenha sido o palco inicial para projetos Redd
no país, na visão da Ambiental PV o bioma Mata Atlântica também apresenta grande potencial para o desenvolvimento desse tipo de projeto. Com
menos de 7% de sua cobertura original remanescendo, esse bioma tem
uma característica que torna a sua conservação ainda mais desafiadora:
80% das áreas florestadas pertencem a particulares (SOS MATA ATLÂNTICA, 2009, p. 32).
Se por um lado esta situação torna mais complexa a implementação
de iniciativas de conservação, por outro lado confere interessantes oportunidades para desenvolver projetos que beneficiam as comunidades locais.
O Redd pode vir a remunerar a conservação da mata em pé, mecanismo que pode ter um impacto muito positivo, especialmente tratandose de proprietários privados de pequena escala e comunidades tradicionais.
6 RECOMENDAÇÕES E LIÇÕES APRENDIDAS
Os ganhos para as comunidades que participem dos projetos
de carbono florestal devem ser diretos, claros e compreensíveis, pois
sem uma percepção de ganho concreto não haverá engajamento local.
O monitoramento dos ganhos ao longo da vida do projeto deve ser realizado
com muito cuidado, utilizando indicadores quantitativos e qualitativos,
acompanhado de uma campanha formal de divulgação contínua destes
resultados para as comunidades e financiadores.
Os usuários, posseiros, proprietários e beneficiários das terras onde
os projetos possam vir a ocorrer devem perceber retornos financeiros (diretos ou indiretos) palpáveis para ceder em longo prazo o uso de suas terras, seja a manutenção de usos de baixo estoque de carbono como o pasto
e a agricultura, seja a tendência de conversão de áreas de alto para baixo
estoque (degradação florestal e desmatamento). Não adianta esperar que
áreas em quantidades significativas no Brasil serão cedidas por comprometimento com a ética ambiental ou mesmo com a legislação florestal brasileira, pois a experiência vem demonstrando que serão poucos os que poderão
se comprometer simplesmente por convicção ambientalista ao mesmo tempo em que o poder público não dispõe da capacidade para exercer sua
função de comando e controle. Este tipo de projeto requer interesse e comprometimento em longo prazo por parte dos participantes.
A capacidade da organização gestora em prover tecnologia e mãode-obra qualificada para o ciclo de serviços de reflorestamento é condição
fundamental para um projeto. As escalas mínimas de áreas a serem restauradas para tornar estes projetos viáveis no Brasil são de aproximadamente
500 a 700 hectares. Para assegurar que haverá um acréscimo significativo
303 4.3 OS BENEFÍCIOS PARA AS COMUNIDADES LOCAIS EM PROJETOS DE CARBONO FLORESTAL NO BRASIL
Na ausência de qualquer incentivo financeiro para conservação das
matas, a tendência histórica tem sido desmatamento para urbanização,
agricultura, criação de gado e subsistência. O Redd surge como um meio
para estancar esta perda de cobertura vegetal e biodiversidade, remunerando proprietários com pagamentos mensais em troca da proteção de suas
florestas.
A Ambiental PV trabalha hoje no desenvolvimento de projetos Redd
na Mata Atlântica da Bahia, focando nas regiões do Recôncavo Baiano e
Baixo Sul da Bahia.
304 GUILHERME MONTEIRO DO PRADO VALADARES; RENATA EVERETT DO PRADO VALLADARES
de biomassa nas áreas dos projetos, as atividades de plantio e/ou assistência à regeneração natural devem ser executadas de maneira contundente e
profissional. Devemos lembrar sempre que este tipo de projeto permite ao
comprador dos créditos divulgar a neutralização de suas emissões de gases
de efeito estufa, mesmo sendo no mercado voluntário e não compulsório.
A responsabilidade de cumprir os resultados quantitativos de crescimento
florestal previstos no planejamento do projeto é um diferencial em termos
de capacidade, que elimina muitas organizações que desejam desenvolver
este tipo de projeto.
A CCBA apresenta uma série de conceitos e critérios para assegurar
a sustentabilidade dos projetos. Estes critérios devem ser vistos pelas organizações interessadas não como itens restritivos, mas como um guia para
assegurar o sucesso em longo prazo das iniciativas e a valorização dos créditos de carbono perante este mercado internacional.
Com sua rica e ameaçada natureza e sua grande população ainda
carente, o Brasil é repleto de oportunidades para explorar o mercado voluntário de carbono florestal. Por meio de projetos bem estruturados e
executados, podemos trazer para nossas comunidades e nossos biomas os
benefícios deste novo mercado.
REFERÊNCIAS
ECOSYSTEM MARKETPLACE. O estado do mercado voluntário de carbono 2009.
SOS MATA ATLÂNTICA. Horizonte Geográfico, Ano 22, n. 122, p. 32, 2009.
UNFCCC: United Nations Framework Convention on Climate Change. Convenção
Quadro das Nações Unidas para Mudança do Clima. In: ECO92, Rio de Janeiro, 1992.
RESTAURAÇÃO FLORESTAL EM
ASSENTAMENTOS DE REFORMA
AGRÁRIA NO SUL DA BAHIA
A Costa do Cacau faz parte de um dos mais importantes conjuntos
de remanescentes de Mata Atlântica, com altos índices de diversidade biológica e endemismo. Apesar da riqueza única e de possuir uma legislação
de proteção moderna e específica, a Mata Atlântica continua sendo um
ecossistema ameaçado e devastado.
Para diminuir o impacto desta devastação no sul da Bahia, a CARE
Brasil, em parceria com famílias assentadas em projetos de reforma agrária,
desenvolve uma experiência de reflorestamento que, além de promover a
recuperação de áreas degradadas, busca fortalecer a organização comunitária
e promover a inclusão de jovens e mulheres em ações produtivas.
Além de possibilitar a adequação das propriedades à legislação
ambiental, este projeto contribui para a redução da vulnerabilidade das
famílias ante a alteração do clima, em especial quanto às alterações no
regime hídrico. E resgata, ao menos em parte, capacidade de produção de
água pelos ecossistemas do território, desta forma contribuindo para a maior
capacidade de adaptação da região às mudanças climáticas.
Este artigo apresenta alguns dos avanços desta experiência, além
dos desafios enfrentados e aprendizagens produzidas na relação entre o
reflorestamento e as ações de inclusão social.
1 O CONTEXTO DO TERRITÓRIO
A região do litoral sul da Bahia conhecida como Costa do Cacau
vivenciou historicamente dois ciclos de riqueza: a produção de açúcar em
305 4.3 OS BENEFÍCIOS PARA AS COMUNIDADES LOCAIS EM PROJETOS DE CARBONO FLORESTAL NO BRASIL
4.4
306 MARCO AURÉLIO RODRIGUES
escala empresarial no período colonial e a produção de cacau para o mercado internacional no início do século XX. Ambos os ciclos geraram no
entorno dos municípios de Ilhéus e Itabuna uma oligarquia rural poderosa, que concentrou em suas mãos o poder político e econômico, dando
origem a uma pobreza estrutural de ampla parcela da população. A região
se caracteriza não apenas por baixos índices de qualidade de vida, de alta
incidência de violência, mas em especial por baixo estoque de capital social, que gera um clima de permissividade, corrupção e ineficácia por parte
de muitas políticas públicas, sejam estatais ou não-governamentais.
Historicamente, a base econômica dos municípios da área de ação
foi a agricultura dominada pela produção e comercialização de cacau
plantado no sistema tradicional denominado de cabruca, caracterizado
pelo plantio embaixo da copa de árvores nativas de remanescentes florestais. Embora o cultivo desta fruta ainda domine hoje e continue sendo a
maior fonte de emprego da região, em função do esgotamento do modelo muitos produtores estão substituindo esta atividade por outros cultivos, como cacau intensivo, café sem sombreamento, seringa, coco e criação
extensiva de gado.
No auge do ciclo do cacau, a região chegou a ser uma das maiores
produtoras mundiais e, como resultado, a economia e estrutura sociocultural
foram influenciadas predominantemente pela produção e comercialização
da fruta. No entanto, a partir do final da década de 1980, diversos fatores,
entre eles o acesso dos trabalhadores rurais – tradicionalmente empregados em regime de quase escravidão – aos direitos previstos na nova Constituição, bem como a queda do preço pelo acesso de novas áreas produtoras
na África e Ásia ao mercado internacional, desencadeou uma grave crise na
região cacaueira.
Em decorrência desta crise, houve uma severa regressão no desenvolvimento da região e uma drástica redução de empregos diretos e indiretos. Este contexto contribuiu para o êxodo de milhares de famílias do campo
para as periferias das zonas urbanas.
Em decorrência desta herança, uma porção expressiva da população
sofre com baixíssimos níveis de renda, com a deficiência de oportunidades
de emprego e com a falta de serviços adequados de saúde e educação. Os
principais indicadores econômicos confirmam este quadro, demonstrando que a grande maioria da população, tanto rural quanto urbana, encontra-se em uma posição vulnerável.
307 4.4 RESTAURAÇÃO FLORESTAL EM ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA NO SUL DA BAHIA
Como consequência, existe uma enorme pressão antrópica sobre os
poucos remanescentes de Mata Atlântica no sul da Bahia, marcada especialmente pela substituição de lavoura tradicional de cacau no modelo cabruca
por cultivos de alto impacto ambiental, como pastagens de baixa produtividade, plantações comerciais de café, mamão e eucalipto, além da extração ilegal de madeira e palmito.
Visando contribuir para mudanças neste quadro, a CARE Brasil
vem desenvolvendo ações que busquem o desenvolvimento local, de forma integrada e sistêmica com ações variadas, em especial atendendo as
necessidades das famílias de assentamentos de reforma agrária marcadas
pela baixa escolaridade e limitada capacidade produtiva. Os assentamentos constituem no sul da Bahia uma das principais políticas públicas de
inclusão para a população afrodescendente, desta forma contribuindo para
criar uma nova classe social, os agricultores familiares afrodescendentes,
fenômeno único em nossa história.
Como marco referencial para as ações do programa iniciado em
2002, são utilizadas as cinco dimensões de promoção do desenvolvimento
local, que são:
• ampliação da inclusão social;
• fortalecimento da economia local;
• apoio à inovação na gestão pública;
• qualificação da gestão ambiental, e
• apoio a mobilização social.
Nesse marco referencial utilizado pela CARE Brasil, as ações de reflorestamento foram desenvolvidas com o desafio de, além de potencializar
a recuperação da floresta atlântica, ser utilizado como um instrumento
positivo para aumentar a organização comunitária nos assentamentos de
reforma agrária, criando oportunidades concretas de geração de emprego e
renda para os jovens adultos e grupos de mulheres.
As ações aqui resumidas cobrem o período de 2007 a 2009, com
doações captadas junto às fundações Weyerhaeuser Company Foundation
e Peierls Foundation, em complemento à doação da empresa Kraft Foods
Brasil SA, e estão situadas no âmbito da inovação das políticas públicas
quanto ao pagamento por serviços ambientais e proteção florestal, em especial quanto à nova legislação do Programa Federal de Manejo Florestal
Comunitário e Familiar (PMCF) criado mediante decreto da Presidência
da República n. 6.874, de 05 de junho de 2009.
2 AS ÁREAS REFLORESTADAS
Segundo mapa do Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal
(Lerf ) , o litoral da Bahia está inserido no bioma Mata Atlântica, com área
de 19 milhões de hectares, sendo 3,5 milhões de hectares de área de vegetação nativa e 2 milhões de hectares de áreas potenciais para a restauração
florestal.
Entre estas áreas, foram escolhidas para as ações de reflorestamento deste projeto-piloto no litoral sul da Bahia as pertencentes a três assentamentos de reforma agrária, onde foram restaurados cerca de 50
hectares de mata ciliar visando testar a viabilidade da tecnologia social
de reflorestamento comunitário usando técnicas participativas de diálogo e tomada de decisão:
1
1) Projeto de assentamento coletivista Dom Hélder Câmara: no município de Ilhéus, com 26 famílias, 158 pessoas e 240 hectares, sendo 193
hectares de cacau orgânico e certificado. A renda média familiar é de
R$180,00/mês. Foram restaurados 12 hectares de mata ciliar e está em
processo a averbação da reserva legal.
308 MARCO AURÉLIO RODRIGUES
2) Projeto de assentamento Dandara dos Palmares: no município de
Camamu, com 65 famílias, 280 pessoas, 1.400 hectares, sendo 300 hectares de cacau. A renda média familiar é de R$ 237,00/mês. Está em
processo de restauração 18 hectares de mata ciliar, como também a
averbação da reserva legal.
3) Projeto de assentamento Terra de Santa Cruz: no município de Santa
Luzia, com 25 famílias, 120 pessoas, 380 hectares, sendo 200 hectares
de cacau. A renda média familiar é de R$ 270,00/mês. Foram restaurados 20 hectares de mata ciliar e está em processo a averbação da reserva
legal.
Todas as áreas reflorestadas tiveram seus mapas georreferenciados
elaborados utilizando o sistema de informação geográfica Arc Gis. Para a
ação de reflorestamento, foi adotado o conceito de restauração definido
pela Society for Ecological Restoration Internacional (SER):
1
Pacto pela restauração da Mata Atlântica (USP/ESALQ/LCB, 2009).
3 LEGISLAÇÃO AMBIENTAL E RESTAURAÇÃO FLORESTAL
A nova lei da Mata Atlântica passou por um processo de mais de dez
anos de discussão no Congresso e em 2006 foi aprovada sua versão final,
dando início ao processo de sua regulamentação. Entretanto, a prática do
reflorestamento com os assentamentos revelou que a lei ainda apresenta
lacunas que precisam ser amplamente debatidas pelas comunidades envolvidas. Temas como averbação e utilização de reserva legal, uso da área de
preservação permanente (margem dos rios, nascentes, morros com alta
declividade) e aproveitamento de madeira morta ainda precisam de alinhamentos a serem construídos entre assentamentos e os órgãos públicos
reguladores.
No caso dos assentamentos do sul da Bahia, há um passivo ambiental
considerável pelo fato de as famílias terem sido assentadas sem estudos
prévios de viabilidade econômica, cartografia georreferenciada ou
licenciamento ambiental, em áreas desprovidas de área de reserva legal e
com mata ciliar degradada. Este quadro integra o cenário nacional, em
que, em 17 de outubro de 2003, o Ministério Público Federal, o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Incra
e o Ibama firmaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) visando o licenciamento ambiental de assentamentos de reforma agrária no país.
O TAC foi prorrogado duas vezes por falta de cumprimento das exigênicas
feitas pelo Ministério Público. A resolução Conama n. 387, de 27 de dezembro de 2006, veio tornar mais simples o licenciamento ambiental para
os assentamentos, e com o acórdão n. 2.633/2007 do Tribunal de Contas
da União (TCU), foi definido que a área de reserva legal de projetos de
assentamento deve ser averbada na inscrição de matrícula do imóvel3.
2
3
Definição utilizada no site:<http:// www.ser.org>. Acesso em: 10 jun. 2009.
publicado no Diário Oficial da União, seção 1, número 237, de 11 de dezembro de
2007, o documento n. 2.633/2007, intitulado Acordão entre TCU-Incra/MDA.
309 4.4 RESTAURAÇÃO FLORESTAL EM ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA NO SUL DA BAHIA
a ciência, a prática e a arte de assistir e manejar a recuperação da
integridade ecológica dos ecossistemas, incluindo um nível mínimo
de biodiversidade e de variabilidade na estrutura e funcionamento
dos processos ecológicos, considerando-se seus valores ecológicos,
econômicos e sociais2.
Neste acórdão do TCU de dezembro de 2007, o Incra se compromete a apoiar e executar processos de restauração florestal e averbação de
reserva legal nos assentamentos já criados, como também ficou suspensa a
criação e o repasse de recursos públicos ao Incra até o cumprimento dos
termos do acordo.
A medida impactou diretamente os assentamentos em todo o país,
que ficaram impedidos de acessar novos créditos federais e estaduais caso
não realizassem em suas áreas as ações de recuperação necessárias. Segundo
esta decisão, somente os assentamentos de reforma agrária que averbarem
a reserva legal, conservarem as matas ciliares e protegerem os cursos d’água
estarão aptos a receber créditos públicos.
Esse contexto reforça a importância da parceria entre a CARE Brasil e os assentamentos de reforma agrária na Costa do Cacau para o reflorestamento de suas áreas. Os assentamentos participantes deste projeto
estão assinando um termo de ajustamento de conduta em que se comprometem a recuperar as matas ciliares e reserva legal, como também fazer o
processo de averbação da reserva legal junto à Secretaria Estadual de Meio
Ambiente da Bahia.
310 MARCO AURÉLIO RODRIGUES
4 A REFLEXÃO PARTICIPATIVA NOS ASSENTAMENTOS
Todas as etapas da ação de reflorestamento exigiram diversas reuniões nas comunidades, nas quais os assentados tanto acessavam informações sobre a legislação ambiental quanto participavam da decisão sobre
as áreas e o procedimento para restauração da floresta. A equipe da CARE
Brasil atuou tanto na facilitação do acesso e entendimento da legislação
quanto na mediação dos processos de tomada de decisão.
Na definição das áreas, foi dada atenção especial para aquelas em
que a legislação da Mata Atlântica exige partes florestadas, sendo elas as
margens de rios, matas ciliares, a reserva legal, regiões de nascentes e
topos de morros. São áreas de preservação permanente que exigem a necessidade de manutenção da floresta como forma de garantir a qualidade
e quantidade de água, bem como proteger e conservar a biodiversidade
local.
Este processo de informação e reflexão pelas comunidades, que
foi articulado pela equipe da CARE Brasil, contribuiu para uma gradual
mudança de atitude por parte de muitos dos assentados. Em sua herança
5 A MOBILIZAÇÃO DE JOVENS E MULHERES
A participação privilegiada dos jovens e dos grupos de mulheres
no processo de restauração florestal foi importante não apenas para criar
um processo mais inclusivo, mas também para contar com estes atores
na mobilização dos demais assentados contribuindo para a construção
de entendimentos coletivos.
Além disso, os jovens manifestam que se sentem mais valorizados
tanto na medida em que os adultos vêm mudando seu discurso com
relação à floresta, reconhecendo o esforço e dedicação dos jovens no trabalho de recomposiação florestal, quanto abrindo maiores espaços de
participação do jovem no dia a dia do assentamento. A participação ativa no reflorestamento, o debate sobre meio ambiente e floresta, as novas
oportunidades de trabalho na produção de mudas e a valorização pelos
adultos têm contribuído para que menos rapazes e moças precisem buscar oportunidades de trabalho fora do assentamento.
A ação dos grupos de mulheres foi decisiva tanto na participação
ativa em diferentes etapas do reflorestamento, quanto no trabalho de
mobilização e sensibilização de seus companheiros e amigos sobre a importância da recuperação das áreas degradadas.
Os três assentamentos integrantes do projeto não têm acesso nem
a rede de água potável, nem a sistema de saneamento. Os grupos de
jovens e mulheres perceberam que, para que acorram melhorias nesses
campos, é necessário o investimento de recursos públicos. E, não havendo a adesão à execução de atividades para restauração florestal e averbação
da reserva legal, os investimentos não são acessíveis por falta de adequa-
311 4.4 RESTAURAÇÃO FLORESTAL EM ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA NO SUL DA BAHIA
cultural, estes compreendem geralmente que a mata em torno das roças
de cacau deve dar lugar a áreas produtivas, em especial pasto para o gado,
seguindo uma tradição de ausência de conhecimento ou respeito da legislação ambiental por parte dos antigos coronéis do cacau.
Para tanto, foi necessário um processo intenso de reflexão dialogada em que, além de esclarecer a parte legal, foi necessário criar um entendimento sobre os cuidados com a terra e o bem-estar socioambiental do
assentamento. Esta reflexão foi importante em especial para mobilizar os
jovens e mulheres dos assentamentos em torno das ações de restauração
florestal.
ção ambiental. Por outro lado, compreenderam que a qualidade de vida
no assentamento e a sustentabilidade de seus rios depende da preservação da mata ciliar. Estes fatores, discutidos nas reuniões mediadas pela
Care, permitiram fortalecer nestes grupos os parceiros ativos de todas as
etapas de restauração.
