1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC
CENTRO DE ARTES – CEART
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO – PPGT
LAÉDIO JOSÉ MARTINS
ANÁLISE ATIVA: UMA ABORDAGEM DO MÉTODO DAS AÇÕES
FÍSICAS NA PERSPECTIVA DO CURSO DE DIREÇÃO TEATRAL DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA/RS
FLORIANÓPOLIS,SC
2011
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LAÉDIO JOSÉ MARTINS
ANÁLISE ATIVA: UMA ABORDAGEM DO MÉTODO DAS AÇÕES
FÍSICAS NA PERSPECTIVA DO CURSO DE DIREÇÃO TEATRAL DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA/RS
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Teatro como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Teatro.
Orientador: Professor Dr. José Ronaldo Faleiro
FLORIANÓPOLIS,SC
2011
3
Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC
M379a
Martins, Laédio José
Análise ativa: uma abordagem do método das ações físicas na perspectiva
do curso de direção teatral da Universidade Federal de Santa Maria/RS / Laédio
José Martins, 2011.
159 p. : il. ; 30 cm
Bibliografia: p. 135-142
Orientador: Dr. José Ronaldo Faleiro
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina,
Centro de Artes, Mestrado em Teatro, Florianópolis, 2011.
1. Teatro – produção e direção. I. Faleiro, José Ronaldo. II. Universidade
do Estado de Santa Catarina. Mestrado em Teatro. – III Título.
CDD: 792.0233
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LAÉDIO JOSÉ MARTINS
ANÁLISE ATIVA: UMA ABORDAGEM DO MÉTODO DAS AÇÕES
FÍSICAS NA PERSPECTIVA DO CURSO DE DIREÇÃO TEATRAL DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA/RS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade
do Estado de Santa Catarina – UDESC, como requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Teatro.
Banca Examinadora:
Orientador:
_______________________________________________
Professor Dr. José Ronaldo Faleiro
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC
Membro:
_______________________________________________
Profª. Drª. Maria Brígida de Miranda
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC
Membro:
_______________________________________________
Prof. Dr.Robson Corrêa de Camargo
Universidade Federal de Goiás – UFG
Florianópolis, 24 de Março de 2011
5
Aos que virão e àqueles que não são mais. Evoé!
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todas as pessoas que de forma ou outra estiveram envolvidas com
meu processo artístico ao longo desta jornada: professores, técnicos, colegas de
classes, alunos, atores, diretores, amigos, às bolsas de fomento científico, FATEC,
CAPES, enfim...
À Nair Dagostini, por ser um exemplo de humildade e generosidade e por
compartilhar o trabalho de sua vida.
Ao Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro, pela paciência e também pelo silêncio,
sobretudo pelo respeito aos meus limites. Aos demais Professores do PPGT e também
Mila e Sandra. Obrigado!!!
À família Guerra, pela acolhida em seu seio nesta última década e por toda a
ajuda recebida. Serei eternamente grato.
À Pedro e Marília Zanotto, pelos anos mais difíceis. Obrigado por não
abandonarem o navio, que tinha muitos ratos...
Ao meu irmão, Cezar Alex, por me mostrar a força do conflito e o caminho da
UFSM. E viva o drama!!!
Minha Mãe, Carmem, pra quem não tenho palavras, só coração... Te Amo!!!
Por fim, minhas meninas, Raquel, companheira de aplausos e de vaias e
Clarisse, pra quem Stanislávski é um sequestrador sem coração...
Sou por vocês!!!
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RESUMO
MARTINS, Laédio José. Análise Ativa: Uma Abordagem do Método das Ações
Físicas na Perspectiva do Curso de Direção Teatral da Universidade Federal de Santa
Maria/RS. 2011. 253 f. Dissertação (Mestrado em Teatro) Universidade do Estado de
Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2011.
Este trabalho trata do processo de formação artística em Direção Teatral descrito da
perspectiva do Método da Análise Ativa. O Método foi desenvolvido na Rússia por
Konstantin Stanislávski (1863-1938) e transmitido por um de seus alunos, Gueorgui
Tovstonógov (1915-1989) à Nair Dagostini (19_ _ ), primeira brasileira a estudar no
Instituto Estatal de Teatro, Cinema e Música de Leningrado (1978-1981). Seu
aprendizado reverbera no Curso de Direção e Interpretação Teatral da Universidade
Federal de Santa Maria/RS no período de 1994-2004, tempo durante o qual pode
aplicar algumas das metodologias do paradigma que encontrou na URSS. O Plano
Político Pedagógico que Dagostini ajudou a formular foi construído sobre uma base
comum para atores e diretores e o Método da Análise Ativa ocupou o lugar de centro
unificador do processo de educação e formação do artista. A aproximação ao Método
se dava gradualmente ao longo dos três primeiros semestres e continuava sendo
aplicado como metodologia para a concretização do processo de transposição do texto
para a cena durante a graduação. A Análise Ativa, por intermédio do Método das Ações
Físicas – que possibilita a aquisição e domínio dos elementos do Sistema Stanislávski –
faculta o diretor conduzir o ator no percurso de concretização da ideia central da obra
que se monta, inserindo o ator no universo da peça e desvendando através da ação
proposta pelas circunstâncias dadas a intimidade das relações estabelecidas pelo
autor, o que está por detrás das palavras.
Palavras-chave: Sistema Stanislávski. Método da Análise Ativa. Ações Físicas. Direção
Teatral. Processo criativo.
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ABSTRACT
MARTINS, Laédio José. Active Analisys Method: An approach to the Physical
Actions Method from the Perspective of the Directing Theater in the Federal
University of Santa Maria / RS. 2011. 253 f. Dissertação (Mestrado em Teatro)
Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro,
Florianópolis, 2011.
This paper discusses the process of the artistic training described in Theater Directing
from the perspective of the Active Analysis Method. The method was developed in
Russia by Konstantin Stanislavsky (1863-1938) and transmitted by one of his students,
Gueorgui Tovstonógov (1915-1989) to Nair Dagostini (19_ _), the first Brazilian to study
at the State Institute of Theater, Film and Music Leningrad (1978-1981). The learning
reverberates in the Course of Direction and Theatre Interpretation of the Federal
University of Santa Maria / RS in the period of 1994-2004, during this time it was
possible for her to apply some of the methods of the paradigm found in the USSR. The
Educational Policy Plan which Dagostini helped to formulate was built on a common
ground for actors and directors and the Active Method of Analysis held the post of
unifying center of the process of education and training of the artist. The approximation
of the method was given gradually over the first three semesters and was still being
applied as a methodology for implementation of the transposition of the text to the scene
during graduation. Active Analysis via the Method of Physical Action - that enables the
acquisition and mastery of the elements of the Stanislavski System - provides the lead
actor in the director route to achieving the central idea of the work that is assembled by
inserting the actor on the world of the play and unfolding through the action proposed by
the circumstances given the intimacy of the relationships established by the author,
what's behind the words.
Key-words: Stanislavsky System. Active Analisys Method. Physical Actions. Theater
Directing. Creative Process.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................11
1 PRELIMINARES..........................................................................................................18
1.1 PUBLICAÇÃO AMERICANA X PUBLICAÇÃO RUSSA...........................................22
1.1.1 O TEMPO ENTRE UM LIVRO E OUTRO E AS DIFERENÇAS DE APRESENTAÇÃO............................................................................................................................27
1.1.2 A TERMINOLOGIA EMPREGADA E A TRANSMISSÃO ORAL............................31
1. 2 A PEDAGOGIA DE STANISLÁVSKI.......................................................................35
1.3. A CONTINUIDADE DO PENSAMENTO DE STANISLÁVSKI..................................40
1. 3. 1 Evgueni Bogratiónovich Vartángov (1833-1922)..................................................41
1. 3. 2 Vassili Osipovitch Toporkov (1889-1970)............................................................43
1. 3. 3 Nikolai Mikhailovich Gorchakov (1898-1958).......................................................43
1. 3. 4 Maria Osípovna Knébel (1898-1985)...................................................................44
1. 3. 5 Gueorgui Aleksandrovich Tosvtonógov (1915-1989).............................................45
2. STANISLÁVSKI DA RÚSSIA PARA SANTA MARIA/RS..........................................47
2. 1 RELAXAMENTO DOS MÚSCULOS........................................................................52
2. 2 A IMAGINAÇÃO.......................................................................................................55
2. 3 ATENÇÃO CÊNICA OU ATENÇÃO CRIADORA.....................................................66
2. 4 A ORGANICIDADE NA CENA OU A AÇÃO VERDADEIRA E O “MÁGICO SE”.....76
2. 5 UNIDADES (ACONTECIMENTOS) E OBJETIVOS (CONFLITOS).........................83
3. GENEALOGIA DO MÉTODO DA ANÁLISE ATIVA EM SANTA MARIA/RS............89
3.1. PRIMEIROS PROCEDIMENTOS: A DIVISÃO DA PEÇA E A REVELAÇÃO DO
SUPEROBJETIVO DO AUTOR......................................................................................90
3. 2. O UNIVERSO E A IDÉIA CENTRAL DA OBRA: AÇÕES, SITUAÇÕES E
CIRCUNSTÂNCIAS.........................................................................................................93
3. 3 TOMANDO CONHECIMENTO DO MÉTODO NA ÍNTEGRA..................................98
10
3. 3. 1 A Análise Ativa e Seus Procedimentos..............................................................101
3. 3. 2 O Texto e os Principais Acontecimentos: Um Exemplo...............................109
3. 3. 3 Esquema da „Análise Ativa‟ do Texto.................................................................112
3.4 PRINCÍPIOS DO PROCESSO DE CRIAÇÃO CÊNICA EM DIREÇÃO..................116
3. 5 O ANO DA OPÇÃO................................................................................................119
3. 6 O ÚLTIMO ANO: A BUSCA DE UMA LINGUAGEM..............................................124
3. 6. 1 UMA DRAMATURGIA CONSTRUÍDA...............................................................125
3. 6. 2 UMA ILHA..........................................................................................................129
CONCLUSÃO...............................................................................................................132
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................139
ANEXO 1.......................................................................................................................148
ANEXO 2.......................................................................................................................151
ANEXO 3.......................................................................................................................161
11
INTRODUÇÃO
Meu primeiro contato com o teatro se deu na infância, quando raramente tinha a
oportunidade de ir ao circo ou assistir a uma apresentação teatral e fazia minhas
próprias adaptações de Monteiro Lobato e as apresentava na Escola 1 com e para
colegas e professores. Na adolescência, fui convidado por uma colega de Colégio a
assistir o ensaio de uma montagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna,
pois precisavam de ator para Emanuel, o Jesus afrodescendente2. A partir disso, decidi
que o teatro seria minha opção profissional.
Até o meu ingresso na Universidade no ano de 1999, sempre estive envolvido
com teatro de alguma maneira3, mas com o passar do tempo a necessidade do
aprimoramento se mostrava latente e para poder seguir trabalhando „legalmente‟ na
área, por força da contingência4, prestei vestibular em Santa Maria – RS. Ao ingressar
no Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria5, logo fui convidado
a participar em uma montagem de graduação. Era uma adaptação de O Auto da
Compadecida. O personagem: Emanuel. Essa coincidência me fez encarar o ingresso
no ensino superior como um recomeço. Era como um sinal de que estava no caminho
certo...
Desde os primeiros contatos com o Teatro, seja na escola, seja na participação
efetiva em grupos de Teatro, passando pela graduação e depois pela docência, o que
sempre despertou meu interesse foram as questões referentes à direção de ator na
1
Escola Básica Manuel de Freitas Trancoso, Iraceminha – SC. Hoje Colégio Estadual.
A montagem era resultante de uma Oficina de Teatro ministrada por Neri de Paula, contratado pela
Secretaria Municipal de Cultura de Maravilha – SC, no ano de 1987, com o objetivo de formar um Grupo
de Teatro no município, que recebeu o nome de Grupo Ki-Maravilha de Teatro. O espetáculo ficou em
cartaz por um ano, no município e na região, com apresentações eventuais. O Grupo existiu oficialmente
até o ano de 1993. Foi retomado em 1997/1998 e deixou de existir definitivamente.
3
Em Águas de Lindóia – SP, com Viviane Vaccari através de um projeto desenvolvido pela Secretaria de
Cultura e Turismo daquele município, participei da criação da Companhia Teatral Teens (1994-1996),
atuando como ator e diretor.
4
O fato de não ter cursado magistério e não possuir formação superior começou a dificultar a
possibilidade de trabalhar na área do ensino e prática do Teatro e, portanto, a saída foi o vestibular.
5
O Curso foi criado em 1971, como parte da Licenciatura Curta em Educação Artística. Posteriormente
foi criada também a Licenciatura Plena em Artes Cênicas que se estendeu até 1995, ano que foi
instaurado o Bacharelado, com as opções de Interpretação Teatral e Direção Teatral. A opção se dava a
partir do quarto semestre, até quando a grade curricular era comum tanto para atores como para
diretores. Atualmente o curso voltou a oferecer a Licenciatura.
2
12
transposição do texto para o espetáculo, sobretudo a conexão do imaginário do ator
com a realidade ficcional e com os demais elementos em cena, no estabelecimento da
dramaturgia do espetáculo (“texto” da cena). Durante a graduação, tive acesso à
Análise Ativa, desenvolvida na Rússia por Konstantin Serguiêievitch StanislávskiAlexéiev (1863-1938) e transmitida pela Profª. Drª. Nair D‟Agostini (19_ _), que realizou
seus estudos no Instituto Estatal de Teatro, Cinema e Música de Leningrado, entre os
anos de 1978-1981, com os professores Gueorgui Tovstonógov (1915-1989), Arkadii
Kastman (1921-1989) e Lev Dodin (1944-), seguidores das pesquisas do mestre russo
que apontavam aspectos não abordados nas traduções americanas da obra de
Stanislávski difundidas no Brasil.
A Análise Ativa foi utilizada como condutora do processo criativo nas pesquisas
de Graduação em Direção Teatral, bem como em Interpretação Teatral, na
Universidade Federal de Santa Maria/RS, ocasião em que pude experimentar na prática
sua aplicação e seus desdobramentos. Posteriormente, tive a oportunidade, como
docente, de desenvolver com maior propriedade investigações acerca do referido
procedimento, o que me motivou a intentar uma dissertação acerca de suas
possibilidades de criação, já que não se trata de uma teoria finalizada e – mais
importante – nos permite uma abordagem pessoal.
Nesse contexto, parto de dois pressupostos: 1) a Análise Ativa, desenvolvida por
Stanislávski, é um recurso nas mãos do diretor para a condução do ator no universo
ficcional, posto que esclarece as sutilezas dos personagens através das situações do
texto, bem como possibilita a concatenação coerente dos demais elementos na
contracenação e 2) ela pode ser aplicada a qualquer tipo de literatura, e até mesmo a
situações improvisadas, com maior ou menor grau de dificuldade, favorecendo a leitura
dramatúrgica da ação.
A partir desses pressupostos, destaco a hipótese central da pesquisa:
correlacionando conteúdos provenientes de diferentes campos – o prático (ator; diretor)
e o teórico (dramaturgo; diretor) –, a Análise Ativa se revela um método de tessitura da
dramaturgia do ator, um conector entre o imaginário do ator e a realidade ficcional
proveniente dos mais diversos gêneros literários, matéria textual ou mesmo conteúdo
improvisacional.
13
O objetivo da pesquisa foi investigar os pontos de ligação entre as abordagens
da Análise Ativa considerada como método de condução/direção do processo criativo
do ator no encaminhamento da encenação, sintetizando sua teoria a partir de pesquisa
bibliográfica e de sua utilização no meu processo artístico como graduando na
Universidade Federal de Santa Maria.
Essa iniciativa parte do pressuposto apontado por Stanislávski (1980) de que seu
método não é um receituário, mas um modo de se alcançar o “estado criador correto” e
consequentemente, apresentar a “essência do espírito humano”. Tal método está
calcado na prática e na aplicação de disciplina e trabalho árduo sobre si mesmo.
Utilizei como fontes de pesquisa além das obras de Konstantin Stanislávski
publicadas em língua espanhola pela editora portenha Quetzal, os trabalhos de Eugueni
Bogratiónovitch Vakhtângov (1883-1922), Vassili Osipovitch Toporkóv (1889-1970),
Nikolai Mikhailovich Gorchakov (1898-1958), Maria Osípovna Knébel (1898–1985) e
principalmente os recentes estudos da Profª. Drª. Nair D‟Agostini em sua tese de
doutoramento.
Contextualizando a pesquisa, no primeiro capítulo forneço um panorama geral do
contexto em que se encontrava o teatro quando Stanislávski realizava suas
observações e pesquisas que resultaram em seu conhecido “sistema”, apresentando
uma revisão bibliográfica com apontamentos acerca do cerne da pesquisa, ou seja, a
pedagogia do processo criativo pelo diretor e o trabalho do ator no processo de criação
a partir das postulações de Konstantin Stanislávski (1863-1938). Destaco o trabalho de
Stanislávski como ator e diretor de teatro dedicado a transformar a arte do ator num
ofício digno e reconhecido pela sua própria especificidade e de seu esforço em
sistematizar uma técnica comum e acessível a todos. Falo também de forma sucinta
sobre os alunos de Stanislávski que deixaram depoimentos sobre seus últimos anos de
trabalho e que me têm servido de fontes teóricas de pesquisa em minha prática de
Direção.
Ainda no primeiro capítulo, dedico algumas páginas à discussão sobre os
equívocos relacionados às publicações de Stanislávski em diferentes versões. No
embasamento das discussões – que não se cogitavam em Santa Maria/RS, porque as
edições vertidas do Inglês não eram reconhecidas e nem consideradas, portanto não
14
discutidas – estão as pesquisas do italiano Franco Ruffini (1939-)6, e da norteamericana Sharon-Marie Carnicke (1949-)7, bem como os estudos realizados pelo
argentino Raúl Serrano (1934)8.
Comento o contexto que originou a publicação dos livros de Stanislávski,
primeiro nos Estados Unidos e posteriormente na Rússia, bem como as controvérsias e
hipóteses que esse fato gerou. Descrevo a trajetória temporal entre uma edição e outra
das obras de Stanislávski, com o argumento de que os intervalos de tempo entre as
publicações contribuíram para a difusão parcial do pensamento artístico do mestre
russo. Também discorro sobre a diferença que existe no formato de apresentação das
publicações, a norteamericana (com tradução de Elizabeth Reynolds Hapgood) e a
russa, de O Trabalho do Ator Sobre si Mesmo dividido em dois tomos: No Processo das
Vivências (A Preparação do Ator) e No Processo da Encarnação (A Construção da
Personagem). Também discorro sobre o fato de que a teoria de Stanislávski é repleta
de termos ambíguos oriundos de outras áreas do conhecimento e aplicadas ao contexto
da rotina teatral; palavras como inconsciente, subconsciente, vivência, espírito,
orgânico, natural, imagem etc., são alguns exemplos; todos esses vocábulos são
passíveis de interpretações diversas –
divergências que se ampliam com os
problemas relativos à tradução para outros idiomas.
As questões referentes a essas confusões que não eram ignoradas por
6
Franco Ruffini é professor de Artes Cênicas na Universidade de Roma III. É um dos fundadores da
ISTA, Escola Internacional de Antropologia Teatral e membro de seu quadro de pesquisadores. Depois
de estudar o século XVII e a Renascença, especializou-se em teatro do século XX. Informações extraídas
de <http://www.icaruspublishing.com/monobookf.html>, em 13/01/2011.
7
Sharon Marie Carnicke (1949-) é professora no departamento de Teatro, Língua e Literatura Eslava na
USC (University of Southern California), internacionalmente conhecida como especialista sobre o Sistema
Stanislávski para a formação do ator e para atuação em cinema. Também dirige um laboratório privado
em Los Angeles para atores profissionais na última técnica de Stanislávski – a Análise Ativa. Tem
ministrado aulas de mestrado em instituições como a Moscow Art Theatre School, a Academia Russa de
Teatro de Arte (antiga GITIS), Sorbonne, na França, e no Instituto Nacional de Arte Dramática da
Austrália.
Informações
extraídas
de
<http://www.adsa.edu.au/conferences/pastconferences/2010/keynotes>, em 30/09/2010. Tomei conhecimento das pesquisas de Carnicke no
Programa de PósGraduação em Teatro da UDESC, cursando a Disciplina Investigações Cênicas:
Discursos e técnicas de treinamento de ator no século XX, munistrada pela Prof. Drª Maria Brígida de
Miranda, no Segundo semestre do ano de 2008.
8
Licenciado em Artes, especialidade Teatro no Instituto Ion Luca Caragiale, de Bucareste, Romênia
(1957-1961). Foi diretor da seção de Pedagogia Teatral da Escola Nacional Argentina de Teatro, Diretor
da Escola de Teatros Independentes de Tucumán/AR e atualmente é Diretor da ETBA/AR – Escola de
Teatro de Buenos Aires/AR. Publicou dentre outros, Dialectica del Trabajo del Actor, Tesis sobre
Stanislavski, e Nuevas Tesis Sobre Stanislavski.
15
Stanislávski são comentadas em um subcapítulo, bem como o fato de sua teoria ter
sido divulgada boca a boca antes mesmo das publicações de suas obras. Diversos
alunos de Stanislávski difundiram as teorias do mestre russo mesmo antes dele. Este
fato pode também ter contribuído para as divergentes leituras das teorias de
Stanislávski. De qualquer forma, isto só foi possível porque o próprio Stanislávski
afirmava que não havia nada que ele houvesse inventado, mas sim, colhido da
natureza circundante. E em geral, é disso que trata esta dissertação, das características
e direcionamentos da sistematização dos processos psicofisiológicos naturais pela ótica
do mestre diretor-pedagogo russo.
No segundo capítulo, trago descrita minha trajetória acadêmica no Curso de
Graduação em Artes Cênicas – opção Direção Teatral, na Universidade Federal de
Santa Maria/RS, que apresenta uma particularidade na forma de aproximação à teoria
de Stanislávski: ali se trabalhava com versões traduzidas diretamente do russo e não
com as traduzidas a partir das publicações americanas. Enfatizo aqueles elementos
que dizem respeito ao trabalho do diretor no encaminhar o processo criativo do ator,
seguindo sempre o postulado por Stanislávski na sua busca pelos elementos comuns
aos grandes artistas para se estabelecer o que ele chamou de “segunda natureza”.
Neste caminho, o relaxamento dos músculos foi o primeiro elemento considerado
na observação de Stanislávski do comportamento cênico dos grandes atores de seu
tempo para a elaboração de seu “sistema”. Mais tarde, pela prática constante ele
percebe que a ação física correta conduz ao estado de tensão necessária para a
execução da própria ação requerida.
