Miocardiopatia Dilatada induzida por Feocromocitoma: Caso Clínico
Os Cavalos também se abatem!
Cordeiro F., Neves L.
Universidade de Lisboa, Faculdade de Medicina, Colégio Universitário de Cardiologia
Objectivos
Discussão
Ecocardiograma transtorácico (EcoTT):
Apresentação e discussão de caso clínico de feocromocitoma, uma neoplasia endócrina rara, que foi diagnosticado
com base numa Miocardiopatia dilatada (MCD) sintomática, também esta pouco frequente como quadro inicial.
Foi colocada a hipótese inicial de pneumonia, mas face ao insucesso da antibioterapia, à evolução para uma IC mais
evidente, a um NT-pró-BNP elevado e a uma dilatação ventricular e disfunção sistólica marcada (Fej: 30%) evidente no
EcoTT, foi estabelecido o diagnóstico de IC com disfunção sistólica/MCD. A HTA descontrolada e a infeção respiratória,
foram 2 possíveis causas da descompensação da IC.
Introdução
Os feocromocitomas são neoplasias de células cromaffins, com origem na medula da suprarrenal ou noutros locais
extrasuprarrenais (paragangliomas). Há maior predomínio entre 40-50 anos; incidência semelhante em ambos os
sexos e uma prevalência de 2 casos em 100.000/ano.1
Figura 1. EcoTT Modo-M e Bidimensional
Aurícula esquerda ligeiramente dilatada; Ventrículo
esquerdo (VE) dilatado, com paredes ventriculares não
hipertrofiadas, mas com função sistólica global
razoavelmente mantida com ligeira hipocinésia da parede
inferior (Fej de 30%); Regurgitação mitral ligeira detectada
por doppler(não mostrado).
A grande maioria (90%) é benigna, unilateral e esporádica. A “regra dos 10” continua a ser utilizada pela simplicidade
na memorização das suas frequências.
Tabela 1. “Regra dos 10” do Feocromocitoma
São hereditários
10%
São bilaterais
São extra-suprarrenais (paragangliomas)
Tomografia computorizada (tóraco-abdómino-pélvica):
São extra-abdominais
São malignos
Cursam sem hipertensão
Figura 2. TC tóraco-abómino-pélvica.
Corte torácico em janela pulmonar(a) que revela infiltrado
em vidro despolido com espessamento dos septos
interlobulares; engurgitamento hilar bilateral; derrame
pleural bilateral com componente intercisural;
Corte abdominal (b) mostrando massa em contiguidade
com a suprarrenal esquerda com 4,6cm heterogénea.
As manifestações clínicas resultam da produção excessiva de catecolaminas e classicamente consistem em: crises
paroxísticas de hipertensão, cefaleias, palpitações, diaforese e sensação de morte iminente.
Apenas 29% dos doentes têm hipertensão de carácter persistente, enquanto que 21% dos feocromocitomas
permanecem assintomáticos.7
O aumento do tónus adrenérgico produz complicações sistémicas várias, destacando-se aquelas sobre o sistema
cardiovascular que incluem disritmias, insuficiência cardíaca, miocardiopatia dilatada, edema pulmonar, e até falência
multiorgânica ou crises hipertensivas potencialmente letais.8-12
Considerou-se a possibilidade desta poder ser secundária a uma neoplasia endócrina, quando se teve acesso ao
resultado da TC. Os incidentalomas suprarrenais são relativamente comuns como prova o estudo da Mayo Clinic, em
que foram revistas todas as TC num período de 5 anos, e em que 3,4% destas, existiam massas suprarrenais.1 Uma
outra análise italiana, verificou que 4,2% de todos os incidentalomas, eram feocromocitomas.2 Apesar da maioria ser
clinicamente não funcionante, são sempre merecedores de investigação.3,4
Seguiu-se o algoritmo diagnóstico demonstrando a existência de excesso de catecolaminas séricas e urinárias, bem
como localizando o tumor por método de imagem. A história familiar positiva e a idade do doente, fariam pensar numa
predisposição genética, que aliada à possibilidade de metástases motivaram o pedido de cintigrafia MIBG.