312 MARCO AURÉLIO RODRIGUES
6 PARCERIAS PARA A PRODUÇÃO DAS MUDAS
Para a restauração florestal, foram produzidas 50.000 mudas de
espécies nativas da Mata Atlântica em parceria tanto com os assentamentos, como com duas ONGs atuantes no território, Instituto Floresta Viva e Instituto Cabruca. A produção inicial foi de mudas de
espécies pioneiras de crescimento rápido e que têm a função de facilitar o crescimento das chamadas espécies secundárias ou não-pioneiras,
por criarem um ambiente mais favorável graças ao sombreamento. Foram produzidas 40.000 mudas mediante a parceria com o Instituto
Floresta Viva e 10.000 mudas por meio da parceria com o Instituto
Cabruca.
O desenvolvimento da parceria para a produção das mudas foi
fundamental e oportuno tanto para as instituições quanto para os cerca
de 40 agricultores familiares que receberam R$1,00 por muda produzida. Além de assistência técnica para a produção, os produtores receberam o pagamento adiantado de metade do valor, que foi utilizado como
capital de giro para garantir a produção. Na entrega das mudas, foi efetuado o pagamento do valor restante. Além de algumas espécies frutíferas, para o reflorestamento das áreas foram utilizadas cerca de 35 espécies
de nativas da Mata Atlântica, conforme o Quadro 1.
Essa experiência possibilitou melhoria de renda para assentados,
mas também propiciou descobrir o potencial de produção e venda de
mudas de espécies nativas e frutíferas na região. Como resultado, os grupos de jovens dos assentamentos têm interesse em construir viveiros de
mudas nativas para serem comercializadas.
Já para a CARE Brasil e as instituições parceiras, Instituto Cabruca
e Instituto Floresta Viva, essa experiência significou um aprendizado prático e positivo tanto na gestão de parceria com outras instituições quanto na relação de confiança e gestão partilhada que se desenvolveu com os
assentados.
NOME POPULAR
NOME CIENTÍFICO
FAMÍLIA
Aderno
Amargoso
Amescla
Amora da mata
Angelim
Bacupari
Batinga
Bicuíba vermelha
Canela de velho
Cedro
Cinzeiro
Condurú
Coração de negro
Farinha seca
Faveco
Imbira
Imbiruçu
Ingá
Inhaíba
Ipê
Jacarandá branco
Jatobá
Jenipapo da mata
Juçara
Massaranduba
Matatauba
Murta
Oiti
Olandi
Óleo comumba
Paparaíba
Pau pombo
Pau sangue
Peroba
Sucupira
Roupala sp.
Andira vermífuga
Protium SP
Brosimum sp.
Andira sp.
Rheedia macrophylla Mart.
Myrtaceae sp.
Virola SP
Allophylus sericeus
Cedrela sp.
Rinorea guianensis
Brosimum rubescens
Swartzia SP
Guapira SP
Moldenhawera sp.
Cardiopetalum calophyllum
Bombax macrophyla
Inga edulis
Eschweilera sp.
Tabebuia
Swartzia macrostachya
Hymenaea sp
Tocoyena bullata
Euterpe espiritosantensis
Manilkara elata
Schefflera morototoni
Eugenia sp.
Chrysobalanaceae sp
Symphonia globulifera
Macrolobium latifolium
Simarouba amara
Tapirira guianensis
Pterocarpus rohri
Aspidosperma sp.
Bowdichia virgilioides
Proteaceae
Fabaceae
Burseraceae
Moraceae
Fabaceae
Clusiaceae
Myrtaceae
Myristicaceae
Sapindaceae
Meliaceae
Violaceae
Moraceae
Caesalpiniaceae
Nyctaginaceae
Caesalpiniaceae
Fonte: dados elaborados pelo autor.
Bombacaceae
Mimosaceae
Lecythidaceae
Bignoniaceae
Caesalpiniaceae
Caesalpiniaceae
Rubiaceae
Arecaceae
Sapotaceae
Araliaceae
Myrtaceae
Chrysobalanaceae
Clusiaceae
Caesalpiniaceae
Simaroubaceae
Anacardiaceae
Fabaceae
Apocynaceae
Fabaceae
313 4.4 RESTAURAÇÃO FLORESTAL EM ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA NO SUL DA BAHIA
Quadro 1: Espécies Nativas Utilizadas
314 MARCO AURÉLIO RODRIGUES
7 MATERIAIS E MÉTODOS
Para a restauração florestal de algumas áreas, foi adotado o enriquecimento, adensamento e o processo de regeneração natural, pois a área já
se encontrava em estágio acelerado de regeneração natural. É importante
ressaltar que as áreas que estão sendo restauradas foram definidas de forma
participativa com as associações dos assentamentos, e os assentados são os
responsáveis pelo trabalho de preparação da área, plantio e monitoramento
das mudas. Para tanto, foi realizada uma capacitação com o tema restauração florestal e inúmeras reuniões comunitárias para a preparação dos dias
de trabalho.
Os assentados foram capacitados para atuar e participar nos diferentes estágios do trabalho de restauração, como: medição da área, avaliação detalhada das condições do local, definição de área a ser recuperada,
análise de solo, seleção de espécies a serem plantadas, balisamento e colocação de estacas na área, abertura de berços, adubação dos berços com
adubos orgânicos, plantio, definição da forma de manutenção do plantio e
replantio no caso da muda não sobreviver.
Uma ação importante foi capacitar os assentados para monitorar o
desenvolvimento da muda e, caso necessário, fazer replantio em alguns
berços. Considerando que algumas mudas não sobrevivem e que o ataque
de formigas e o fogo são comuns na região, o monitoramento bem feito é
estratégico para garantir o resultado do processo de restauração. Nesse sentido, o envolvimento e a sensibilização dos assentados têm sido decisivos,
e a experiência nos mostra que este processo de sensibilização deve ser
constante.
Outro ponto importante foi garantir a coerência com as práticas
agroecológicas dos assentamentos e das diretrizes do próprio trabalho de
extensão rural da CARE Brasil. Nesse sentido, conforme orienta Fernandes
(2009), além da aplicação de calcário para redução da acidez no solo foi
adotada a adubação orgânica no berço (2kg) de esterco bovino e fosfato
natural (0,5kg).
Para as atividades de restauração, foram dados os seguintes passos:
balizamento com 2,5m entre linhas x 2,5m entre ruas, tendo o objetivo de
fechamento mais rápido da área para impedir a ação das ervas competidoras com as mudas que estão sendo plantadas. O trabalho foi feito com a
participação de três pessoas, pois os mesmos estão trabalhando com 200
8 DIFICULDADES ENFRENTADAS E SUAS FORMAS DE
SUPERAÇÃO
Em 2008, houve uma grande dificuldade no acesso a mudas de espécies nativas na região, em virtude da implementação simultânea de diversos
projetos de restauração florestal e também do grande número de termos de
ajustamento de conduta para restauração florestal efetuados com as empresas
de papel e celulose instalados no extremo sul da Bahia. Se por um lado a
dificuldade criou um impasse inicial e até atrasos de cronograma, por outro
permitiu o estabelecimento de parcerias estratégicas entre a CARE Brasil,
o Instituto Floresta Viva e o Instituto Cabruca, instituições de interesse
comum no campo socioambiental da região. Também propiciou um maior
envolvimento dos assentados, em especial os jovens, que tiveram a oportunidade de adquirir um novo conhecimento e empreender uma ação de
geração de renda com perspectiva de novos mercados.
Outra aprendizagem foi a importância de garantir uma prática
dialógica constante e o exercício de leitura e interpretação coletiva da legisla-
315 4.4 RESTAURAÇÃO FLORESTAL EM ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA NO SUL DA BAHIA
balizas evitando que haja desperdício de material, ou seja, madeira retirada
das matas existentes. Com esse balizamento foram plantadas 1.600 mudas
por hectare em média, pois existem lugares que possuem incidências de
árvores diminuindo a quantidade a ser plantada. Além do balizamento foi
feito coroamento em torno do berço com a dimensão de 1 metro de diâmetro eliminando ervas competidoras, criando condições para o plantio
de leguminosas, feijão de porco e feijão guandu caso seja necessário.
Foram abertos berços com as medidas de 30cm x 30cm x 30cm, por
se tratar de solos compactados, garantindo dessa forma um melhor desenvolvimento das mudas plantadas. Foi aplicado calcário nos berços e na
área. A adubação no berço tem como objetivo fornecer micro e macro
nutrientes facilitando o desenvolvimento das plantas. O plantio das mudas de espécies nativas foi feito utilizando-se 50.000 mudas e o espaçamento
de 2,5m x 2,5m nas áreas definidas previamente.
O monitoramento das mudas após o plantio está sendo efetuado
até que as plantas alcancem um porte que cubra a área plantada. A cada 2
meses é feito um coroamento de 0,8m ao redor das mudas e uma roçagem
para se impedir a concorrência das ervas competidoras, contribuindo dessa forma para um bom desenvolvimento das mudas plantadas.
316 MARCO AURÉLIO RODRIGUES
ção ambiental para a construção de entendimentos junto aos assentados sobre a necessidade da ação de restauração. A baixa organização comunitária
dos assentamentos, o desconhecimento da legislação e uma série de urgências no campo da segurança alimentar, geração de renda e acesso a água potável e ao saneamento impedia que a necessidade da restauração florestal da
mata ciliar e da reserva legal e a sua averbação fossem colocadas como prioridades pelos assentamentos. Nesse sentido, a postura participativa e dialógica
de construção de entendimentos e uma metodologia que coloca a restauração florestal dentro de um contexto de desenvolvimento local foram
determinantes para a mobilização dos assentados e o estabelecimento dos
acordos que permitiram o início e continuidade da ação.
Também em função das inúmeras urgências que assolam os assentamentos, outra dificuldade era construir uma visão de investimento de longo prazo relacionada aos benefícios futuros da restauração florestal. Nesse
sentido, foi fundamental a parceria e mobilização com os jovens e mulheres, que tiveram mais facilidade de construir uma visão de futuro e de se
comprometer com a manutenção das mudas e das árvores por períodos de
tempo mais longos.
Outro obstáculo para a restauração florestal nos assentamentos é a
baixa capacidade tecnológica e logística nas comunidades, bem como a
falta de conhecimento dos assentados em relação ao tema restauração florestal. Nos assentamentos integrantes do projeto, não existem máquinas e
implementos agrícolas necessários para a restauração florestal, bem como
para as atividades agrícolas em geral. Nesse sentido, envolver os assentados
em todas as etapas metodológicas da restauração permitiu qualificar a mãode-obra local deixando um conhecimento que poderá ser aplicado em outros processos de plantio que fornecerão outros benefícios para as famílias.
Devemos ressaltar ainda os elevados custos da restauração florestal,
em razão da necessidade de investimentos significativos na produção, plantio e na manutenção das mudas. No sul da Bahia, existem atualmente
visões diferentes entre as diversas instituições loais em relação aos custos
da restauração florestal, variando as estimativas entre R$6.500,00/hectare
a R$9.000,00/hectare.
Neste projeto coordenado pela CARE Brasil em conjunto com três
assentamentos, chegamos a um custo médio de R$9.000,00 por hectare de
área restaurada. Uma das razões para este alto custo é a forma rústica como
tem sido desenvolvido o trabalho nos assentamentos, com tração animal e
9 APRENDIZAGENS E OPORTUNIDADES
• Conexão com demais temas trabalhados nos projetos de assentamento,
buscando a criação de sinergia entre os temas. Percebemos que conectar
o tema restauração florestal com os demais temas trabalhados nos assentamentos é fundamental, pois possibilita uma visão mais integrada da
propriedade.
• Desenvolvimento de um processo educativo sobre a importância da conexão existente entre floresta e qualidade e quantidade de água (proteção de nascentes e corpos d’água, recuperação de áreas de preservação
permanente). Ficou claro no processo que os assentados não faziam a
relação existente entre a necessidade de conservar as florestas de margens
de rios, nascentes e topos de morro com a qualidade e quantidade da
água disponível nas suas propriedades. Em sua maioria, essas áreas estavam degradadas e, com isso, os assentamentos passam por dificuldades
no acesso a água potável de qualidade.
• A formação dos assentados nos processos de restauração florestal. Existe
um mercado regional para a produção e venda de mudas de espécies
nativas. Para tanto é necessário a continuidade dos processos de formação dos assentados em relação ao tema. Existe um mercado crescente
para a venda das mudas, podendo com isso criar alternativas de geração
de renda em especial para os grupos mais interessados no tema, nesse
caso os jovens e mulheres dos assentamentos.
• A possibilidade de constituição de cooperativas de trabalho especializadas
em restauração florestal. A criação de uma cooperativa de serviços pode
vir a ser um instrumento de geração de renda, bem como de
profissionalização dos assentados, em especial mulheres e jovens, em relação ao tema restauração florestal. Nossa visão é a de que existe um
mercado próspero a ser ocupado, no entanto é necessária a continuidade
317 4.4 RESTAURAÇÃO FLORESTAL EM ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA NO SUL DA BAHIA
em muitos casos com trabalho manual. O modelo de trabalho adotado
nestas áreas de difícil acesso, além de complicar a realização da recuperação florestal, encarece o processo em função do aumento do tempo gasto,
bem como da locação de veículos para transporte de mudas e de
implementos agrícolas. Nesse sentido, a parceria com o investimento social privado e as parcerias com outras organizações sociais da região foram
determinantes para que os custos fossem cobertos.
de investimentos na formação dos assentados em temas como produção de
mudas, constituição de viveiros (viveiristas), técnicas de preparo das áreas,
plantio e monitoramento das mudas.
Por fim, percebemos como oportunidade o desenvolvimento de
parcerias estratégicas entre as instituições locais e os assentamentos de reforma agrária potencializando o desenvolvimento teórico e prático de temas
de suma importância para a geração de conhecimentos acerca do desenvolvimento local. Praticar as parcerias no dia a dia e fazer com que elas funcionem e cresçam proporciona melhorias sociais, ambientais e econômicas
para um conjunto de agricultores familiares da região sul da Bahia.
REFERÊNCIAS
ACORDÃO TCU-INCRA/MDA. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO; INSTITUTO DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA. Acordão TCU-INCRA/MDA.
Diário Oficial da União, seção 1, número 237 de 11/12/2007.
BROSE, M. E. Desenvolvimento Local: uma conceituação empírica. Programa de incentivo a produção docente. Ijuí, Unijuí: 2004.
CARE BRASIL. Relatórios técnicos internos. 2008. Não publicado.
CARE BRASIL. Programa PROSULBA. Relatórios técnicos internos. 2005.
318 MARCO AURÉLIO RODRIGUES
FERNANDES, Volney. Relatório técnico de consultoria para restauração florestal no assentamento Terra de Santa Cruz. Ilheús, Bahia, 2009. Não publicado.
LERF/ESALQ: Instituto BioAtlântica, 2009. Pacto pela restauração da mata atlântica:
referencial dos conceitos e ações de restauração florestal [organização, edição de texto:
Ricardo Ribeiro Rodrigues, Pedro Henrique Santin Brancalion, Ingo Isernhagen]. São
Paulo: Instituto BioAtlântica, 2009.
4.5
CARBONO SOCIAL: DA TEORIA À PRÁTICA
Divaldo Rezende
O Carbono Social é o carbono absorvido/reduzido considerando
ações que simultaneamente melhorem as condições de vida das comunidades envolvidas nos projetos de redução de emissões visando assegurar o
bem estar e a cidadania, sem degradar a base de recursos.
O conceito de Carbono Social surgiu da necessidade de garantir
que os projetos de redução e mitigação de emissões dos gases causadores
do efeito estufa pudessem realmente inserir as questões de desenvolvimento sustentável, e não somente isto, mas garantir transparência na medição
dos ganhos sociais e sustentabilidade das comunidades envolvidas nos projetos, bem como assegurar uma valorização dos serviços ambientais prestados pela comunidade. O envolvimento da comunidade mediante a
participação nos benefícios é a única garantia de sucesso de um projeto de
longo prazo, pois projetos de seqüestro de carbono possuem um horizonte
variando entre dez e trinta anos.
O conceito do Carbono Social foi desenvolvido diretamente com as
comunidades na análise de seus problemas, proporcionando alternativas
319 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
Vá em busca do povo.
Ame-o aprenda com ele.
Planeje com ele. Sirva-o
Comece com aquilo que ele sabe.
Construa com aquilo que ele tem.
(Kwame N´Krumah)
exequíveis associadas a projetos que envolvam desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas. Outra característica do conceito é que ele mantém ou aumenta as capacidades e os benefícios das comunidades sem
degradar a base de recursos sociais, ambientais etc..
A abordagem do Carbono Social vem sendo monitorada, avaliada e
aperfeiçoada nos últimos dez anos. Durante este período uma série de projetos socioambientais e de geração de renda foram definidos e desenvolvidos junto com as comunidades tentando criar um padrão de participação
nos projetos de redução de emissões que pudesse ser passível de crédito
dentro do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e no mercado
voluntário que pudesse servir de referência dentro de indicadores definidos e aceitáveis pelos padrões internacionais.
320 DIVALDO REZENDE
1 CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE
A proposta do Carbono Social começou com uma primeira interação
nas comunidades do entorno da Ilha do Bananal, no Tocantins, em 1998,
inicialmente sem este nome. O conceito de Carbono Social foi concebido
durante a execução do projeto na medida em que se definiam os indicadores. O projeto começou a ser desenvolvido como primeiro projeto de carbono no país e, diante dos resultados obtidos com as comunidades, o
Instituto Ecológica avançou na definição conceitual, formando os indicadores e construindo a metodologia.
Normalmente, os projetos de seqüestro de carbono por reflorestamento são implementados por meio da aquisição de uma área própria,
desmatada, com retirada da vegetação invasora, e as árvores são plantadas
em grandes áreas. No Projeto de Sequestro de Carbono da Ilha do Bananal e
do seu Entorno (PSCIB) o componente florestal foi feito diretamente com
as comunidades em suas propriedades. Em assentamentos de reforma agrária, foi apoiada a implantação de viveiros e depois foram implantados os
sistemas agroflorestais e a coleta de sementes. A quantidade de mudas entregues aos agricultores superou as 300.000 unidades no período 1998-2000.
A maioria dos projetos de sequestro de carbono considera que serão
colocados créditos de carbono no mercado. No caso do projeto na Ilha do
Bananal, não havia esse compromisso, pois tratava-se de um programa
piloto que recebera doações de ações de responsabilidade social corporativa
de várias empresas para o desenvolvimento de um novo conceito.
O primeiro desafio enfrentado foi como envolver os diferentes parceiros no grupo coordenador. A falta de interação e a descontinuidade dos
órgãos governamentais que eram parceiros do projeto atrasaram o
cronograma e a obtenção dos resultados. Era comum definir-se uma
metodologia e ocorrerem mudanças na direção dos órgãos públicos, o que
demandava um ajustamento. Outro desafio para o Instituto Ecológica foi
trabalhar no Tocantins, um estado novo, que não tinha a estrutura governamental formada e consolidada. Falar de sociedade civil era muito inovador
naquele momento, e a concretização do conceito de cidadania foi um desafio. A única organização forte nos assentamentos era a Igreja. A Prelazia de
Cristalândia era muito atuante e realizou-se uma parceria efetiva com o
bispo dessa cidade, que ajudou muito.
O projeto abrigava muitos componentes e exigia uma logística
especial, sobretudo no entorno da Ilha do Bananal. Na estação da chuva, por exemplo, o acesso a muitos assentamentos fica impossibilitado.
Assim, o planejamento foi baseado no conhecimento de que determinados assentamentos só têm acesso durante alguns meses do ano.
Outro desafio foi trabalhar o meio ambiente e o desenvolvimento de forma integrada. A realidade mostrava um local rico, mas
com uma comunidade pobre; então, o vetor desenvolvimento tinha
de ser trabalhado e lembrado particularmente dentro do contexto sustentável.
3 RELAÇÃO COMUNIDADE E FLORESTA
O relacionamento dos moradores dos assentamentos e dos municípios da região do entorno da Ilha do Bananal com a floresta não era harmonioso. É disseminada na região a cultura de desmatar com vistas à
produção agrícola de subsistência. Os moradores não viam a floresta como
uma parceira ou provedora de benefícios ambientais, mas como um desafio a ser vencido para a utilização da área para plantio e pastagem. O primeiro passo efetivo na implementação do projeto do Instituto Ecológica
na região consistia em mostrar para as pessoas que é possível usar os sistemas agroflorestais e ter a floresta como uma parceira e não como uma
concorrente ou um desafio a ser superado.