Além de uma condição física específica, Stanislávski aponta a imaginação como
um dos mais importantes fatores para o sucesso do ator em revelar a “essência do
espìrito humano”. Como na cena não há acontecimentos reais e sim circunstâncias
ficcionais, dadas previamente pelo autor e seus colaboradores na realização do
espetáculo, é o modo como o ator vai ligar todas essas informações via processo
imaginário que irá garantir a correta percepção do público daquilo que se quer
expressar na cena. Acreditar no universo ficcional sugerido pelo imaginário e assumi-lo
com verdade perante o público é a essência da prática do “sistema”.
Tomo do próprio Stanislávski o que para ele significava representar com verdade
16
e também discorro sobre o que para ele era de fundamental importância na aplicação
de seu “sistema”, a criação, via processo imaginário, de uma série ininterrupta de
proposições hipotéticas, que tem o poder de provocar no ator uma resposta ativa,
“como se” fossem reais. Para conduzir o processo de direcionamento da atenção do
público pelo universo imaginado pelo ator, Stanislávski sugere como estratégia a
utilização dos “objetos de atenção” dentro dos “cìrculos de atenção”, já que o modo
como o ator dirige sua atenção garante a adesão do público ao que acontece em cena.
A divisão do todo em porções menores, ou seja, a divisão da obra dramatúrgica
em acontecimentos possibilita a identificação dos conflitos motivadores da ação contida
na obra dramatúrgica. Além disso, facilita o direcionamento da atenção do ator na luta
contra as circunstâncias dadas para alcançar o objetivo de seu personagem. A
capacidade de relacionar-se com seus companheiros de ficção e com o mundo
circundante, o poder de comunicar ao público, bem como a generosidade de com eles
compartilhar o íntimo do ser criado pelo processo criativo, o personagem, é o cume do
trabalho do ator sobre si mesmo em seu duplo aspecto: vivência e encarnação.
Stanislávski enfatiza a importância da ação física na prática teatral, seu caráter
interior e exterior, sua coerência e consequência lógicas e umas das mais importantes
características por ele atribuídas à ação, o fato de precisar ser contínua e ininterrupta
para que desperte no espectador a sensação de verossimilhança. Para o ator, são
essas características da ação que lhe permitem mergulhar no universo ficcional,
proposto pelas “circunstâncias dadas” pelo autor, fazendo emergir de sua imaginação o
mundo de possibilidades que ele oferece a seu público. Falo acerca da ação e suas
características, abordando as condições necessárias ao ator para trabalhar sobre si
mesmo e sobre o papel a partir da teoria de Stanislávski: a organicidade ou verdade na
cena e sua capacidade imaginativa de colocar-se frente às circunstâncias dadas.
A descrição do Método da Análise Ativa e de minha aproximação gradual ao
mesmo está localizada no terceiro capítulo, onde descrevo a dinâmica do Curso de
Direção Teatral da Universidade Federal de Santa Maria/RS, sobretudo da Disciplina
Encenação e de como se transmitia o conhecimento prático e teórico do “sistema
Stanislávski” vinculado ao aprendizado nos 8 (oito) semestres da Disciplina. Demonstro
os procedimentos da Análise Ativa do texto – trabalho que deve ser realizado
17
previamente pelo diretor – com sua divisão em acontecimentos e o processo de eleição
de seus acontecimentos principais. Exemplifico numerando e nomeando cada
acontecimento, reproduzindo um trecho do texto que contêm palavras-chave que
ajudam a caracterizar esses acontecimentos, a circunstância dada que os gerou, o
objetivo do acontecimento e também os objetivos, obstáculos e ações de cada
personagem envolvido nesses acontecimentos; também apresento um esquema gráfico
da Análise Ativa. Descrevo a utilização da Análise Ativa durante minha trajetória
acadêmica, desde sua assimilação gradual nos primeiros semestres, passando pelas
experiências de montagem dos dois últimos anos de Curso.
Nos Anexos se encontram os originais e a tradução da demonstração de um
estudo de Ruffini (2003), entrecruzando o conteúdo dos livros de Stanislávski Minha
Vida na Arte e O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo em seus dois volumes – O Trabalho
Sobre Si Mesmo no Processo das Vivências e O Trabalho Sobre Si Mesmo no
Processo da Encarnação. Reproduzo a tabela comparativa e uma nota explicativa
contígua por entender que sua leitura é esclarecedora do ponto de vista do processo
constante e contínuo que foi o desenvolvimento do Sistema Stanislávski, e porque seu
conteúdo auxilia na comprovação da tese do autor sobre a unidade do pensamento
artístico do mestre russo. Também é possível ler-se o conto de Marina Colasanti que
inspirou o espetáculo de Graduação em Direção Teatral.
18
1 PRELIMINARES
Tudo o que foi escrito sobre o teatro é mera
filosofia, às vezes muito interessante,
maravilhosa ao falar dos resultados a serem
obtidos na arte, ou é crítica que pensa na
utilidade ou inutilidade dos resultados já
obtidos. (STANISLAVSKI, 1989, p. 534.)
No início do século passado, a cena teatral passou por grandes mudanças e
alguns conceitos referentes à encenação e à interpretação foram deixados de lado ou
transformados numa nova realidade que se configurava. Na encenação, deixou-se de
usar, por exemplo, os telões de fundo e se começou a primar pela tridimensionalidade
do espaço e dos objetos. Também cresceu a preocupação com a unidade dos
elementos do espetáculo – iluminação, cenografia, figurinos, atuação e com isso houve
uma valorização da figura do diretor.
A interpretação abandonou aos poucos a forma declamatória e carregada de
artificialidade e passou a estabelecer um comportamento mais natural9 em cena; ao
invés de enaltecer uma estrela, optou-se pela noção de conjunto. Artistas como André
Antoine (1853-1943), Otto Brahms (1856-1912), Max Reinhardt (1873-1943), Jacques
Copeau (1879-1949), se lançaram na busca de um novo sentido para a arte teatral,
uma nova verdade, que se estabelece principalmente através do ator:
Mas acima de tudo a verdade procurada é a realidade do ator. O ator é, na
catedral de Appia ou nas radicalizações de Arvatov, na escola de criatividade
de Stanislávski, ou nos grupos de teatro 'agitprop', uma possibilidade dos
homens, uma função realizável de ser humano: aí nasce o sentido e o valor,
10
primário e definitivo do trabalho do ator. (CRUCIANI, 1995, p. 20) Tradução
11
nossa .
Essa centralidade na figura do ator se verifica no trabalho de praticamente todos
os grandes encenadores do início do século XX, dentre os quais destaco Konstantin
Serguiêievitch Stanislávski-Alexéiev (1863-1938) e suas propostas pedagógicas,
9
Natural em contraposição ao artificial, e não necessariamente vinculado à estética naturalista.
Ma soprattuto la verità cercata è la realtà dell'attore. L'attore è, nella cattedrale di Appia o nelle
radicalizzazioni di Arvatov, nella scuola di creativitá di Stanislavskij, o nei gruppi di teatro 'agitprop', una
possibilitá degli uomini, una funzione realizzabile dell'essere humano: ne nasce il senso e il alore, primario
e definitivo, del lavoro dell'attore. (CRUCIANI, 1995, p. 20)
11
As traduções do italiano, inglês e espanhol são sempre minhas, salvo indicação em contrário. Para
Minha Vida na Arte, utilizo em geral a tradução de Paulo Bezerra. (v. Bibliografia)
10
19
elaboradas ao longo de uma vida dedicada à arte teatral e ao seu desenvolvimento,
sobretudo da condução do processo criativo do ator.
Somente o esforço e a dedicação de longos anos poderiam resultar numa das
mais prolíferas biografias artísticas do século XX12. Renomado ator e diretor, Konstantin
Stanislávski tem o nome vinculado a dois fenômenos teatrais que ocorreram na
transição do século XIX para o século XX: a defesa da especificidade do trabalho do
ator e a consolidação da figura do diretor.
Por experiência própria e pela observação do desempenho dos grandes atores
da época, principalmente Tommaso Salvini (1829-1916)13, Glikeria Fedotova (18461925)14 e Eleonora Duse (1858-1924)15, Stanislávski estava convencido de que havia
alguns elementos determinantes no estabelecimento do estado criativo que alcançava e
que via nesses atores, e afirma em Minha Vida na Arte (1989, p. 57) que esses artistas,
o ajudaram “com a sua vida de artista e pessoal a criar o ideal de ator que me propus
em minha arte, exerceram importante influência sobre mim e contribuíram para a minha
educação artística e ética.” Através de observação e prática acuradas, ele se lança na
busca de uma resposta: quais seriam os elementos constituintes e a natureza do
estado criador?
Será que não existem recursos técnicos para se penetrar no paraíso artístico
não por acaso mas por vontade própria? Só quando a técnica chegar a essa
possibilidade nosso artesanato de ator se tornará arte autêntica. Mas onde e
como procurar os meios e os fundamentos para criar semelhante técnica?! Eis
uma questão que deve tornar-se mais importante para o verdadeiro artista.
(STANISLAVSKI, 1989, p. 188)
O trabalho de Stanislávski como ator se distinguiu pelo fato de haver
12
No Brasil, encontramos um bom panorama biográfico consultando, dentre outros, STANISLAVSKI,
Konstantin S. Minha Vida na Arte. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A.,
1989; GUINSBURG, J. Stanislásvski e o Teatro de Arte de Moscou – Do Realismo Externo ao
Tchekhovismo. São Paulo: Perspectiva, 1985; TAKEDA, Cristiane Layher. O Cotidiano de uma Lenda –
Cartas do Teatro de Arte de Moscou. São Paulo: Perspectiva, 2003.
13
Ator italiano, destacado intérprete das obras de Shakespeare. Apresentou-se diversas vezes na
Rússia. Em seus enunciados teóricos sustentava os princìpios da “arte da vivência”, em contraponto ao
também célebre ator francês Coquelin aîné (1841-1909), representante da “arte da representação”, cujo
“método“ – segundo Stanislávski – “era alheio à natureza do ator russo e oposto às tradições do teatro
realista.” (Salomón Merener, apud nota 11, STANISLAVSKI, 1980, p. 68)
14
Atriz russa, considerada a mãe artística de Stanislávski, estreou aos 16 anos no Teatro Mali, se
tornando uma das mais respeitadas educadoras da Escola do Teatro Imperial.
15
Atriz italiana iniciou sua carreira ainda adolescente e se tornou uma das primeiras personalidades
femininas de reputação mundial. Usava seu corpo, face e gestos, para expressar angústias, sofrimentos,
compulsões e alegrias, num estilo de representação sem precedentes.
20
desenvolvido uma gramática própria, um trabalho sistemático e operativo que conduz
do corpo à alma do artista; Ele preocupou-se em elucidar os problemas da
interpretação do texto dramático pelo ator, “empenhado em chegar ao que dá origem à
palavra, àquilo que vem antes dela, o transcorrer da própria vida, que é expressa pela
ação, entendida esta como luta que manifesta o conflito”16.
Como diretor, se distinguiu pelo modo de conduzir suas experiências de
montagem e pela maneira que encontrou de transmitir sua experiência prática por meio
da palavra escrita:
O nome de Stanislávski se tornou onipresente no discurso do teatro ocidental
por causa de sua vitalícia e obsessiva paixão por converter a prática da atuação
num sistema. „Eu acredito que todos os mestres das artes necessitam escrever‟,
ele disse, „para pôr à prova e sistematizar sua arte‟ (Filippov 1977: 58). Ele
começou a fazê-lo aos quatorze anos de idade, mantendo cadernos detalhados
de todas as apresentações que fez ou [as que] assistiu. Seu projeto resultou
numa autobiografia, pilhas de rascunhos para três manuais de atuação, uma
miríade de notas não publicadas, planos de aula e anotações. (CARNICKE,
17
2000, p. 16)
A questão da transmissão da experiência é problema central na difusão de
qualquer disciplina eminentemente prática, que opera um conhecimento ativo. Tal é o
caso do teatro, que não é simplesmente discursivo, mas que se inerva no corpo. Essa
não é uma questão que seja exclusiva do teatro, mas que lhe interessa sobremaneira, e
Stanislávski foi um dos primeiros artistas de teatro que conseguiu acompanhar sua
prática com reflexão rigorosa e falar com propriedade sobre um conteúdo efêmero,
tanto do ponto de vista do ator, como do ponto de vista do diretor/pedagogo.
Apesar de um histórico de vida dedicado ao desenvolvimento das artes cênicas,
ao redor do mundo há uma série de controvérsias relacionadas às teorias e ao trabalho
do mestre russo que impedem a percepção de seu sistema como um todo. Quando saí
da graduação e entrei em contato com outras instituições de ensino superior, depareime com essa questão que em Santa Maria/RS se resolvia prontamente: „as versões em
16
DAGOSTINI, 2007, p. 40.
Stanislavsky‟s name has become omnipresent in Western theatrical discourse because of his lifelong,
obsessive passion to turn the practice of acting into a system. „I believe that all masters of the arts need to
write‟, he said, „to try and systematize their art‟ (Filippov 1977: 58). He had begun to do so at the age of
fourteen, keeping detailed notebooks on every performance he gave or saw. His project culminated in an
autobiography, piles of drafts for three acting manuals, a myriad of unpublished notes, lesson plans and
jottings. (CARNICKE, 2000, p. 16)
17
21
inglês dos livros de Stanislávski traduzidos e editorados por Elizabeth e Norman
Hapgood e todas as traduções vertidas a partir delas não traduzem a completude do
pensamento de Stanislávski e devem ser desconsideradas. Leia-se em seu lugar18 a
versão em castellano da Editora Quetzal, que ao menos é fiel na forma de
apresentação do conteúdo.‟ É claro que os livros traduzidos da Lìngua Inglesa também
estão na Biblioteca Central caso alguém queira se dar ao trabalho de comparar; de
qualquer forma, é uma questão que não se discute: Estão equivocados e pronto. „Não
leia para não confundir‟...
A discussão aprofundada deste tema por si só seria assunto para uma
dissertação, mas como não é o foco deste estudo, limito-me a indicar outras pesquisas
que já esclarecem em boa medida os equívocos relacionados ao trabalho de
Stanislávski.
A partir dos estudos do pesquisador italiano Franco Ruffini (1939-)19, e da
pesquisadora norte-americana Sharon-Marie Carnicke (1949-)20, destaco pontos
considerados preponderantes para a difusão desses equívocos: as diferenças entre as
duas edições de Minha Vida na Arte, a americana (1924) e a russa (1926); os anos de
intervalo até a publicação de A Preparação do Ator (1936) e entre esta e a publicação
de A Construção da Personagem (1949), que gerou uma visão fragmentada sobre o
18
Hoje, ano de 2011, se pode solucionar este problema on-line se o interessado souber ler russo, pois
há disponível a obra completa do mestre na world wide web: http://az.lib.ru/s/stanislawskij_k_s/ Também
se pode conseguir novas publicações em Língua Inglesa (ainda sem tradução para a Língua Portuguesa)
das obras de Stanislávski editadas recentemente pela Routledge : An Actor‟s Work: a Student‟s Diary. /
Konstantin Stanislavsky. Traduzido e editado por Jean Benedetti. Routledge: New York, 2008. Tradução
de Rabota Aktiora Nad Soboi. Rabota nad soboi v tvórtcheskom protsésse perjivânia e Rabota Aktiora
Nad Soboi. Rabota nad soboi v tvórtcheskom protsésse voplochtchênia (O Trabalho do Ator Sobre Si
Mesmo. O Trabalho Sobre Si Mesmo no Processo da Criação da Vivência e O trabalho do Ator Sobre Si
Mesmo. O Trabalho Sobre Si Mesmo no Processo da Encarnação); e An Actor‟s Work on a Role. /
Konstantin Stanislavsky. Traduzido e editado por Jean Benedetti. Routledge: New York, 2010. Tradução
de Rabota Aktiora Nad Rol‟iu (O Trabalho do Ator Sobre o Papel).
19
Franco Ruffini é professor de Artes Cênicas na Universidade de Roma III. É um dos fundadores da ISTA, Escola
Internacional de Antropologia Teatral e membro de seu quadro de pesquisadores. Depois de estudar o século XVII e
a
Renascença,
especializou-se
em
teatro
do
século
XX.
Informações
extraídas
de
http://www.icaruspublishing.com/monobookf.html, em 13/01/2011.
20
Sharon Marie Carnicke (1949-) é professora no departamento de Teatro, Língua e Literatura Eslava na USC
(University of Southern California), internacionalmente conhecida como especialista sobre o Sistema Stanislávski
para a formação do ator e para atuação em cinema. Também dirige um laboratório privado em Los Angeles para
atores profissionais na última técnica de Stanislávski – a Análise Ativa. Tem ministrado aulas de mestrado em
instituições como a Moscow Art Theatre School, a Academia Russa de Teatro de Arte (antiga GITIS), Sorbonne, na
França, e no Instituto Nacional de Arte Dramática da Austrália. Informações extraídas de
http://www.adsa.edu.au/conferences/past-conferences/2010/keynotes, em 30/09/2010.
22
sistema; a mudança na apresentação dos livros americanos que perderam o caráter de
diário; a terminologia trazida de outras áreas e a utilização de termos subjetivos com
margem para interpretações dúbias; os vários estudantes do mestre que divulgaram
seus próprios pontos de vista acerca do sistema ou de partes de seu pensamento.
1. 1 PUBLICAÇÃO AMERICANA X PUBLICAÇÃO RUSSA
O primeiro livro de Stanislávski, My Life in Art (Minha Vida na Arte), foi publicado
nos Estados Unidos da América, em língua inglesa, em abril de 1924. Não se pode
desconsiderar a contingência que o levou a publicar suas teorias parcialmente, num
idioma que ele não dominava, contando com a “boa vontade” e os interesses de
pessoas que ele mal conhecia, como foi o caso21, nem se podem desconsiderar
também os equívocos e mal-entendidos decorrentes disso:
Enquanto estava em turnê, Stanislávski dedicou-se a escrever para resolver
questões pessoais de caráter financeiro. Publicou Minha Vida na Arte e A
Preparação do Ator nos Estados Unidos, em Inglês, (uma língua que ele não
podia falar nem ler) assim ele poderia obter controle sobre o acordo
internacional de Direitos Autorais, já que uma publicação em russo não
garantiria seus direitos (Carnicke 1998:71-7). Sua decisão de publicar no
estrangeiro contribuiu inegavelmente para promover o Sistema pelo mundo
22
todo. (CARNICKE, 2000, p. 14)
Franco Ruffini, (2003, 16-17), indica que publicar um livro nessas condições não
era o desejo de Stanislávski e que o fez por dinheiro e para um público despreparado.
Um livro que antes de tudo parece estranho ao seu projeto de escrita, mas que acabará
sendo “o início para a solução do problema de como sistematizar o seu conhecimento
sem elaborar um sistema”23. A equipe de trabalho é composta por Stanislávski,
21
Para um entendimento da contingência que levou Stanislásvski a publicar seus livros em língua
estrangeira, pode-se ver CARNICKE, Sharon Marie. Stanislavsky in Focus, London: Harwood Academic
Publishers, Gordon and Breach International,1998, Capítulo 4 e também RUFFINI, Franco. Stanislavskij:
Dal Lavoro Dell‟Attore al Lavoro Su di Sé. Roma: Laterza, 2003, Capítulo 2 Trasmettere l‟esperienza. I
libri di Stanislavkij.
22
Whilst on tour, Stanislavski turned to writing for personal income. He published My Life in Art and An
Actors Prepares in the United States in English (a language which he could neither speak nor read) so
that he could gain control over international Copyright Agreement, and therefore Russian publication
would not protect his rights (Carnicke 1998: 71-7). His decision to publish abroad undeniably helped
promote the System throughout the world. (CARNICKE, 2000, p. 14)
23
[...] l‟avvio alla soluzione del problema di come sistematizare la sua conoscenza senza farne un
sistema. (RUFFINI, 2003, p. 16)
23
“desmotivado que dita ao secretário”24, um emigrado russo – Aleksander Koiranski –
que ajuda o autor a selecionar e sistematizar o material; J. Robbins – “que se diz aluno
do grande ator russo Aleksandr Lenski e do ex-aluno do Primeiro Studio, Richard
Boleslavski”25 – que traduz os textos para o inglês conforme vão lhe chegando.
“Dinheiro à parte, Stanislávski está insatisfeito. Até como seqüência dos fatos, [Minha
Vida na Arte] é apressada, inexata, condicionada às exigências de um público que lhe é
estranho, como estranha lhe é a língua inglesa”.26
Ruffini (1993, p. 6; 2003, p. 17) também destaca que Stanislávski começa já a
reelaborar seu manuscrito na viagem de regresso à Rússia, em seu camarote a bordo
do navio Majestic, pensando em uma publicação na língua materna. Dois anos depois
surge a versão russa de Minha Vida na Arte, revista e ampliada, com a colaboração de
Liubov Gurevich (1866-1940)27, com quem estabelecera laços de estreita amizade
depois de anos de trabalho conjunto. “Corta, reescreve partes, outras, escreve novas,
redefine a ordem dos capìtulos, elimina anedotas e agrega reflexões.” 28 (RUFFINI,
2003, p. 17). O trabalho dura até os primeiros meses de 1926; o livro é publicado em
setembro do mesmo ano. A edição russa traz já em seu prefácio a indicação de que
seu conteúdo foi modificado e que é mais extenso:
Eu sonhava em escrever um livro sobre o trabalho criador do Teatro de Arte de
Moscou e o trabalho que eu mesmo desenvolvi como um dos seus integrantes.
Mas aconteceu que passei os últimos anos com a maioria da nossa companhia
no exterior, na Europa e na América, onde acabei escrevendo este livro por
sugestão dos americanos e editando-o em Boston, em Inglês, com o título My
Life in Art. Isto modificou consideravelmente o meu plano inicial e me impediu
de expor muito do que eu gostaria de dividir com o leitor. (STANISLAVSKI,
1989, p. 11)
Ruffini (1993) em sua leitura sobreposta das obras de Stanislávski chama a
24
[...] demotivato que dètta all segretaria [...] (Idem).
[...] un sedicente allievo delgrande attore Aleksandr Lenskij nonché dell‟ex allievo del Primo Studio
Richard Boleslavskij. (RUFFINI, 2003, p. 17)
26
Danaro a parte, Stanislavskij ne è insoddisfatto. anche come sequenza di fatti, è affrettata, inesatta,
condizionata dalle esigence di un pubblico che gli è estraneo, come estranea gli è la lingua inglese.