Com o diagnóstico de feocromocitoma foi iniciado o bloqueio α-adrenérgico (fenoxibenzamina) por 25 dias até à
cirurgia (superior ao máximo recomendado, entre 10-14 dias). A hipotensão arterial, foi um sinal de bloqueio eficaz; só
depois foi iniciado o bloqueio β.
Dois meses depois constatou-se ausência de sintomas, valores pressóricos dentro da normalidade e um resultado de
Eco-TT normal. Resultados tão animadores, nem sempre são a regra. Na publicação efetuada por Amar et al,
verificou-se uma taxa de recidiva de sintomas e de HTA de 25% no pós-operatório.5
Em relação à avaliação ecográfica, observou-se a reversão da MCD 2 meses após a cirurgia, o que está dentro do
intervalo previsto (6 semanas-16 meses pós-cirurgia).6
Nesta fase admite-se: Cardiopatia hipertensiva (em fase dilatada) e HTA secundária a provável feocromocitoma.
É realizada avaliação bioquímica:
Tabela 2. Doseamento das Catecolaminas Séricas e na Urina de 24h
Caso Clínico
L.M., sexo masculino, 40 anos, leucodérmico, natural e residente em Lisboa, engenheiro informático e autónomo.
Em aparente saúde até cerca de 3 meses antes do internamento, quando inicia quadro de dispneia e fadiga de
agravamento progressivo, para esforços mínimos, acompanhado de tosse não produtivade de predomínio noturno e
emagrecimento involuntário (≈10Kg). Recorreu ao médico assistente, que admitiu “pneumonia atípica” (sic), pelo que
realiza alguns exames e antibioterapia, mas sem qualquer melhoria. No decurso do tratamento apresenta um pico
febril (Taxilar = 39ºC). Passados 2 meses, refere manutenção da sintomatologia referida e aparecimento de ortopneia,
dispneia paroxística noturna e episódios ocasionais de pré-cordialgia tipo aperto, sem relação com o esforço e sem
irradiação, acompanhado de sudorese.
Antecedentes pessoais: HTA, Dislipidémia e Hiperuricémia medicados. Negava doenças respiratórias, bem como
hábitos tabágicos, etílicos ou toxifílicos. Antecedentes familiares: avó materna com HTA grave.
Ao exame objetivo: vigil, ansioso, pálido, polipneico e sudorético. TA-178/119 mmHg, FC- 113bpm e SatO2 de 82%.
À auscultação cardíaca – S1 e S2 rítmicos e taquicárdicos, mas sem sopros. À auscultação pulmonar – fervores
crepitantes nas metades inferiores de ambos os hemitórax. Restante exame sem alterações.
Na urgência do HSM, realiza:
Toma de 25mg de captopril, per os + Oxigenoterapia por ON a 3L/min;
Gasimetria arterial (O2 3L/min ): pH 7,32, pO2 50mmHg, pCO2 46,4mmHg, HCO3- 23,3 mEq/L, SatO2 82%.
ECG: taquicardia sinusal (120/min), padrão de sobrecarga auricular esquerda e desvio esquerdo do eixo elétrico.
Avaliação Analítica: aumento dos parâmetros inflamatórios (leucocitose 18830L/µL e PCR:3,28mg/dL); trombocitose
(513000µL); NT-próBNP elevado (7678pg/mL); aumento do colesterol total (234mg/dL), hiperuricémia (11,2mg/dL), e
alterações das provas hepáticas (TGP 49 U/L, Gama-GT 62 U/L, FA 132 U/L).
Rx toráx (PA): reforço do retículo pulmonar, aumento da aurícula e ventrículo esquerdos.
Admite-se IC esquerda descompensada por provável HTA mal controlada e/ou infeção respiratória.
Realiza fluidoterapia, diuréticos e vasodilatador EV. É decidido o seu internamento.