321 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
2 DESAFIOS ENFRENTADOS
As comunidades começaram a se organizar em associações. A geração
de renda passou a ser uma realidade, como no caso da fábrica de doces implantada em um dos assentamentos. A participação dos moradores das áreas
trabalhadas nos cursos de educação ambiental representa um parâmetro do
sucesso obtido com a implementação do projeto Carbono Social.
A partir de 2000, com o apoio da empresa de cosméticos Natura, a
componente social foi dirigida para o fortalecimento das capacidades produtivas, além de uma série de capacitações voltadas para a saúde familiar
por meio do uso dos fitoterápicos pelas mulheres. Essa etapa foi realizada
com o Pró-Vida, instituição do Governo do Tocantins ligada à Secretaria
de Saúde que trabalha com a melhoria da qualidade alimentar de comunidades rurais e grupos indígenas.
Outro resultado foi a implantação de dois centros de treinamento,
no município de Pium e no distrito de Taquaruçu, município de Palmas.
O centro de Pium foca na produção de artesanato e está sob administração
dos próprios artesãos. Antes, eles vendiam os produtos em uma pequena
feira, apenas uma vez por semana; após a implantação do centro, passaram
a expor todos os dias, chegando a triplicar sua renda, o suficiente para
arcar com as despesas da casa e formar uma associação.
322 DIVALDO REZENDE
4 COLETA DE SEMENTES
Inicialmente, os técnicos do Instituto Ecológica (IE) compravam as
sementes das redes empresariais revendedoras do produto e de outros viveiros, mas às vezes as sementes ficavam paradas por muito tempo, o que
diminuía a taxa de germinação e aumentava o custo para os viveiros.
Assim, a ideia foi voltar para as comunidades, capacitar as pessoas
que moravam próximas às áreas de cerrado ou de floresta para demarcar as
matrizes, coletar e beneficiar as sementes. As sementes selecionadas eram
levadas para o viveiro, mas algumas vezes os técnicos iam até os assentamentos e compravam diretamente dos moradores.
O Instituto Ecológica selecionou alguns produtores dos assentamentos para a coleta de sementes.
Esse procedimento propicia uma pequena renda para a comunidade, mas ela depende da coleta de cada um, podendo chegar a custear
uma cesta básica para uma família. O interesse ainda é baixo, muitas
pessoas são treinadas, mas o percentual de aproveitamento, de interesse pelo trabalho ainda é pequeno, mas aquelas que participam
demonstram uma satisfação muito grande, [explica o técnico florestal Clovis José Maria] (apud MERLIN; REZENDE; SARMENTO,
2003).
As atividades florestais começaram nos assentamentos e, depois que
assumiram um contorno maior, foram implantadas também nas cidades
do entorno, onde existe uma estrutura de viveiros bem consolidada. Depois da implantação dos viveiros, foi feita uma primeira tentativa – fracassada – da implementação de uma primeira unidade demonstrativa de 1,5
hectares, no assentamento União II, município de Caseara, em conjunto
com a associação dos assentados.
As mudas morreram, o solo era muito ácido, ocorreu uma série de
erros de implantação e nem todos os agricultores cooperavam com o mesmo interesse. Depois dessa experiência, começaram a ser definidos novos
sistemas agroflorestais nos assentamentos por uma abordagem diferenciada. Foram identificados os agricultores com interesse em agroecologia, que
receberam as mudas, os insumos e a assistência técnica.
Tiveram início, então, os primeiros sistemas agroflorestais nos lotes
dos assentados. A previsão era de instalar 8 unidades, mas em 2000 já
havia sido implantadas 15. Os sistemas agroflorestais eram de diferentes
tipos: alguns misturavam plantios anuais com plantas perenes, outros adotavam um enfoque mais medicinal e existem aqueles específicos, com plantio
nas áreas de cerrado.
5.1 Viveiros Comunitários
Diversos viveiros foram implementados. Inicialmente, pensou-se em
produzir mudas nativas, mas depois, por solicitação da comunidade, foram plantadas mudas frutíferas, como açaí e cupuaçu, bem como outras
espécies, como teca, eucalipto e neem. Esses plantios foram realizados por
meio de sistemas agroflorestais, como uma forma de enriquecimento florestal e de prevenção para os incêndios, em detrimento das técnicas mais
agressivas de monocultura.
323 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
5 IMPLANTAÇÃO DE SISTEMAS AGROFLORESTAIS
324 DIVALDO REZENDE
O primeiro viveiro foi implantado em uma área comunitária, ao lado
da sede da Associação dos Moradores do Assentamento de Caseara, planejado pela comunidade e pela associação dos assentados. A inauguração deu-se
em cinco de agosto de 1999 e simbolicamente foi plantada uma árvore de
jacarandá, com a participação de autoridades e das empresas financiadoras.
O segundo viveiro foi implantado no ano de 2000, em Cristalândia,
onde a prefeitura doou uma área que ficava perto da sede da feira agropecuária.
O viveiro ficava na cidade, e a finalidade era realizar também atividades de
educação ambiental associadas a outros eventos das escolas.
O viveiro foi implantado, com uma produção razoável, contando
com a participação dos técnicos agrícolas que trabalham no local, coordenados pela equipe do Instituto Ecológica. Infelizmente, a localização desse
viveiro não foi adequada. Surgiu uma série de problemas, como doenças
nas mudas e a dificuldade do acesso no período das chuvas. As mudas
tinham muita umidade e adoeciam constantemente. A previsão, de 60.000
mudas por ano, não chegou a ser efetivada.
Em seguida, com o apoio da empresa Natura e de outros parceiros,
implantou-se mais um viveiro, dessa vez no município de Lagoa da Confusão, para atender particularmente os assentamentos da região e da Ilha
do Bananal.
O viveiro do município de Pium, que é hoje o maior do projeto,
teve início com um grande enfoque para fitoterápicos. Ele abastece os demais viveiros, dispondo de uma casa de germinação onde são beneficiadas
as sementes e produzidas as mudas.
Um quarto viveiro foi inaugurado em Palmas, no distrito de
Taquaruçu. Foi implantado com recursos provenientes da província italiana de Bolzano, em parceria com a prefeitura de Palmas e com o projeto
Amigos do Meio Ambiente (AMA).
6 CRIAÇÃO DO CENTRO DE PESQUISAS CANGUÇU
O Centro de Pesquisas Canguçu foi inaugurado no dia 05 de agosto
de 1999. O centro está localizado em uma mancha de floresta alagável ao
norte da Ilha do Bananal no município de Pium. A área, de 65 hectares,
fica entre o Parque Nacional do Araguaia e o Parque Estadual do Cantão e
foi doada por um fazendeiro da região, e, com a empresa AES Barry, do
País de Gales, foram obtidos os recursos para a construção.
As linhas de pesquisa envolvem: Carbono Social; avaliação dos ganhos sociais em projetos de carbono social; manejo sustentável de ecótonos
na região da Ilha do Bananal; participação no experimento de grande escala da biosfera-atmosfera na Amazônia (LBA); quelônios da ilha do Bananal em biologia reprodutiva; contaminação de ovos e influência dos
processos sedimentológicos; e medição dos estoques de carbono utilizando método destrutivo, com retirada total do material, e método indireto,
o inventário.
O conceito do carbono social foi formalizado dois a três anos após a
implantação do projeto. O início da ação do Instituto Ecológica foi o diagnóstico rápido rural, oportunidade em que a equipe pode discutir com a própria
comunidade as prioridades e as necessidades básicas. Um ano depois, em
2000, começou-se a usar o conceito carbono social. Embora criticado no
início, o Instituto Ecológica teve uma percepção clara de que implementação
de um projeto de seqüestro de gases de efeito estufa tem que estar dentro dos
critérios de sustentabilidade, e tem que gerar beneficios para a comunidade.
A grande dificuldade consiste na diferença entre dizer que um projeto é socialmente adequado e justo e ter os instrumentos para medir que
esse projeto realmente promove ganhos sociais. Foi este fator que fortaleceu a construção do conceito de Carbono Social, utilizando o método
Abordagem de Meios de Vida Sustentáveis como ferramenta para verificar
e medir esses ganhos e avaliá-los qualitativa e quantitativamente.
Ao todo, são 31 indicadores do Carbono Social para projetos florestais envolvendo comunidades, conforme o Quadro 1.
A primeira fase da análise qualitativa foi realizada com os dados colhidos nas Secretarias Estaduais do Tocantins e no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na segunda fase, foram usados métodos participativos
no levantamento de dados pelos moradores das comunidades rurais. Entre
as técnicas utilizadas, podemos destacar a análise de tendências, as entrevistas individuais e o desenho do futuro possível. O trabalho de campo foi
realizado, em um primeiro diagnóstico, em junho de 1999, no município de
Caseara, no assentamento União II, e, no município de Pium, nos assentamentos Barranco do Mundo e Pericatu.
325 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
7 HISTÓRICO DE DESENVOLVIMENTO
DA METODOLOGIA
Quadro 1: Indicadores do Carbono Social para Projetos Florestais
Associativismo
Coletividade
Recursos
sociais
Conflitos sociais
Interferências externas
Relações familiares
Recursos
humanos
Educação dos adultos
Educação dos jovens
Saúde
assistência técnica
estímulo para o trabalho
capacitaçãoLazer
Recursos
financeiros
Acesso ao crédito
Potencial de comercialização
Oportunidades de emprego
Renda rural
infra-estrutura
moradia
equipamentos
renda extrativista
Recursos
Ecossistemas nativos
impactos sobre áreas nativas/naturais
recursos hídricos
Proteção
Comunidades naturais
recursos hídricos
espécies de interesse para
conservação
Recursos
da biodiversidade
Recursos
do carbono
Uso da biodiversidade
Custo de transação
Tipo de projeto
envolvimento da comunidade
retorno social
Fonte: elaborado pelo autor com base em Rezende e Merlin (2003)
326 DIVALDO REZENDE
7.1 Projeto Assentamento Barranco do Mundo
O Projeto de Assentamento (PA) Barranco do Mundo localiza-se na
região Centro-Oeste do estado do Tocantins, abrangendo uma área de 4.835
hectares. O PA Barranco do Mundo foi criado pelo Incra em 1998. No
início, o assentamento era formado por 97 famílias, mas muitas delas desistiram da terra logo após receberem os primeiros créditos, em virtude da
falta de assistência e de condições de trabalho. No Quadro 2, os resultados
de depoimentos sobre o meio de vida dos moradores do PA Barranco do
Mundo.
Recurso
Comentários
Perspectivas
Natural e
biodiversidade
A área possui várias matas, com
grande número de animais e flora
exuberante. Vegetação característica
de áreas ecotonais cerrado/floresta.
Agroextrativismo e manutenção das
áreas preservadas.
Financeiro
Dinheiro/crédito: apenas três pessoas
chegaram com recursos provenientes
de direitos trabalhistas e venda de
imóveis. Em 1998, receberam
fomento de R$1.025,00 e cesta
básica no valor de R$400,00.
Atualmente, a renda média no
assentamento gira em torno de
R$50,00.
Agricultura: fizeram roça
comunitária de arroz e plantaram
milho, mandioca e feijão. Perderam
o arroz plantado no varjão por causa
da inundação. Hoje, não há mais
roça comunitária, mas plantam
arroz, mandioca, milho, coco, café,
banana e laranja nos lotes. A terra
não é boa para feijão.
Criação/pecuária: a maioria não
trouxe nada. Hoje, possui galinha
caipira e d’angola, porcos, gado e
animais de transporte.
Dinheiro/crédito: esperam ter crédito
para investir em mandioca, pomar e
gado.
Agricultura: esperam plantar arroz,
milho, mandioca e ter um pomar.
Criação/pecuária: esperam multiplicar a
criação de galinhas e porcos e adquirir
financiamento para trabalhar com gado
de leite.
Educação: a escola teve início em
1999, com quatro salas de aula.
Oferece ensino até a 4ª série e tem
duas professoras. Quem cursa acima
da 5ª série estuda na cidade.
Saúde: no início, havia muita malária
e nenhuma assistência no local; se
ocorresse qualquer problema, tinha
de se deslocar para a cidade. Em
2001, iniciaram os trabalhos do
agente de saúde. O médico já foi ao
assentamento três vezes. Ainda
buscam socorro em Pium.
Assistência técnica: nunca tiveram
acesso a assistência técnica.
Educação: esperam ter uma escola que
ofereça até o 2º grau ou que forme
técnicos agrícolas e que seja bem
organizada. Querem ter projetos que
viabilizem o acesso à escolarização de
jovens e adultos.
Saúde: esperam ter posto de saúde com
enfermeira, médico e dentista
permanentes, além de remédios.
Assistência técnica: esperam ter os
filhos já formados, trabalhando na
assistência técnica. Querem apoio em
atividades como hortas, apicultura e
plantio de abacaxi e de melancia, entre
outras.
Humano
Continua...
327 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
Quadro 2: Resultados dos Depoimentos – PA Barranco do Mundo
...Conclusão
Recurso
Comentários
Perspectivas
Social
Associação: foi criada em novembro
de 1998. Atualmente, possui 38
filiados e está melhor, pois o
presidente trabalha.
Associação: esperam que a associação
esteja organizada, com conta em banco
e recursos para todos poderem
trabalhar.
Maior número de sistemas
agroflorestais implementados, bem
como fruticultura e enriquecimento
florestal nas áreas de mata.
Carbono
Implementação de unidades
demonstrativas individuais de
sistemas agroflorestais, cursos de
capacitação e fortalecimento do
associativismo.
Fonte: Rezende e Merlin (2003).
6
Natural
5
4
Financeiro
Social
3
2
1
1998
0
2001
328 DIVALDO REZENDE
Biodiversidade
Humano
Carbono
Figura 1: Melhoria dos Indicadores de Qualidade de Vida em Barranco do Mundo conforme Detectado pela Aplicação do Método Carbono Social ao Início do Projeto em 1998 e
Novamente em 2001.
Fonte: Rezende e Merlin (2003).
Inicialmente desenhada para avaliar as condições das comunidades
envolvidas em projetos florestais, a Metodologia do Carbono Social foi
adaptada para projetos que envolvessem os mais variados tipos de empreendimento, mantendo suas características fundamentais. A primeira adaptação foi para o desenvolvimento de indicadores específicos para atividade
do setor ceramista. O primeiro desafio enfrentado foi adaptar a metodologia
para empresas, uma vez que sua concepção original tinha como foco as
comunidades de baixa renda.
A adaptação iniciou com uma caracterização do perfil dessas empresas. No Brasil, a indústria cerâmica estrutural representa 4,8% de todo
o setor de construção civil, responsável por 7,3% do PIB Nacional
(ANICER, 2009). Formada por empreendimentos de pequena escala, sua
principal contribuição para a economia do país relaciona-se à produção de
telhas, tijolos, lajotas e blocos cerâmicos para o setor da construção civil.
Estima-se que existam 11.000 empresas do ramo no país, gerando até 400
mil empregos diretos em todo o território nacional. As principais empresas concentram-se nos pólos industriais de Minas Gerais, Paraná, Santa
Catarina e São Paulo (SEBRAE, 2004).
Embora possuam uma experiência extensiva na produção de peças
estruturais, essas empresas ainda apresentam um baixo desempenho
tecnológico em relação à eficiência dos processos, à qualidade da produção
e aos impactos ao meio ambiente. Adicionalmente, o perfil dos trabalhadores do setor é caracterizado por carências de ordem socioeconômica,
como a baixa escolaridade, a falta de capacitação profissional e baixos salários recebidos (SEBRAE, 2004).
Após uma caracterização inicial das empresas, foram desenvolvidos os primeiros indicadores. A idéia inicial do carbono social foi tentar
envolver comunidades de baixa renda nos benefícios do projeto, como,
por exemplo, mediante a comunicação com os proprietários ou reversão
de parte das receitas obtidas com os créditos de carbono para projetos
comunitários. No entanto, a experiência com as indústrias do setor demonstraram que o alcance do desenvolvimento sustentável demandaria
primeiramente ações internas de responsabilidade socioambiental para
adequar as empresas.
329 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
8 AMPLIAÇÃO E ADAPTAÇÃO DA METODOLOGIA
CARBONO SOCIAL
330 DIVALDO REZENDE
É utópico exigir que a pequena empresa e seus trabalhadores se
preocupem com a melhoria de vida das comunidades de baixa renda no
seu entorno sem que seja considerada a qualidade de vida do ambiente
de trabalho. Em especial nesse setor, em que a mão-de-obra quase não
possui qualificação, os salários são baixos e os trabalhadores ainda exercem funções que demandam grande esforço físico, além de serem expostos a situações de risco.
Portanto, a sustentabilidade nos projetos com as indústrias cerâmicas demandaria ações voltadas para a melhoria das condições de trabalho,
dos recursos humanos e tecnológicos e da redução de impactos ao meio
ambiente mediante o uso eficiente e racional dos recursos disponíveis.
Considerando essa prioridade, a comunidade envolvida durante
as avaliações são os próprios trabalhadores da empresa, porém mantendo
os fundamentos do Carbono Social na medida em que considera o acesso
aos recursos necessários para um meio de vida sustentável, como saúde,
educação, lazer, estrutura social, o uso racional dos recursos naturais etc.
Outra inovação nos indicadores para as indústrias ceramistas foi a
introdução do tema tecnologia, considerado de extrema importância para
o desenvolvimento sustentável do setor, que, aliado à dificuldade de
mensuração dos impactos das indústrias cerâmicas sobre a biodiversidade,
resultou na substituição do Recurso de Biodiversidade pelo Recurso de
Tecnologia, assim definido:
Recurso de Tecnologia: avalia as condições de acesso a bens
tecnológicos, incluindo inovação de equipamentos e processos com foco
na sua contribuição para o desenvolvimento econômico, social e
ambiental.
Após a definição do escopo de aplicação de Metodologia do Carbono Social e do estabelecimento de premissas básicas, uma última etapa
realizada para a consolidação dos indicadores setoriais foi o levantamento dos principais impactos socioambientais da indústria cerâmica e
benchmarking de indicadores para o setor (Quadro 3).
Atualmente, existem 42 indicadores do Carbono Social para a indústria do setor ceramista. Os indicadores são abrangentes e avaliam desde recursos humanos, relação com comunidade até existência de sistema de gestão
ambiental. Portanto, não se limitam a uma avaliação unicamente do projeto
de redução de emissões, mas sim uma avaliação holística do empreendimento como um todo.
Atividade
Indicador
Impacto
Aquisição de
Matéria Prima
Extração de Argila
Assoreamento - Erosão
Alterações na paisagem
Dosagem da argila
(preparação da massa)
Consumo de água
Esgotamento dos
Recursos Naturais
Iluminação e alimentação
de aparelhos elétricos
Consumo de
energia elétrica
Esgotamento dos
Recursos Naturais
Acondicionamento
da biomassa
Disposição da biomassa
no interior da fábrica
Contaminação do ar local
devido à dispersão de
materiais particulados
Alimentação dos Fornos
Consumo de Biomassa
Melhor disposição e
aproveitamento de resíduos
agroflorestais
Queima dos fornos
Emissão de fumaça
Poluição do ar
Banhos/Lavatórios/
Sanitários
Efluente sanitário,
banheiros e lavatórios
Contaminação de água
Queima dos fornos
Resíduos de Cinzas
Contaminação do Solo
Processo Produtivo
Cacos
Ocupação de Aterros
Operação das máquinas
Consumo de óleos e graxas
Esgotamento dos Recursos
Naturais
Operação das máquinas
Disposição de óleos e graxas
Contaminação do Solo e Água
Operação das máquinas,
transporte de materiais
e produtos
Necessidade de mão-de-obra
Geração de Empregos
Administração e gerenciamento de atividades
Necessidade de mão-de-obra
Geração de Empregos
Processo Produtivo
Emissão de Material Particulado Problemas Respiratórios
Queima dos fornos
Emissão de Calor
Equipamentos em
-
Operação das máquinas
funcionamento
Ruído
Fonte: dados elaborados pelo autor
331 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
Quadro 3: Principais Impactos Socioambientais da Indústria Cerâmica
O conceito de aplicação do Carbono Social nas cerâmicas baseia-se em algumas premissas a seguir:
• a comunidade considerada são os próprios trabalhadores da indústria, ou seja, não faz sentido desenvolver ações com comunidades
externas enquanto internamente as cerâmicas são caracterizadas pelo
emprego de mão-de-obra pouco qualificada e mal remunerada. Portanto, no caso de cerâmicas, as ações são voltadas para a comunidade
interna, os trabalhadores.