(RUFFINI, 2003, p. 17)
27
Liubov Yakovlevna Gurevich (1866-1940) foi escritora, tradutora, editora e crítica literária. Ela foi
descrita como "a jornalista mulher mais importante da Rússia." (CARNICKE,1998, p. 73). Juntou-se ao
Teatro de Arte de Moscou em 1905, como assessora literária. Foi conselheira e editora de Konstantin
Stanislávski por pelo menos 30 anos e “influenciou sua escrita mais do que ninguém.” (CARNICKE,1998,
p. 74) Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Liubov_Gurevich. Acessado em 20/07/2010.
28
Taglia, riscrive parti, altre ne scrive ex novo, assesta l'ordine dei capitoli, elimina aneddoti e aggiunge
riflessioni. (RUFFINI, 2003, P. 17)
25
24
atenção para as diferenças na estrutura e no conteúdo das duas edições do primeiro
livro. Na americana vemos uma divisão em dois períodos: o primeiro até 1906 e o
segundo, de 1906 em diante; na edição russa a divisão é em três períodos: até a
revolução de 1905, de 1906 até a revolução de outubro de 1917, e de 1917 adiante.
Na primeira parte, salvo o “colorido polìtico”29 incluído na edição russa, as
diferenças não são significativas, contudo, adverte o autor:
Em todo caso, devemos advertir que nos anos em torno da Revolução de
outubro há diferenças entre as duas “vidas na arte”. Segue a listagem dos
capítulos nas duas edições, a partir de 1914: O ator deve saber falar, Um
espetáculo pushkiano, A revolução, A catástrofe, Caim, O estúdio de ópera do
Teatro Bolshói, A partida e o regresso, Um resumo e o futuro, para a edição
russa; A guerra, A segunda revolução, O estúdio da ópera, Minha vida na arte,
30
para a edição norte-americana. (RUFFINI, 1993, p. 6)
Devido às diferenças entre uma publicação e outra, o próprio Stanislávski se
recusou a conceder autorização de tradução a partir da edição americana, pelos pontos
que esclarece Ruffini:
Assim, em sua “aparência atual", Minha vida na arte não é uma história do
Teatro de Arte de Moscou, e nem sequer é, evidentemente, o livro que
"aconteceu" de ser escrito nos Estados Unidos.
Uma introdução ao livro sobre o sistema; assim é como lhe parece em 1925 a
autobiografia. A edição russa, não [é igual] à originária edição norte-americana,
que Stanislávski se apressa assim quase em desmentir. Já em setembro de
1924, respondendo ao editor Karl Kersten, veta sua solicitação de permissão
para uma edição em alemão, dizendo que a edição russa está quase pronta,
"muito mais aprofundada nos problemas artísticos". Mesma resposta receberá
Gaston Gallimard em 1928. A única que Stanislávski reconhece como sua “vida
na arte” é a edição russa. De resto, ao defini-la [como] "uma introdução ao
sistema", colocava também um lacre (selo) para proteger o seu pensamento.
31
(RUFFINI, 2003, p. 21)
29
RUFFINI, 1993, p. 6.
En todo caso, debemos advertir que en los años alrededor de la Revolución de octubre hayan habido
diferencias entre las dos “vidas en el arte”. He aquì la lista de los capìtulos en las dos ediciones, a partir
de 1914: El actor debe saber hablar, Un espetáculo pushkiano, La revolución, La catástrofe,Caín, El
estudio de ópera del Teatro Bolshoi, La partida y el regreso,Un resumen y el futuro, para la edición rusa;
La guerra, La segunda revolución, El estudio de la ópera, Mi vida en el arte, para la edición
norteamericana. (RUFFINI, 1993, p. 6)
31
Dunque, nel suo "attuale aspetto", La mia vita nell'arte no è una sttoria del Teatro d'Arte di Mosca, e no
è neppure, evidentemente, il libro che gli "è capitato" di scrivere in America. Un'introduzione al libro sul
sistema; ecco como gli appare, nel 1925, l'autobiografia. L'edizione russa, non l'originaria edizione
americana, che anzi Stanislavskij si affretta quasi a sconfessare. Già nel settembre del 1924, rispondendo
all'editore Karl Kersten che chiedeva l'autorizzazione per un'edizione in tedesco, pone il veto, dicendo che
è quasi pronta l'edizione russa "molto più approfondita nei problemi artistici". Stessa risposta receverà
Gaston Gallimard nel 1928. La sola che Stanislavskij riconosce come la sua "vita nell'arte" è l'edizione
30
25
A partir da leitura dos estudos da pesquisadora Sharon-Marie Carnicke (1998;
2000) e de Franco Ruffini (1993; 2003), infere-se que a propagação das obras
traduzidas do inglês foi bem maior do que a difusão das traduzidas dos originais em
língua russa e isso reforça a dificuldade em elucidar as discrepâncias entre a leitura das
duas publicações; os anos de intervalo entre a publicação de um volume e outro,
também colaboram para que a teoria que aparece às pinceladas no primeiro dito
manual seja tomada como a totalidade do pensamento artístico de Stanislávski.
Dos desentendidos relacionados às diferentes e divergentes publicações das
obras do mestre russo, se desprendem duas abordagens: método e sistema. Método é
como passaram a referir-se à teoria de Stanislávski nos Estados Unidos a partir da
edição americana (parcial) de suas obras. Sistema é como Stanislávski passou a se
referir a seu trabalho na abordagem das edições em russo de sua obra. O “método” foi
amplamente divulgado como proveniente ou associado às teorias de Stanislávski,
especialmente depois das experiências realizadas no Group Theater (1931-1941) de
Nova Iorque e posteriormente no Actor‟s Studio (1947-).
Raul Serrano (1982, p. 16), encenador e pesquisador argentino critica a
interpretação dada por Strasberg às teorias do mestre russo e aponta contradições no
que ele se refere como sendo “o primeiro método stanislavskiano (com sua exasperada
variante criada por Lee Strasberg) e o procedimento que parece se desprender do
Stanislávski posterior”32 e que ele (Serrano) chama de método das ações físicas
elementares. Conforme o autor, em seu país, como na maior parte do mundo ocidental,
havia a difusão das traduções americanas de Stanislávski:
Na Argentina o método stanislavskiano foi difundido fundamentalmente em sua
primeira acepção, a que parte da análise de mesa [...] e rapidamente na década
de [19]60 recebeu o reforço do método de Lee Strasberg, que é justamente
uma visão exacerbada do mesmo, já que o professor norte-americano
absolutiza e generaliza a introspecção sensorial, aceitando-a como o único
motor, e desconsiderando todos os processos que partem da real interação
[dos partners] em cena. A conduta do ator é assim introjetada, adquirindo um
tom marcadamente psicologizante e deixando ao menos na sombra tudo o que
se refere à ação física e concreta que, na maioria dos casos, é aceita como
russa. Del resto, nel definirla "un'introduzione al sistema", poneva anche un sigillo a tutela del suo
pensiero. (RUFFINI, 2003, p. 21)
32
[...] el primer método stanislavskiano (con su variante exasperada creada por Lee Strasberg) y el
procedimiento que parece desprenderse del Stanislavski posterior [...]. (SERRANO,1982, p. 16)
26
uma conseqüência mais ou menos inevitável da vivência obtida por
33
introspecção. (SERRANO, 1982, p. 54)
O chamado sistema engloba os últimos experimentos de Stanislávski e traz a
completude de seu pensamento artístico, expresso especialmente em Minha Vida na
Arte e em O Trabalho do Ator sobre Si Mesmo no Processo Criador das Vivências e O
Trabalho do Ator sobre Si Mesmo no Processo Criador da Encarnação.
Segundo Carnicke (1998, p. 149-51), a dualidade na interpretação dos escritos
de Konstantin Serguiêievitch é um equìvoco com relação à obra do mestre russo. “Ele
rejeita a concepção ocidental que divide a mente do corpo, pegando a deixa do
psicólogo francês Théodule Ribot [(1839-1916)], que acreditava que a emoção nunca
existe sem uma conseqüência fìsica”34 (CARNICKE, 2000, p. 16). Stanislávski
considerava o aparato corporal como uma unidade psicofísica, na qual o mental está
sempre imbuído do físico e vice-versa: “Em cada ação fìsica há algo de psicológico e no
psicológico, algo fìsico” 35 (STANISLAVSKI, 1980, p. 206).
Logo depois de finalizar os rascunhos para a edição russa de Minha Vida na
Arte, Stanislávski recomeça a trabalhar no que ele ainda acredita que será uma
gramática para o ator, na qual ele tem a intenção de sistematizar sua longa jornada de
experimentos voltados à criação do ator, numa luta por estabelecer o “estado criador
correto”36. São materiais que ele tem em mãos e em mente há vários anos, que ele
começa a pôr em ordem e que vão tomar a forma de O Trabalho do Ator Sobre Si
Mesmo, em seus dois volumes.
A unidade na obra de Stanislávski só pode ser realmente percebida depois de
analisada sua obra completa, o que só foi possível depois de sua morte, com a
33
En la Argentina el método stanislavskiano, se difundió fundamentalmente en su primera acepción, la
que parte del análisis de mesa [...]. Y luego en la década del 60 recibió el refuerzo del método de Lee
Strasberg que es justamente una visión exasperada del mismo ya que el maestro norteamericano
absolutiza y generaliza la instrospección sensorial, aceptándola como único motor, y desconsiderando
todos los procesos que parten de la interacción real sobre la escena. La conducta actoral se subjetiviza
así, adquiere un marcado matiz psicologizante y deja por lo menos en la sombra todo lo referido a la
acción física y concreta que, en la mayoria de los casos, es aceptada como una consecuencia más o
menos inevitable de la vivencia obtenida por instrospección. (SERRANO, 1982, p. 54)
34
He rejects the Western conception that divides mind from body, taking his cue from French psychologist
Théodule Ribot, who believed that emotion never exists without physical consequence. (CARNICKE,
2000, p. 16)
35
“En cada acción fìsica hay algo de psicológico, y en lo psicológico algo de lo fìsico.” (STANISLAVSKI,
1980, p. 206)
36
STANISLAVSKI, 1989, p. 468.
27
publicação do segundo “manual”, mesmo sem sua supervisão.
1. 1. 1 O TEMPO ENTRE UM LIVRO E OUTRO E AS DIFERENÇAS DE
APRESENTAÇÃO
O fato de haver um intervalo de 12 anos entre a publicação de Minha Vida na
Arte (1924) e A Preparação do Ator (1936), e mais 13 anos até a publicação de A
Construção da Personagem (1949), é o principal fator para que se tenha uma
percepção parcial da teoria de Stanislávski, como aponta Carnicke (1998). Esse
problema se repete ao redor do mundo, alimentado pelas traduções americanas.
Nas edições russas, se verifica praticamente o mesmo intervalo: Minha Vida na
Arte (1926); o segundo livro, O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo no Processo das
Vivências, foi publicado em 1938, doze anos depois; e o terceiro volume, O Trabalho do
Ator Sobre Si Mesmo no Processo da Encarnação, somente em 1948, dez anos depois.
A curiosidade é a edição americana deste segundo volume ter sido editada um ano
depois da russa (1949).
A diferença na forma de apresentação das duas versões, a americana e a russa,
também contribui para modificar o modo como suas teorias foram absorvidas e
assimiladas pelo grande público, primeiro nos Estados Unidos da América e a partir do
inglês vertidas para outros idiomas ao redor do mundo. As duas edições da obra não
são necessariamente a tradução uma da outra. Os livros que foram publicados na
língua inglesa, segundo Carnicke, (2000, p. 34) resumiram os longos textos em russo.
Para Stanislávski, A Preparação do Ator e A Construção da Personagem
deveriam ser parte de um único volume, intitulado O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo,
mas por conta da quantidade de material escrito e por sugestão dos editores, foi
dividido.
Na elaboração da edição norte-americana, Stanislávski trabalhou em
colaboração com o casal Hapgood, que conhecera na turnê euro-americana de 1924.
Elizabeth era uma especialista em teatro e falava russo; seu marido, Norman, um crítico
e especialista em editoração de livros. Os Hapgood, dentre outros, foram os
responsáveis pelo encontro de Stanislávski e os atores do Teatro de Arte de Moscou
com o presidente norte-americano John Calvin Coolidge, Jr. (1872-1933). Percebe-se
28
no fato a importância e repercussão da visita do Teatro de Arte de Moscou à America
do Norte.
O reencontro dos Hapgood com Stanislávski aconteceu na Alemanha em 1929,
em Badenweiler, onde ele se recuperava de um infarto sofrido no ano anterior. Se
reuniram para trabalhar na edição dos livros, “que não era mais a gramática com
exercícios há muito projetada”37 (RUFFINI, 2003, p.18). No ano de 1930, Stanislávski
assina um contrato legal, em que passa a Elizabeth Hapgood plenos direitos sobre sua
obra escrita, presente e futura, em todos os idiomas, inclusive o russo 38. Com isso, em
1948, quando do lançamento na Rússia de O Trabalho do Ator sobre si Mesmo no
Processo da Encarnação, ela reivindica, além deste, “também os direitos de tradução
de My Life in Art, tornando-se a partir de então, a depositária universal dos livros e do
pensamento de Stanislávski”39. Para An Actor Prepares (A Preparação do Ator)
trabalham juntos até outubro de 1930.
Nos meses de 1929-30 em que trabalharam em colaboração, Elizabeth traduzia
os textos que o mestre aprontava, e ao mesmo tempo o aconselhava com relação aos
cortes propostos pelo marido, como solução para a montagem e editoração, que, com
autorização prévia do autor, se tornaram a conhecida primeira edição estadunidense de
An Actor Prepares40. Depois da partida de Elizabeth, ainda em 1930, Stanislávski
continuou redigindo por bastante tempo e entre março de 1935 e junho de 1936
expediu o primeiro volume (RUFFINI, 2003, p.19).
Só voltam a se reencontrar sete anos depois, em 1937, quando Elizabeth
Hapgood foi à Rússia “e trabalhou por alguns dias com Stanislávski no segundo volume
do Trabalho do ator sobre si mesmo”41, que viria a ser publicado somente em 1949
como Building a Character (A Construção da Personagem).
A quantidade de material e o tempo gastos na sistematização dos escritos
prontos, por certo também contribuíram na decisão de Stanislávski em adaptar seu
37
[...] che non era più la grammatica com ezercizi a lungo progettata. (RUFFINI, 2003, p. 18)
Detalhes do contrato cit. cfr. J. Benedetti, Stanislavski. A biography, p. 316-17.
39
[...] anche i diritti di traduzione di My Life in Art, diventando da quel momento la depositária universale
dei libri e del pensiero de Stanislavskij. (RUFFINI, 2003, p. 18; cit. cfr. Sh. M. Carnicke, Stanislavsky,
Uncensored and Unabridged, in „The Drama Review‟, vol. 37, 1 (T137),Spring 1993, p.30-31)
40
RUFFINI, 2003, p. 18; cit. cfr. J. Benedetti, Stanislavski. A biography, p. 345
41
[...] e lavorò per alcuni giorni con Stanislavskij al secondo tomo del Lavoro dell‟attore su se stesso.
(RUFFINI, 2003, p. 18)
38
29
projeto inicial de publicar um único livro. Com relação à edição russa do primeiro
volume de O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo, Stanislávski se permite uma maior
liberdade quanto às exigências editoriais e de mercado que lhe foram impostas pelos
americanos, mantendo fidelidade com seu projeto inicial de escrita. Ele mantêm a forma
romancesca e apresenta seu projeto como se fosse o diário de um aluno de uma escola
de arte dramática.
Para as edições em russo, em virtude da proporção que tomara seu projeto
inicial e do delicado estado de saúde, Stanislávski conseguiu revisar somente Minha
Vida na Arte (1926) e a primeira parte de O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo do qual
por fim se rendeu relutantemente à divisão em dois volumes; A primeira parte (Vivência)
foi publicada em 1938, ano de sua morte (dois anos depois da publicação de A
Preparação do Ator), e a segunda Parte (Encarnação) postumamente em 1948.
A forma de romance de O Trabalho do ator sobre si Mesmo se dissipa nas
edições a partir do inglês, e alguns dos conteúdos que tomam relevância pela sua
repetição e reiteração nas falas das personagens envolvidas na narrativa se perdem
por conta da alteração da forma e pela supressão desses trechos. Optamos pela edição
argentina por indicação da Prof. Drª. Nair D‟Agostini, em virtude da maior fidelidade com
os originais russos, tanto na sua forma de apresentação como em seu conteúdo, em
relação às publicações vertidas a partir das edições norte-americanas.
Minha Vida na Arte e O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo, ambos escritos na
primeira pessoa, o primeiro pelo próprio Stanislávski e o segundo num duplo
pseudônimo: Názvanov, o aluno (uma espécie de Stanislávski diletante), que relata
seus anos de estudo numa fictícia escola de arte dramática onde Tórtsov, o professor
(um Stanislávski menos impulsivo e mais experiente), transmitem passo a passo, numa
longa jornada, os princípios e fundamentos da arte cênica, abordando praticamente
todos os aspectos possíveis relacionados ao fazer teatral, do ponto de vista de alguém
que experimentou todos os níveis de dificuldade que envolvem a vida artística, como
afirma Stanislávski:
Depois de ter experimentado na atividade teatral todos os caminhos e meios de
trabalho criador, de render tributo pelo envolvimento com todo tipo de
montagem na linha da história e dos costumes, do simbólico, do ideológico,
etc., de estudar as formas das montagens de correntes e princípios artísticos
30
diferentes – realismo, naturalismo, futurismo, arte estatuária na cena,
esquematização com simplificações extravagantes, com panos, biombos, tules,
artifícios vários de iluminação –, convenci-me de que esses recursos todos não
formam o fundo que melhor destaca a iniciativa criadora do ator.
(STANISLAVSKI, 1989, p. 530)
Ruffini (1993) expõe a tese de que os três primeiros livros do mestre russo, ao
serem lidos de maneira sobreposta, conformam uma obra única. O diário Minha Vida na
Arte e o romance O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo revelam detalhadamente certos
acontecimentos da vida e da época do mestre russo, bem como delineiam um mapa do
pensamento artìstico e do desenvolvimento daquilo que se chama “o sistema
Stanislávski”.
Aqui, bastará dizer que Minha Vida na Arte e O Trabalho do Ator Sobre Si
Mesmo [I e II] são, de fato, uma única obra, que se desenvolve seguindo o
tempo da vida. No caso de Minha Vida na Arte, percorre este tempo fazendo
referência aos eventos ocorridos; no caso de O Trabalho do Ator Sobre Si
Mesmo, este tempo passa fazendo referências surgidas na mesma ordem
desses eventos, e as relativas soluções pouco a pouco amadurecidas com o
tempo.
Não há uma lógica em O Trabalho do Ator, como seria lógico se esperar de um
tratado, e como se costuma supor: há uma cronologia, que resulta na mesma
42
que em Minha Vida na Arte. (RUFFINI, 1993, p. 6)
O autor defende esta idéia num quadro comparativo onde apresenta relações
entre os conteúdos de cada um dos livros colocados lado a lado em ordem cronológica,
reforçando o argumento de que a teoria de Stanislávski é um todo complexo e uniforme,
distribuída de acordo com sua evolução no decorrer das duas narrativas sobrepostas. O
quadro é retomado e ampliado em seu livro Stanislavskij Dal lavoro dell‟attore al lavoro
su di sé (2003):
É como se Stanislávski tivesse tomado notas de sua vida na arte em um diário
com folhas dispostas lado a lado, sobre aquela da esquerda registrando os
fatos à medida que eles aconteceram, e em seqüência, sobre aquela à direita,
os conhecimentos adquiridos com base nesses fatos. Colocando em seqüência
as folhas da esquerda, Stanislávski compôs sua própria biografia. Colocando
em seqüência as folhas da direita, compôs O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo.
Uma corrente idêntica [Um mesmo caminho]: do conhecimento, mas sem os
42
Aquí bastará decir que Mi vida en el arte y El trabajo del actor sobre sí mismo son, en realidad, una
obra única, que se desarrolla siguiendo el tiempo de la vida. En el caso de Mi vida en el arte este tiempo
recorre refiriendo los acontecimientos ocurridos; en el caso de El trabajo del actor sobre sí mismo este
tiempo se vuelve a recorrer difiriendo [sic! Substituo por refiriendo] con el mismo orden surgido de esos
acontecimientos, y las relativas soluciones poco a poco maduradas con el tiempo. No hay una lógica em
El trabajo del actor como sería lógico esperarse de un tratado, y como se supone usualmente: hay una
cronología, que resulta ser la misma que en Mi vida en el arte. (RUFFINI, 1993, p. 6)
31
fatos a partir dos quais aqueles conhecimentos se originaram, e que foram
43
relatados no outro livro. (RUFFINI, 2003, p. 25-26)
Ruffini (2003, p. 26 e ss.) traz de forma clara o seu raciocínio na comparação,
coluna direita com coluna esquerda de um único diário, uma “coluna dos fatos” e outra
“coluna do conhecimento”, amadurecidos por esses fatos, dispostos lado a lado e com
a mesma data. Segundo ele, “Não se trata de uma metáfora. Foi exatamente isso o que
fez Stanislávski”44.
Para verificar sua tese de que a biografia e os livros sobre o sistema seguem dia
a dia em um “sincronismo pontual, sem exceções” (RUFFINI, 2003, p. 26), o autor
realiza um estudo específico onde apresenta as correspondências entre uma coluna e
outra e, em nota, a exemplificação dessas relações. A Tabela e a nota estão
reproduzidas nos anexos 2 e 3, e sua leitura é esclarecedora sobre a correspondência
temporal do processo de sistematização do Sistema Stanislávski.
Carnicke (2000, p. 16), também chama atenção para o aspecto unitário do
pensamento do mestre, ao afirmar que quando analisados em conjunto, seus escritos
“codificam um conjunto coerente e notavelmente consistente de suposições sobre
atuação. Todos os seus exercícios, técnicas e interesses partilham dessas idéias
essenciais”45.