Os MCDT’s realizados em ambulatório 3 semanas antes:
Catecolaminas
séricas
Epinefrina
160 pg/mL
Dopamina
828 pg/mL
Norepinefrina
Catecolaminas Totais
11046 pg/mL
Epinefrina
Não detectável
Dopamina
188 µg/L
Norepinefrina
Catecolaminas
e seus metabolitos
na urina de 24h
1005 pg/mL
Normetanefrina
Metanefrina
Ácido Vanilmadélico
Ácido 5-hidroxindolacético
Ácido homovanílico
1944 µg/L
6003 µg/L
181 µg/L
25 mg/24h
3 mg/24h
2,9 mg/24h
O estudo endocrinológico complementar (ACTH, cortisol, renina, TSH, FT4, ecografia tiroideia) mostra-se
negativo. O contacto do médico assistente da avó materna, acrescenta que esta já havia sido operada a uma
neoplasia da suprarrenal.
O passo seguinte passou por realizar uma cintigrafia MIBG com I123:
A
B
A fisiopatologia da MCD secundária a feocromocitoma, envolve mecanismos de lesão direta ou indireta dos miócitos
cardíacos pelas catecolaminas e seus produtos de oxidação. A lesão direta é devido à isquémia induzida pela
taquicardia e/ou pela sobrecarga cardíaca devido a HTA associada a vasoconstrição e vasoespasmo coronário.7,8 Já a
down-regulation dos receptores ß-adrenérgicos, com a consequente diminuição do número de unidades contrácteis e
sua respetiva função, parecem estar na base dos efeitos indiretos.9 Para além disso, as catecolaminas oxidadas
aumentam a permeabilidade do sarcolema e causam perturbações da homeostasia do cálcio.10 A inadaptação cardíaca
face a estas novas alterações, levam a várias alterações anátomo-funcionais (ex: dilatação ventricular) com instalação
de IC.
A miocardiopatia induzida por catecolaminas é uma entidade relativamente recente e com várias etiologias propostas,
o que não permite saber a verdadeira prevalência. Uma vez que o feocromocitoma é também uma entidade rara, o seu
diagnóstico torna-se um verdadeiro desafio e uma corrida contra o tempo para evitar a mortalidade e a morbilidade não
só desta, como da associação de ambas. O bom prognóstico da miocardiopatia (induzida pelas catecolaminas) vai
depender assim do diagnóstico e tratamento precoces da causa secundária, que no caso relatado se tratava de um
feocromocitoma.
Conclusão
C
Figura 3. Cintigrafia MIBG-I123
(realizado no D20 de internamento). A: Vista anterior; B: Vista posterior; C. vista posterior do
abdómen ampliado. Hiperfixação nodular do radiofármaco na suprarrenal esquerda,
aproximadamente com 3-4 cm de diâmetro.
Com o diagnóstico definitivo de feocromocitoma, institui-se terapêutica com fenoxibenzamina com titulação
progressiva até 90mg/dia, e posteriormente com bisoprolol 5mg/dia. Nos primeiros dias registaram-se vários
episódios de hipotensão postural (controlados com redução da dose de fenoxibenzamina e associando diltiazem).
O doente é submetido a adrenalectomia esquerda via laparoscopia, que não regista intercorrências.
A peça submetida a exame histológico confirmou feocromocitoma. O doente tem alta estável clinicamente.
Em consulta (2 meses após a alta) o doente encontrava-se clinicamente assintomático, hemodinamicamente estável,
com normalização dos doseamentos séricos e urinários de catecolaminas (excluindo-se tumor residual ou lesão renal)
e o EcoTT a demonstrar cavidades cardíacas de dimensões normais, com recuperação da função sistólica global (Fej 58%).
Uma vez que feocromocitoma é conhecido como “um dos grandes imitadores”, rapidamente é notada a necessidade
de um levado índice de suspeição para chegar ao seu diagnóstico. Isto, sobretudo, em quadros de apresentação mais
atípica, como no caso relatado.
Para finalizar, é importante destacar que as patologias aparentemente mais complexas, mesmo que associadas,
podem ser contornadas com um diagnóstico e tratamento precoce e adequado, dai o subtítulo “Os cavalos também
se abatem!”.
Bibliografia
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Miocardiopatia dilatada secundária a feocromocitoma