• O objetivo da avaliação inicial (Marco Zero) é fornecer subsídios
para o planejamento de ações voltadas para a sustentabilidade, já que
se espera que parte das receitas dos créditos de carbono seja aplicada
em ações de melhoria da empresa.
• Por ações de sustentabilidade, entendem-se ações estratégicas que sejam benéficas tanto para a empresa quanto para os trabalhadores,
com foco em humanizar as condições de trabalho (saúde, segurança,
lazer) e minimizar os impactos ambientais (eficiência e gestão).
Metodologicamente, a coleta de informações se dá por meio de
questionários, entrevistas semi-estruturadas ou reuniões participativas
com funcionários da empresa. Para fins de auditoria e certificação da
Metodologia do Carbono Social, evidências das informações são
coletadas sempre que possíveis, como fotos, documentos e manutenção de controles internos.
332 DIVALDO REZENDE
9 SUBSTITUIÇÃO DE COMBUSTÍVEIS NA INDÚSTRIA
CERÂMICA
Em janeiro de 2009, a metodologia do Carbono Social havia sido
aplicada em 54 indústrias cerâmicas, sendo que 16 delas já estavam no
segundo ano de monitoramento. Os diagnósticos incluíram cerâmicas
dos estados do Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Pará, Alagoas, Acre,
Minas Gerais, Sergipe, Tocantins, São Paulo, Roraima e Goiás.
Nas empresas em que foram realizadas mais de uma monitoria
externa, ou seja, que já tiveram um segundo relatório de monitoramento
da metodologia do carbono social, foi possível observar uma melhora
no desempenho dos indicadores, mesmo sem o estabelecimento de um
plano específico ou comprometimento formal por parte do empreendedor.
333 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
Uma das principais contribuições dos projetos de carbono e da
metodologia do Carbono Social até o momento foi a conscientização
dos empresários da cadeia produtiva das pequenas cerâmicas. Normalmente, eles enxergam as questões ambientais e sociais como entraves,
burocracias, multas etc. E o debate sobre Carbono Social representa uma
oportunidade em que eles são incentivados a adotar boas práticas
socioambientais ao invés de só serem penalizados. Esse é um processo
lento, mas, em geral, os ceramistas que no início demonstravam certa
indiferença a esse tipo de questão, após a comercialização dos primeiros
créditos, passaram a mudar tanto o seu discurso como sua visão sobre as
questões ambientais.
A Cerâmica São Judas Tadeu é uma empresa de pequeno porte localizada no estado do Tocantins. A indústria emprega em média 55 trabalhadores para a produção de cerâmica vermelha, como tijolos e blocos, para
abastecer o mercado regional de construção civil.
A ideia do projeto de redução de emissões surgiu após um estudo
realizado entre 2003 e 2005 sobre o impacto ambiental das indústrias cerâmicas no desmatamento do Cerrado (INSTITUTO ECOLÓGICA,
2005).
Por meio de um levantamento da cobertura vegetal utilizando
técnicas de sensoriamento remoto, foi possível identificar que a indústria tinha um forte impacto sobre a vegetação natural. Uma das alternativas apresentadas pelo Instituto Ecológica foi a substituição da lenha
ilegal por biomassa renovável, como a casca do arroz, pela capacidade
em gerar créditos de carbono que gerariam uma receita adicional à empresa.
Antes do projeto, a indústria consumia cerca de 20.400m³ de lenha
nativa do Cerrado por ano para alimentar os fornos na queima dos tijolos.
Com a substituição por casca de arroz, iniciada em julho de 2006, a estimativa de redução de emissões é de 17.185t de CO2 equivalente por ano
até 2017. A cerâmica foi pioneira no desenvolvimento de projeto de redução de emissões que foi desenvolvido no âmbito do mercado voluntário de
carbono utilizando o Voluntary Carbon Standard (VCS) e a Metodologia
do Carbono Social.
As principais melhorias de desempenho observadas após três anos
de aplicação da Metodologia do Carbono Social podem ser vistas no Quadro 4.
Quadro 4: Indicadores de Melhorias de Desempenho (2006-2008)
334 DIVALDO REZENDE
Indicador
2006 (início
do projeto)
Condições de
trabalho
Pouco adequadas
Benefícios
Não era oferecido benefício
adicional
Relação com a
comunidade
Doações esporádicas a
instituições filantrópicas (igrejas,
asilo etc.)
Satisfação dos
trabalhadores
Não havia sistema de consulta
sobre a satisfação dos
trabalhadores
Produção
Capacidade de produção estável
em relação ao ano anterior
Mercado de
carbono
Incertezas sobre a venda dos
créditos
2008 (terceiro ano de
monitoramento)
Instalação dos queimadores
mecânicos e diminuição da
exposição ao calor e contato com o
combustível; mudança no layout
com ampliação do pé direito na área
de produção, tornando a temperatura
do ambiente mais fresco; reforma dos
banheiros para atender
especificações normativas incluindo
chuveiros e vestiários; instalação de
uma sala de jogos e construção de
um campo de futebol para
empregados; Implantação de uma
nova cozinha.
Inclusão de seguro de vida e
comissão por desempenho na
produção
Passou a documentar e organizar as
doações
Reuniões anuais com os empregados
para sugestões e opiniões de como a
cerâmica poderia melhorar.
Construção de quatro novos fornos e
aumento da capacidade de produção
devido à demanda do mercado.
Primeira cerâmica a comercializar
créditos de carbono.
Criação de uma nova cultura
organizacional: no caso da Cerâmica
São Judas Tadeu, o meio ambiente,
que antes era visto como um
empecilho às atividades industriais,
especialmente devido a dificuldades
Continua...
...Conclusão
2006 (início
do projeto)
2008 (terceiro ano de
monitoramento)
Princípios de
sustentabilidade
Não havia compromisso com a
sustentabilidade
de obtenção de licenças e
autorizações, após início do
projeto passou a ser entendido
como uma oportunidade de
melhoria e ser incorporado no
discurso e estratégia de marketing
empresarial. Adicionalmente, a
empresa passou a desenvolver
projetos sociais e a incentivar
outras indústrias na adoção de
práticas sustentáveis.
Legalidade
ambiental
Dificuldade em manter licenças
ambientais regularizadas
Regularização das licenças
ambientais.
Energia
Uso de lenha nativa
Uso de biomassa renovável, em
especial casca de arroz.
Queima das
peças
Monitoramento manual da curva
de queima do forno
Monitoramento com termopares
(termômetros eletrônicos) que
captam a temperatura interna e
mostram em um display
eletrônico.
Desempenho
do projeto
Incerteza sobre o desempenho do
projeto
Reduções de emissões superaram
em 7% o previsto no PDD.
Empregados não sabiam que a
substituição de combustível fazia
parte de um projeto de carbono
Mediante palestra e divulgação,
atualmente a maioria dos
empregados entende a relação
entre a substituição de
combustíveis e a contribuição para
mitigação das mudanças
climáticas. Alguns empregados
também estão cientes da
diminuição dos impactos das
cerâmicas para o desmatamento.
Envolvimento
dos
empregados
Fonte: dados elaborados pelo autor
335 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
Indicador
Social
6
5.0
Carbono 4.0
5
3.3
4
2.0
Humano
3
2.5
2.2
2
1
2006
0
2007
2.3
2.7
3.0
3.8
Tecnológico
2.1
3.1
Financeiro
Natural
Figura 2: Melhoria dos Indicadores de Qualidade do Desenvolvimento na Cerâmica São
Judas Tadeu conforme Detectado pela Aplicação do Método Carbono Social ao Início do
Projeto em 2006 e novamente em 2007.
Fonte: Relatório do Carbono Social: Cerâmica São Judas Tadeu. Marco 01. Relatório
Interno da Carbono Social Serviços Ambientais. 28 jan. 2009.
336 DIVALDO REZENDE
10 ENERGIA RENOVÁVEL
A aplicação da metodologia do Carbono Social em projetos de energia renovável desenvolvidos por empresas que não têm envolvimento direto
com comunidades resultou em um novo desafio que consiste na integração
entre os projetos de organizações de grande porte e seu relacionamento com
o desenvolvimento sustentável, em especial com a questão social.
Portanto, no tocante a projetos de energia Renovável, o Carbono
Social passou a incorporar não só as perspectivas da comunidade envolvida, mas também de organizações privadas que desenvolvem projetos de
redução de emissões, resultando em uma análise integrada tanto das condições da atividade de projeto (impactos ambientais, sociais e econômicos
dos empreendimentos) quanto da comunidade direta ou indiretamente
afetada por essa atividade.
337 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
O que realmente caracterizará o Carbono Social é a participação da
comunidade e os benefícios a serem gerados a ela como forma de avaliar e
considerar esses ganhos usando a metodologia. Já na definição da
abrangência dos diagnósticos e seleção das comunidades envolvidas, para
facilitar a identificação de comunidades, são estabelecidos alguns critérios
que se recomenda serem atendidos, uma vez que a área de influência de
algumas usinas hidrelétricas pode se estender por quilômetros, abrangendo diversos municípios, enquanto que em outro extremo, como no caso
de pequenas centrais hidrelétricas, pode não afetar diretamente população
alguma. As comunidades selecionadas devem preferencialmente atender a
um ou mais itens listados a seguir:
• estar localizada na área de impacto (direto ou indireto) ou entorno dos
limites do projeto.
• Ser afetada direta ou indiretamente pelo projeto de forma comprovada
ou evidente.
• Ser beneficiada por medidas mitigadoras ou compensatórias dos impactos do projeto.
• Estar envolvida em projetos de desenvolvimento social ou melhoria da
qualidade ambiental, compulsórios ou voluntários, da organização responsável pelo projeto.
Com a experiência obtida durante a aplicação da metodologia do
Carbono Social em projetos de pequenas centrais hidrelétricas, foi possível
observar que a realização de diagnósticos gera muita expectativa nas comunidades, portanto os diagnósticos devem ser realizados somente onde
haja perspectiva concreta de execução de alguma ação. Por esse motivo, é
importante que as comunidades envolvidas no Carbono Social tenham
relação com as atividades do empreendimento.
A Usina Hidrelétrica (UHE) Mascarenhas está localizada na região
norte do estado do Espírito Santo, no rio Doce, e foi construída entre
1968 e 1972 pela Centrais Elétricas Espírito Santo (Escelsa). Em 2005,
com a desverticalização do setor elétrico brasileiro, a Escelsa foi dividida
em duas empresas, sendo a Energest S/A a atual responsável pelos empreendimentos de geração. O Projeto de Repotenciação Energética da UHE
Mascarenhas é um projeto de redução de emissões de gases de efeito estufa
conduzido pela Energest que objetiva o aumento da geração energética de
uma usina já existente, com a instalação de uma nova unidade geradora
com capacidade de 49,5MW.
338 DIVALDO REZENDE
A energia gerada por este projeto é utilizada dentro dos limites do estado onde esta se localiza. A região é caracterizada por uma grande flutuação na
tensão elétrica e o projeto irá contribuir para fornecer a energia necessária para
compensar esta instabilidade. O projeto trouxe a população local benefícios
ambientais, sociais e econômicos.
Inicialmente, a usina contava com três unidades geradoras totalizando
131MW. Com a implantação do projeto em setembro de 2007, uma quarta
unidade foi instalada resultando em reduções de emissões de dióxido de carbono através do aumento do fornecimento de energia limpa e renovável para a
rede nacional.
Com o projeto, o fluxo de água no reservatório permanece o mesmo e é
mais bem aproveitado, gerando uma quantidade adicional de 192.720MWh.
Além de diminuir perdas de transmissão e melhorar o fornecimento de energia
local, o projeto não implica em impactos ambientais significativos, uma vez que
o nível do reservatório não será alterado com a instalação da quarta máquina.
Os indicadores utilizados para avaliação das comunidades foram os
mesmos aplicados no projeto da ilha do Bananal, com algumas adaptações,
como em relação à biodiversidade quando aplicada às comunidades urbanas e
inclusão de novos indicadores, como gestão de resíduos sólidos e abastecimento de água.
A pesquisa foi realizada utilizando a metodologia do Carbono Social
em agosto de 2007, para estabelecimento do Marco Zero da realidade
socioambiental do entorno do empreendimento.
A realização do diagnóstico incluiu entrevistas semi-estruturadas com
representantes das áreas de meio ambiente, recursos humanos e finanças; visitas técnicas à UHE Mascarenhas; reunião com representantes da sociedade
civil organizada do entorno do projeto; e análise de documentos que evidenciassem os aspectos identificados durante as entrevistas participativas. Em decorrência do recente processo de reestruturação e desverticalização das empresas
do setor elétrico, algumas ações e procedimentos referentes a atividades administrativas e operacionais não puderam ser dimensionadas considerando unicamente a Energest/ES.
Para o diagnóstico das comunidades, foram selecionadas quatro comunidades tendo como base o diálogo estabelecido com o empreendedor, a Secretaria Municipal de Agricultura, o Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência
Técnica e Extensão Rural e o Consórcio Intermunicipal para Recuperação
Ambiental da Bacia do Rio Guandu, a seguir:
• Etapa 1: definição da área limite
O primeiro passo consiste na delimitação de uma área de abrangência
de atuação do Carbono Social para as comunidades, como, por exemplo,
municípios ou regiões afetadas pelo projeto.
A área de influência do projeto pode servir de base para definição de
um limite da área considerada como afetada, mas não significa que todas
as comunidades inseridas dentro desse limite sejam alvo da aplicação do
Carbono Social, pois a área pode ser tão extensa que inviabilize considerar
todas as comunidades envolvidas, e as experiências demonstram que a realização de diagnósticos gera expectativa nas comunidades. Portanto, os
diagnósticos devem ser limitados onde haja perspectiva de impactos significativos ou execução concreta de programas e projetos.
339 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
Comunidade 1: Mulheres de Vila Mascarenhas – a Vila Mascarenhas, distrito do município de Baixo Guandu, é a comunidade urbana mais próxima da usina. As mulheres moradoras da Vila, apesar de estarem organizadas,
não têm uma associação formal.
Comunidade 2: Associação de Pequenos Produtores Rurais de Queixada –
é a associação de pequenos agricultores mais próxima da UHE e atualmente está bem organizada. Tem como área de influência as propriedades
localizadas no lugarejo de Queixada, distante aproximadamente 5km da
UHE.
Comunidade 3: Associação de Pequenos Produtores Rurais de Ibituba –
distante 28km da Usina, existe há mais de 20 anos. Apesar de bem organizada, é pouco ativa na região.
Comunidade 4: Associação dos Pescadores de Baixo Guandu – grupo de
pescadores mais impactados pela Usina, e que está organizado em uma
associação formal que é ativa na região.
As atividades executadas incluíram reuniões abertas com as comunidades para apresentação do projeto e entrevistas semi-estruturadas com representadas das comunidades locais e da sociedade civil organizada do entorno. As
reuniões foram feitas de forma individual para cada uma das comunidades,
sendo possível identificar características particulares dos grupos.
A experiência com a aplicação da metodologia do Carbono Social
no projeto da UHE Mascarenhas permitiu o estabelecimento de uma
sequência de atividades que facilitam a identificação e seleção de comunidades, a seguir:
• Etapa 2: diagnóstico do projeto
Delimitada uma área limite de abrangência da metodologia, a etapa
posterior é a identificação de comunidades específicas que serão parte das ações
que possam impactar diretamente suas condições de vida, seja em decorrência
da implantação do projeto seja em decorrência do desenvolvimento de ações
voluntárias. Em seguida, é feita a aplicação dos indicadores da metodologia do
Carbono Sustentável para o projeto.
Nessa etapa, funcionários da empresa são mobilizados para diagnóstico
do projeto por meio de entrevistas semi-estruturadas. Entre outros aspectos
contidos nos indicadores, esta atividade permite identificar grupos ou organizações externos que têm relação direta com o projeto. Podemos citar como
exemplo de atores identificados nessa etapa organizações responsáveis pela
implementação de programas ambientais junto às comunidades, ou grupos
que foram realocados devido à implantação do empreendimento, vilas próximas da usina, grupos organizados ou associações que tenham alguma demandam em relação à organização etc.
340 DIVALDO REZENDE
• Etapa 3: consulta as partes interessadas (stakeholders)
Após a identificação preliminar dos principais atores sociais, são realizadas reuniões abertas ao público com os atores locais.
São convidados diferentes atores, desde prefeituras, órgãos ambientais,
organizações não-governamentais de atuação local, até representantes de associações e moradores. O projeto e o Carbono Social são apresentados em linguagem acessível e adequados ao público ao qual se destinam. Nesse momento,
os representantes da organização responsável pela execução do projeto tomam
um posicionamento aberto a sugestões e estabelecem um canal de comunicação com os atores locais buscando identificar outras comunidades que possam
ser envolvidas no Carbono Social.
• Etapa 4: seleção de grupos
Por fim, ocorre a delimitação das comunidades ou dos grupos a serem
envolvidos na aplicação do Carbono Social. Com base nos levantamentos de
stakeholders com funcionários da empresa e com os atores locais, as linhas de
ação e os grupos específicos são selecionados como foco das ações que envolvem diagnósticos, programas, projetos e monitoramento ao longo dos anos.
A partir da aplicação do Carbono Social, o empreendimento possui
índices de sustentabilidade considerados satisfatórios. A maior parte dos
recursos atingiram índices com valores próximos ao 3, exceto Recursos
Humanos, que superou a média, com um índice de 4,5, e Recursos de
Biodiversidade, que ficou abaixo da média, com índice 2,4.
Os aspectos que apresentaram ótimo desempenho estão relacionados com a gestão de recursos humanos, o cumprimento das normas
ambientais, o baixo impacto ambiental do projeto e as ações voltadas para
educação ambiental e conservação e uso sustentável da ictiofauna. Esse
último aspecto recebe um destaque positivo pelo trabalho realizado para
levantamento e reposição da ictiofauna mediante um projeto que inclui
também a perspectiva de geração de renda para a comunidade de pescadores na área de influência do projeto.
Já os principais fatores críticos para a sustentabilidade do projeto
foram aqueles relacionados à comunicação social, tanto em relação à Usina quanto ao projeto de redução de emissões, e as condições de preservação da área de entorno do reservatório. A Figura 3 representa o desempenho
de cada recurso para a central hidrelétrica.
Sociais
6
5
3.4
Carbono 3.7
Humanos
4.5
3
2
1
2007
0
2.4
3.2
Tecnológico
Financeiros
3.8
Naturais
Figura 3: Desempenho dos Recursos para a Central Hidrelétrica
Fonte: Relatório do Carbono Social: UHE Mascarenhas. Marco Zero. Relatório Interno
da CantorCO2e Brasil. 01 abr. 2008.
341 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
4
342 DIVALDO REZENDE
• Recursos Sociais: com exceção do grupo de mulheres de Vila
Mascarenhas, as comunidades selecionadas estão organizadas em associações sem finalidade lucrativa criadas com o objetivo de facilitar a
consecução de objetivos e ideais comuns. O cooperativismo não está
presente nessas comunidades, e as atividades de produção e geração de
renda são realizadas individualmente pelas pessoas. Interferências políticas, falta de recursos financeiros e ausência de líderes capacitados
são as principais dificuldades enfrentadas durante a consolidação das
associações e cooperativas. Os conflitos internos existem, mas não constituem um fator limitante para o desenvolvimento dessas associações,
observando-se, durante as entrevistas, um interesse das pessoas pelo
coletivo e a percepção de que ações comunitárias têm melhor resultado
do que ações individuais.