1. 1. 2 A TERMINOLOGIA EMPREGADA E A TRANSMISSÃO ORAL
Outro fator determinante no aparecimento das diferentes interpretações da teoria
é a utilização de termos subjetivos, dúbios, termos de uso corrente pelos atores durante
os ensaios, que muitas vezes inspirados em outras áreas do conhecimento humano e,
contaminados de seus significados originários isolados do contexto da prática do ator,
podem gerar discussões de ordem filosófica, ao que esclarece o mestre russo tanto em
43
È come se Stanislavskij avesse tenuto della sua vita nell'arte un diario su fogli affiancati, su quelli di
sinistra registrando i fatti man mano che accadevano, e a fianco, su quelli di destra, la conoscenza che
man mano maturava sulla base di quei fatti. Mettendo in successione i fogli di sinistra, Stanislavskij
compose la propria biografia. Mettendo in successione i fogli di destra, compose Il lavoro dell'attore su se
stesso. Una identica catena: delle conoscenze, però, senza i fatti da cui quelle conoscenze avevano tratto
origine, e che erano riportati nell'altro libro. (RUFFINI, 2003, p. 25-26)
44
Non è di una metafora che si tratta. È proprio quello che Stanislavskij fece. (RUFFINI, 2003, p.26)
45
[...] encode a coherent and remarkably consistent set of assumptions about acting. All his exercises, techniques
and interests partake of these essential ideas. (CARNICKE, 2000, p. 16)
32
Minha Vida na Arte como em O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo no Processo das
Vivências:
Enquanto me ocupava do “sistema” criei minha linguagem, a minha
terminologia, que nos determinava em palavras, os sentimentos a serem vividos
e as sensações criadoras. Os termos que, havíamos criado que passaram a
incorporar o nosso uso cotidiano, eram compreensíveis apenas para nós,
iniciados no ”sistema”, mas não para os outros artistas. Isso era importante para
alguns, e ao mesmo tempo, irritação, oposição, inveja e ciúmes em outros.
(STANISLÁVSKI, 1989, p. 470).
A terminologia que emprego nesta obra não é invenção minha; eu a tirei da
prática dos próprios alunos e dos atores principiantes. No decorrer do trabalho,
eles foram definindo com designações, suas sensações criadoras. Seu
vocabulário é valioso porque resulta claro e acessível aos principiantes.
Não se tente buscar neles raízes científicas. Temos nosso vocabulário teatral,
nosso jargão de atores que foi elaborado pela própria vida. É certo que também
utilizamos termos científicos, como por exemplo, “subconsciente”, “intuição”,
mas não em seu sentido filosófico senão no mais simples, o da vida cotidiana.
46
(STANISLÁVSKI, 1980, p. 42)
Como se percebe, Stanislávski não ignora a possibilidade de mal-entendidos
com relação à terminologia empregada em sua prática e por isso sua preocupação em
sistematizar seu conhecimento em seus livros que, escritos na forma de narrativa,
parecem reforçar o caráter de trabalho sistemático, contínuo, cotidiano. Com relação a
isso, se queixa o mestre:
Foi bem pior o fato de que alguns artistas e alunos adotaram a minha
terminologia sem terem verificado o seu conteúdo, ou me entenderam com a
cabeça, mas não com o sentimento. E pior ainda era que isto os satisfazia
plenamente e eles logo puseram em prática as palavras ouvidas e começaram
a ensinar pretensamente pelo meu “sistema”.
Eles não entendiam que o que lhe dizia não podia ser adotado, dominado nem
em uma hora e nem num dia, mas era necessário estudar sistemática e
praticamente, durante anos, a vida inteira, constantemente transformando o
concebido em habitual, deixando de pensar no assunto e esperando que ele se
manifestasse de maneira natural, espontânea. Para isso era necessário o
hábito, segunda natureza do artista; faziam-se necessários exercícios
semelhantes àqueles que faz cada cantor preocupado com a afinação da sua
voz, cada violonista e violoncelista que trabalha em si mesmo o verdadeiro tom
artístico, cada pianista que desenvolve a técnica dos dedos, cada bailarino que
prepara seu corpo para as danças e movimentos plásticos, etc.
(STANISLAVSKI, 1989, p. 471).
46
La terminología que empleo en esta obra no es de mi invención; la he tomado de la práctica, de los
alumnos mismos y de los actores principiantes. Ellos, en el transcurso del trabajo, fueron determinando
con designaciones sus sensaciones creadoras. Su léxico es valioso porque resulta claro y accesible para
los principiantes. No se intente buscar en él raíces científicas. Tenemos nuestro léxico teatral, nuestra
jerga de actores, que ha sido elaborada por la vida misma. Es cierto que utilizamos también términos
cientìficos, como por ejemplo “subconsciente”, “intuición”, pero no en su sentido filosófico, sino en el más
simples, el de la vida diaria. (STANISLAVSKI, 1980, p. 42)
33
As controvérsias relacionadas à percepção ou entendimento parcial do
pensamento artístico de Stanislávski acabam comprometendo o entendimento de uma
teoria que se desenvolveu ao longo de muitos anos e, como processo vivo, foi
transformada e reformulada, negando certas afirmações, reiterando outras e ainda
acrescentando novos elementos a cada nova experiência. Os reflexos disso já eram
sentidos por ele em 1926, ano em que publicou sua autobiografia na Rússia:
Naqueles anos, todos conheciam e praticavam – diziam conhecer e praticar – o
sistema, e ele não havia publicado nada senão uma autobiografia. Para se
proteger, não poderia fazer outra coisa a não ser anunciar um livro sobre o
47
sistema e, portanto, refere-se ao livro já escrito como uma introdução.
(RUFFINI, 2003, p. 21)
Os problemas com a transmissão de seu conhecimento começaram logo depois
da publicação do primeiro livro e seguem ainda hoje, pois é impossível retirar de
circulação tamanha quantidade de material equivocado; do mesmo modo é impossível
fazer chegar a completude do pensamento de Stanislávski a todos que tiveram acesso
a seu pensamento parcial. A questão da assimilação fragmentada de seu pensamento
não era desconhecida do mestre. Ao contrário, para ele era um problema:
Além do mais, em outros casos a percepção superficial do sistema deu
resultados opostos, negativos. Por exemplo, alguns atores experientes, que
aprenderam a concentrar-se pelo sistema, passaram a promover seus antigos
equívocos com atenção redobrada, clareza e floreios. Incorporaram à palavra
sistema suas sensações e hábitos de ator, resultando daí os antigos clichês
impregnados de ofício artesanal. Eles os adotaram com o novo a que se refere
o sistema e se acalmaram, uma vez que o ator se sente à vontade no clima dos
clichês de rotina. Esses atores insensíveis estão certos de que entenderam
tudo e que o sistema lhes trouxe muito proveito. Agredecem-me de maneira
comovente e elogiam a descoberta, mas “tais elogios são uma pedra no meu
sapato”. (STANISLAVSKI, 1989, p. 471-72)
Era pulsante para Stanislávski a vontade de publicar um volume dedicado aos
exercícios que ele acreditava davam suporte ao desenvolvimento de suas idéias e eram
a base de suas observações e constatações desde seu amadurecimento artístico em
1906, como vimos em Minha Vida na Arte. Mas, infelizmente, “o conjunto de todos
47
In quegli anni, tutti conoscevano e praticavano - dicevano di conoscere e praticare - il sistema, e lui non
aveva pubblicato niente se non un'autobiografia.Per proteggersi, non poteva far altro che annunciare un
libro sul sistema e, per intanto, rinviare a quello già scritto come a una'introduzione. (RUFFINI, 2003, p.
21)
34
esses exercícios sistemáticos não foi efetuado nem naquele período nem agora; o
chamado “sistema” foi adotado de ouvido e por isso não deu até hoje os resultados
verdadeiros que se poderiam esperar.” (STANISLAVSKI, 1989, p. 471).
Seu trabalho se encerra em 1938, deixando em aberto um leque de
possibilidades a serem exploradas no trabalho do ator e do diretor de teatro. O caminho
por ele trilhado pode ser compartilhado graças a sua generosidade:
Quando hoje lanço um olhar sobre o caminho percorrido, sobre toda minha vida
na arte, dá-me vontade de comparar-me a um garimpeiro de ouro, que antes
tem de errar por brenhas intransponíveis para descobrir o lugar em que se
encontra o ouro bruto e só depois lavar centenas de arroubas de areia e pedras
para separar algumas pepitas do metal nobre. Como garimpeiro de ouro posso
transmitir à posteridade não o meu trabalho, as minhas perquirições e
privações, alegrias e frustrações, mas apenas o mineral precioso que extraí.
Esse mineral precioso no meu campo artístico, esse resultado das perquirições
de toda a minha vida é o chamado meu “sistema”, o método do trabalho que
sondei e permite ao ator criar a imagem do papel, revelar neste a vida do
espírito humano, e personificá-la com naturalidade no palco em uma forma
artística bela.
O fundamento para esse método foram as leis da natureza orgânica do artista
por mim estudadas na prática. Seu mérito consiste em que nele não há nada
que eu tenha inventado ou deixado de verificar na prática, em mim mesmo ou
em meus alunos. Ele emanou de si mesmo, decorreu naturalmente de minha
longa experiência.(STANISLAVSKI, 1989, p. 538-39)
Se, na qualidade de diretores e atores, levarmos em conta a natureza orgânica
do processo criativo, respeitando sua trajetória como demonstra Stanislávski, podemos
seguir seu caminho na certeza de poder contribuir na condução do processo criativo do
ator, sabendo que é preciso sentir e vivenciar em si para poder compartilhar,
aglutinando de si ao experimento e tornando-se parte dele. Seu projeto teórico presume
um extenso material, ao longo do qual discorre sobre o processo criativo do ator e
sobre os procedimentos do diretor na condução desse processo:
Tenho a intenção de publicar uma obra extensa, em vários volumes, sobre o
ofìcio do ator (o chamado “sistema de Stanislávski”). Minha Vida na Arte, livro já
publicado, é o primeiro volume e constitui uma introdução. O presente livro,
relativo ao “trabalho sobre si mesmo” no processo criador das “vivências”, é o
segundo volume. Dentro de pouco tempo começarei a redigir o terceiro volume,
que vai tratar do “trabalho sobre si mesmo” no processo criador da
“encarnação”. O quarto volume estará dedicado “ao trabalho sobre o papel”.
48
(STANISLÁVSKI, 1980, p. 41)
48
Tengo la intención de publicar una obra extensa, en varios tomos, sobre el oficio del actor (el llamado
“sistema Stanislavski”). Mi vida en el arte, libro ya publicado, es el primer tomo y constituye una
introducción. El presente libro, relativo al ”trabajo sobre sì mismo” en el proceso creador de las
35
Seus estudos caminharam no sentido de sistematizar um modo de desenvolver
no ator a capacidade de atuar de modo eficaz, para que este consiga agir lógica e
consequentemente, de forma convincente e orgânica49, no palco de modo equivalente
ao que acontece na vida, como observa Magarshack (1990):
O “sistema” Stanislávski é, portanto, uma tentativa de aplicar certas leis naturais
de atuação com o objetivo de pôr em jogo as faculdades subconscientes do
ator. Estas leis, afirma Stanislávski, estão suficientemente bem definidas para
serem estudadas e postas em prática com a ajuda da psicotécnica, que
consiste num grande número de “elementos”, dez dos quais – “se”,
circunstâncias dadas, imaginação, atenção, relaxamento dos músculos,
acontecimentos e conflitos, verdade e credulidade, memória emocional, comu50
nicação e ajudas exteriores. (MAGARSHACK, apud STANISLAVSKI1990p.34)
Minha pesquisa está focada nos estudos sistemáticos de Stanislávski e que
contribuem decisivamente na perspectiva acima referida, para a projeção de um novo
homem/ator, principalmente em seus últimos anos, onde desenvolveu como diretor um
modo específico de condução do trabalho do ator.
1. 2 A PEDAGOGIA DE STANISLÁVSKI
Segundo Stanislávski, sua pedagogia criativa está baseada em leis naturais,
presentes na vida do homem comum e que podem ser observadas, seguidas e
adaptadas para a vida nos palcos, mediante trabalho e dedicação sistemáticos:
Meu sistema não consiste de “regras” escritas que possam ser aplicadas
indiscriminadamente; ensina uma arte que é diferente a cada instante e que
pode ser dominada somente mediante a concentração e a avaliação vigilante
da natureza fundamental e invariável das coisas e pessoas, de modo que se
possam expor em uma ação física correta com a ajuda de uma atenção
absolutamente correta, com a ajuda de uma atenção absolutamente indivisível.
51
(STANISLÁVSKI, 1990, p. 153-54)
“vivencias”, es el segundo tomo. Dentro de muy poco tiempo empezaré a redactar el tercer tomo, que
tratará del “trabajo sobre sì mismo” en el proceso creador de la “encarnación”. El cuarto tomo estará
dedicado “al trabajo sobre el papel”. (STANISLAVSKI, 1980, p. 41)
49
Ver DAL FORNO, Adriana. A Organicidade do Ator. (v. Bibliografia)
50
El “sistema” Stanislavski es, pues, un intento de aplicar ciertas leyes naturales de actuación con el fin
de poner en juego las facultades subconscientes del actor. Estas leyes, afirma Stanislavski, están
suficientemente bien definidas para ser estudiadas y puestas en práctica con la ayuda de la psicotécnica,
que consiste en un gran número de “elementos”, diez de los cuales – “si”, dadas las circunstancias, la
imaginación, la atención, el relajamiento de los músculos, piezas y problemas, verdad y credulidad,
memoria emocional, comunicación y ayudas exteriores[...]
51
Mi sistema no consiste en “reglas” escritas que puedan ser aplicadas indistintamente; enseña un arte
que es distinto a cada momento y que puede ser dominado solamente mediante la concentración y el
36
Partindo do pressuposto de que o instrumento do ator é o seu próprio aparato
psicofísico, Stanislávski sistematizou o que ele chamou de leis orgânicas ou elementos
da ação, "chamados (...) de “verdades elementares”, por estarem presentes na vida e
se referirem aos mecanismos de ação do homem no mundo” (DAL FORNO, 2002, p.
14). Como na vida real, durante a atuação no palco é preciso que se apliquem também
essas leis. Porém, por estar em estado extra cotidiano – o que Stanislávski „ denomina
a “segunda natureza”, um estado não habitual – o ator deve encontrar as equivalências
para tais mecanismos, já que age em circunstâncias diferentes das da vida real. As leis
orgânicas do homem em ação são empregadas para facilitar a tarefa do ator de
estabelecer sua segunda natureza a cada nova atuação, com a mesma organicidade,
como se a ação estivesse sendo realizada pela primeira vez, no intuito de traduzir
através dela, “a essência do espìrito humano”.
Todos os artistas sem exceção recebem o alimento espiritual segundo leis
naturais estabelecidas, conservam o percebido na memória intelectual, afetiva
ou muscular, transformam o material na sua imaginação artística, geram a
imagem artística com toda a vida interior aí contida, e a personificam segundo
as leis naturais conhecidas e obrigatórias para todos. Essas leis da criação
universalmente humana, apreensíveis à nossa consciência, não são muito
numerosas, seu papel não é lá muito honroso e limita-se às tarefas de servir.
Contudo, essas leis naturais acessíveis à consciência devem ser estudadas por
todo o artista, pois só através delas é possível acionar o dispositivo criador
supra consciente. (STANISLAVSKI, 1989. p. 535).
Para atingir o correto estado criador, Konstantin Serguiêievitch (1989, p.468)
preconiza que é necessária ao ator a prática de uma “técnica intensa” e que esta se
baseia “precisamente no processo volitivo”, envolvendo “as forças motrizes de nossa
vida psìquica”, razão-vontade-sentimento (1980, p. 290). De acordo com Stanislávski, a
tarefa se divide em duas partes principais:
1) o trabalho exterior e interior do artista sobre sua própria pessoa, e 2) o
trabalho exterior e interior sobre a personagem. O trabalho interior sobre si
mesmo reside na elaboração de uma técnica psíquica que permite ao artista
evocar em si mesmo o estado criador, durante o qual a inspiração responde
prontamente. O exterior, por outro lado consiste na preparação do aparato
corporal para a construção da personagem e para a transmissão exata de sua
vida interior. O trabalho sobre a personagem consiste no estudo da essência
espiritual da obra dramática, do núcleo que serviu para sua criação, e que
discernimiento vigilante de la naturaleza fundamental e invariable de las cosas y las personas, de modo
que se puedan exponer en una acción física correcta con la ayuda de una atención absolutamente
correcta [sic] con la ayuda de una atención absolutamente indivisible. (STANISLAVSKI 1990, p. 153-54)
37
determina seu sentido, como o de cada uma das personagens que compõem e
52
integram a obra que se monte. (STANISLÁVSKI, 1985, p. 442)
O duplo caráter do trabalho do ator sobre si mesmo no desenvolvimento da
psicotécnica está dividido, segundo Carnicke (2000) em dois grupos distintos de
exercícios. No primeiro grupo estão relacionados exercícios destinados à concentração,
imaginação e comunicação. No segundo grupo exercícios de aproximação ao universo
ficcional: a Análise Ativa e o Método das Ações Físicas, tema motivador desta
dissertação.
Valorizando a ação no trabalho do ator sobre si mesmo, Stanislávski (1977,
1980, 1983) ressalta suas características fundamentais, destacadas por inferência: 1.
ela sempre obedece à lógica, 2. é sempre contínua e ininterrupta, 3. tem sempre e
simultaneamente dois aspectos, ação interior e ação exterior e 4. não existe ação sem
objetivo. A partir dessas características, propõe que as ações devem ser realizadas
com veracidade pelo ator, que coloca em movimento seu aparato psicofísico de acordo
com a tríade razão-vontade-sentimento. Importante salientar que quando aparecem
referências às ações físicas na obra de Stanislávski, é preciso considerar que ele
refere-se à ação relacionada com toda vida interior do papel, e não à ação mecânica,
periférica. Como observa Dagostini:
K. Stanislávski, em seu “sistema”, avaliou que as forças motrizes da vida
psíquica: mente, vontade e sentimento, possuem o poder de mobilizar todas as
forças internas da criação, ou seja, ativam todos os elementos da ação, que
conduzem para o cerne da obra, para o objetivo essencial do autor, do diretor e
do ator. (DAGOSTINI, 2007, p. 26)
Partindo da assertiva de que em cena é preciso estar sempre agindo mesmo que
se esteja imóvel, e que “tudo o que se faz na cena deve ter uma finalidade” 53,
Konstantin Serguiêievitch enfatiza a ação ao invés da mimese dos sentimentos. Através
da ação ele propõe estabelecer uma linha ativa ininterrupta, para conduzir o ator na
52
1) el trabajo exterior e interior del artista sobre su propia persona, y 2) el trabajo exterior e interior sobre
el personaje. El trabajo interior sobre su propia persona reside en la elaboración de una técnica síquica
que permite al artista evocar en sí mismo el estado creador, durante el cual la inspiración acude con
mucha facilidad. El exterior, en cambio, consiste en la preparación del aparato corporal para la
encarnación del personaje y para exacta transmisión de su vida interior. El trabajo sobre el personaje
consiste en el estudio de la esencia espiritual de la obra dramática, del núcleo que ha servido para su
creación, y que determina su sentido, como el de cada uno de los personajes que componen e integran la
obra que se trate". (STANISLAVSKI, 1985, p. 442)
53
Todo lo que se hace en la escena debe tener algún fin. (STANISLAVSKI, 1980, p.80)
38
concretização do objetivo do personagem e para a resolução do conflito proposto pela
dramaturgia. Este procedimento na metodologia de Stanislávski segue um caminho
oposto ao procedimento de seus primeiros experimentos, quando partia do despertar
das emoções pelas emoções (do interior para o exterior), substituído agora pelo
caminho da percepção do movimento exterior para o movimento interior. A partir da
constatação da relação direta existente entre os processos interiores (mentais) e os
movimentos exteriores (físicos), alcançada com as pesquisas iniciais com a memória
emotiva, o procedimento passa a ser estimular o ator externamente para provocar nele
o estado que irá despertar no público a impressão da emoção vivida. Com isso, ele
reconhece e reforça que é mais fácil acessar os sentimentos seguindo a lógica e a
consequência da linha das ações propostas pela dramaturgia ou improvisadas nos
“études”.
Em cena, há sempre que se fazer alguma coisa. A ação, a atividade: eis aqui o
cimento da arte dramática, a arte do ator. A própria palavra “drama” em grego
significa “a ação que se está realizando”. Em latim lhe corresponde a palavra
“actio”, o mesmo vocábulo cuja raiz se transferiu às nossa palavras “atividade”,
“ator”, “ação”. Por conseguinte, em cena o drama é a ação que se está
realizando ante nossos olhos e o ator que sai à cena é o responsável por sua
54
realização. (STANISLÁVSKI, 1980, p. 80-81)
A experiência de Stanislávski demonstra que “ninguém pode despertar em si
mesmo os sentimentos – amar, sofrer, estar ciumento – com a única finalidade de
experimentá-los; não se pode forçar os sentimentos, porque se ignorada esta regra, se
termina na mais repulsiva artificialidade”55. A ação que o ator está realizando em cena
deve ser explícita ao público mesmo quando o ator está imóvel, pois “o valor da arte se
determina pelo seu conteúdo espiritual”56, e com isso, Stanislávski amplia a fórmula: “na
cena é preciso atuar interna e externamente”57, já que para o ator “não se trata de
54
En la escena siempre hay que hacer algo. La acción, la actividad: he aquí el cimiento del arte
dramático, el arte del actor. La palabra misma “drama” denota en griego “la acción que se está
realizando”. En latin le corresponde a palavra actio, el mismo vocábulo cuya raíz se pasó a nuestras
palabras “actividad”, “actor”, “acción”. Por consiguiente, el drama en la escena es la acción que se está
realizando ante nuestros ojos, y el actor que sale a la escena es el encargado de realizarla.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 80-81)
55
Nadie puede despertar en uno mismo los sentimientos – amar, sufrir, estar celoso – con el solo fin de
experimentar-los; no se los puede violentar, porque si se ignora esta regla se termina en la más repulsiva
artificialidad. (STANISLAVSKI, 1980, p. 83)
56
El valor del arte se determina por su contenido espiritual. (STANISLAVSKI, 1980, p. 81)
57
En la escena hay que actuar, interna y externamente. (STANISLAVSKI, 1980, p. 81)
39
reproduzir as paixões e os tipos, senão viver uns e outros”58 pelo domínio técnico, com
controle absoluto.
Nossa atividade se manifesta na cena mediante as ações, e na ação se
transmite a alma do papel, tanto a vivência do artista como o mundo interno da
obra; pelas ações e atitudes formamos uma ideia dos personagens
representados na cena e chegamos a compreender quem são. Isto é o que nos
59
dá a ação, e o que dela espera o público. (STANISLÁVSKI, 1980, p. 93)
Esta linha de raciocínio pode ter sido influenciada, como chama a atenção Ruffini
(2003). Há nas pesquisas de Stanislávski no desenvolvimento do trabalho do ator sobre
si mesmo, além da declarada influência das teorias do psicólogo francês Théodule
Ribot, influências não declaradas e que se podem inferir de sua própria teoria:
Por trás da ciência do ator de Stanislávski, estão também Sigmund Freud
(1856-1939), [...] e William James (1842-1910), cientistas da alma. A Freud
pode ser atribuído o conceito de subconsciente como sede da criatividade e da
verdade, inacessíveis à intervenção direta da vontade e da razão; [...] a James
a descoberta, na última fase da vida, de que a “enunciação/pronúncia correta",
mais do que expressar o sentimento, é o [próprio] sentimento que lhe está
associado e portanto, a busca pela verdade/credibilidade pode partir da ação
física.
[...] A relação de Stanislávski com as ciências foi essencialmente do tipo
pragmática. Se fizer qualquer coisa não é por que seja cientificamente correto,
mas porque é eficaz na prática. Inconsciente e subconsciente, para Stanislávski
era importante que o ator apreendesse na totalidade do próprio corpo a não
forçar o sentimento (quero amar, odiar...), mas apenas a favorecer as condições
para que o sentimento se manifeste espontaneamente.
Entre os cientistas da alma que nutriram a ciência de Stanislávski, não devemos
esquecer Tolstói e Dostoiévski, com suas experiências com a narrativa.
60
(RUFFINI, 2003, p. 5 e 6)
O trabalho do ator sobre si mesmo irá constituir a base da ação do ator, através
58
No se trata de reproducir las pasiones y los tipos, sino vivir unos y otros. (STANISLAVSKI, 1980, p. 84)
Nuestra actividad se manifiesta en la escena mediante las acciones, y em la acción se trasmite el alma
del papel, tanto la vivencia del artista como el mundo interno de la obra; por las acciones y actitudes nos
formamos uma idea de los personajes representados en la escena y llegamos a comprender quiénes
son. Esto es lo que nos da la acción, y lo que de ella espera el público. (STANISLAVSKI, 1980, p. 93)
60
Dietro la scienza dell'attore di Stanislavskij, ci sono anche Sigmund Freud (1856-1939), [...] e William
James (1842-1910), scienziati dell'anima. A Freud può essere fatta risalire la nozione di subconscio como
sede della creatività e della verità, inaccessibile all'intervento diretto di volontá e ragione; [...] a James la
scoperta, nell'ultima stagione di vita, che l'"espressione giusta", più che manifestarlo,è il sentimento che vi
si associa, e che dunque la ricerca della credibilità può partire dall'azione física. [...] Il rapporto di
Stanislavskij con le scienze fu essenzialmente di tipo pragmatico. Si fa qualcosa non perché sia
scientificamente corretto, ma perché è praticamente efficace. Inconscio e subconscio, a Stanislavskij
importava che l‟attore imparasse nella totalità del proprio organismo a non forzare il sentimento (voglio
amare, odiare...), ma solo a curare le condizioni affinché spontaneamente il sentimento si manifestasse.
Tra gli scienziati dell‟anima che nutrirono la scienza di Stanislavskij, non vanno dimenticati Tolstoj e
Dostoievskij, con la loro sonda del racconto. (RUFFINI, 2003, p. 5 e 6)
59
40
do exercício das leis orgânicas. Assim, o trabalho do ator se configura numa via de mão
dupla: de um lado o exercício da psicotécnica para obtenção do "correto estado
criador", tornando conscientes os hábitos (de corpo e mente) adquiridos ao longo da
vida de forma automática, e, por outro lado, o estabelecimento, a partir da Análise Ativa,
de uma linha ininterrupta de ação e, consequentemente, de uma lógica sobre a
temática, denominada personagem.
Ao focarmos o trabalho do ator sobre si mesmo, evidenciamos dois aspectos: o
primeiro se refere à descoberta do fluxo orgânico do ator (em seu caráter psicofísico); o
segundo diz respeito à particularidade do ato criativo, a condução do ator no universo
ficcional do material textual analisado ativamente a partir do fluxo orgânico da ação.
1. 3 A CONTINUIDADE DO PENSAMENTO DE STANISLÁVSKI
Alguns dos atores que trabalharam com Stanislávski em seus últimos
experimentos junto ao Estúdio de Ópera do Teatro Bolshói, discípulos diretos do
mestre, deixaram depoimentos esclarecedores sobre os procedimentos de trabalho nos
últimos anos de vida de Stanislávski, nos quais consolida seu trabalho dedicado à
transmissão da “vida do espìrito humano”61.
A maioria desses discípulos deixou depoimentos sobre sua convivência artística
com o mestre, exemplificando seu modus operandi, descrevendo em seus livros os
procedimentos de Stanislávski, mostrando sua capacidade de conduzir o ator a buscar
a partir de si todos os recursos necessários para uma atuação convincente, ao mesmo
tempo, adaptando os procedimentos à sua própria realidade.
Dentre eles é preciso destacar Evgueni Bogratiónovich Vakhtângov (1833-1922),
Vassili Osipovitch Toporkov (1889-1970), Nikolai Mikhailovich Gorchakov (1898-1958),
Maria Osípovna Knébel (1898–1985) e Gueorgui Tosvtonógov (1913-1988), todos
partícipes do pensamento do diretor-pedagogo russo e que, depois de sua morte,
seguiram experimentando a partir das últimas postulações de Stanislávski sobre seu
sistema, e deram continuidade às pesquisas iniciadas por ele, agregando à obra do
mestre as contribuições de suas próprias pesquisas pessoais como atores e diretores.
61
STANISLAVSKI, 1989, p. 538.
41
Por certo houve outros alunos de Stanislávski (Michael Tshekhov, Richard
Boleslavski, Stela Adler, Harold Clurman, somente para citar alguns) que também
deixaram seus depoimentos sobre o mestre ou que também publicaram livros com os
resultados de suas pesquisas apoiadas em seu pensamento artístico. Contudo, limitome aos anteriores por fazerem referência, sobretudo à última fase das pesquisas, pois,
como lembra Jerzy Grotowski (1933-1999), para cada fase atribuída ao trabalho de
Stanislávski há um discípulo em particular e que se prendeu àquela fase particular.
As diferenças nos artistas se desenvolvem da mesma maneira que se
desenvolvem nos homens as idiossincrasias individuais orgânicas e únicas.
Nessas idiossincrasias individuais, e ao seu redor, é onde se situam os círculos
das condições presentes, as circunstâncias acessórias geralmente aceitas que
62
chamamos num personagem teatral de “as circunstâncias dadas”.
(STANISLAVSKI 1990: 121).
Stanislávski estava sempre fazendo experiências e não deixou “receitas”, mas
sim sugeriu os meios pelos quais o ator poderia descobrir a si, e nisto “reside o
essencial” (1987, p.178).
1.3.1 Evgueni Bogratiónovich Vakhtângov (1833-1922)
Segundo Jorge Saura (2007, p. 77), Vakhtángov é considerado por muitos como
o mais notável discípulo de Stanislávski. Ele foi membro do Teatro de Arte de Moscou
desde 1911 e participou ativamente de sua “seção experimental”, o Primeiro Estúdio,
onde foram realizados os primeiros experimentos com o sistema das ações físicas
aplicado a obras não realistas. Em 1913 formou seu próprio estúdio, trabalhando
paralelamente como pedagogo em ambos. Em 1921 os dois estúdios foram fundidos
dando origem ao Terceiro Estúdio que continua suas atividades até hoje, com o nome
de Teatro Vakhtángov.
Ainda em acordo com Saura (2007, p. 77), seu trabalho no Primeiro e no
Terceiro Estúdio pode ser dividido em dois períodos: um realista, no qual montou La
62
Las diferencias en los artistas se desarrollan de la misma manera que se desarrollan en los hombres
las idiosincrasias individuales orgánicas y únicas. En estas idiosincrasias individuales, y alrededor de
ellas, es donde se depositan los círculos de las condiciones presentes, las circunstancias accesorias
generalmente aceptadas que llamamos en un personaje teatral “las circunstancias dadas”.
(STANISLAVSKI 1990: 121)
42
Fiesta de la Paz ( A Festa da Paz), de Hauptmann, El diluvio (O dilúvio), de Berguer e
Rosmersholm, de Ibsen, seguido de outro, que ele mesmo qualificava como grotesco,
no qual colocou em cena El milagro de San Antonio (O milagre de Santo Antônio), de
Maeterlinck, La boda (O casamento), de Tchekov, Erik XIV, de Strindberg e, a que se
considera sua melhor criação, La princesa Turandot (A princesa Turandot), de Gozzi.
Em várias ocasiões dirigiu a seu amigo Mikhail Chékhov, que mais tarde continuaria e
ampliaria a pedagogia de Vakhtángov:
Os conceitos cênicos de Vakhtángov propõem o conflito entre uma extrema
convenção teatral e o teatro do “sentimento interior”. Afirmava que era possìvel
manter uma estética simbolista ou grotesca na montagem e ao mesmo tempo
interpretar de forma verdadeira, verossímil. Para isso, o ator deveria
experimentar em cena autênticas vivências, tal e qual exigia Stanislávski, e ao
mesmo tempo, parecer que dizia ao espectador: “agora estou chorando, mas
eu, o ator, na realidade estou informando sobre isso; parece que estou
limpando minhas lágrimas, mas não estou somente limpando minhas lágrimas,
senão, estou informando como estou fazendo isso.” A ênfase não se colocava
em o que se faz, senão em como. O ator, segundo Vartángov, deve manter um
ponto de vista acerca de seu personagem, não somente deve esforçar-se por
atuar bem, senão também por sentir a atitude pessoal em relação ao
63
personagem e à história como um todo. (SAURA, 2007, p. 77-78)
No ano de 1921, foi criado em Moscou o estúdio teatral Habima, cujos membros
pediram a Vakhtángov que lhes dirigisse sua primeira obra, El Dibbuk (O Dibbuk). Anos
mais tarde, o Habima se converteria na companhia nacional de Israel. Além destes
estúdios, Vakhtángov colaborou pontualmente como pedagogo em numerosos
grupamentos teatrais moscovitas.
63
Los conceptos escénicos de Vajtángov plantean el conflicto entre una extrema convención teatral y el
teatro del “sentimiento interno”. Afirmaba que era posible mantener una estética simbolista o grotesca en
la puesta en escena y al mismo tiempo interpretar de forma realista, verossímil. Para ello el actor debía
experimentar en escena auténticas vivencias, tal y como exigía Stanislavski, y al mismo tiempo parecer
que decìa al espectador: “ahora estoy llorando, pero yo, el actor, en realidad estoy informando sobre ello;
parece que estoy limpiando mis lágrimas, pero no sólo estoy limpiando mis lágrimas, sino que aviso de
cómo estoy haciéndolo.” El énfasis no se ponìa en qué se hace sino en cómo. El actor, según Vajtángov
debe mantener un punto de vista hacia su personaje, no sólo debe esforzarse por actuar bien, sino
también por sentir la actitud de uno hacia el personaje y hacia la historia en conjunto. SAURA, Jorge.
(Coord.) Actores y actuación: Antología de textos sobre la interpretación. Volumen II (1863-1914). Madrid:
Fundamentos, 2007, p, 77-78.
43
1. 3. 2 Vassili Osipovitch Toporkov (1889-1970)
Ator russo começou sua carreira em São Petersburgo em 1909. Atuou no Teatro
Korsh de 1919 a 1927, destacando-se em papéis como Truffaldino em Arlequim,
Servidor de Dois Amos, de Goldoni e o Capitão Christopherson em Anna Christie, de
O‟Neill. Em 1927 ingressou no Teatro de Arte de Moscou sendo dirigido por Stanislávski
em papéis como o Caixeiro em Os estelionatários, de Katáiev, Chíchikov em Almas
Mortas, de Gógol e Orgon em Tartufo, de Molière. Conforme Saura (2007, p. 115) foi
“grande admirador de Stanislávski e de seu sistema e descreveu em numerosas
ocasiões a forma de ensaiar de seu professor”64. Em 1940, ainda segundo Saura (2007,
p. 115), fez um de seus melhores trabalhos interpretando Epikhodov em O jardim das
Cerejeiras, de Tchékov, continuando em papéis principais ao longo dos anos sessenta.
Para Saura (2007, p.15), “sua contribuição mais importante possivelmente seja a
divulgação do sistema de Stanislávski”65. A partir de 1948 foi professor no Teatro de
Arte de Moscou e escreveu muitos livros e artigos, proferindo discursos e conferências
sobre a teoria e a prática de Stanislávski. Seu livro mais conhecido é Stanislavski dirige,
não publicado em Língua Portuguesa. Nomeado Artista do Povo da URSS em 1948,
recebeu o Prêmio Nacional de Teatro em 1946 e 1952. Foi representante de seu país e
do Teatro de Arte de Moscou em encontros internacionais.
1. 3. 3 Nikolai Mikhailovich Gorchakov (1898-1958)
De acordo com nota de Christine Edwards (1998, p. 221), tradutora do livro
Stanislavsky in Rehearsal: The Final Years66 Gorchakov foi “um talentoso diretor sob a
supervisão de Vartángov no Terceiro Estúdio”67 do Teatro de Arte de Moscou.
Trabalhou com Stanislávski por muitos anos e “se tornou um dos diretores líderes do
64
Gran admirador de Stanislavski y su sistema, describió em numerosas ocasiones la forma de ensayar
de su maestro. (SAURA, 2007, p. 115)
65
[...] su contribuición más importante posiblemente sea la divulgación del sistema de
Stanislavski.(SAURA, 2007, p. 115)
66
TOPORKOV, Vasily Osipovich. Stanislavsky in Rehearsal: The Final Years. Translated by Christine
Edwards. New York: Theatre Arts Book/Routledge, 1998.
67
[...] a talented director under Vakhtangov at the Third Studio. (TOPORKOV, 1998, p.221)
44
sistema soviético, até sua morte em 1958.”68 Escreveu Stanislavsky Directs
(Stanislávski Dirige. Em espanhol Las Lecciones de Regisseur de Stanislavski.
Montevideo: Pueblos Unidos, 1956), uma grande contribuição ao estudo do sistema de
Stanislávski, com a descrição detalhada do procedimento de trabalho do mestre “em
seus ensaios com os jovens novos membros do Teatro de Arte de Moscou.”69 Nele se
encontram descritos as indicações de Stanislávski sobre os procedimentos da análise
ativa e do método das ações físicas na condução do ator.
1. 3. 4 Maria Osípovna Knébel (1898-1985)
Destacada atriz e diretora russa, ingressou no Teatro de Arte de Moscou em
1924, a princípio como professora de voz dos alunos do Estúdio de Ópera e Drama
dirigido por Stanislávski. Segundo Saura (2007, p. 187), “logo se revelou uma excelente
pedagoga, capaz de transmitir com simplicidade e clareza o sistema das ações
físicas”70. Trabalhou também por um curto período como atriz no estúdio dirigido por
Mikhail Chekhov. Em 1950 começou sua atividade como diretora, sendo nomeada
“principal diretora do Teatro Infantil Musical do Centro, em 1966”71. Em 1960 ingressou
como professora de interpretação no Instituto Estatal de Arte Teatral de Moscou –
Anatoly Lunatchrsky (GITIS)72 e em 1968 abandonou a direção cênica para centrar-se
totalmente na pedagogia. Recebeu o Prêmio Nacional da URSS em 1978.
Autora de uma autobiografia (Toda la vida [Toda a vida]) e de livros teóricos
como La palabra en la creación actoral (A palavra na Criação Atoral), Análisis
activo de la obra y el papel (Análise Ativa da obra e o Papel) (traduzido ao
castelhano como El último Stanislavski[O último Stanislávski]) ou La poesia de
la pedagogía (A poética da pedagogia [teatral]), centrou seus esforços em
adaptar o sistema de Stanislávski às novas técnicas e sensibilidades,
68
[...] became a leading Soviet director until his death in 1958. (TOPORKOV, 1998, p.221)
[...] a detailed account of Stanislavsky‟s application of his system in rehearsals with the new young
members of the Moscow Art Theatre. (TOPORKOV, 1998, p.221)
70
[...] pronto se reveló como una excelente pedagoga capaz de trasmitir con sencillez y claridad el
sistema de las acciones físicas. (SAURA, 2007, p. 187)
71
[...] directora principal del Teatro Infantil Musical del Centro en 1966. (SAURA, 2007, p. 187)
72
A partir de 1991 passa a chamar-se RATI–Academia Russa de Arte Teatral. (Dagostini, 2007, p. 5)
69
45
privilegiando elementos como a improvisacão ou a reação imediata a estímulos
73
não reflexivos. (SAURA, 2007, p. 187)
É uma das grandes responsáveis pela divulgação do método da Análise Ativa,
enfatizando seu aspecto prático através do desenvolvimento dos études, sempre
apoiados no estudo prévio pelo diretor das características gerais da obra em que se
baseia a montagem. Sua abordagem segue o ponto de vista da orientação do ator nos
meandros da revelação do papel através da ação.
1. 3. 5 Gueorgui Aleksandrovich Tosvtonógov (1915-1989)
Tovstonógov teve sua formação no GITIS, onde ingressou no ano de 1933 sob a
direção de Aleksei Popov (1892-1961). Também foi aluno de Maria O. Knébel, quem
teve estreito contato com Stanislávski em seus últimos experimentos. Segundo
Dagostini (2007, p. 6), Tovstonógov chegou a assistir algumas conferências de
Stanislávski no GITIS e a “palestras-aulas” no Estúdio de Ópera Dramática do Teatro
Bolshói.
Em 1938 se tornou diretor artístico do Teatro Russo de Tbilisi. De 1946 a 1949
dirigiu o Teatro das Crianças de Moscou e entre 1950 e 1956 foi diretor-chefe
do Lênin Komsomol Theatre de Leningrado, onde desenvolveu a bem sucedida
política de misturar dramas Soviéticos, clássicos russos e da literatura ocidental,
que levou consigo para o Teatro Dramático Bolshoi (BTD, ou Gorki), em 1956,
transformando-o no melhor teatro de Leningrado. (STANTON; BANHAM, 1996,
74
p. 384)
Birgit Beumers75 (1999) em artigo sobre o teatro russo pós-regime soviético
informa que durante o período em que foi o principal diretor do Lenin Komsomol
73
Autora de una autobiografia (Toda la vida) y de libros teóricos como La palabra en la creación actoral,
Análisis activo de la obra y el papel (traducido al castellano como El último Stanislavski) o La poesia de
la pedagogía, ha centrado sus esfuerzos en adaptar el sistema de Stanislavski a las nuevas técnicas y
sensibilidades, privilegiando elementos como la improvisación o la reacción inmediata a estímulos no
reflexivos. (SAURA, 2007, p. 187)
74
In 1938 he became artistic director of the Tbilisi Russian Theatre. From 1946 to 1949 he directed the
Moscow Children‟s Theatre, and between 1950 and 1956 he was chief director of Leningrad‟s Lenin
Komsomol Theatre, where he developed the successful policy of mixing Soviet dramas, Russian classics
and Western literature, wich he took with him to the Bolshoi Dramatic Theatre (BTD, or the Gorky) in
1956, transforming it into the best theatre in Leningrad. In: Cambridge paperback guide to theatre. Edited
by Sarah Stanton and Martin Banham. Cambridge: University Cambridge Press, 1996, p. 384.
75
Professora no Departamento de Russo da Universidade de Bristol, Inglaterrra. Seu livro mais
dastacado, „Yuri Lyubimov no Teatro Taganka (1964-94)‟ foi publicado em 1997. Especializou-se em
Cultura Russa e tem publicado artigos sobre a produção contemporânea do teatro e do cinema russo. (In
46
Theater, Tovstonógov desenvolveu “um estilo no qual fundiu os conceitos de
Stanislávski e Meyerhold, mesclando convencionalidade com autenticidade, e
combinando análise figurativa com análise psicológica.”76 Para a autora, o diretor valeuse de seu “talento” de ator para desenvolver psicologicamente o personagem através
da improvisação, oferecendo aos atores liberdade para modificá-lo, demonstrando
“capacidade de externar o talento dos jovens atores”77 tendo sempre em mente “a
concepção da montagem como um todo”78, ou seja, o ponto de vista da direção.
A utilização dos dispositivos teatrais por Tovstonógov eram equilibrados, porque
propositais. Suas montagens mostraram uma harmonia entre o significado
histórico e contemporâneo, entre o objetivo e o subjetivo, o histórico e o
pessoal, o qual criou um significado ambivalente e objetivo.[...]
Tovstonógov preferiu a literatura não dramática e interpretou a peça como uma
79
estrutura ou uma partitura musical. (BEUMERS, 1999, p. 364)
Nas palavras de Tovstonógov (1999), “um diretor teatral não é um metteur en
scène, mas o autor de uma montagem. As possibilidades para um diretor na
interpretação de uma peça hoje são ilimitadas.”80
O idiossincrático e o pragmático são fatores fundamentais no desenvolvimento
da arte teatral – aspecto observado já por Stanislávski (1980) – e salientado por
Dagostini (2007) em sua tese de doutoramento:
Constata-se a necessidade de se apossar individualmente desse saber
através da prática, sobretudo, sendo que a sensibilidade e a capacidade de
cada um fazem com que a peculiaridade subjetiva sempre esteja presente,
em detrimento da objetividade do “sistema” e de suas leis.
O importante é a honestidade e a seriedade com que nos aproximamos e
nos apoderamos de determinado conhecimento e a nossa atitude diante
dele, encarando-o como um valioso patrimônio produzido por nossos
antecessores o qual temos a obrigação de preservar e de desenvolver para
„A History of Russian Theatre‟, editado por Robert Leach e Victor Borovsky, Cambridge: Cambridge
University Press, 1999. p.ix)
76
[...] a style wich merged the concepts of Stanislavsky and Meyerhold, mixed conventionality with
authenticity, and combined figurativeness with psychological analysis.(BEUMERS, 1999, p. 363)
77
[...] capacity to bring out the talent of the young actors [...] (BEUMERS, 1999, p. 363-4)
78
[...] a concept of the production as a whole. (BEUMERS, 1999, p. 363)
79
Tovstonogov‟s use of theatrical devices was balanced, because purposeful. His productions showed a
harmony between historical and contemporary meaning, between the objective and the subjective, the
historical and the personal, which created an ambivalent and objective meaning. [...]
Tovstonogov favoured non-dramatic literature and perceived the play as a scenario or a musical score.