• Recursos Humanos: as condições de moradia foram consideradas razoáveis, satisfazendo padrões mínimos necessários para uma moradia digna. As pessoas que participaram do diagnóstico afirmaram ter acesso ao
abastecimento de água de qualidade e energia elétrica em suas residências. A assistência médica é feita por postos de saúde que contam normalmente com um clínico geral e um dentista. Apesar de não ser considerado
um fator crítico para a qualidade de vida da população, foram indicadas
algumas dificuldades enfrentadas como a falta de medicamentos, dificuldade em marcar consultas e ausência de pediatras nos postos de saúde. O analfabetismo ainda está presente entre os mais velhos, mas os
jovens têm acesso à escola. A capacitação foi o indicador que apresentou
índice mais crítico na avaliação, pois, com raras exceções, as habilidades
profissionais dessas pessoas foram desenvolvidas por meio da prática e
do conhecimento tradicional, não havendo qualquer tipo de capacitação
formal para o exercício de determinadas profissões.
• Recursos Financeiros: recurso considerado crítico para as comunidades, em especial para o grupo de mulheres de Vila Mascarenhas e dos
pescadores de Baixo Guandu. A renda dos pescadores está comprometida em razão da pouca disponibilidade de peixes e a ausência de capacitação
profissional para outras atividades. As mulheres, em sua maioria, dependem da renda de outros membros da família ou de aposentadoria, sendo
que algumas não possuem renda fixa familiar. Os pequenos agricultores
praticam a agricultura de subsistência em conjunto com a criação de
pequenos rebanhos para o sustento da família, com uma pequena
CONCLUSÃO
A Convenção Quadro de Mudanças Climáticas reconhece que os
países em desenvolvimento precisam ter acesso aos recursos necessários
para alcançar um desenvolvimento social e econômico sustentável capaz
de erradicar a pobreza e garantir um sistema climático para as presentes e
futuras gerações. Ao analisar este acordo internacional, verifica-se que a
sustentabilidade está claramente presente em seus objetivos, princípios e
obrigações. Seu principal instrumento de regulamentação, o Protocolo de
Quioto, segue com os mesmos fundamentos, trazendo como objetivo do
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo a redução dos gases de efeito estufa atrelada à contribuição para o desenvolvimento sustentável em países
subdesenvolvidos.
343 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
comercialização de produtos como o café e o leite. Segundo os agricultores, a principal dificuldade é a comercialização dos produtos e os longos
períodos de seca.
• Recursos de Carbono: este recurso apresenta o menor índice da avaliação. A realização dos diagnósticos e reuniões foi a primeira iniciativa
de envolvimento das comunidades do entorno no desenvolvimento do
projeto.
• Recursos Naturais: os impactos ambientais causados pelas comunidades estão centralizados nos pequenos produtores que enfrentam problemas como o manejo e descarte incorreto de agrotóxico e a degradação
das áreas de reserva legal e proteção de nascentes em suas propriedades.
Os grupos de Vila Mascarenhas e de pescadores, por serem comunidades
urbanas, têm um impacto menor sobre os ambientes naturais, caracterizado pela deficiência de serviços públicos como tratamento de esgoto
doméstico e coleta de resíduos sólidos.
• Recurso de Biodiversidade: recurso considerado crítico para a sustentabilidade em virtude do alto grau de descaracterização dos ecossistemas
naturais na região. A situação coincide com aquela identificada no diagnóstico realizado para o projeto que evidencia o alto grau de degradação da
região do entorno da área de influência do empreendimento e uma vegetação
altamente fragmentada e descaracterizada. Adicionalmente, os pescadores
não cessam as atividades de pesca durante o período de defeso, comprometendo a integridade da ictiofauna local.
344 DIVALDO REZENDE
Quando se fala em desenvolvimento sustentável, deve-se ter claramente a noção de que não se trata de uma meta pontual. Desenvolvimento
é sinônimo de aperfeiçoamento, de melhoria contínua e de apuração de
resultados. A sustentabilidade pode (e deve) ser alcançada, mas é um processo longo.
Entretanto, o que se verifica na prática é que apenas uma das metas
do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo vem sendo alcançada de fato,
a redução de emissões com a consequente comercialização de créditos de
carbono gerando números milionários. O primeiro benefício a ser alcançado certamente é o econômico. Contudo, o ideal é que esse aumento de
receitas possibilitasse a real contribuição ao desenvolvimento sustentável,
que pode ser representada por ações sociais e ambientais concretas e
direcionadas.
O Carbono Social se insere nesta dinâmica de proporcionar benefícios de longo prazo às comunidades do entorno dos projetos de redução
de emissões. O Carbono Social, durante os últimos dez anos, passou de
um conceito criado para a realidade de regiões ecotonais no estado do
Tocantins para um conceito reconhecido internacionalmente e com aplicação em diferentes tipos de projetos de reduções de emissões.
Em 2000, a metodologia passa a ser utilizada para monitoramento
das mudanças ocorridas nos recursos necessários para a busca da
sustentabilidade em médio e longo prazos em projetos de redução de emissões com foco florestal. Em 2003, na COP 9, em Milão, na Itália, foi
lançado o livro Carbono Social: agregando valores ao desenvolvimento
sustentável. Neste momento, a metodologia passa a ser divulgada e difundida internacionalmente.
Em 2004, a metodologia do Carbono Social passa a ser aplicada
em diferentes projetos, destacando projetos de troca de combustíveis,
aterros sanitários, energia renováveis, entre outros. Em 2006, Carbono
Social passa a ser reconhecido como standard do mercado voluntário, e,
em 2007, o Carbono Social já está entre os cinco maiores standard do
mercado voluntário. Em 2007, o Carbono Social passa a utilizar em seus
projetos o standard do Voluntary Carbon Standard (VCS) associado à
ferramenta de monitoramento e indicadores de sustentabilidade da
metodologia do Carbono Social. Em 2008, as diretrizes do standard do
Carbono Social são publicadas, bem como o sistema de registro para o
mercado voluntário.
Dessa maneira, o Carbono Social se difundiu de forma rápida, sendo aplicado em diferentes realidades que abrangem desde pequenos projetos de geração de renda para comunidades até iniciativas de grandes
empresas que participam do comércio internacional de créditos de carbono. Isso demonstra o potencial da utilização da MCS e também a importância de se adotar a flexibilidade como uma diretriz básica, procurando
sempre incorporar o contexto político e social em suas abordagens.
Por ser um conceito adaptável às condições e realidades locais, o
Carbono Social prefere a flexibilidade à rigidez metodológica. Ao contrário da maior parte das metodologias de avaliação da sustentabilidade, o
objetivo do Carbono Social não é desenvolver indicadores e métodos
generalistas numa tentativa de simplificar o processo de avaliação. Pelo
contrário, seu objetivo é dar uma oportunidade para o reconhecimento de
especificidades locais, para a construção de um cenário que realmente represente uma determinada realidade e, acima de tudo, considere a opinião
dos atores envolvidos durante o processo de avaliação. O Carbono Social
representa uma contribuição brasileira para o debate sobre a sustentabilidade
de projetos de redução de emissões de gases de efeito estufa.
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www.anicer.com.br/index.asp?pg=institucional.asp&secao=3&categoria=60&selMenu=3>.
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345 4.5 CARBONO SOCIAL: DA TEORIA A PRÁTICA
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SEBRAE: Serviço de Apoio à Micro e à Pequena Empresa – TO. Diagnóstico empresarial
do setor cerâmico da região central do Estado do Tocantins. Palmas, 2004.
346 DIVALDO REZENDE
THE CARBON RATING AGENCY LIMITED. Carbon ratings. Jun. 2008. Disponível
em: <http://www.carbonratingsagency.com>. Acesso em: 10 out. 2008.
4.6
SECA E VULNERABILIDADE: O FUNDO
DE PASTO COMO ESTRATÉGIA
PARA LIDAR COM O CLIMA SEMIÁRIDO
Fabiano Toni, Evandro Holanda Júnior,
Isadora de Afrodite Richwin Ferreira
INTRODUÇÃO
As áreas de pastagem coletivas, conhecidas como fundos de pasto
ou fechos de pasto, são comuns em todo o semiárido brasileiro. São áreas
normalmente cobertas com vegetação nativa, formada por gramíneas e
pequenos arbustos, adjacentes às terras de agricultores familiares. Em suas
propriedades privadas, esses agricultores cultivam alimentos, prioritariamente para subsistência. As áreas coletivas são utilizadas como pasto para
a criação de animais, além de serem fonte de lenha, frutas, mel, ervas medicinais, madeira e fibras usadas na construção dos telhados das casas e em
peças de artesanato.
Dois tipos diferentes de criação de animais são encontrados no sistema de pastagens coletivas. Nos fechos de pasto, predomina a criação de
gado bovino. Já os fundos de pasto normalmente referem-se à criação de
ovinos e caprinos. Os fundos de pasto são mais comuns nas áreas mais
secas, especialmente porque as cabras são consideravelmente mais resistentes ao clima seco do que o gado bovino.
As pastagens coletivas surgem no semiárido no século XIX, como
consequência do abandono de antigas fazendas de criação de gado ao longo do rio São Francisco, que forneciam carne para as cidades da zona produtora de cana-de-açúcar. Com o declínio da indústria do açúcar, essas
fazendas foram abandonadas e, posteriormente, ocupadas por trabalhadores rurais, escravos libertos e migrantes. Apesar da abundância de terra, os
novos ocupantes das áreas tiveram que lidar com as adversidades do clima
348 FABIANO TONI; EVANDRO HOLANDA JÚNIOR; ISADORA DE AFRODITE RICHWIN FERREIRA
da região e com a falta de segurança com relação à propriedade da terra e
sua permanência nela.
Recentemente, alguns governos estaduais começaram a conceder o
título das propriedades individuais aos agricultores. O título da terra tem
cada vez mais importância para os agricultores familiares, por duas razões
principais. A primeira é o agravamento dos conflitos em torno da propriedade das terras. Migrantes, grileiros, mineradoras e fazendeiros que alegam ser
os donos legítimos das terras têm cobiçado essas áreas para a expansão de
seus negócios. A segunda é a falta de apoio governamental para as atividades
econômicas desenvolvidas pelos agricultores. O crédito rural e, em muitos
casos, a assistência técnica dependem da regularização da propriedade da
terra, que pode ser usada como garantia para os empréstimos.
Organizações sociais do semiárido lutam pelo reconhecimento da
importância dos fundos de pasto e pela concessão de títulos coletivos aos
usuários dessas áreas. Essa luta esbarra em dificuldades jurídicas e também
em um preconceito contra esse sistema de produção, considerado ineficiente
do ponto de vista técnico e econômico. Este capítulo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada no nordeste da Bahia que desafiam essa
visão preconceituosa1.
A pesquisa é dividida em um estudo quantitativo e um estudo qualitativo. O estudo quantitativo, realizado em 12 municípios do nordeste
da Bahia, fez uma análise comparativa entre os agricultores familiares que
utilizam o sistema de fundo de pasto e os agricultores familiares que utilizam apenas suas propriedades privadas para o desenvolvimento de suas
atividades agropecuárias. O objetivo do estudo era discutir a importância
e as limitações do sistema de fundo de pasto em áreas suscetíveis à seca.
Foram analisados os resultados obtidos pelas famílias com plantações e
criação de gado e a renda média gerada por elas.
Para compreender melhor a importância do sistema de fundo de pasto, foi feito também um estudo qualitativo em um dos 12 municípios, Andorinha, na comunidade de Surará. Essa parte da pesquisa, feita com base
em entrevistas com agricultores, teve como finalidade apresentar alguns dos
desafios enfrentados pelas famílias que utilizam as pastagens coletivas, assim
como discutir as estratégias utilizadas por elas para lidar com esses desafios.
1
Os resultados desta pesquisa foram originalmente apresentados em Toni; Holanda Jr.
(2008).
1 CLIMA E VULNERABILIDADE
Cerca de 15 milhões de pessoas vivem na zona rural do Nordeste, o
que equivale a 32% da população da região ou a 46% de toda a população
rural do Brasil. A maior parte dos indicadores socioeconômicos regionais
está abaixo das médias nacionais. O semiárido tem 1.133 municípios, espalhados em 982 mil km², com média anual de precipitação que varia de
400mm a 800mm, de acordo com a área.
Apesar de ser uma média de precipitação baixa, o maior problema
do semiárido brasileiro não é a falta de chuvas, mas a irregularidade de sua
distribuição no tempo e no espaço. É comum que haja uma grande variação na média anual de precipitação, com a ocorrência de anos com muita
chuva intercalados por longos períodos de seca. De acordo com o Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a região é uma
das mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas.
349 4.6 SECA E VULNERABILIDADE: O FUNDO DE PASTO COMO ESTRATÉGIA PARA LIDAR COM O CLIMA SEMIÁRIDO
Os resultados da pesquisa indicam que, apesar de os agricultores
que utilizam apenas propriedades privadas utilizarem um sistema de produção agrícola considerado mais moderno, com mais investimentos, a renda
gerada por eles não é significativamente maior do que aquela gerada pelos
agricultores que utilizam o sistema de fundo de pasto, mais tradicional e
voltado para a subsistência. Em compensação, as famílias que usam pastagens coletivas têm um consumo médio de carne per capita por ano bastante superior ao dos outros agricultores. No semiárido, em que a desnutrição
é uma das consequências mais graves do clima seco, esse dado é um importante indício de que as famílias usuárias do sistema de fundo de pasto são
menos vulneráveis à seca.
Na primeira parte do capítulo, são apresentados os principais desafios que o clima representa para a população do semiárido. O foco está na
vulnerabilidade e nos mecanismos de adaptação que essa população utiliza
para conviver com as chuvas escassas e irregulares da região. A segunda
parte traz os resultados do estudo comparativo feito entre produtores que
utilizam o fundo de pasto e aqueles que não usam esse sistema. Na sequência,
com base na pesquisa qualitativa realizada na comunidade de Surará, são
discutidos alguns aspectos institucionais relativos ao uso e ao controle do
acesso a áreas de fundo de pasto. Finalmente, são apresentadas as conclusões e algumas recomendações para políticas públicas.
350 FABIANO TONI; EVANDRO HOLANDA JÚNIOR; ISADORA DE AFRODITE RICHWIN FERREIRA
As condições climáticas da região são responsáveis por essa
vulnerabilidade apenas em parte. Outros fatores contribuem para que o
semiárido esteja suscetível às consequências das variações do clima.
Sobrepastejo, remoção da cobertura vegetal e manejo inadequado do solo
são algumas das ações humanas que aumentam significativamente o risco
de degradação do solo e de desertificação. Áreas com solo degradado ou
desertificadas tornam as condições de vida ainda mais penosas para os
habitantes.
A vulnerabilidade pode ser entendida como a habilidade de indivíduos, grupos ou comunidades de se adaptar a desafios ao seu bem-estar ou
a seus meios de vida. Desse conceito de vulnerabilidade, é possível extrair
algumas reflexões sobre o tema. Em primeiro lugar, fica claro que a
vulnerabilidade de um grupo a determinada situação depende do grau de
exposição desse grupo ao desafio externo e também da natureza e da intensidade de tal desafio. A capacidade de reação das pessoas é resultado de
uma construção social e está diretamente relacionada à disponibilidade de
recursos para lidar com os desafios que se interpõem a seus meios de vida.
Os recursos de um indivíduo ou de um grupo de pessoas determinam, por exemplo, sua capacidade de obter comida por meio da produção, da troca e de suas relações com outros indivíduos ou grupos. Esses
recursos abrangem tanto o patrimônio material (bens, terra, rebanho,
maquinário) quanto os recursos não-materiais (ideias, capacidade de trabalho, relações sociais). Há três estratégias diferentes que costumam ser
utilizadas para ampliar os recursos de um grupo.
A primeira estratégia refere-se às relações sociais verticais, ou seja, às
relações estabelecidas entre membros de diferentes níveis da hierarquia
social, marcadas por acentuado desequilíbrio de poder. Uma característica
das relações verticais é a troca de apoio político por bens ou serviços, públicos ou privados. Esse tipo de troca é a base para o clientelismo. No
longo prazo, o clientelismo contribui para manter o grupo menos poderoso em posição cada vez mais vulnerável, já que facilita a manipulação de
políticas e fundos estatais, agrava a pobreza e empurra os pobres para terras mais marginais, mais suscetíveis às adversidades climáticas. No curto
prazo, no entanto, é uma importante estratégia para lidar com desafios e
ameaças e satisfazer necessidades imediatas.
A segunda estratégia diz respeito às relações sociais horizontais. Essas relações são aquelas estabelecidas entre parentes, vizinhos, amigos,
351 4.6 SECA E VULNERABILIDADE: O FUNDO DE PASTO COMO ESTRATÉGIA PARA LIDAR COM O CLIMA SEMIÁRIDO
membros da comunidade e compõem o tecido social que garante uma
rede de proteção para um grupo em momentos de crise. Nesses momentos, as pessoas podem contar umas com as outras, e a ajuda costuma vir em
forma de dinheiro, comida, empréstimos, água, trabalho, abrigo, transporte, entre outros. As relações sociais horizontais também são relações de
troca, mas, ao contrário das relações verticais, não há desequilíbrio de poder entre os envolvidos.
A terceira estratégia para ampliar os recursos de um grupo é a acumulação. Diferentemente das duas outras estratégias, a acumulação não
depende de terceiros, em compensação requer um sistema produtivo eficiente, capaz de gerar excedentes. Normalmente, os agricultores conseguem
gerar algum lucro com seus cultivos e investi-lo em gado, bovino, caprino
ou ovino. Esse investimento tem bastante apelo junto aos agricultores,
uma vez que o gado é um bem com boa liquidez, facilmente transportável
e capaz de se reproduzir. Em momentos de crise, o gado pode ser facilmente vendido para cobrir gastos inesperados.
No caso do semiárido, um dos mais significativos e constantes desafios enfrentados pelos habitantes da região é a variação do clima. Como
dito, as secas são agravadas pela degradação do solo. As comunidades locais lançam mão das três estratégias descritas para lidar com os efeitos
desse desafio externo. No entanto, muitas vezes isso significa utilizar demasiadamente os recursos disponíveis, inclusive os naturais, sem que haja
uma preocupação com a sustentabilidade do uso que está sendo feito.
A combinação da irregularidade climática com o manejo inadequado dos recursos naturais costuma resultar em degradação do solo, quebra
de safra, perdas no rebanho, desnutrição, agravamento da pobreza e migração. A intensidade com a qual cada grupo de agricultores será afetado
por esses resultados depende da eficácia de seus mecanismos para lidar
com os desafios externos, e a propriedade sobre as terras que utilizam desempenha um papel particularmente relevante nesse contexto.
Em teoria, o título da propriedade ajuda a promover formas mais
sustentáveis de uso da terra. O agricultor que é dono da terra se sente
seguro para fazer investimentos de longo prazo, com a garantia de que
permanecerá na terra por tempo suficiente para receber o retorno de seus
investimentos. Adicionalmente, o título possibilita que a terra seja dada
como garantia na obtenção de crédito, o que viabiliza que mais investimentos sejam feitos. A falta do título, por outro lado, retira do agricultor
352 FABIANO TONI; EVANDRO HOLANDA JÚNIOR; ISADORA DE AFRODITE RICHWIN FERREIRA
a certeza de que vai se beneficiar dos investimentos feitos, especialmente
das medidas de conservação dos recursos naturais que ele poderia vir a
adotar. Sua preocupação fica centrada nas necessidades imediatas e ele vai
extrair todos os recursos que puder da terra.
Apesar de essa visão ser amplamente reconhecida, ela não leva em
consideração que o título das propriedades privadas não é a única forma
de oferecer aos agricultores familiares segurança em relação à posse da terra. A propriedade sobre áreas de uso comum, associada à ação coletiva e a
instituições locais, pode conferir ainda maior segurança, sob determinadas
circunstâncias.
2 PROPRIEDADE DA TERRA E VULNERABILIDADE
Um estudo realizado recentemente em 12 municípios do nordeste
da Bahia se propôs a investigar a correlação entre diferentes formas de
propriedade da terra e a vulnerabilidade de agricultores familiares à seca.
O estudo partiu da hipótese de que os usuários de terras coletivas – fundos
de pasto – são consideravelmente menos vulneráveis às secas do que as
comunidades que utilizam apenas regime de propriedade privada.
Essa hipótese tomou por base as seguintes constatações: 1) o gado é
um dos principais recursos para lidar com a seca; 2) agricultores que utilizam fundos de pasto conseguem criar rebanhos maiores; 3) cabras e ovelhas são mais bem adaptadas ao clima seco; 4) pastos coletivos possibilitam
maior mobilidade dos rebanhos, o que amplia suas chances de sobrevivência em períodos de seca; e 5) os agricultores que utilizam fundos de pasto
podem utilizar os recursos que usariam para construir cercas na compra de
mais cabeças de gado.