(BEUMERS, 1999, p. 364)
80
„a theatre director is not a metteur en scène, but the author of a production. The possibilities for a
director in the interpretation of a play today are unlimited‟. (Apud in BEUMERS, 1999, p. 364)
47
a transformação de nossas potencialidades artísticas, culturais e humanas.
(DAGOSTINI, 2007, p. 1-2)
É através da abordagem de Tovstonógov que nos aproximamos ao Método da
Análise Ativa, trabalhado e adaptado por Dagostini em seus anos de pesquisa e
transmitido a seus alunos de graduação, dentre os quais me enquadro. No meu
processo artístico, que passo a descrever, também segui utilizando o método, e por
certo também procedo a adaptações à minha própria realidade e interpretações das
leituras dos discípulos de Stanislávski, e é por esse motivo principalmente que se
encontram listados acima.
2 STANISLÁVSKI DA RÚSSIA PARA SANTA MARIA/RS
Que saibam os artistas jovens que resultados
podem ser obtidos através do trabalho, da
técnica e da arte autêntica. [...] O artista deve
olhar o belo (e não só olhar, mas saber ver) em
todos os campos da arte e da vida próprios e
dos outros. Ele precisa de impressões de bons
espetáculos e artistas, concertos, museus,
viagens, bons quadros de todas as tendências,
das mais esquerdistas às mais direitistas,
porque ninguém sabe o que lhe vai inquietar a
alma e revelar os mistérios da criação.
(STANISLAVSKI, 1989, p. 38)
Durante minha graduação na Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, tive
acesso ao método da Análise Ativa, desenvolvida na Rússia por Konstantin
Serguiêievitch Stanislávski-Alexéiev (1863-1938) e transmitida pela Profª. Drª. Nair
D‟Agostini (19_ _). Ela foi a primeira brasileira a realizar seus estudos no LGITMiK –
Instituto Estatal de Teatro, Cinema e Música de Leningrado, entre os anos de 19781981, com os professores Gueorgui Tovstonógov (1913-1988), Arkadii Kastman (19211989) e Lev Dodin (1944-), seguidores das pesquisas do mestre russo que apontavam
aspectos não abordados nas traduções americanas da obra de Stanislávski difundidas
no Brasil.
No início da década de 1980, quando de seu retorno ao Brasil, o panorama
teatral que encontrou Dagostini (2007), em suas próprias palavras, “se apresentava [...],
48
em termos profissionais, com poucas perspectivas”81. Segundo ela, a dificuldade em se
inserir novamente no meio teatral estava relacionada a preconceitos de ordens
diversas, mas “sobretudo, a K. Stanislávski, que era visto com suspeita, tachado de
psicologismo e ultrapassado. Todos os cursos em voga na época faziam questão de
anunciar que não seguiam a tendência psicologizante do sistema stanilavskiano” 82.
Mesmo suas tentativas de validação do curso junto ao MEC – Ministério da Educação e
Cultura – foram frustrantes, “[...] depois de mais de dez anos sem obter nenhum
resultado. O curso nunca foi reconhecido e não me trouxe qualquer ascensão na
carreira acadêmica, nenhuma pontuação em concursos públicos nem vantagem
financeira”83, afirma.
Na Rússia, a Profª. Drª. Nair pode estudar com Gueorgui Tovstonógov,
continuador do pensamento dos últimos anos de trabalho de Stanislávski em sua
abordagem da Análise Ativa:
Nessa última etapa de seu trabalho, como já é conhecido, [Stanislávski] não
enfoca mais os sentimentos como ponto de partida, pois estes são obtidos
como resultado, mudando, dessa forma, o processo de abordagem sobre o
papel, não sofrendo mais a fragmentação do texto em pequenas partes. Há o
estabelecimento e a exigência da realização de uma linha de ação interna e
externa ininterrupta do papel, criada com a lógica e coerência absolutas na
ação que conduz o processo de comunicação na cena. Todos os elementos do
sistema, considerados inseparáveis um do outro, também passaram a fazer
parte do processo unitário da criação, e eram trabalhados em situações
concretas, nos études na dependência das respectivas circunstâncias dadas e
do nível de desenvolvimento em que o ator se encontrava, recebendo maior ou
menor significado. (DAGOSTINI, 2007, p. 98-99)
Minha práxis está apoiada no conhecimento teórico do método obtido da tradição
russa – Knébel – Tovstonógov via Dagostini – e em virtude disso não se podem ignorar
as modificações transcorridas desde o que foi pensado por Stanislávski, até porque a
teoria da análise está dispersa ao longo do percurso de seus livros e dos escritos de
seus discípulos; sua interpretação é diversa como diversa é a compreensão das coisas
por cada pessoa.
Não ignorados todos os mal entendidos com relação aos escritos do mestre
russo, nesta dissertação vou ater-me aos aspectos do método salientados por Dagostini
81
DAGOSTINI, 2007, p. 13.
DAGOSTINI, 2007, p. 13-14.
83
DAGOSTINI, 2007, p. 14.
82
49
(2007) e aos elementos do “sistema” como um todo – já que seu domínio é prerrogativa
para uma aplicação do método de forma eficaz – assimilados ao longo de minha
graduação em Direção e Interpretação Teatral na Universidade Federal de Santa Maria.
Desde o primeiro semestre de curso, nas Disciplinas Laboratório, Encenação,
Técnicas de Representação e Expressão Corporal e Vocal fomos lentamente iniciados
no método da Análise Ativa – como a entendo hoje – e no “sistema de Stanislávski”,
embora não soubéssemos.
No decurso dessas disciplinas eram trabalhados os elementos do sistema,
dispersos de modo a fornecer ao aluno ator/diretor, o domínio dos mesmos através da
experimentação prática em exercícios cênicos. Em conjunto com as demais disciplinas,
o aluno era inserido no universo teatral e recebia noções sobre a evolução do teatro, a
história da dramaturgia e dos espetáculos, a história da música, das estéticas do teatro
nacional e internacional. Também se incluíam conhecimentos teóricos e práticos sobre
montagem, maquiagem, figurino, cenografia paralelamente com a experimentação das
diferentes técnicas de representação, bem como a experimentação das diversas
estéticas teatrais com a prática da encenação. O curso funcionava de modo intensivo,
com aulas no período matutino e vespertino, de segunda à sexta-feira. O período
noturno, e também os finais de semana geralmente eram requisitados para ensaios, ou
pessoais ou de colegas graduandos. Quando se lê a descrição de Dagostini (2007, p. 713) sobre o funcionamento das aulas no Instituto Estatal de Teatro, Cinema e Música
de Leningrado, percebe-se uma grande influência desses procedimentos na aplicação
do currículo de Artes Cênicas da UFSM que passou a vigorar em 1994.
No decorrer do curso, descobre-se na prática o que muito bem expressou
Adriana Dal Forno, em seu discurso como Coordenadora de Curso na formatura da
Turma de 1999, no ano de 2004:
Teatro, para início de conversa, é uma palavra de vasto território, no qual
cabem inúmeras formas, técnicas, metodologias, tantas quantas forem as
pessoas envolvidas e os textos/temas tratados. Há conhecimento formal no
teatro, e ele diz respeito ao que já foi feito por diretores, atores e dramaturgos:
práticas, teorias, estéticas. No entanto, e é esse o ponto que eu gostaria de
explorar mais aqui, sendo a matéria do teatro os homens e mulheres que o
fazem, seus corpos e mentes (mente no sentido amplo e não só aquele que diz
respeito ao raciocínio), não resta outra saída a atores, diretores e professores
senão a de se colocar diante de sua humanidade, por força deste fazer. [...] Há
conhecimento subjetivo em teatro, particular, individualizado, e ele diz respeito
50
à essência da poética teatral: o que cada um, em cada texto/tema tem para
explorar, descobrir, e dilatar na obra cênica e no “ser aqui e agora” que a
sustenta. O conhecimento formal emerge como espetáculo, teoria de práticas e
estéticas em mapas de superfície, acessível a todo aquele que quiser desfrutar.
O conhecimento subjetivo – as vicissitudes do processo criativo – existe como
labirinto subterrâneo acessível àqueles que participam como agentes, e que,
em boa parte não aparece no espetáculo, pois o trabalho teatral, que se
preocupa em ser arte, como dizia o velho mestre Stanislávski, exige muito
trabalho a fundo perdido. Parte deste trabalho a fundo perdido se faz sobre
técnicas, muito da técnica nos leva aos limites e transcendências do ser
humano que somos, matéria do teatro. [...] A formação do labirinto subterrâneo
impõe o silêncio solitário ou compartilhado, e é através dele que se descobre
outro mundo, mundo sensível, sutil, acessível a qualquer um, em qualquer
profissão ou atividade, mas que está sempre a espera do silêncio para se
cumprir. Por ele aprende-se a estar disponível talvez a uma vida subliminar, da
ordem do sonho e da imaginação. Porém, para aqueles que colocam a criação
como prato suado de cada dia, este mundo é da ordem do REAL, da percepção
que se dirige a cada pequeno momento e constrói o aqui e agora cênico, nossa
verdade, nosso ato de criação. A formação assim, mais do que formar, dissolve
para construir e dissolver novamente até a superfície da relação público e
plateia se dar como obra, cujo fio, cujo real, é um fluxo, que atores e diretores
cobrem de palavras, de luz, de movimento, de figurino, de cenário, de música e
84
de ideias. (DAL FORNO, Apresentação Oral,Jan./2005.)
A transcrição deste trecho do discurso de Dal Forno no meu entendimento
fornece um panorama do paradigma filosófico daqueles anos. Claro está que o discurso
faz referência a um período específico dentro do curso e diz respeito a um determinado
grupo de alunos. Sabemos que „as coisas‟ não são fixas e que variam de acordo com
as pessoas, circunstâncias, acontecimentos, etc, como bem observa Dagostini (2007, p.
19):
Atualmente os professores, atores e diretores que concluíram seus estudos
universitários no Departamento de Artes Cênicas da UFSM, entre 1987 a 2001,
e de que tenho conhecimento, encontram-se atuando em escolas, em grupos
de teatro independentes, em secretarias de cultura e também em universidades
do país como professores. Todos passaram pelo processo de conhecimento do
método em sua trajetória de formação. Uns o assimilaram com maior paixão e
domínio do que outros, e a importância que lhe atribuem, em seus trabalhos
criativos ou pedagógicos, depende, sobretudo, da individualidade artística e
85
pessoal de cada um, que foge de meu alcance. (DAGOSTINI, 2007, p. 19)
A
cada
semestre
nas
disciplinas
práticas
(Encenação,
Técnicas
de
Representação, Expressão Corporal e Vocal e Laboratório) havia a apresentação de
um exercício cênico de encerramento da disciplina. Estes exercícios ficavam restritos à
84
Discurso transcrito do vídeo de formatura da turma de 1999, no ano de 2005.
Embora não me enquadre no período de graduação citado pela Doutora Nair, já que me graduei em
2003, me considero merecedor desta herança e o processo de conhecimento do método foi fundamental
em meu processo artístico/pedagógico.
85
51
sala de aula e começavam a ser abertos a apreciação pública a partir do terceiro
semestre, quando recebíamos, na disciplina Encenação III, o conhecimento do método
para a análise do material textual, o aspecto – digamos – teórico da Análise Ativa.
Somente depois de um ano de trabalho prático sobre os elementos do sistema e depois
da aquisição da psicotécnica mínima para dominá-los é que fomos apresentados ao
todo complexo que é o Método da Análise Ativa, síntese do trabalho de uma vida
dedicada a descobrir os elementos comuns da arte da representação. Ferracini
comenta este aspecto ao discorrer sobre os pais-mestres do ator criador, ao lembrar
que o trabalho do ator proposto por Stanislávski opera no que Eugênio Barba chama de
nível pré-expressivo, e serve para efetivar o estabelecimento e manutenção da unidade
psicofísica do corpo do ator, levando sempre em consideração que esta é a primeira
etapa do trabalho, do ator sobre si mesmo, e que é condição para o trabalho sobre o
papel. Isto permite ao ator manter sua liberdade criativa e adaptar sua atuação a
qualquer gênero ou estilo:
Se pensarmos que o ator cria a partir de si mesmo, então Stanislavski [sic]
propõe um sistema que independe da estética naturalista ou realista. Na
verdade, esse “sistema” proposto por Stanislavski [sic] refere-se a um nível préexpressivo do ator e é independente das escolhas poéticas e-ou estéticas do
diretor. Pensando sem preconceito, não se trata de realismo ou naturalismo,
mas de um processo indispensável para a natureza criadora, que é o corpomente orgânico. Dessa forma, o ator torna-se independente da direção, e
também, e principalmente, dos ismos que tentam definir as várias estéticas. O
86
ator passa a ser uma potência criadora em si. (FERRACINI, s.d., p. 63)
O trabalho sobre o papel vai possibilitar o surgimento da personagem, que nada
mais é do que ator agindo lógica e consequentemente nas circunstâncias dadas do
texto, vivenciando o presente da ação, amparado em seu passado e rumo ao futuro
proposto pelo autor, concretizando a linha contínua, ininterrupta, transversal de ação,
de circunstância em circunstância, acontecimento após acontecimento, para alcançar o
superobjetivo87 da obra.
86
Revista do LUME. Dispon. em http://primeirosinal.com.br/files/publication/12/90_210.pdf, acessado em
16/07/2010
87
K. Stanislávski fala de como chegou ao conceito de superobjetivo narrando um fato ocorrido por
ocasião de uma turnê do Teatro de Arte de Moscou por São Petersburgo (Leningrado) durante um
inverno muito rigoroso. Ele amplia o conceito ao diretor e ao ator, advertindo que estes devem convergir
entre si, evitando as „tendências‟ contrárias ou alheias ao superobjetivo.(STANISLAVSKI, 1980, p. 327330)
52
Reforço mais uma vez que os elementos do sistema fazem referência aos
processos
de
vivência
e
encarnação/personificação
tidos
como
simultâneos,
indissociáveis. Eles estão o tempo todo interrelacionados. Duas dimensões do mesmo e
único caminho percorrido pelo ator para chegar ao fim maior de sua arte. Através do
domínio técnico destes elementos, se estabelecem, de acordo com Stanislávski (1983,
p. 353), “os três principais momentos do processo criativo: 1) a atitude interior em cena,
2) a linha ininterrupta de ações, 3) o superobjetivo”88.
A seguir, discorro sobre os elementos do sistema assimilados nos três primeiros
semestres da graduação, antes de receber o conhecimento teórico para a aplicação do
método da Análise Ativa, em acordo com o exposto por Stanislávski no conjunto de sua
obra.
2.1 Relaxamento dos Músculos
Enquanto existe a tensão não se pode falar de
sensações sutis, corretas, nem de uma normal
vida espiritual do personagem.89
(STANISLAVSKI, 1980, p. 152)
A ausência de tensão desnecessária foi uma das primeiras constatações de
Stanislávski ao observar o desempenho dos grandes atores de seu tempo. O
relaxamento dos músculos na teoria de Stanislávski é um importante elemento do
sistema que convém ser observado no início do processo de treinamento do ator, como
parte do desenvolvimento da “técnica interior” ou “psicotécnica”. Porém, como observa
Tórtsov/Stanislávski (1980, p. 153) “não se pode liberar totalmente o corpo de todas as
tensões supérfluas”90, mas, por outro lado, “é necessário afrouxar os músculos
constantemente, tanto em cena como na vida. Se não se procede assim, a tensão e os
espasmos podem chegar ao limite e sufocar o sentimento vivo durante o momento da
88
[...] los três momentos principales del processo creador: 1) la actitud interior em la escena, 2) la línea
contínua de la acción, 3) el superobjetivo. (STANISLAVSKI,1983, p. 353) Grifos do autor.
89
Mientras existe la tensión no se puede hablar de sensaciones sutiles, correctas, ni de una normal vida
espiritual del personage. (STANISLAVSKI, 1980, p. 152)
90
[...] no se puede liberar totalmente el cuerpo de todas las tensones superfluas. (STANISLAVSKI, 1980,
p. 153)
53
criação”91. Para resolver esta contradição, Stanislávski sugere desenvolver no ator “o
sentido da observação ou controle”, e que “este processo de observação de si mesmo
deve se converter em um hábito mecânico, inconsciente. [...] Há que transformá-lo
numa conduta normal, uma necessidade natural”92, sobretudo nos momentos de maior
agitação.
Stanislávski (1980, p. 154) afirma que “o controle muscular deve ser parte
da conduta física, conveter-se em segunda natureza;”93 e que só assim pode ajudar o
ator durante a criação. A observação dos animais – principalmente os felinos – e das
crianças de colo é o que aconselha o mestre russo para o desenvolvimento do senso
de controle da tensão muscular (STANISLAVSKI, 1980, p.155-157). Não se trata de
eliminá-la por completo, mas de deixar agir somente a tensão necessária para a
realização da ação proposta para o personagem, pois a tensão desnecessária bloqueia
o fluxo energético impedindo o movimento orgânico, natural. Portanto, o estado de
observação e controle se converte numa arma de luta constante para o domínio da
tensão, pois como exorta Stanilávski (1980, p. 153-4), “o hábito do controle permanente
de si mesmo e a luta contra a tensão devem constituir o estado normal do artista em
cena”94.
Para o uso exato da tensão, Tórtsov/Stanislávski (1980, p. 158) nos convida a
explorar “o conhecimento do centro de gravidade do próprio corpo”95 – pois isto
condiciona sua estabilidade –, bem como “estudar as leis da conservação do equìlibrio
do corpo humano e com sua própria experiência aprender a determinar a posição do
centro de gravidade em cada uma de suas posturas.”96 É aqui que se agregam ao
controle pessoal e à liberação da tensão muscular os outros elementos da psicotécnica
abordados anteriormente: a imaginação, as circuntâncias dadas e o “mágico se”.
91
[...] es necesario aflojar los músculos constantemente, tanto en la escena como en la vida. Si no se
procede así la ténsion y los espasmos pueden llegar al límite de sofocar el sentiminetovivo duante el
momento de la creación. (STANISLAVSKI, 1980, p. 153)
92
Este proceso de observación de sí mismo se debe convertir en un hábito mecánico, inconsciente. [...]
hay que transformarlo en una costumbre normal, una necessidad natural [...]. (STANISLAVSKI, 1980, p.
153)
93
El control muscular debe ser parte del arreglo físico, convertirse en segunda naturaleza;
(STANISLAVSKI, 1980, p. 154)
94
El hábito del permanente control de sí mismo y la lucha contra la tensión deben constituir el estado
normal del artista en la escena. (STANISLAVSKI, 1980, p. 153-4)
95
[...] (el conocimiento del centro de gravedad del propio cuerpo). (STANISLAVSKI, 1980, p. 158)
96
[...] estudiar las leyes de conservación del equilibrio del cuerpo humano y con la propia experiencia
aprender a determinar la posición del centro de gravedad en cada una de sus posturas. (Idem)
54
Cada pose, acrescida de uma imagem conecta-se a uma circunstância que,
motivada pelo “se” “recebe um objetivo ativo e se converte em ação”97, infere o mestre.
É suficiente acreditar nesta ficção, e de imediato uma pose sem vida se
converte em uma ação real [...]. Basta sentir a verdade do ato, e em seguida a
própria natureza oferece sua ajuda: a tensão supérflua se atenua, a necessária
se afirma, e tudo isso transcorre sem qua haja a intervenção de uma técnica
98
consciente. (STANISLAVSKI,1980, p. 158)
Para Stanislávski (1980, p. 159), a natureza é capaz de guiar aos organismos
vivos melhor do que a consciência e a tão “celebrada” técnica de ator. De acordo com
sua proposição, para cada pose do corpo em cena existem três momentos: tensão
(inevitável a cada nova postura ou provocada pela exposição pública); relaxamento
(liberação da tensão desnecessária pela intervenção do “controle”) e justificação
(fundamentação da pose caso ela não desperte por si a imaginação ativa do ator).
Stanislávski (1980, p. 162) determina que enquanto utiliza determinados grupos
musculares, o ator precisa manter o controle sobre os grupos não trabalhados
mantendo-os sem tensões desnecessárias, o que só se alcança mediante trabalho
sistemático de aprimoramento técnico:
Devemos nos transformar e nos adaptar por inteiro, de corpo e alma, da cabeça
aos pés, de acordo com as exigências de nossa arte, ou melhor, da própria
natureza. A arte está em comum acordo com ela. Nossa natureza resulta
deteriorada pela vida e pelos maus hábitos adquiridos. Os defeitos que passam
despercebidos na vida corrente se tornam muito perceptíveis à luz dos
refletores, e de forma inoportuna saltam à vista do espectador. É natural: no
palco a vida humana se mostra no pequeno espaço do cenário, como no
diafragma de uma câmera fotográfica. É uma vida observada através de um
prisma; é como colocar uma miniatura sob uma lupa. Diante de semelhante
atenção, ao espectador não escapa o menor detalhe. (STANISLAVSKI,1980, p.
99
162)
97
[...] recibe un objetivo ativo y se conviere en acción. (STANISLAVSKI, 1980, p. 158)
Es suficiente creer en esta ficción, y de inmediato una pose sin vida se convierte en una acción real
[...]. Basta sentir la verdad del acto, y en seguida la naturaleza misma ofrece su ayuda: la tensión
superflua se atenúa, la necesaria se afirma, y todo esto trascurre sin que intervenga una técnica
consciente. (STANISLAVSKI, 1980, p. 158)
99
Debemos trasformarnos y adaptarnos por entero, en cuerpo y alma, de la cabeza a los pies, de
acuerdo con las exigencias de nuestro arte, o mejor dicho, de la misma naturaleza. El arte está en muy
buenos términos com ella. Nuestra naturaleza resulta deteriorada por la vida y por los malos hábitos
adquiridos. Los defectos que pasan inadvertidos en la vida corriente se vuelven muy notables a la luz de
la candilejas, y de un modo inoportuno saltan a la vista del espectador. Es natural: en las tablas la vida
humana se muestra en el estrecho espacio del escenario, como en el diafragma de uma cámara
fotográfica. Es una vida observada con prismáticos; es como si colocaran una miniatura bajo una lupa.
Ante semejante atención, no escapa al espectador el menor detalle. (STANISLAVSKI, 1980, p. 162)
98
55
Mais uma vez se percebe que os elementos do sistema que compõem a
psicotécnica estão imbricados e sua divisão é necessária para poder esclarecer os
meandros de sua relação. Mediante trabalho sistemático sobre si mesmo, atores e
diretores vão aperfeiçoando sua técnica pessoal e cada vez mais se aproximando da
“vida do espìrito humano”, na assimilação e adaptação dos exercìcios propostos na
abordagem do “Sistema Stanislávski”, que precisa ser vivenciado na prática para ser
compreendido. No curso da UFSM, os aspectos relacionados ao relaxamento muscular
eram trabalhados em todas as disciplinas práticas, especialmente nas aulas de
Expressão Corporal e Vocal, Laboratório e Interpretação, que possibilitavam ao aluno
ator/diretor a concentração e a consciência corporal necessárias para exercitar-se nos
elementos do sistema; a respiração acertada, o posicionamento correto da coluna
vertebral, controle, precisão, ritmo interno e externo, decisão, adaptação e
expressividade.
2. 2 A IMAGINAÇÃO
O trabalho criativo no papel e na transformação
do texto verbal do dramaturgo na vida da cena
transcorre, integralmente, desde o princípio até
o fim, com a ajuda da imaginação.100 (
STANISLAVSKI,1980,p. 119)
O trabalho do ator na peça e no papel na proposição de Stanislávski (1980),
começa com o emprego da palavra mágica “se” “como alavanca que eleva o artista da
realidade cotidiana ao plano da imaginação”101, já que em cena não há acontecimentos
verdadeiros, reais, somente circunstâncias dadas pela inventividade do autor,
acrescidas dos “se” do diretor, técnicos e atores. “A realidade não é arte”102. A arte,
assim como a obra dramatúrgica são, por natureza, fruto da imaginação e “a tarefa do
ator e de sua técnica consiste em transformar a ficção da obra no acontecimento
100
El trabajo creador en el papel y en la transformación del texto verbal del dramaturgo en la vida de la
escena trascurre íntegramente, desde el princípio hasta el fin, con la ayuda de la imaginación.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 119)
101
[...] como palanca que eleva al artista de la realidad cotidiana al plano de la imaginación.”
(STANISLAVSKI, 1980, 98)
102
La realidad no es el arte. (STANISLAVSKI, 1980, 98)
56
artístico da cena”103.
Considerando que nesse processo a imaginação desempenha um importante
papel, vou me deter em esclarecer suas características e funções na perspectiva do
trabalho criativo do ator. Para tanto, começo por diferenciar “imaginação” de “fantasia”.
Embora alguns dicionários da Língua Portuguesa tratem os vocábulos como sinônimos,
Konstantin Serguiêievitch aponta particularidades com relação a uma e outra, quando
fala da importância da imaginação e da fantasia na composição de obras de arte que
apresentam realidades desconhecidas por seus autores:
– A imaginação cria o que é, o que acontece, o que conhecemos; a fantasia,
por sua vez, nos mostra o que não conhecemos, o que jamais foi nem
aconteceu na realidade. Ainda que, talvez, quem sabe, possa vir a acontecer.
[...] A fantasia sabe tudo, é toda-poderosa (sic), e é, assim como a imaginação,
104
indispensável para um pintor. (STANISLAVSKI,1980, p. 99)
Concepção próxima à oferecida por Stanislávski aos seus alunos pode ser
verificada recorrendo ao pensamento filosófico ocidental, na definição de Japiassú &
Marcondes (2001, p.138) do verbete “Imaginação”, em que a mesma diferenciação
aparece com os nomes de “imaginação reprodutiva” e “imaginação criadora”. Podemos
comprovar ainda outras três definições:
Imaginação (lat. Imaginatio) Faculdade criativa do pensamento pela qual este
produz representações (imagens) de objetos inexistentes, não tendo, portanto,
função cognitiva.
1. Descartes chama de Ideias da imaginação as ideias produzidas por nossa
mente (a quimera, a sereia), que não correspondem a objetos da experiência.
2. Em Kant, a imaginação (Einbildunskraft) é uma faculdade da consciência que
unifica e sintetiza a diversidade dos dados da intuição, constituindo assim a
condição de possibilidade do conhecimento.
3. Tradicionalmente distingue-se a imaginação reprodutiva, que produz imagens
daquilo que percebemos, e a imaginação criadora, que produz imagens do que
jamais percebemos. A imagem não é cópia de um objeto real, mas seu
processo é uma imitação da percepção. (JAPIASSÚ & MARCONDES, 2001, p.
138)
A mesma importância atribuída por Stanislávski à imaginação no trabalho do
artista plástico exerce a imaginação sobre o trabalho do ator. Ela é fundamental na
103
La tarea del actor y de su técnica consiste en trasformar la ficción de la obra en el acontecimiento
artístico de la escena. (STANISLAVSKI, 1980, 98)
104
– La imaginación crea lo que es, lo que sucede, lo que conocemos; la fantasía, en cambio, nos
muestra lo que no conocemos, lo que jamás fue ni sucedió en la realidad. Aunque tal vez, quién sabe,
pueda llegar a suceder. [...] La fantasía lo sabe todo, es todopoderosa, y es, lo mismo que la imaginación,
indispensable para un pintor. (STANISLAVSKI, 1980, p. 99)
57
invenção dos “se” e em sua aproximação às “circunstâncias dadas”, já que os
dramaturgos em geral são econômicos em seus comentários sobre os personagens,
limitando-se a oferecer poucas características acerca dos mesmos. Com tais descrições
superficiais não é possível formar na totalidade a imagem externa do personagem, seus
modos, seus hábitos, seu jeito de andar; tampouco se podem determinar as
possibilidades de seu caráter, seus impulsos, suas ideologias, seus sentimentos.
Posso citar a apresentação dos personagens nas peças de Shakeaspeare como
exemplo.
O laconismo deve ser preenchido completa e profundamente pela imaginação do
ator. Só então todas as informações agregadas pelo diretor e seus colaboradores
(iluminador, cenógrafo, figurinista, aderecista etc.) às circunstâncias dadas pelo autor,
poderão atingir seu objetivo, o de alcançar o público de forma verossímil.
Só então o ator poderá começar a viver em sua plenitude a vida interior da
personagem e atuar como ordenam o autor, o diretor e nosso próprio
sentimento. Ao longo desta tarefa nosso colaborador mais direto é a
imaginação, com o mágico “se” e as “circunstâncias dadas”. Ela não só nos diz
o que calaram o autor, o diretor e os demais, como, além disso, vivifica o
trabalho de quantos interveem no espetáculo e cuja criação chega ao público,
antes de tudo, através do êxito dos atores. Resulta indispensável [ao ator] em
cada momento de sua tarefa artística e de sua vida na cena, tanto ao aprender
como ao reproduzir seu papel. No processo criador, a imaginação é a
105
vanguarda que guia o artista. (STANISLAVSKI,1980, p. 100)
Mas a imaginação não está no reino das ideias, no imaterial? Como torná-la
concreta e palpável? A questão da materialidade da imaginação já foi largamente
discutida por filósofos de praticamente todos os períodos, como nos lembra Jean-Paul
Sartre (1905-1980) em seu ensaio sobre a imaginação, e é comum a ideia de que:
Ela [a imaginação] possui a estranha propriedade de poder motivar as ações da
alma; os movimentos do cérebro, causados pelos objetos exteriores, embora
não contenham semelhança com elas, despertam na alma ideias; as ideias não
vêm dos movimentos, são inatas no homem, mas é por ocasião dos
movimentos que elas aparecem na consciência. (SARTRE, 2008, p.13)
105
Sólo entonces podrá el actor empezar a vivir en su pelnitud la vida interior del personaje y actuar como
ordenan el autor, el director y nuestro propio sentimiento.En toda esta labor nuestro colaborador más
directo es la imaginación, con el mágico “si” y las “circunstancias dadas”. Ella no sólo nos dice lo que
callaron el autor, el director y los demás, sino que además vivifica el trabajo de cuantos intervienen en el
espetáculo, y cuya creación llega al público, ante todo a través del éxito de los actores. [...] Le resulta
indispensable en cada momento de su labor artística y de su vida en la escena, tanto al aprender como al
reproducir su papel. En el proceso creador, la imaginación es la vanguardia que guía al artista.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 100)
58
Os movimentos da consciência, ou a atividade da imaginação, para René
Descartes (1596-1650) segundo Sartre, funcionam como “signos que provocam na alma
alguns sentimentos”106 (2008, p. 13-14), embora afirme o autor que Descartes não
aprofunde a ideia do signo e tampouco explique como há a consciência desse signo,
que só terá seu conceito aprofundado com Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716).
Para Sartre (2008, p. 14), o pensamento cartesiano “parece admitir uma ação
transitiva entre o corpo e a alma que o leva ou a introduzir na alma uma certa
materialidade, ou na imagem uma certa espiritualidade”, mesmo sem que haja a
compreensão de “como no pensamento pode haver intervenção da imaginação e do
corpo”. O pensamento cartesiano não permite distinções entre as sensações e as
lembranças ou ficções, “pois em todos os casos há os mesmos movimentos cerebrais,
quer os espíritos animais sejam acionados por uma excitação vinda do mundo exterior,
do corpo ou mesmo da alma.” O filósofo francês destaca o fato de que a teoria da
imagem é separada da teoria do conhecimento tanto em Descartes quanto em Baruch
Spinoza (1632-1677), que contrapõe o dualismo corpo-mente do primeiro. Em Spinoza,
a teoria da imagem liga-se à descrição fisiológica:
a imagem é uma afecção do corpo humano; o acaso, a contiguidade, o hábito
são as fontes de ligação das imagens, e a lembrança é a ressurreição material
de uma afecção do corpo, provocada por causas mecânicas; os
transcendentais e as ideias gerais que constituem a experiência vaga são o
produto de uma confusão de imagens, de natureza igualmente material. A
imaginação, ou o conhecimento por imagens, é profundamente diferente do
entendimento; ela pode forjar ideias falsas e apresenta a verdade de forma
truncada.
Contudo, embora se oponha à ideia clara, a imagem tem em comum com ela o
fato de também ser uma ideia; é uma ideia confusa, que se apresenta como um
aspecto degradado do pensamento, mas na qual se exprimem as mesmas
ligações que no entendimento. Imaginação e entendimento não são
absolutamente distintos, pois uma passagem é possível de um ao outro pelo
desenvolvimento das essências envolvidas nas imagens. Eles estão, [...] ao
mesmo tempo separados entre si e continuamente ligados. (SARTRE, 2008, p.
14-15)
Sartre (2008, p. 15) chama a atenção para o duplo aspecto que se infere do
conceito de imagem para Spinoza: “ela é profundamente distinta da ideia, é o
106
Note-se a semelhança com o pensamento defendido posteriormente por Ribot e Associado por
Stanislávski ao trabalho do ator: “Em cada ação fìsica há algo de psicológico e no psicológico, algo fìsico”
(En cada acción física hay algo de psicológico, y en lo psicológico algo de lo físico.) (STANISLAVSKI,
1980, p. 206)
59
pensamento do homem enquanto modo finito, e no entanto é ideia e fragmento do
mundo infinito que é o conjunto das ideias”. Portanto, separada do pensamento, a
imagem tende a confundir-se com ele e já não se distingue, na teoria de Spinoza, com
tanta clareza quanto em Descartes. O mesmo se percebe no pensamento de Leibniz,
que se empenha em “estabelecer uma continuidade entre estes dois modos de
conhecimento: imagem, pensamento; a imagem, nele, é penetrada de intelectualidade”.
Ambos descrevem inicialmente “o mundo da imaginação” como “um puro mecanismo”,
“onde nada permite distinguir imagens propriamente ditas e sensações, umas e outras
exprimindo estados do corpo”. Porém, no desenvolvimento do associacionismo, ainda
segundo Sartre (2008, p. 15-16), para Leibniz as implicações da imagem já não se dão
no plano fisiológico: “é na alma que, de um modo inconsciente, as imagens se
conservam e são ligadas entre si. Somente as verdades estabelecidas pela razão têm
entre si ligações necessárias, somente elas são claras e distintas”. Em Leibniz também
há a distinção entre o “mundo da imaginação” e o “mundo da razão” e a relação entre
ambos se dá normalmente, já que, como aponta Sartre (2008, p. 16), para Leibniz o
entendimento nunca é puro, “pois o corpo está sempre presente à alma”. Portanto, o
papel da imagem na formulação do entendimento é acidental e subordinado, “o papel
de um simples auxiliar do pensamento, de um signo.” De acordo com Sartre, Leibniz
busca aprofundar essa noção de signo:
segundo ele, o signo é uma expressão, ou seja, na imagem há a conservação
do mesmo sistema de relações que no objeto do qual ela é a imagem, a
transformação de um no outro pode exprimir-se por uma regra válida tanto para
totalidade quanto para cada parte.
Assim, a única diferença entre imagem e ideia é que, num caso, a expressão do
objeto é confusa e, no outro, clara; [...]
Portanto, entre imagem e ideia há uma diferença que se reduz quase a uma
pura diferença matemática: a imagem tem a opacidade do infinito; a ideia, a
clareza da quantidade finita e analisável. Ambas são expressivas. (SARTRE,
2008, p. 16)
É a expressividade, tanto da ideia como da imagem que nos interessa na
qualidade de artistas; a mecânica do movimento provocado pela imaginação criativa e
sua implicação na exteriorização do movimento interior como tradução do mundo
ficcional proposto pelas circunstâncias e “se” diversos, já que, como observa Sartre
(2008, p. 17), “sempre é preciso uma construção arbitrária do espírito para que a seguir
o espìrito possa admitir que se encontra diante de relações equivalentes”.
60
Como colocar em movimento a imaginação? Para isso, o ator deve acreditar no
imaginado como acredita nos fatos da realidade, permitindo assim que sua imaginação
se torne ativa. “A atividade na vida imaginada tem para o ator uma importância
extraordinária; é ela que deve provocar a ação interna e em seguida a ação externa” 107
concreta e verdadeira.
Para despertar uma imaginação ativa, Stanislávski aconselha a prática de
exercícios pela sugestão dos mais diversos tipos de “se”. Nos exercìcios, o trabalho da
imaginação substitui as circunstâncias dadas e influi diretamente na mudança da lógica
de conduta dos participantes provocando uma intervenção ativa, os atores são
transportados de uma situação real ao plano do imaginário somente com a suposição
de pequenas alterações, como a hora do dia, o local, as condições climáticas e
geográficas, a sala, os objetos, as pessoas com quem se relacionam etc. “São muitas
as ideias e as sensações que provoca a ficção que se acrescenta. Tudo isso influi sobre
a disposição geral e dá o tom ao que se seguirá fazendo.” 108 Como na vida real, cada
instante da vida imaginada requer ações específicas, imprescindíveis, dirigidas a uma
finalidade que vai se desenhando de modo lógico e contínuo na imaginação do ator.
Por sua vez, o ator precisa acreditar na necessidade provocada pela imaginação,
caso contrário seu mundo imaginado perde o sentido e se esvai seu interesse,
dispersando-se assim sua atenção, desmaterializando o mundo imaginado. Sem
dúvida, a criação não depende somente do trabalho interno da imaginação, mas
também da encarnação externa de suas imagens. Para facilitar essa externalização,
Stanislávski sugere que inicialmente os exercícios para estimular a imaginação tenham
“em maior ou menor grau, relação com o mundo dos objetos que nos rodeiam” 109.
Depois de bem treinado em relacionar objetos concretos e a própria imaginação, é
então possível ao ator trabalhar no plano do imaginário, no qual tudo transcorrerá
mentalmente, porém mantendo o mesmo caráter ativo da realidade, em que, com raras
exceções, tudo é lógico e coerente, como deve ser o que inventa a imaginação. Nesse
107
La actividad en la vida imaginada tiene para el actor una importancia extraordinaria; ella es la que
debe provocar la acción interna y luego la acción externa. (STANISLAVSKI, 1980, 102).
108
Son muchas las ideas y las sensaciones que provoca la ficción que se ha introducido. Todo esto
influye sobre la disposición general y da el tono a lo que se seguirá haciendo. (STANISLAVSKI, 1980,
103)
109
[...] en mayor o menor grado, relación con el mundo de los objetos que nos rodean. (STANISLAVSKI,
1980, 106)
61
processo de exercitação da imaginação sem relação com a realidade conhecida,
dificilmente o ator encontrará em sua memória o material necessário sem recorrer ao
auxìlio de “[...] livros, quadros, fotografias e outras fontes que proporcionam os
conhecimentos ou reproduzem as impressões de outras pessoas110:
[...] Aí terá notícias das condições de vida e costumes de diversos países,
cidades, etc. O restante, o que falta para criar imaginariamente a viagem ao
redor do mundo, ficará liberado para a imaginação. Todos esses dados
importantes fazem que o trabalho seja mais lógico, que não lhe falte
fundamento, como ocorre sempre aos sonhos “em geral”, que conduzem o ator
a uma falsa atuação, puramente mecânica. [...] Mas não esqueça, que a todo o
momento se faça presente a lógica. Isso ajudará a aproximar o sonho vago e
111
desfocado da sólida e inabalável realidade. (STANISLAVSKI,1980, p. 108)
Stanislávski (1980, p. 108) lembra que “a ilusão recebeu da natureza mais
possibilidades do que [possui] a própria realidade” e que “a imaginação desenha o que
na vida real seria irrealizável”112. Todo tipo de referência ao nosso alcance, a ciência, a
literatura, a pintura só nos fornecem “sugestões, estìmulos, pontos de orientação para
as excursões imaginárias pelos domínios do irreal, e em nossa fantasia recai a principal
parte da criação”113. Para tornar possível a crença nesse universo fictício são
necessários meios que facilitem a aproximação da fantasia à realidade, e nesse
processo a lógica e a coerência ocupam lugar de importância, “ajudando a aproximar o
impossível ao provável”114.
A imaginação converte os atores em “personagens ativos da vida imaginária”, na
qual deixam de ver a si próprios e passam a ver o seu entorno, “como verdadeiros
participantes dessa vida. No momento de seus sonhos ativos, se cria em vocês [nos
110
[...] libros, cuadros, fotografias y otras fuentes que proporcionan los conocimientos o reproducen las
impresiones de otras personas. (STANISLAVSKI, 1980, p. 108)
111
[...] Ahí tendra noticias de las condiciones de vida y costumbres de diversos países, ciudades, etc. Lo
demás, lo que falta para crear imaginariamente el viaje alrededor del mundo, quedará librado a la
imaginación. Todos estos datos importantes hacen que el trabajo sea más lógico, que no esté falto de
fundamento, como son siempre los sueños “en general”, que conducen al actor hacia la actuación falsa,
puramente mecánica. [...] Pero no olvide que en todo momento esté presente la lógica. Esto le ayudará a
acercar el sueño vago y borroso a la sólida e inconmovible realidad. (STANISLAVSKI, 1980, p. 108)
112
[...] la ilusión recibió de la naturaleza más posibilidades que la realidad misma.[...] la imaginación
dibuja lo que en la vida real es irrealizable. (STANISLAVSKI, 1980, p. 108)
113
[...] sugerencias, estímulos, puntos de orientación para las excursiones imaginarias por los dominios
de lo irreal, y en nuestra fantasía recae la parte principal de la creación. (STANISLAVSKI, 1980, p. 108)
114
[...] ayudando a acercar lo imposible a lo probable. (STANISLAVSKI, 1980, p. 108)
62
atores] o estado que chamamos „estou‟”.115 Basta haver a sugestão de um tema para
que a fantasia desperte no ator o que, nas palavras de Tórtsov, Stanislávski (1980, p.
109) denomina de “visão interior”, imagens correspondentes ao conteúdo imaginado.
Portanto, a principal função da imaginação no processo de assimilação do
sistema é fornecer ao ator subsídios para que ele possa completar com imagens
interiores as lacunas entre os fragmentos de informações que ele possui acerca da
cena ou do exercício de improvisação que realiza; ou seja, criar uma série ininterrupta
de imagens que contemplem a totalidade das ações que necessita executar a partir das
circunstâncias dadas:
Isso, precisamente, completar! É o que se deve sempre fazer quando o autor,
diretor e os demais participantes do espetáculo não chegam a dizer tudo o que
precisa saber o artista criador. Antes de tudo, devemos ter uma série contínua
de "circunstâncias dadas" em meio às quais se desenvolve nosso exercício. Em
segundo lugar, repito, devemos dispor de uma linha ininterrupta de visões
interiores em relação a essas circunstâncias, de modo que elas fiquem
ilustradas por nós. Por isso [...] durante cada um dos momentos em que se
desenvolve a ação da obra, devemos permanecer atentos tanto às
circunstâncias externas que nos cercam (a montagem material que constitui a
produção) quanto à cadeia de circunstâncias internas que imaginamos para
ilustrar nossas partes. Desses momentos se deverá formar uma linha contínua
de imagens, uma espécie de filme. E enquanto atuamos de modo criativo, esse
filme deverá ser projetado na tela de nossa visão interior, tornando vivas as
circunstâncias em meio às quais nos movemos. Além disso, ao criar uma
disposição de ânimo correspondente, as imagens internas despertam emoções
116
que nos mantêm dentro dos limites da obra. (STANISLAVSKI,1980, p. 110)
Quando narramos um fato, ou contamos uma história em nossa vida cotidiana,
nossa mente se inunda de imagens referentes àquilo que estamos dizendo como
115
[...] personajes activos de la vida imaginaria,[...]como verdaderos participantes de esa vida. En ese
momento de vuestros sueños activos se crea en vosotros el estado que llamamos “estoy”.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 109)
116
!Eso, precisamente, completar! Es lo que hay que hacer siempre cuando el autor, el director y los
demás participantes del espetáculo no llegan a decir todo lo que necesita saber el artista creador. Antes
que nada debemos tener una serie continua de “circunstancias dadas” em medio de las cuales se
desarrolla nuestro ejercicio. En segundo lugar, repito, debemos disponer de una uma linha ininterrupta de
visiones internas en relación a esas circunstâncias, de manera que éstas queden ilustradas por nosotros.
Por eso, [...] durante cada uno de los momentos en los que se desarrolla la acción de la obra, debemos
permanecer atentos tanto a las circunstancias externas que nos rodean (el montage material que
constituye la producción) como a la cadena de circunstancia internas que hemos imaginado nossotros
mismos para ilustrar nuestras partes. De esos momentos se deberá formar una línea continuada de
imágenes, una especie de filme. Y mientras actuemos de manera cretiva, ese filme deberá proyectarse
dentro de nosotros mismos, en la pantalla de nuestra visión interna, haciendo vivas las circunstancias en
medio de las cuales nos movemos. Además, las imágenes internas, al crear una disposición de ánimo
correlativa, despiertan emociones que nos mantienen dentro de los límites de la obra. (STANISLAVSKI,
1980, p. 110)
63
processo natural, biológico. Em cena, ou em situação de representação o ator precisa
recriar este mecanismo de modo artificial, pelo uso da imaginação e é a isso que se
prestam os exercìcios de estìmulo à imaginação, “porque nossas sensações e vivências
são caprichosas, esquivas, variáveis; não se pode submetê-las a uma „fixação‟”. Por
outro lado, “a visão117 é mais acessível. Suas imagens se fixam fortemente e com maior
liberdade em nossa memória visual e voltam a renascer em nossas representações”.118
Essa visualização interior quando fiel à lógica das circunstâncias dadas permite que o
ator alcance um estado de ânimo análogo ao que existe na obra, provocando as
vivências, os impulsos e as próprias ações correspondentes ao personagem.