O estudo foi feito com base em um levantamento realizado pela
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), com 549 pequenos proprietários de terra dos 12 municípios, em 2002. Cada um dos proprietários respondeu a um questionário com 678 perguntas a respeito de sua
família, sua propriedade, uso da terra, seus bens e sua renda (proveniente das
atividades agrícolas, ou de outras fontes, como emprego fora da propriedade, aposentadoria e programas governamentais de transferência de renda).
Com base nesse questionário, percebeu-se que os agricultores
que utilizam pastagens coletivas têm algumas características em comum.
De modo geral, esses agricultores, chamados de Grupo 1, têm foco na cria-
Quadro 1: Tipologia dos agricultores
Grupo 1
Grupo 2
Utiliza fundo de pasto
Utiliza apenas propriedade privada
Foco na criação de caprinos
Foco na criação de gado bovino
Áreas com agricultura de subsistência
maiores
Áreas com agricultura de subsistência
menores
Fonte: dados elaborados pelos autores.
O Grupo 2 obtém maior renda com o gado, uma vez que adota
práticas de pecuária mais intensivas, com maior investimento de capital e
de trabalho nessa atividade. Concentra esforços na agricultura comercial,
com custos de produção maiores. Como esses agricultores tendem a criar
gado bovino, precisam investir mais capital e trabalho no pasto, já que a
vegetação nativa não é adequada para a alimentação de bois e vacas. Assim,
as áreas que destinam para a agricultura de subsistência são menores.
Já o Grupo 1 não precisa investir recursos na formação de pastagens, porque utiliza os pastos naturais coletivamente. Seus animais, normalmente cabras, se alimentam da vegetação nativa, ao contrário do gado
bovino. Dessa forma, os agricultores que utilizam o fundo de pasto podem
investir no cultivo de alimentos para sua própria subsistência e na ampliação de seus rebanhos.
Num primeiro olhar, seria possível concluir que o Grupo 2 adota
um sistema de produção mais moderno, com mais investimentos e, em
teoria, com melhores resultados em termos da renda gerada. Entretanto,
os dados indicam que não há diferença significativa na renda total das
famílias dos dois grupos. Mesmo com a adoção de um modelo de produção mais voltado para o mercado, as famílias de agricultores do Grupo 2,
que não utilizam terras coletivas, não conseguem auferir renda total maior
do que aqueles agricultores mais voltados para a produção de subsistência.
353 4.6 SECA E VULNERABILIDADE: O FUNDO DE PASTO COMO ESTRATÉGIA PARA LIDAR COM O CLIMA SEMIÁRIDO
ção de cabras e possuem áreas maiores com culturas de subsistência. O Grupo 2, por sua vez, composto pelos agricultores que utilizam apenas propriedades privadas, foca-se na criação de gado bovino e tem áreas maiores de
culturas comerciais (Quadro 1).
354 FABIANO TONI; EVANDRO HOLANDA JÚNIOR; ISADORA DE AFRODITE RICHWIN FERREIRA
A renda, portanto, não é um dado que diferencia os dois grupos de
agricultores. Outro dado mostrou-se mais significativo: o consumo de carne
per capita. De acordo com a pesquisa, cada membro das famílias de agricultores que utilizam fundos de pasto consome em média 52,54kg de carne por ano. Já os membros das famílias que utilizam apenas terras privadas
consomem em média 36,86kg de carne por ano. Esse dado é extremamente relevante no semiárido, onde a desnutrição é uma das mais graves
consequências da irregularidade climática.
As explicações para essa diferença significativa no consumo de carne entre os dois grupos estão justamente nos modos de vida e de produção
de cada um. Como dito, o agricultor que utiliza apenas terras privadas
para plantar e criar animais precisa trabalhar mais para alimentar o gado
bovino e acaba trabalhando menos para produzir sua própria comida.
Adicionalmente, um agricultor pode comprar com o mesmo dinheiro uma
quantidade maior de cabras e ovelhas do que de vacas.
Uma cabra ou uma ovelha podem ser facilmente consumidas por
uma família, ou compartilhadas com vizinhos, mas uma família não é
capaz de consumir ou estocar toda a carne obtida com o abate de um boi,
mesmo que possua geladeira. Para completar, a renda extra gerada com a
venda do gado bovino precisa ser utilizada pelos agricultores do Grupo 2
para adquirir os alimentos que não produzem em suas propriedades. Assim, o Grupo 2 depende da venda de seu gado no mercado para suprir
alguma necessidade urgente, ao passo que o Grupo 1 tem a opção de simplesmente abater uma de suas cabras.
Em resumo, os dados indicam que as famílias que utilizam o sistema de
fundo de pasto são menos vulneráveis às secas, porque os animais que criam
são mais bem adaptados às condições climáticas do semiárido e são uma importante fonte de proteína para satisfazer suas necessidades nutricionais. Essas
famílias produzem o suficiente para sua subsistência e dedicam-se a atividades
produtivas mais baratas e mais fáceis de serem mantidas.
3 ORGANIZAÇÃO SOCIAL E INSTITUIÇÕES LOCAIS
Para que o sistema de fundo de pasto funcione, é preciso haver
regras para a gestão coletiva do acesso às áreas comuns. Para compreender os arranjos que possibilitam a utilização de áreas de pastagem coletivas, foi feito um estudo qualitativo na comunidade de Surará, no
355 4.6 SECA E VULNERABILIDADE: O FUNDO DE PASTO COMO ESTRATÉGIA PARA LIDAR COM O CLIMA SEMIÁRIDO
município de Andorinha, que foi um dos 12 municípios pesquisados no
estudo quantitativo.
A comunidade de Surará é relativamente bem organizada e é composta por 63 famílias, que receberam do governo estadual o título de suas
terras privadas e utilizam o fundo de pasto como sistema de produção.
A área compartilhada por essas famílias é de 600ha de pastos nativos.
As famílias não possuem o título da área de pastagem coletiva.
A comunidade encontra-se em uma região muito seca, onde a criação de animais é a principal atividade econômica. Os agricultores cultivam ainda milho e feijão, mas apenas uma parte muito pequena da produção
é comercializada. Além da agricultura, a comunidade tem tradição de artesanato em couro, que é vendido nos mercados de rua ou para revendedores
que levam as peças para outros mercados em cidades maiores.
Os agricultores de Surará estão organizados em uma associação criada em 1986 por causa da escalada dos conflitos de terra. Na década de
1980, o governo federal ofereceu crédito rural, com subsídios, para proprietários de terra. A elite urbana local passou a alegar propriedade legítima sobre terras públicas, para ter acesso ao crédito rural. Nos casos em que
os grileiros obtiveram sucesso, os recursos obtidos com o crédito rural
nem mesmo foram utilizados em atividades agrícolas. No mesmo período,
grandes fazendeiros da região começaram a se opor à utilização das terras
públicas como fundo de pasto pelos agricultores familiares. A criação da
associação de Surará foi uma resposta a esses conflitos, e sua principal
meta era assegurar o título da terra para os pequenos proprietários.
A maioria das famílias de Surará tem relações de parentesco entre si.
Os primeiros moradores chegaram ao local, provavelmente, em meados
do século XIX. Os moradores mais recentes são parentes vindos de outros
municípios da região, onde não conseguiram terras próprias. A comunidade está crescendo, não só por causa dos casamentos, mas também porque
muitas pessoas que haviam migrado estão voltando depois de perderem
seus empregos em áreas urbanas.
Esse crescimento tem sido um desafio para a comunidade, que agora precisa compartilhar seu fundo de pasto com um número maior de
famílias. Em muitos casos, quando a família não possui terras suficientes
para dividir entre os filhos, a comunidade cede parte da área comum para
abrigar a todos. No entanto, estranhos não são bem-vindos e têm poucas
chances de obter um pedaço de terra na comunidade.
356 FABIANO TONI; EVANDRO HOLANDA JÚNIOR; ISADORA DE AFRODITE RICHWIN FERREIRA
O lento, mas constante, crescimento da população tem provocado a
redução das pastagens de uso coletivo. A consequência imediata e já percebida pelos habitantes é que o rebanho caprino tem diminuído. As áreas comuns são importantes não só como pastagens, mas como fonte de angico,
planta nativa cuja casca é usada para tingir o couro utilizado nas peças de
artesanato. A demanda crescente por angico, inclusive de algumas indústrias, tem afetado a disponibilidade do recurso, que tem sido superexplorado.
Todas essas mudanças, provavelmente, vão contribuir para o aumento da vulnerabilidade à seca das famílias de Surará que utilizam o fundo de pasto. Ainda assim, a comunidade prefere lidar com as perdas
econômicas ocasionadas pela redução das pastagens coletivas a deixar um
de seus membros sem terra.
CONCLUSÃO
Os resultados da pesquisa contradizem a percepção comum de que o
fundo de pasto é um sistema agrícola atrasado. Ainda que o sistema agrícola
privado seja mais intensivo em tecnologia, não necessariamente gera mais renda para os agricultores, por causa dos altos custos de produção. O sistema
privado responde a uma transição de um modelo mais tradicional de agricultura familiar para um modelo tido como mais moderno, que tem como base a
privatização dos meios de produção, mas que apresenta resultados piores.
Os agricultores que adotaram o sistema agrícola privado não conseguem gerar renda maior do que os que mantiveram o sistema de fundos de
pasto. Os agricultores que utilizam o sistema de pastagens coletivas são
menos dependentes com relação ao mercado e ao clima. Adicionalmente,
têm clara vantagem em termos de segurança alimentar, porque seu consumo de carne é significativamente maior do que o das famílias de agricultores que utilizam o sistema privado.
No entanto, o sistema de fundo de pasto, apesar de ser encontrado
em todo o semiárido, tem sido constantemente desafiado, especialmente em
virtude da falta de reconhecimento da propriedade coletiva das áreas de pastagem por parte do poder público. Ainda que as comunidades criem instituições locais para controlar o acesso às áreas comuns, há pressões internas e
externas que ameaçam o sistema de fundo de pasto, mesmo nas comunidades mais organizadas. O crescimento da população aumenta a demanda por
terra e a pressão sobre as áreas comuns. De fora, as ameaças são ainda mais
REFERÊNCIA
TONI, F.; HOLANDA JR. The effects of land tenure on vulnerability to droughts in
Northeastern Brazil. Global Environmental Change, v. 18, p. 575-582, 2008.
357 4.6 SECA E VULNERABILIDADE: O FUNDO DE PASTO COMO ESTRATÉGIA PARA LIDAR COM O CLIMA SEMIÁRIDO
graves: fazendeiros, mineradoras e grileiros alegam propriedade legítima sobre as terras e se utilizam de diversos meios para expulsar os agricultores.
Não há dados confiáveis sobre a sustentabilidade ecológica do sistema de fundo de pasto. Em muitos casos, pode haver sobrepastejo mesmo
com a criação de cabras, o que causa grave degradação do solo. O desenvolvimento de novos mercados para produtos florestais tem levado os agricultores a superexplorar os recursos naturais encontrados nas áreas de uso
coletivo, o que também contribui para ampliar a vulnerabilidade a secas.
O uso inadequado dos recursos naturais é agravado pela falta de título
coletivo sobre as áreas de uso comum, já que os agricultores não se dispõem a fazer investimentos nessas áreas sem a certeza de que continuarão
utilizando-as no futuro.
Assim, o desenvolvimento de sistemas de manejo do solo e da vegetação nativa é crucial para que os agricultores que utilizam o sistema de
fundos de pasto possam lidar com os longos períodos de seca. O maior
desafio, no entanto, é construir as instituições políticas e sociais para assegurar o acesso aos recursos naturais.
Os dados da pesquisa estão limitados a um contexto específico e não
permitem concluir que os fundos de pasto são mais adequados para todos os
contextos ecológicos e culturais do semiárido. No entanto, os resultados
encontrados indicam que os fundos de pasto são importantes para garantir a
segurança alimentar em meio às adversidades climáticas da região.
Formuladores de políticas públicas e organizações sociais locais devem levar em consideração outras experiências de gestão coletiva de terras
já realizadas no Brasil, como as Reservas Extrativistas e os assentamentos
com a modalidade de Projeto de Desenvolvimento Sustentável, criada pelo
Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Arranjos similares
podem ser feitos no semiárido para assegurar a agricultores pobres o direito sobre as terras de uso comum e contribuir para a diminuição de sua
vulnerabilidade com relação às secas.
4.7
DISSEMINAÇÃO DE FOGÕES
ECOEFICIENTES NO CEARÁ
Jörgdieter Anhalt
INTRODUÇÃO
A extração não sustentável de biomassa com a finalidade de obter
madeira para combustão já destruiu mais de 80 por cento da vegetação
nativa no estado do Ceará. Praticamente toda a população rural utiliza
fogões de baixa eficiência com alto consumo de lenha, e, em especial as
mulheres e crianças sofrem dos efeitos da poluição intra-domiciliar. A iniciativa do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Energias Renováveis
(Ider), com mais de 22 mil fogões a serem implantados até o final de 2010,
é pioneira no Brasil. Este artigo resgata a integração do projeto piloto ao
plano de desenvolvimento do governo estadual com o objetivo de promover a redução do consumo de lenha e dos problemas acarretados pela poluição intra-domiciliar. Também são relatadas as medidas tomadas na busca
de uma recuperação sustentável da vegetação e a capacitação de instaladores
locais dos fogões.
1 TECNOLOGIAS RENOVÁVEIS PARA O SEMI-ÁRIDO
A situação social e econômica do semi-árido brasileiro sempre foi
considerada um reflexo do quadro natural apresentado nessa região. Ações
pontuais, como construção de açudes, poços e barragens foram se multiplicando no decorrer da história, mas sem uma grande efetividade de resultados. Esse insucesso pode ser considerado, em parte, pela inadequação
da tecnologia.
360 JÖRGDIETER ANHALT
Atualmente, no entanto, o desenvolvimento técnico na área de energias renováveis e eficiência energética parece representar uma boa solução
para aumentar a eficácia das ações a serem desenvolvidas no presente e no
futuro. Tecnologias sociais de fácil replicação e boa aceitação nas comunidades podem levar benefícios múltiplos para regiões com problemas
ambientais, sociais e estruturais.
Desenvolvendo projetos deste tipo desde 1995, o Ider é uma organização da sociedade civil de interesse público, sem fins lucrativos, sediada
em Fortaleza (CE), com ampla experiência com iniciativas para difundir
tecnologias de energias renováveis para comunidades rurais e litorâneas do
Norte e Nordeste.
É fundamental ressaltar que toda a tecnologia utilizada para os projetos desenvolvidos pelo Ider é escolhida e empregada não buscando uma
modernização em um sentido restrito, mas como ferramentas eficazes para
a superação de problemáticas identificadas mediante estudos detalhados.
Cada iniciativa é precedida por uma análise técnica, mas também dos contextos natural, social e econômico.
Esses estudos revelam que o desafio encarado não é pequeno. A atual
situação do semi-árido clama por ações imediatas que revertam a crescente degradação do ambiente e recuperem a qualidade de vida dos
habitantes da caatinga. Para isso, os trabalhos desenvolvidos têm como
principal meta a criação de soluções abrangentes que possam contribuir para melhorar a qualidade de vida das comunidades em múltiplos
aspectos.
Os projetos do Instituto, portanto, longe de serem apenas desenvolvimento tecnológico, são soluções para problemas bastante amplos. O Ider
levou seu corpo multidisciplinar (técnicos, sociólogos, agrônomos etc.) às
comunidades do sertão nordestino para observar suas necessidades, e somente depois apresentar propostas. Foi neste processo em constante transformação e aprendizagem que iniciativas com painéis fotovoltaicos, sistemas
de energia eólica, biodigestores, secadores solares e cursos de capacitação,
entre outras atividades, foram desenvolvidas pelo Ider.
Desde 2006, no entanto, uma tecnologia social ganhou destaque
em razão de sua facilidade de replicação, potencialidades e a integração das
ações do Ider com o poder público. É esse o caso dos fogões ecoeficientes,
que até o final de 2010 devem beneficiar mais de 22 mil famílias no estado
do Ceará.
Os modelos de fogões domésticos a lenha, ainda facilmente encontrados em comunidades rurais, não representam apenas a falta de
modernidade: o uso destes equipamentos antiquados resulta em sérios problemas para o meio ambiente e para a saúde da população. Na questão
ambiental, os fogões tradicionais necessitam de muita madeira, o que tem
contribuído para a rápida degradação da vegetação nativa. Somente no
Nordeste brasileiro, seis mil toneladas de biomassa são queimadas, todos
os dias, apenas para preparação de alimentos.
Este uso irracional da lenha, uma fonte de energia renovável, se
consumida de forma não planejada e ineficiente, reflete-se em um acelerado processo de degradação: no ritmo atual, até 2010 somente 20% das
áreas originais de caatinga ainda existirão. São 35km2 degradados anualmente, contribuindo, sobretudo, para uma desertificação que já chega a
180 mil km² no semi-árido nordestino. A caatinga está rapidamente virando
um deserto, comprometendo sua utilidade natural de proteção contra a erosão, manutenção da fertilidade do solo, combate às mudanças climáticas,
controle natural de pragas e conservação da água. Com todas essas consequências, a desertificação tende a trazer prejuízos naturais e socioeconômicos
imensuráveis.
As consequências do uso de fogões a lenha ineficientes também são
verificadas em outros biomas. No Brasil, destaca-se o cerrado e o bioma
amazônico, onde, ao lado da caatinga, as grandes distâncias e o perfil
socioeconômico das comunidades, o acesso ao fogão a gás é restrito. De fato,
o consumo de gás de cozinha não é uma realidade para uma grande parcela
das famílias brasileiras. De acordo com o Sindicato Nacional das Empresas
Distribuidoras de Gás de Cozinha, 38% dos lares ainda cozinham com o
uso da lenha. Além da dificuldade de transporte, este número também é
explicado pelo alto custo para o consumidor, especialmente quando somado
aos valores de transporte para comunidades afastadas. Sem condições para
utilizar o gás, essas famílias precisam utilizar os velhos fogões a lenha, mesmo quando já possuem os modelos mais modernos.
Além da degradação, os fogões arcaicos expõem milhões de pessoas
aos problemas causados pela fumaça no ambiente doméstico, a chamada
poluição intra-domiciliar. Pouco relatado no Brasil, este problema é destacado pela Organização Mundial de Saúde: anualmente, 1,6 milhões de
361 4.7 DISSEMINAÇÃO DE FOGÕES ECOEFICIENTES NO CEARÁ
2 FOGÕES EFICIENTES
362 JÖRGDIETER ANHALT
pessoas morrem por doenças causadas pela fumaça da queima da lenha,
aproximadamente uma a cada 20 segundos. Estar exposto à poluição intradomiciliar é tão danoso à saúde quanto fumar dois maços de cigarros por
dia, afetando sobretudo mulheres e crianças, de hábitos mais ligados ao
ambiente doméstico. Em crianças, o risco de pneumonia é duplicado. Entre
os adultos, os problemas respiratórios crônicos podem se elevar em até três
vezes. Além destas doenças respiratórias, alterações cardíacas, queimaduras e problemas oftalmológicos são frequentes.
O uso de fogões ecoeficientes como opção para reduzir a degradação
ambiental já é uma realidade em outros países desde os anos 1940. A primeira experiência foi na Índia, em 1947. Daí em diante, modelos adaptados se
disseminaram na África, Ásia, América Latina e Caribe. Há projetos semelhantes em todo o mundo, mas no Brasil somente nos últimos anos foram
iniciadas as primeiras atividades com diversos modelos diferentes.
No âmbito do Programa Energia Renovável e Desenvolvimento,
financiado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), em 2005, e com o apoio do Banco Mundial, por intermédio da Global Village Energy Partnership, o Ider iniciou estudos sobre
modelos de fogões eficientes em outros países e adaptou para a realidade
local do Norte e Nordeste brasileiros. A ideia era desenvolver um fogão
ecoeficiente que pudesse ser construído com materiais facilmente encontrados na região, com uma altura adaptada para as mulheres, um número
de bocas adequado para os hábitos alimentares e um método de construção que fosse rapidamente aprendido pelos pedreiros das comunidades a
serem beneficiadas.
Os resultados dos projetos pilotos motivaram o Governo do estado
do Ceará a adotar a disseminação de fogões ecoeficientes como uma política pública. A partir de 2007, foi iniciado um amplo projeto com o Ider
para beneficiar 22 mil famílias em todo o Estado até 2010. Com essa parceria, mais de 100 mil pessoas devem ganhar qualidade de vida.
O fogão incorpora critérios físicos e técnicos relativos à eficiente
queima de lenha, fluxo de ar otimizado e canalização dos gases aquecidos,
melhoria da transferência de calor para os alimentos, isolamento térmico
do ambiente e tubulação de escape (chaminé) dos gases tóxicos. Um ponto
importante que se deve levar em conta é a adaptação do fogão ecoeficiente
à cultura e aos hábitos alimentares do meio rural. Vários protótipos foram
testados in loco e sugestões das mulheres incorporadas na concepção final.
Figura 1: Fogão Ecoficiente Instalado
Fonte: elaborado pelo autor
A implantação acontece em parceria com as prefeituras ou associações de moradores, que selecionam as famílias de acordo com critérios
elaborados pelo Ider. Em cada comunidade, é realizada uma sensibilização
das famílias para o problema do uso da lenha, a apresentação da tecnologia
363 4.7 DISSEMINAÇÃO DE FOGÕES ECOEFICIENTES NO CEARÁ
Entretanto, aperfeiçoamentos são incorporados a cada nova fase do projeto, com vistas especialmente à diminuição dos custos de fabricação.
A fim de facilitar a instalação, a base do fogão é uma estrutura metálica com todas as partes essenciais conectadas a ela. Essa estrutura pode ser
fabricada por pequenas oficinas locais, inclusive a chaminé. Pedreiros locais,
capacitados pelo Ider, constroem as paredes laterais, feitas de tijolos refratários. A estrutura rígida garante a integridade de todas as peças, tais como aba
de aeração, portinhola do fogão, grelha, placa de cozimento e chaminé.
Essa estrutura também ajuda a prolongar a vida útil do fogão. Pequenos danos nas paredes laterais provocados pelo impacto do calor não
irão influenciar as características operacionais do fogão, e os reparos poderão ser feitos com recursos locais. A expectativa de vida últil é de pelo
menos dez anos.
364 JÖRGDIETER ANHALT
social e são divulgados princípios de educação ambiental. O passo seguinte é a capacitação de pedreiros locais na construção dos fogões, o que ajuda
a gerar renda local.
Contando com mais um apoio, da Renewable Energy and Effiency
Energy Partnership (REEEP), o Ider somou esforços à iniciativa na realização de atividades de educação e preservação ambiental. O trabalho conta com a participação de famílias que receberam os fogões, indo desde as
etapas de sensibilização até a delimitação comunitária de áreas de preservação e plantio de mudas.
Em 2008, o projeto foi selecionado como semifinalista do prêmio
Objetivos do Milênio (ODM) Brasil, organizado pela Casa Civil da Presidência da República em parceria com as Nações Unidas, constando em
uma lista de 42 melhores práticas de uma seleção que contou com mais de
1.000 participantes. Os fogões ecoeficientes também receberam da Fundação Banco do Brasil a certificação de Tecnologia Social aprovada.
Dentro de planos futuros de ampliação da disseminação do fogão
ecoeficientes, a inclusão no mercado de créditos de carbono é fundamental para assegurar o financiamento e reconhecimento pelas entidades de
proteção do meio ambiente. Porém, existem barreiras neste processo, desde a burocracia e o alto custo até procedimentos de monitoramento ainda
não bem adaptados à realidade de pequenos projetos. O Ider está elaborando procedimentos práticos nesse sentido em colaboração com entidades internacionais do ramo.
Outro impacto positivo já conhecido, na melhoria da saúde, ainda
não foi profundamente pesquisado e faltam dados referentes ao contexto
brasileiro. O Ider está iniciando uma investigação ampla para enumerar a
economia em termos de saúde pública pela implementação de fogões
ecoeficientes. Estes estudos irão providenciar dados básicos para uma ampla disseminação desta tecnologia.
REFERÊNCIAS
BUSKIRK, Robert Van. Recommendations for the Eritrea Dissemination of Improved
Stoves Program. Eritrea Energy Research and Training Center (ERTC), 2003.
EDWARDS, R. D.; SMITH K. J Zhang and Y Ma Energy Policy 32, 2004. Implications
of Changes in Household Stoves and Fuel Use in China.
EZZATI, M. Mpala Research Station. Household Energy Technology: Traditional and
Improved Stoves; Data Collection: Data in Indoor Air Pollution. 2002.
KING, Rina J.; CRISPIN, P. P. New Dawn (Pty) Ltd ARECOP, February 2003. A
commercialization methodology for cook stove dissemination in Southern Africa.
NDIANG’A, Everline. Interlink Rural Information Service (IRIS). Improved Stoves: Time
Saving and Health Improving Components.
RAMACHANDRA T. V.; SUBRAMANIAN, D. K. Energy Conversion and Management,
Bangalore, India, v. 41, n. 8, 2000. End use efficiencies in the domestic sector of Uttara
Kannada District.
365 4.7 DISSEMINAÇÃO DE FOGÕES ECOEFICIENTES NO CEARÁ
WORLD BANK What Makes People Cook with Improved Biomass Stoves? Barnes,
Douglas, 1994.
4.8
A POLÍTICA ESTADUAL DE MUDANÇAS
CLIMÁTICAS E COMBATE À POBREZA NO
PIAUÍ
Markus Brose
Ayri Rando
1 O DESAFIO
Com a maior parte do seu território situado no semi-árido, o Piauí
figura entre os estados mais vulneráveis às mudanças climáticas no país.
Os efeitos mais nocivos são sentidos pela alteração no regime de chuvas,
do qual depende larga parte da população economicamente ativa.
O Piauí conta com um amplo território, rico em recursos naturais e
esparsamente povoado. Por se encontrar em meio a um acirrado debate
sobre fronteira agrícola, alternativas energéticas, promoção do desenvolvimento e adaptação às mudanças climáticas, o estado representa um rico
laboratório para a análise das diferentes visões de desenvolvimento que
estão em jogo. Enquanto uma parte da sociedade piauiense tem preferência pelo modelo histórico do país, de promover o crescimento econômico,
é cada vez maior a parcela da sociedade que valoriza a promoção do desenvolvimento sustentável.
Neste contexto, com cerca de 50% de sua população dependente
dos repasses do bolsa-família e uma pesada herança do coronelismo, um
desafio central da sociedade piauiense consiste em gerar oportunidades de
trabalho e renda para a população, ao mesmo tempo em que estabelece um
padrão de uso sustentável dos seus recursos naturais.
Em 2007, a administração estadual apresentou ao debate público a
proposta de estabelecer um marco referencial que integre as ações de desenvolvimento com a preparação da sociedade e da economia piauiense
para as mudanças climáticas. A inovação proposta no Piauí reside em tra-
tar mudanças climáticas não mais como um tema apenas da meteorologia
ou do meio ambiente, mas como relativo ao desenvolvimento humano
como um todo.
O desafio em construir um novo modelo de política pública está
sendo enfrentado pela tentativa de articulação entre políticas setoriais, além
da busca por assessoria na implantação de projetos piloto e capacitação
dos principais atores envolvidos com o tema. Este capítulo visa resgatar as
ações dos primeiros dois anos deste processo.
368 MARKUS BROSE; AYRI SARAIVA RANDO
2 AS PROJEÇÕES
Com uma área maior que Portugal, o Piuaí conta com uma população de pouco mais de 3 milhões de habitantes, dos quais cerca de 800 mil na
capital e seu entorno. O território representa uma zona de transição ecológica, contemplando faixas paralelas de três biomas: a caatinga, no sudeste,
onde predomina o tradicional latifúndio de pecuária extensiva; o cerrado,
no centro e sudoeste, onde está em rápida expansão a lavoura mecanizada de
soja; além das florestas úmidas dos cocais de pré-Amazônia, ao longo do rio
Parnaíba, onde se concentra boa parte da população rural.
A economia do estado compete com o Maranhão pela posição de
menor renda per capita do país. E, junto com o Maranhão, o Piauí representa um dos maiores pólos emissores de trabalhadores rurais pobres que
sofrem regime de trabalho escravo no agronegócio em outras regiões.
O principal segmento da economia é o terciário (comércio, saúde e
serviços públicos), com cerca de 60% do PIB, seguido, em torno de 30%
do PIB da indústria (química, têxtil e bebidas). Cerca de 50% do PIB, do
estado está concentrado na capital. Além disso, apesar do agronegócio em
expansão, onde a tradicional pecuária extensiva convive com as monoculturas mecanizadas de cana-de-açúcar, eucalipto e soja, larga parte da população continua dependente da agricultura familiar de subsistência,
extrativismo vegetal (babaçú e carnaúba), extrativismo de pequenos animais (cabras e ovinos em regime extensivo), do extrativismo de mangue
(caranguejos, sururu e ostras) e pesca artesanal.
O projeto Inpe/USP/FBDS realizou estudos utilizando simulações
do balanço hídrico para o Nordeste, considerando as projeções de temperatura e chuva dos cenários futuros de clima. No cenário de maiores emissões
de gases de efeito estufa, os resultados indicam uma tendência de extensão
369 4.8 A POLÍTICA ESTADUAL DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS E COMBATE À POBREZA NO PIAUÍ
da deficiência hídrica, hoje restrita aos meses de estiagem, ao ano todo. Ou
seja, os cenários para o Século XXI indicam a tendência de aridização da
região semi-árida, com a estação chuvosa mais fraca e mais curta, bem como
um período de déficit de umidade no solo mais prolongado.
As mudanças climáticas poderão impor pesadas perdas às culturas
de sequeiro. Toda a área correspondente ao agreste e ao cerrado nordestino
serão os mais atingidos. A lavoura da mandioca em maior escala pode
desaparecer no semi-árido, pois tende a migrar para o sul do país. Segundo
as projeções, no Piauí a soja será a cultura com as maiores perdas, na ordem de 40%. E as pastagens irão perder até 25% da capacidade de pastoreio,
aumentando os custos de produção pela necessidade de mais ração para os
animais.
As análises econômicas preliminares para o Nordeste demonstram
que as culturas do milho, arroz, feijão, soja e algodão devem sofrer um
prejuízo anual da ordem de R$6,7 bilhões em 2020, no cenário mais otimista. No cenário mais pessimista, o impacto negativo anual deverá ser de
R$7,4 bilhões em 2020, chegando a R$14 bilhões ao ano em 2070.
As projeções do estudo Embrapa/Unicamp indicam que, como o
aquecimento global aumenta a perda de água pela evaporação do solo e maior
transpiração das plantas, irá diminuir a disponibilidade de terras seguras
para cultivo e pecuária. No caso do Piauí, no pior cenário a redução de terras
agriculturáveis será da ordem de 60% a 70% de todo o seu território. Assim,
na economia piauiense, o setor da agropecuária é o que terá sua capacidade
produtiva mais atingida nas próximas décadas, comprometendo a capacidade de gerar trabalho e renda, o que deve gerar maior atração da população
economicamente ativa por outras regiões do país.
Nesse sentido, aumentar a capacidade de adaptação do setor
agropecuário piauiense, envolvendo os produtores patronais, mas, em especial, a agricultura familiar, deve figurar entre as prioridades de preparação do estado para o futuro próximo. Em especial, gerando oportunidades
de renda não-agrícola no meio rural.
As estimativas do estudo Embrapa/Unicamp demonstram redução
nos PIBs estaduais nordestinos até 2050. O Piauí deverá estar entre os
estados mais afetados, com uma perda da ordem de 18% da sua renda.
Quanto mais o município for dependente da renda agrícola, maior deverão ser os prejuízos sentidos na atividade e maior a propensão para a migração da faixa de população que apresentar mobilidade.
370 MARKUS BROSE; AYRI SARAIVA RANDO
Na projeção para o intervalo 2025-2030, existe uma tendência para
a diminuição da emigração com origem do Nordeste em direção às demais
regiões do país, pois neste período deverá ocorrer um maior impacto das
mudanças climáticas no Sul e Sudeste. A migração deverá se concentrar
dos municípios rurais para as capitais do Nordeste, sobrecarregando os
serviços sociais, educacionais e de saúde. Mas, no período de 2035 a 2050,
a migração pela alteração do clima deverá gerar uma perda de cerca de 480
mil habitantes do Nordeste pela migração para o Sudeste.
O aumento de população nas capitais incorre no risco de que doenças características do meio rural, como a leishmaniose visceral, sejam
mais disseminadas nas regiões metropolitanas, além do aumento do número de pessoas suscetíveis a doenças urbanas, como a dengue. Como os
grandes centros urbanos nordestinos já apresentam hoje restrições na oferta de água, um cenário de mudanças climáticas irá ampliar a escassez da
água, prejudicando a qualidade de vida das famílias mais vulneráveis que
já apresentam hoje baixa cobertura de saneamento básico.
Entre as populações mais vulneráveis à mudança climática estão
os migrantes do meio rural para as cidades médias e regiões metropolitanas. A escala do risco será influenciada pela qualidade habitacional que
estará disponível, pela infra-estrutura existente, pela qualidade dos serviços públicos universais e pela qualidade do capital social das pessoas
(nível educacional formal; habilidades e capacidades; formação cultural;
redes de solidariedade e de parentesco).
As regiões do Piauí com menor nível de capital humano, as mais
vulneráveis, serão as com menor capacidade adaptiva às mudanças climáticas. As pessoas que migrarem saindo de pequenos municípios vão se
tornar mais vulneráveis ainda. Com menor capacidade para acessar empregos de qualidade, estas famílias terão sua renda afetada. E disponibilidade e flexibilidade de renda é um elemento fundamental para a
capacidade de adaptação às mudanças do clima.
Aquelas famílias que não migrarem serão as mais impactadas pelas
alteração do regime de chuvas e aumento de temperatura. O padrão
seletivo da migração irá definir um cenário ainda mais desigual para o
Piauí. Nos modelos matemáticos utilizados para a projeção de cenários
de futuro, a distribuição do nível de renda segue os indicadores de
educação. Em um estado que apresenta uma pesada dívida social como
o Piauí, o acesso universal à educação pública de boa qualidade consti-
3 OS MODELOS
Como o conflito de interesses é característico de todo território considerado de novas fronteiras, também o Piauí é marcado pelo embate entre
concepções antagônicas acerca do seu futuro. Podemos resumir de modo
didático o debate identificando dois grupos principais cujo ideário é supra-partidário e divide tanto lideranças políticas, lideranças empresariais,
como organizações da sociedade civil.
De um lado, o tradicional discurso desenvolvimentista, característico da indústria da seca, ressaltando as fragilidades do território, a falta de
água, a pobreza da população e que o caminho para melhores indicadores
de qualidade de vida passa pelo crescimento econômico. Crescimento este
a ser obtido pela atração de investimentos externos, preferencialmente de
grande porte, pois estes irão dinamizar a economia e, por conseguinte,
melhorar a qualidade da vida da população. As lideranças que partilham
deste argumento sentem uma urgência em construir o futuro, fruto de
uma sensação de que há um atraso a ser compensado.
Esta concepção, que representa uma ideia que já era comum nos
anos 1960/1970 de que o fim justifica os meios, foi promovida por mais
de 30 anos pelo Governo Federal mediante políticas públicas cristalizadas
na Sudene que não se mostraram capazes de reduzir os perversos indicadores de pobreza e coronelismo no Nordeste. Este contexto, por sua vez, vem
fortalecendo o argumento de lideranças, organizações e movimentos
piauienses que argumentam que reformas estruturais, aliadas à qualificação do capital humano, possibilitam um crescimento endógeno que aproveite de modo racional as riquezas naturais do estado.
O embate entre estas ideias pode ser testemunhado não apenas pelo
acalorado debate mantido nas manchetes dos jornais de Teresina, que des-
371 4.8 A POLÍTICA ESTADUAL DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS E COMBATE À POBREZA NO PIAUÍ
tui um dos principais elementos de aumento da capacidade de adaptação da sociedade.
A estagnação econômica e a redução dos níveis de emprego levarão a
uma queda do consumo das famílias. Em comparação, o Piauí está entre os
estados que provavelmente apresentará os menores níveis de consumo familiar
no cenário dos impactos futuros, com queda de cerca de 15% do consumo. As
localidades que mais sofrerão os impactos das mudanças climáticas são aquelas
que hoje apresentam o maior grau de cobertura pelo Bolsa Família.
372 MARKUS BROSE; AYRI SARAIVA RANDO
creve os conflitos de interesse que perpassam a sociedade e, em especial, o
empresariado. Também o Governo Federal apresenta divergências quanto
à sua atuação. Por um lado, apresentou em 2006 o Programa Nacional de
Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN), sob
responsabilidade da Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural
Sustentável do Ministério do Meio Ambiente (MMA). O MMA inaugurou em 2007 o Núcleo de Pesquisa de Recuperação de Áreas Degradadas e
Combate à Desertificação (Nuperade) no município de Gilbués, sul do
Piauí. E no mesmo ano o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) inaugurou em Campina Grande o Instituto Nacional do Semi-Árido. Por outro lado, essas ações pouco dialogam entre si ou com outras políticas
públicas, por exemplo, de desenvolvimento rural, da agricultura, do interior ou das mudanças climáticas.
Merece ainda registro a limitada capacidade institucional do poder
público no estado, que vem sendo reestruturado a poucos anos, além da
insegurança jurídica quanto à situação fundiária no interior do estado.
Este contexto ajuda a compreender como o Piauí tem sido palco de variadas agressões contra o meio-ambiente, como exemplo:
1) a Brasil Ecodiesel inaugurou em 2005, com a presença do presidente
Lula, a primeira unidade de produção de mamona pela agricultura
familiar na Fazenda Santa Clara, município de Canto do Buriti, destinada a abastecer a usina de biodiesel em Floriano. Após o entusiasmo
inicial, a usina se especializou na soja. A produção de mamona no
Piauí, que chegou a alcançar 2.400t em 2007, caiu para 1.100t em
2008. As 630 famílias assentadas em lotes de 7,5 hectares vêm realizando protestos, passeatas e buscam outras fontes de renda. A Procuradoria do Trabalho abriu dois inquéritos frente às irregularidades
trabalhistas e a empresa perdeu a certificação social. O Ministério Público e a Polícia Federal investigam denúncias de prostituição e trabalho infantil. Novas denúncias se referem ao desmatamento nos 18.000
hectares de terras devolutas cedidas à empresa, para produção de carvão vegetal;
2) a empresa carioca JB Carbon SA recebeu incentivo fiscal e financiamento público para desmatar 78.000 hectares de Carrasco, uma mata
de transição pouco estudada, na Chapada do Gurguéia na região da
Serra Vermelha. O empreendimento está baseado em títulos de propriedade de origem duvidosa sobre 114.000 hectares. Após processo
4 A ESTRATÉGIA INOVADORA
O paradigma das negociações internacionais sobre as mudanças do
clima reside nos governos nacionais. Mas, tendo em vista a dimensão continental e o elevado grau de descentralização da federação brasileira, as
esferas sub-nacionais vêm apresentando respostas diversificadas às mudanças climáticas no país. E, assim do mesmo modo como se verifica diver-
373 4.8 A POLÍTICA ESTADUAL DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS E COMBATE À POBREZA NO PIAUÍ
pelo Ministério Público Federal e intervenção do Ibama em 2007, a
produção de carvão vegetal, destinada a siderúrgicas em MG e MA,
foi paralisada. A empresa teve que arcar com multas do Tribunal Regional do Trabalho por motivo das condições irregulares dos trabalhadores rurais;
3) a empresa Bunge Alimentos SA implantou em 2003 no município de
Uruçuí uma unidade de industrialização de soja baseada no consumo
de 115.000m3 ao ano de lenha de mata nativa para gerar energia em
suas fornalhas. Foi aberto um inquérito civil público contra a empresa, que em 2004 firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)
com o Ministério Público Federal visando adequar o emprendimento
à legislação. Novas denúncias em 2008 de que a empresa continuaria a
usar lenha de mata nativa mediante guias florestais ‘frias’ levaram o
Tribunal Regional Federal da 1ª Região em 2008 a suspender a TAC e
reabrir o processo, determinando a paralisação imediata da unidade.
Estes investimentos externos, que criam empreendimentos no Piauí,
porém, sem licença social e sem respeito à legislação ambiental,
exemplificam a face mais agressiva do agronegócio.
Um desafio adicional será a integração de uma nova cadeia produtiva, a mineração, no modelo de desenvolvimento do estado. A empresa
Vale vem, desde 2007, testando com uma unidade piloto a viabilidade de
implantação, na região do município de Capitão Gervásio Oliveira, de
uma planta de processamento de níquel. Os investimentos prévios e as
expectativas geradas já influem nas disputas políticas no município. E a
empresa Global Mining Exploration do Brasil (GME4), integrante do
Grupo Opportunity do polêmico investidor Daniel Dantas, está buscando no exterior compradores para o novo distrito ferrífero identificado com
potencial estimado de produção de 800 milhões de toneladas de ferro nos
municípios de Curral Novo, Paulistana, Jacobina do Piauí e Betânia.
374 MARKUS BROSE; AYRI SARAIVA RANDO
gências entre os países nas negociações do clima, também há diferenças
nas iniciativas sub-nacionais no país.
Enquanto grandes capitais como São Paulo e Rio de Janeiro elaboraram seus inventários de emissões de gases de efeito estufa, iniciaram a
elaboração de nova legislação e implantam novos controles, a maioria dos
municípios do país ainda não iniciou o debate sobre os impactos da mudança do clima em sua economia ou na composição futura da sua arrecadação fiscal.
Na esfera estadual, enquanto o governo de Santa Catarina alterou a
legislação visando reduzir em 80% sua área de proteção permanente ao longo dos córregos e rios, gerando forte reação pelo MMA e Ibama, o estado de
Espírito Santo criou um fundo a ser alimentado pelo pagamento de royalties
de petróleo, gás e hidrelétricas com o objetivo de financiar o replantio e a
recomposição das suas matas ciliares. O Governo do Mato Grosso declarou
que o desmatamento é necessário para viabilizar uma agricultura forte que
combate a fome, ao passo que o Governo do Amazonas criou, mediante
uma parceria público-privada, a Fundação Amazonas Sustentável para
viablizar o pagamento de serviços ambientais a ribeirinhos.
Assim, não existe ainda um consenso de como os governos subnacionais irão reagir às mudanças do clima. Por sua vez, a resposta do
Governo do Estado do Piauí aos desafios da alteração do clima está baseada em um tripé formado pelas seguintes componentes:
1) ampliar a capacidade de formulação de políticas públicas de adaptação e mitigação – o enfoque inicial está em informar e capacitar um
amplo grupo de servidores públicos estaduais que possam atuar como
multiplicadores e estimular a internalização das informações e das prioridades do plano de governo relativo às mudanças climáticas nos respectivos órgãos públicos;
2) qualificar o debate público no estado promovendo a participação
– a atual administração estadual tem sua origem nas organizações da
sociedade civil e traz consigo a preocupação em extrapolar o debate
sobre a preparação da sociedade piauiense para as mudanças climáticas para além dos círculos técnicos e acadêmicos, integrando os atores
da iniciativa privada e da sociedade civil no debate sobre o futuro do
estado;
3) apoiar e difundir projetos demonstrativos que estimulem a inovação pública e privada – tendo em vista a forte presença do setor pú-
5 INICIATIVAS PRIORIZADAS
Tendo em vista as fragilidades institucionais, bem como diversos
imprevistos ocorridos neste período, como a crise financeira internacional
em final de 2008, seguida de enchentes catastróficas no Piauí em início de
2009, o ritmo de ação do projeto não seguiu plenamente o cronograma de
ação inicialmente previsto e teve que ser adequado à realidade. As prioridades foram as seguintes:
1) ampliar a capacidade de formulação de políticas públicas de adaptação
e mitigação
• Curso para multiplicadores do núcleo de governo – em meados de 2007,
uma equipe de técnicos da Seplan e Semar participou em São Paulo de
um curso introdutório às mudanças climáticas e ao mercado de carbono, realizado em parceria entre a CARE Brasil e a Social Carbon, contando com diversos palestrantes, incluindo um representante da Comissão
Interministerial de Mudança Global do Clima (CIMGC). Esta equipe
passou a orientar as demais etapas do projeto;
• Comissões internas de serviços ambientais – a Semar coordenou o processo de nomeação de uma Comissão de Serviços Ambientais, composta
375 4.8 A POLÍTICA ESTADUAL DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS E COMBATE À POBREZA NO PIAUÍ
blico na sociedade piauiense, o Governo Estadual pretende utilizar sua
capacidade de articulação para estabelecer ações pioneiras nas áreas de
adaptação e mitigação, que possam servir de estímulo para desencadear modificações de posturas e prioridades também nos demais setores
da sociedade.
Para operacionalizar esta estratégia, o Governo do Estado buscou
estabelecer uma aliança multissetorial, envolvendo os setores público, privado e sociedade civil, promovendo a criação de espaços de aprendizado e
criatividade para além da tradicional divisão setorial das secretarias estaduais. Nesse sentido, foi articulado o apoio e a cooperação técnica coordenados pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semar)
e a Secretaria Estadual do Planejamento (Seplan), com uma instituição de
pesquisa e ensino superior, o Centro Clima da Coppe/UFRJ, uma ONG,
a CARE Brasil, bem como duas empresas do mercado de carbono, a
CantorCO2e, especializada no mercado certificado, e a Social Carbon,
especializada no mercado voluntário.
•
•
376 MARKUS BROSE; AYRI SARAIVA RANDO
•
•
no mínimo por três funcionários, em cada órgão público estadual, visando formar uma rede intersecretarias que possibilitasse a sinergia nas
ações e a superação dos limites institucionais no trato dos temas ambientais, em especial das mudanças do clima;
Formação de multiplicadores – foi celebrado convênio com o Centro
Clima, da Coppe/UFRJ, centro de excelência na formulação de políticas
públicas para adaptação e mitigação às mudanças climáticas, com o objetivo de capacitar um grupo de 100 formadores de opinião no estado,
incluindo representantes das Comissões Ambientais, mas também
reprentantes de instituições de ensino e pesquisa, bem como jornalistas;
Criação da equipe executiva intersetorial – por decreto, o governador
criou em meados de 2007 uma Equipe Executiva, composta por representantes de diversas secretarias, com vistas a coordenar internamente
no governo a Política Estadual de Mudanças Climáticas e Combate à
Pobreza. No âmbito desta equipe, foi formado um Comitê Diretivo,
com representantes da Semar, da Seplan e da CARE Brasil;
Coleta de dados e estudos – a geração de conhecimento sobre os biomas
do Piauí e os desafios para sua sustentabilidade tem sido registrada de
modo difuso ao longo dos anos. Foi iniciado um esforço no sentido de
reunir dados e pesquisas já disponíveis, bem como estimular a produção
de novas informações gerenciais. Entre outros, a Seplan solicitou à Universidade Federal do Piauí a elaboração de uma proposta para o planejamento regionalizado (CASTRO, 2007);
Coordenadoria de Convivência com o Semi-árido – também conhecida
como Casa do Semi-Árido, esta nova unidade do Executivo visa integrar
as ações públicas focadas no semi-árido, em especial o programa de implantação de cisternas de coleta de água de chuva em propriedaes familiares; a promoção da educação contextualizada ao semi-árido na rede
pública; e a qualificação das cadeias produtivas do mel e do caju na
agricultura familiar.
2) qualificar o debate público no estado promovendo a participação
• Criação do Fórum Estadual – por decreto do governador, foi criado em
2007 o Fórum Estadual de Mudança Climática e Combate à Pobreza,
que visa constituir um espaço público de debate e informação entre os
diversos segmentos da sociedade acerca das mudanças climáticas e seus
impactos no estado. Primeiras palestras de sensibilização e informação
3) apoiar e difundir projetos demonstrativos que estimulem a inovação
pública e privada
• Legislação de compras sustentáveis – mediante a qualificação das compras públicas pela preferência por produtos com uma cadeia produtiva
sustentável, o poder público pode induzir a maior oferta e menor custo
de produtos favoráveis ao clima, bem como estimular que o setor privado siga o mesmo caminho. Foi realizada articulação junto à Comissão
Permanente de Licitação e Procuradoria para a adequação do regimento
e dos editais para priveligiar, por exemplo, a compra de lâmpadas fluorescentes, carros flex e biocombustíveis;
• Piloto de compra sustentável – buscando estabelecer um piloto para superar o paradigma da compra de bens apenas pelo critério de menor
preço, a Semar e a Seplan iniciaram em 2008 a aquisição de papel reciclado
para abastecer o consumo cotidiano das repartições;
• Legislação de pagamento por serviços ambientais – com base na experiência com pagamento a agricultores pelo reflorestamento e produção de
água potável em Minas Gerais, a Semar iniciou análises visando estabelecer um mecanismo de financiamento para o pagamento a agricultores
familiares para proteção da vegetação nativa no entorno de unidades de
conservação;
377 4.8 A POLÍTICA ESTADUAL DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS E COMBATE À POBREZA NO PIAUÍ
para o público, em especial jornalistas, foram realizadas ao longo de 2008,
e o fórum foi lançado em 2009;
• Capacitação massiva – foi iniciada a elaboração de uma publicação de
alfabetização em mudanças climáticas para ser usada como ferramenta
de educação à distânica ao público em geral, conforme experiência prévia de um projeto conjunto da CARE Brasil e Seplan sobre orçamento
público em 2005, bem como para acesso à informação de professores da
rede pública;
• Primeiro comitê de gestão de bacia hidrográfica – após longa fase de
articulações e estudos, em 2009 a Semar oficializou o Comitê de Bacia
Hidrográfica dos Rios Canindé e Piauí. Entre as 12 bacias hidrográficas
do estado, esta é a maior, abrangendo 103 municípios e concentrando a
maior parcela do semi-árido. O comitê possibilitará o início de um processo de gestão integrada e transparente dos recursos hídricos, e quando
iniciar a cobrança pela água, deverá induzir ações de economia e reuso
da água.
378 MARKUS BROSE; AYRI SARAIVA RANDO
• Estudo da APA do Rangel – visando subsidiar as análises da Semar, a
CARE Brasil contratou em 2009 uma consultoria para estudar o potencial de pagamento por serviços ambientais no entorno da APA do Rangel,
área de 27.000ha de transição entre Cerrado e Caatinga no centro-oeste
do estado, mediante acesso ao mercado voluntário de créditos de carbono;
• Projeto de adequação de fogões a lenha – com base na experiência internacional com melhoria da eficiência energética de fogões domésticos a
lenha, a CARE Brasil contratou consultoria para diagnótico no norte do
estado; foi realizada uma visita técnica ao programa de substituição de
fogões do Governo Estadual do Ceará, bem como iniciado intercâmbio
com o Instituto Perene, que está testando o potencial do mercado de
carbono para fogões no Recôncavo Baiano;
• Piloto de coleta de óleo doméstico – a estatal Águas e Esgotos do Piauí
SA (Agespisa) iniciou projeto de coleta de óleo comestível utilizado
em residências e restaurantes na capital, oferecendo remuneração pelo
abatimento na conta de água. Parte dos 4.000l/mês coletados é revendida para empresas de reciclagem, outra parte está sendo processada
em uma mini-usina experimental para a produção de biodiesel para
abastecer a frota da Agespisa;
• Piloto de acesso ao mercado de carbono – a CARE Brasil contratou
consultoria para efetuar diagnóstico do potencial de projetos de mitigação
de emissões para o mercado de carbono no estado. Foram identificados
dois potenciais em curto prazo: 1) captura de gás metano emitido pelas
lagoas de decantação de esgoto doméstico da Agespisa, no entorno de
Teresina; 2) substituição da fonte de energia nos fornos das empresas
ceramistas no interior do estado. Ambos os projetos apresentam barreiras tecnológicas, bem como limitações no acesso ao financiamento prévio, e estão em análise;
• Inventário das emissões da Governadoria – o primeiro teste de inventário das emissões de gases de efeito estufa pelo Palácio do Karnak foi
realizado mediante consultoria da empresa CantorCO2e que registrou
157t de gases de efeito estufa emitidas durante o ano de 2008. A Semar
iniciou a compensação por meio de um ato simbólico do governador
para plantio de um bosque de árvores nativas. O principal objetivo dessa
ação consiste em estimular o debate sobre o padrão de emissões do setor
público estadual.
a) qualificação do currículo para empreendedores rurais – com o objetivo de contribuir para uma educação contextualizada, a CARE Brasil vem articulando a introdução de elementos de convivência do
semi-árido e do empreendedorismo, tanto social como econômico, no
ensino oferecido às juventudes no norte do Piauí. Com doação dos
Correios e da empresa Pfizer, a CARE Brasil contribuiu para a qualificação das unidades didáticas de aves e suínos da Escola Família Agrícola Santa Ângela, no município de Pedro II. Na segunda etapa, está
sendo prestada assessoria para a consolidação econômica do assentamento Paraíso, o primeiro assentamento para jovens no estado, bem
como a replicação do enfoque junto à Escola Família Agrícola do
município de São João do Arraial;
b) formação sustentável de empreendedores – visando testar o formato
de escolas que sejam economicamente sustentáveis, foi estabelecida uma
parceria com a Escola São Francisco, mantida pela Fundación Paraguaya
nos arredores de Assunção, origem da rede internacional de escolas sustentáveis Ensine uma Pessoa a Pescar1. Após participar do projeto piloto
de montagem de uma escola família agrícola no município de São João
do Arraial, com doação recebida da União Européia, a CARE Brasil está
em fase de captação de doações para a instalação do Centro de Formação de Empreendedores (Cefem) no município de Cajueiro da Praia.
Foi elaborado o plano de negócios para a escola que demonstra a viabi-
1
Veja o site: <http://www.teachamantofish.org.uk>
379 4.8 A POLÍTICA ESTADUAL DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS E COMBATE À POBREZA NO PIAUÍ
E em 2009 a Assembléia Legislativa aprovou a legislação do ICMS
Ecológico, que normatiza que uma parcela do Imposto sobre Circulação
de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) seja repassado como compensação fiscal para municípios que possuem unidades de conservação e
desenvolvem ações de proteção ambiental.
Em seu papel de apoio à formulação da Política Estadual de Mudanças Climáticas e Combate à Pobreza, a CARE Brasil vem realizando
diversos projetos de introdução e teste de tecnologias sociais que possam
contribuir para o aumento da capacidade de adaptação da sociedade. Os
temas da educação e da geração de renda são prioritários neste sentido:
lidade de geração de renda por meio de unidades de produção de hotelaria
e ecoturismo; leite e laticínios; piscicultura; agroindústria de
beneficiamento de frutas e hortaliças e verduras orgânicas;
380 MARKUS BROSE; AYRI SARAIVA RANDO
c) fortalecimento do capital humano e do capital social – em parceria
com a Universidade Federal do Piauí – Campus Parnaíba, a Embrapa
Meio-Norte e o Instituto Floravida, a CARE Brasil articula uma rede
de integração e relacionamento entre 60 grupos de jovens no MeioNorte e Norte do Piauí. Mobilizando as capacidades e habilidades de
cerca 400 rapazes e moças em atividades de lazer, cultura, formação
política e estímulo ao empreendedorismo, o programa, que conta com
doação da Fundação Kellogg, visa contribuir para a formação das novas lideranças para a região, buscando que os jovens permaneçam na
escola e concluam o ensino médio;
d) ampliação da capacidade econômica de populações vulneráveis –
em parceria com a ONG Instituto Palmas, de Fortaleza, e a Diretoria de
Menor Renda do Banco do Brasil, foi testada a implantação de bancos
comunitários em territórios periféricos. Com recursos de diferentes doadores e mobilização de parceiros locais, foi apoiada a implantação do
Banco dos Cocais, no município de São João do Arraial, do Banco Caju,
no município de Cajueiro da Praia, e do Banco Semear, no município
de Parnaíba. Estas iniciativas visam dinamizar a produção e o comércio
local, bem como democratizar o acesso a serviços de microfinanças;
e) informação e sensibilização para a opinião pública – com doação
da CARE Reino Unido, a CARE Brasil estabeleceu parceria com a
Secretaria Estadual de Comunicação Social (Secom) em projeto de
sensibilização e formação dos radialistas comunitários no tema desenvolvimento local, buscando contribuir com a qualificação do debate
público sobre as mudanças que ocorrem nas pequenas cidades do interior. Em uma segunda etapa do projeto, o tema mudanças climáticas e
combate à pobreza deverão ser integrados de uma forma mais ativa e
qualificada à informação oferecida à opinião pública;
f ) piloto de geração de energia renovável pela agricultura familiar –
com doação da empresa UPS, foram implantados dois biodigestores
g) alternativas de renda no mangue – projeto piloto de criação racional
de ostras em travesseiros submersos, no distrito de Barra Grande, com
recursos da TK Foundation. Implantação de unidade piloto de
beneficiamento do cajuí para agregação de valor no extrativismo, geração de renda para famílias vulneráveis de Ilha Grande, promoção do
repovoamentpo de dunas e valorização do mangue em pé, com recursos da Fundação Kellogg e parceira com Embrapa Meio-Norte. Parceria com o Programa Peixe-Boi Marinho do Centro de Mamíferos
Aquáticos (CMA) na articulação de atores locais e regionais para preservação da espécie por meio do turismo de observação, pesquisa e
manutenção do centro de visitação, no município de Cajueiro da Paria. Fortalecimento do empreendedorismo juvenil em Barra Grande
para valorização do mangue por meio de safari fotográfico em três
rotas de turismo: do cavalo-marinho, da ostra e das garças, com recursos da Comunidade Européia.
RESUMINDO
As mudanças climáticas, em especial o aumento da temperatura, já
estão afetando o Nordeste. Segundo recente relatório da Agência Nacional
de Águas (ANA), mais de 70% das cidades com população acima de 5.000
habitantes no sertão nordestino enfrentarão crise no abastecimento de água
até 2025, independentemente da questionável transposição do rio São Francisco. Os problemas de abastecimento deverão atingir cerca de 41 milhões
de pessoas na região. O Nordeste deve ficar de 2 a 4 graus Celsius mais
quente, e de 15 a 20% mais seco, acarretando perda de biodiversidade na
Caatinga, diminuição do nível dos açudes, impactos na agricultura e na saúde pública.
As respostas às projeções acerca da mudança do clima têm variado
muito no país. Enquanto alguns municípios e governos estaduais estão im-
381 4.8 A POLÍTICA ESTADUAL DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS E COMBATE À POBREZA NO PIAUÍ
com o objetivo de difundir a tecnologia de geração de energia a partir
da biomassa, na Escola Família Agrícola do município de São João do
Arraial, e no assentamento Paraíso, no município de Pedro II. Com
recursos do edital de projetos do Sebrae-PI, foram ainda implantados
três biodigestores visando introduzir a geração de energia de biomassa
na cadeia produtiva de caprinos, no município de Batalha;
plantando e testando novas políticas públicas ambientais, outros governos
permanecem passivos, e outros ainda vêm combatendo a legislação ambiental.
O aspecto inovador da aliança multissetorial estabelecida pelo Governo do Estado do Piauí em 2007 reside na preocupação em integrar as
ações de adaptação e mitigação às mudanças climáticas com as políticas de
promoção do desenvolvimento e combate à pobreza. Esta constitui uma
ação piloto no cenário nacional, que ainda é fortemente marcado pelo
paradigma das negociações internacionais sobre o clima, que focam sempre nos governos nacionais.
Tendo em vista as limitações financeiras e de recursos humanos para
uma iniciativa deste tipo, o Governo do Estado do Piauí buscou unir forças com várias organizações na promoção dos estudos e análises necessários para estabelecer uma nova política pública estadual, o que também
representa uma inovação e indica o caminho para as ações futuras, pois a
complexidade e o desafio representados pelas mudanças do clima não poderão ser enfrentados por um ator da sociedade apenas, pois demandam
um esforço concentrado.
382 MARKUS BROSE; AYRI SARAIVA RANDO
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Os textos conferem com os originais, sob responsabilidade dos autores.
ESTA PUBLICAÇÃO FOI CONFECCIONADA
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