Para garantir a atividade da imaginação e sua capacidade de estimular ações
corretas no ator, Stanislávski ressalta que há certos pontos que se precisa destacar.
Para colocar a imaginação de um ator/aluno para trabalhar facilita dirigir-lhe algumas
perguntas às quais ele terá de responder ativamente: “quem”, “o quê”, “quando”, “onde”,
“por quê”, “para quê” e “como” (1980, p. 114-116; 1990, p. 312-313). Ele esclarece as
sutilezas de aplicação desse „questionário‟ num clássico exemplo sobre a vida de um
carvalho descrita em cada detalhe de sua imaginária existência. A escolha de uma
árvore para ilustrar seu raciocínio se dá, nas palavras de Tórtsov, porque um tema
passivo requer da imaginação um intenso trabalho prévio. Quando questionado por um
aluno “[...] como se pode atuar na inação, estando imóvel num mesmo lugar?”, Tórtsov
replica “– Sim, é claro, [a árvore] não pode se mover de um lugar para outro, caminhar.
Mas há também outras formas de ação. Para despertá-las decida primeiro o lugar onde
você está: num bosque, numa pradaria, numa montanha, onde preferir”.119 É óbvio que
uma árvore não pode impor-se um objetivo, mas pode ter uma finalidade, servir a algum
propósito, algo que se assemelha com a ação:
117
O tradutor Salomón Merener em nota, chama a atenção para o fato que na prática do trabalho de
Stanislávski, „visão‟ ou „visões‟, denotam a soma total de nossas representações imaginárias e sensoriais
sobre o objeto e que as mesmas não devem ser estáticas, e sim captadas pelo ator em seu
desenvolvimento, em sua dinâmica. (STANISLAVSKI, 1980, p. 117, NOTA 20.)
118
Porque nuestras sensaciones y vivencias son caprichosas, inasibles, variables; no se pueden someter
a un “fijación” [...]. La visión es más accesible. Sus imágenes se grabam más libre e fuertemente en
nuestra memoria visual y vuelven a renacer en nuestras representaciones. (STANISLAVSKI, 1980, p.
112)
119
[...]?como se puede actuar en la inacción, estando inmóvil en un mismo sítio? – Sí, por supuesto, no
puede desplazar-se de um lugar a otro, caminar. Pero hay también otras formas de acción. Para
despertarlas, decida en primer lugar dónde está usted: en un bosque, en un prado, en una montaña,
donde más le guste.(STANISLAVSKI, 1980, p. 113)
64
Se a imaginação permanece inativa, formule uma pergunta simples. O aluno
deve respondê-la. Se ele responde sem pensar no que diz, não aceito sua
resposta. Então, a fim de dar uma resposta mais satisfatória, deve ou ativar sua
imaginação, ou responder usando raciocínio lógico. O trabalho imaginativo é
amiúde preparado e conduzido de forma consciente, intelectual. O aluno então
vê algo, seja em sua memória, seja em sua imaginação: algumas imagens
visuais definidas se lhe apresentam. [...] Depois, outra pergunta e o processo se
repete. Assim, uma terceira, uma quarta vez, mantendo e prolongando esse
momento até tornar [a imagem] aproximada ao quadro geral. O que tem mais
valor nisso é que a ilusão foi gerada a partir das próprias imagens internas do
aluno. [...] Com imaginações lentas e preguiçosas, que não respondem nem
sequer às mais simples sugestões [...] só resta um recurso: não somente
formulo uma pergunta, como também sugiro a resposta. Se o aluno pode
aproveitá-la, partirá daí; senão, a substituirá e colocará outra em seu lugar; de
qualquer forma, se verá obrigado a usar sua própria visão interior.
120
(STANISLAVSKI,1980, p. 114)
Nesse tipo de exercício, pela via da imaginação vão se acumulando
circunstâncias dadas em quantidade suficiente para responder à maioria das perguntas
que se propõe ao ator, de modo que ele tenha claro quando, onde, por quê e para quê
está em cena. A resposta a essas perguntas simples com a ajuda dos “„se‟ mágicos”
servem de estìmulo para impulsionar o ator à ação, que “precisa ser despertada com
um objetivo e uma aspiração”121.
Mesmo um tema passivo pode produzir um estímulo interno e deste uma
incitação à exteriorização, um movimento em direção à ação. Obviamente a premissa
não é válida para a árvore; “esse problema em particular é insolúvel, e não se pode
culpar [o ator] se o tema não possui ação em si”122, mas continua sendo válida como
exemplo de como os exercícios para desenvolver a imaginação podem ensinar o ator a
preparar suas visões interiores para o papel.
120
Si la imaginación permanece inactiva, formule una pregunta sencilla. El alumno tiene que contestar-la.
Si responde sin pensar en lo que dice, no acepto su respuesta. Entonces, a fin de dar una contestación
más satisfactoria, debe, o bien activar su imaginación, o bien aproximar el sujeto a su mente por medio
de un razonamiento lógico. El trabajo imaginativo es a menudo preparado y dirigido de manera
consciente, intelectual. El alumno entonces, ve algo, sea en su memoria, sea en su imaginación: ciertas
imágenes visuales definidas se le presentan. [...] Después, otra pregunta, y el processo se repite. Así una
tercera, una cuarta vez, manteniendo y prolongando ese instante hasta hacerlo algo aproximado del
cuadro general. Lo que más valor tiene de ello es que la ilusión ha sido entresacada de las propias
imágenes internas del alumno. [...] con imaginaciones lentas y pezerosas, que no responden siguiera a
las más simples sugerencias [...] sólo queda un recurso: no solamente formulo una pregunta, sino que
también sugiero la respuesta. Sí el alumno puede aprovecharla, de allí partira; si no, la cambiará e
pondrá otra en su lugar; de todos modos se habrá visto obligado a usar su propia visión interna.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 114)
121
Hay que despertarla con un objetivo y un aspiración. (STANISLAVSKI, 1980, p. 116)
122
Ese problema particular es insoluble, y no se puede culpar a usted si el tema no tiene acción en sí.
(STANISLAVSKI 1980, p.117)
65
Toda a invenção criada pela imaginação do autor deve ser completamente
trabalhada e firmemente estabelecida sobre a base dos acontecimentos determinados
pelas circunstâncias dadas. Com a ajuda do “se” e colocando-se ativamente mediante
as perguntas “quem”, “o quê”, “quando”, “onde”, “por que”, “para quê” e “como” o ator
cria para si “uma imagem cada vez mais definida da vida que só existe na ilusão”.123
Stanislávski (1980, p. 118) insiste que é preciso compreender que “a imaginação,
mesmo que não possua substância corpórea, pode afetar a nossa natureza física de
modo reflexo e fazê-la agir”.124 Essa faculdade da imaginação é da maior importância
na psicotécnica proposta por Konstantin Serguiêievitch (1980, p. 119), que propugnava
que “nem um só movimento, nem um só passo em cena deve ser executado
mecanicamente, sem um fundamento interior, ou seja, sem que intervenha a
imaginação”125.
Todos e cada um dos movimentos que vocês executam no palco, e cada
palavra que dizem, deve ser consequência direta da vida normal da
imaginação. Se disserem suas falas ou executarem algo mecanicamente, sem
saber exatamente quem são, de onde vieram, por que, o que querem, aonde
vão e o que farão quando o conseguirem, estarão atuando sem imaginação.
126
(STANISLAVSKI,1980, p. 118)
Para que a imaginação possa fluir livremente, a disciplina e uma atmosfera de
calma nos ensaios são de suma importância. Faz-se necessário que o ator realize o
que Stanislávski (1989, p. 218) denominava uma toalete de preparação de seu aparato
psicofísico antes dos ensaios e principalmente antes de cada apresentação, como ele
observara de Salvini. No estabelecimento do círculo criador, a concentração é condição
sine qua non para liberar o mecanismo da imaginação:
A imaginação criadora de um ator, para ser ativa, deve possuir antes de tudo a
qualidade indispensável de toda arte criadora – a calma. Essa calma na qual só
se pode conseguir harmonia de pensamento e de ação. Resulta impossível
123
Una imagen cada vez más definida de la vida que sólo existe en la ilusión. (STANISLAVSKI 1980,
p.118)
124
[...] la imaginación que no tiene sustancia corpórea puede afectar de modo reflejo a nuestra naturaleza
física y hacerla actuar. (STANISLAVSKI, 1980, 118)
125
Ni un solo movimiento, ni un solo paso en la escena se deben realizar mecánicamente, sin un
fundamento interior, o sea, sin que intervenga la imaginación. (STANISLAVSKI, 1980, p. 119)
126
Todos y cada uno de los movimientos que realizáis en la escena, y cada palabra que decís, debe ser
resultado directo de la vida normal de la imaginación. Si decís lineas o ejecutáis algo mecánicamente, sin
saber a ciencia cierta de quiénes son, de dónde han venido, por qué, qué quieren, a dónde van y qué
harán cuando lo consigan, estaréis actuando sin imaginación. (STANISLAVSKI, 1980, p. 118)
66
formar um círculo criador, quer dizer, o lugar onde a imaginação deva ser posta
em movimento se [...] sua mente está oprimida pela lembrança de alguma cena
desagradável em família, ou pelo temor de que a administração do teatro não
lhe queira dar um papel de protagonista na próxima montagem ou não lhe
127
pague tanto como paga a Fulano.
Estes aspectos do sistema eram trabalhados em disciplinas como Encenação,
Técnicas de Representação e Laboratório. A aplicação da concentração no
direcionamento da atenção em cena é tema do próximo tópico, Atenção Cênica, no qual
abordarei mais este elemento do sistema.
2. 3 ATENÇÃO CÊNICA OU ATENÇÃO CRIADORA
Como é que pode? Quando a gente se sente
bem no palco, ninguém elogia, quando se sente
mal, aprovam! Que história é essa? Que
divergência é essa entre a nossa própria
maneira de sentir-se em cena e as impressões
do público?! (STANISLAVSKI, 1989, p. 63)
– Estou sendo observado!
Esta simples sugestão, ou constatação, pelo ator, também provoca reações
físicas instantâneas, como acontece com a proposição do “mágico se”, mas ao contrário
das provocadas pelos “se”, estas são prejudiciais ao bom desempenho em cena. A
presença de qualquer tipo de espectador sempre provoca desconforto no ator, mas por
outro lado, atuar sem sua presença é tedioso, como já observara Stanislávski (1980,
p.123). É preciso desviar a atenção do magnetismo do público que emana do “buraco
negro do proscênio”128. Anular este paradoxo é o segredo que nos revela Stanislávski
(1980, p.124): “O segredo parece ser bastante simples: a fim de se esquecer da plateia
há que se interessar pelo que há na cena” 129.
127
La imaginación creadora de un actor debe poseer ante todo, si ha de ser activa, la cualidad
indispensable de todo arte creador – la calma. Esa calma en que sólo se puede lograr la armonia de
pensamiento y acción. Resulta imposible formar un círculo creador, es decir, el lugar donde la
imaginación deba ser puesta em movimiento si [...] su mente está oprimida por el recuerdo de alguna
desagradable escena familiar o por el temor de que la administración del teatro no le quiera dar un papel
protagónico en la siguiente obra o no le pague tanto com paga a Fulano. (STANISLAVSKI, 1990, 170171)
128
[...] hueco negro del proscenio [...] (STANISLAVSKI, 1980, p. 120)
129
El secreto parece ser bastante sencillo: a fin de olvidarse de la platea, hay que interesarse por lo que
hay en la escena. (STANISLAVSKI, 1980, p. 124)
67
Para mitigar o inconveniente da exposição inerente à arte do ator, Stanislávski
aconselha o treinamento da capacidade de concentração e o direcionamento da
atenção em cena. Para isso, propõe “que o artista necessita um objeto de atenção, e
que este não deve estar na plateia, senão no palco”130. A partir disso, desenvolve os
conceitos de “objetos de atenção”131 (animados/inanimados, reais/imaginados), e
“cìrculos de atenção”132 (pequenos, médio e grande círculos),
que devem ser
trabalhados pelo ator com o auxìlio do “mágico se” e das “circunstâncias dadas”. A
capacidade de concentração desperta a imaginação, a capacidade de o ator visualizar
as circunstâncias dadas de determinado acontecimento e colocar-se “como se” ali
estivesse, invertendo a polaridade do magnetismo do “buraco negro”, que deve emanar
também do palco para a plateia:
[...] há que se aprender, por meio de exercícios sistemáticos, a manter a
atenção na cena. É preciso desenvolver uma técnica especial que ajude a
apegar-se ao objeto, de modo que o próprio objeto, que se encontra na cena,
nos faça esquecer tudo que está fora dela. Em outras palavras, [...] há que se
133
aprender a olhar e ver na cena. (STANISLAVSKI,1980, p. 125)
Para exemplificar os objetos de atenção, Stanislávski (1980, p. 125) elabora
exercícios de observação com o auxílio de um foco luminoso. Estes exercícios
possibilitam ao ator o domínio do seu foco de atenção, direcionado então aos objetos
contidos nos círculos. Com o ambiente todo às escuras, ele ilumina somente um objeto,
para ilustrar o que denomina “o objeto próximo”, sugerido para “os momentos em que
devemos concentrar nossa atenção e evitar que se disperse em coisas distantes”134. Em
seguida, solicita que se repita o exercício com as luzes acesas, determinando um
objeto próximo que deve ser observado, examinado e manipulado pelo ator. “A atenção
dirigida a um objeto desperta ainda mais a observação. Deste modo a ação entrelaçada
130
[...] que el artista necesita un objeto de atención, y que éste no debe estar en la sala, sino em el
escenário. (STANISLAVSKI, 1980, p. 124)
131
(STANISLAVSKI, 1980, p. 123 e seguintes)
132
(STANISLAVSKI, 1980, p. 131 e seguintes)
133
[...] hay que aprender, merced a ejercicios sistemáticos, a mantener la atención en la escena. Es
preciso desarrollar una técnica especial que ayude a aferrarse al objeto, de modo tal que el objeto mismo,
que se encuentra en la escena, nos haga olvidar todo lo que está fuera de ella. En otras palabras, [...] hay
que aprender a mirar y ver en la escena. (STANISLAVSKI, 1980, p. 125)
134
[...] el objeto próximo. Lo utilizamos en los momentos en que debemos concentrar nuestra atención y
evitar que se disperse en cosas distantes. (STANISLAVSKI, 1980, p. 125)
68
com a atenção cria um forte vìnculo com o objeto”135. O exercício se repete do mesmo
modo para objetos a distância moderada e também com objetos distantes, ao que
reitera o mestre russo (1980, p. 126): “Evidentemente [...], antes de determinar objetos
próximos ou distantes com a luz, é preciso aprender simplesmente a olhar e ver as
coisas no palco”136.
É preciso, portanto, ensiná-los novamente como fazer estas coisas no palco e
perante o público. [...] Todos os nossos atos, mesmo os mais simples e
elementares, que conhecemos perfeitamente na vida diária, se tornam forçados
quando aparecemos no palco, sob os refletores, diante de um público
numeroso. Por isso é preciso que na cena aprendamos novamente a caminhar,
nos mover, sentarmos ou deitarmos. [...] E hoje, com relação ao tema da
atenção, acrescento que é preciso aprender a olhar e ver, a escutar e ouvir na
137
cena. (STANISLAVSKI,1980, p. 126-127)
Stanislávski relembra o fato de que na vida corrente, todos os processos
psicofísicos inerentes às nossas atividades cotidianas – caminhar, sentar, conversar,
olhar – acontecem naturalmente; também reafirma e insiste que para conseguir recriar a
vida na cena, é necessário ao ator reaprender até mesmo os movimentos mais simples:
O artista, como o bebê de colo, deve aprender tudo desde o princípio; a olhar,
caminhar, falar, etc. – relembrei –. Sabemos fazer tudo isso na vida corrente,
mas desafortunadamente na maioria dos casos o fazemos mal, não como
determina a/estabelece a natureza. Na cena é preciso olhar, caminhar, falar de
uma maneira diferente, melhor, mais normal que na vida cotidiana, mais
próximo à natureza; em primeiro lugar, porque os defeitos que aparecem à luz
dos refletores se tornam particularmente perceptíveis, e subseqüentemente
porque esses defeitos influem sobre o estado geral do ator.
138
(STANISLAVSKI,1980, p. 155)
135
La atención dirigida hacia un objeto despierta aun más la observación. De este modo la acción
entrelazada com la acción [sic! „atención‟] crea un fuerte vìnculo con el objeto”. (STANISLAVSKI, 1980, p.
125)
136
Evidentemente[...], antes de determinar objetos cercanos y lejanos con la luz, hay que aprender
simplemente a mirar y ver las cosas en el escenario. (STANISLAVSKI, 1980, p. 126)
137
Es necesario, pues, enseñaros nuevamente cómo hacer estas cosas en las tablas y ante el público.
[...] Todos nuestros actos, aún los más simples e elementales, que conocemos perfectamente en la vida
diaria, se vuelven forzados cuando aparecemos en las tablas, detrás de las candilejas, ante un publico
numeroso. Por eso es necesario que en la escena aprendamos de nuevo a caminar, movernos,
sentarmos o acostarmos. [...] Y hoy, con referencia al tema de la atención, agrego que tenéis que
aprender a mirar y ver, a escuchar y oír en la escena. (STANISLAVSKI, 1980, p. 126-127)
138
El artista, como el niño de pecho, debe aprenderlo todo desde el principio; a mirar, caminar, hablar,
etcétera – recordé –. Todo esto sabemos hacerlo en la vida común, pero desgraciadamente en la
mayoría de los casos lo hacemos mal, no como lo establece la naturaleza. En la escena hay que mirar,
caminar, hablar de una manera distinta, mejor, más normal que en la vida corriente, más cerca de la
naturaleza; en primer lugar, porque los defectos que se muestran a la luz de las candilejas se tornam
particularmente notables, y subsiguientemente porque esos defectos influyen sobre el estado general del
actor. (STANISLAVSKI, 1980, p. 155)
69
Outro exercício de observação sugerido por Stanislávski (1980, p. 129-130) é o
de olhar para alguma coisa por um tempo determinado, 30 segundos, por exemplo,
então descrevê-la com a maior riqueza de detalhes possível, sempre retomando e
corrigindo os erros na descrição até que se aproxime ao máximo da aparência do que
foi observado. Repetir o exercício com a diminuição do tempo de observação até que o
ator chegue quase à perfeição na descrição do que observou. É importante salientar
que esses exercícios de observação devem sempre buscar apoio em alguma história
imaginária, alimentada pelas “circunstâncias dadas” e pelos “mágicos se”, pois facilita a
memorização dos detalhes.
O tradutor Salomón Merener, em nota chama a atenção para o destaque dado
por Stanislávski (1980, p. 125-126) à índole ativa da atenção cênica, conceito bastante
desenvolvido em sua prática pedagógica:
Se no período inicial de seu sistema criou-se uma série de exercícios para lutar
contra a dispersão e o afastamento dos objetos durante a criação (exercícios
que fixavam a atenção em um ponto durante um período mais ou menos
prolongado, o que restringia ou ampliava os círculos de atenção, etc.), no
período final Stanislávski considerava a atenção como parte integrante da ação
cênica, que surge dela e a afirma. A atenção, segundo a justa definição de
Kédrov, deve ser considerada, não como um congelamento (“ossificação”) em
algum objeto, senão como um processo ativo, de conhecimento, imprescindível
para perceber e captar o meio circundante. O correto da tese de Stanislávski
sobre a relação mútua que existe entre a atenção e a ação foi confirmada pelas
139
investigações dos psicólogos soviéticos. (STANISLAVSKI,1980, p. 125-126)
Com a prática dos exercícios de assimilação dos conceitos de “objetos de
atenção” e “cìrculos de atenção”, o ator tem a possibilidade de dominar seu foco de
atenção, e com isso, direcionar também a atenção do público. De acordo com
Stanislávski (1980, p. 128), “O olho do ator que vê e olha para um objeto atrai a atenção
do espectador e o orienta para o verdadeiro objeto que ele deve olhar. Ao contrário, um
139
Si en el período inicial de su sistema se creo una série de ejercicios para luchar contra la dispersión y
el apartamiento de los objetos de la creación (ejercicios que fijaban la atención en un punto durante un
lapso más o menos prolongado, o que restringían o ampliavan los círculos de atención, etc.), en el
período final Stanislavski (sic) consideraba la atención como parte integrante de la acción escénica, que
surge de ésta y la afirma. La atención, segundo la justa definición de Kédrov, debe considerarse, no
como una congelación (“osificación”) en algún objeto, sino como un proceso activo, de conocimiento,
imprescindible para percibir y captar el medio circundante. Lo correcto de la tesis de Stanislavski (sic)
sobre la relación mutua que existe entre la atención y la acción ha sido confirmada por las
investigaciones de los psicólogos soviéticos. (MERENER apud STANISLAVSKI, 1980, p. 125-126)
70
olhar vazio distancia a atenção do espectador do palco”140. O olhar vazio de um ator “é a
prova mais convincente de que a alma do intérprete dormita ou de que sua atenção
está em outro lugar, fora dos limites do teatro e da vida imaginária da cena”141. Um olhar
vazio demonstra que o ator está desatento ou preocupado com algo que não está
relacionado ao personagem. A eloquência no falar e a gesticulação mecânica dos
membros não substituem o olhar dirigido, “que expressa vida”. Não é em vão o ditado
que os olhos são „o espelho da alma‟.
Ainda com o auxílio dos focos de luz, Stanislávski/Tórtsov (1980, p. 128-129)
demonstra num experimento o equívoco da dispersão da atenção do ator pela plateia –
o que não deve acontecer e contra o que deve lutar o ator. Com a sala escurecida, faz
piscarem focos de luz em diferentes lugares da plateia e se intensificarem em dois
pontos especìficos: “o crìtico severo” e “o diretor”. Sobre o palco, por um breve lapso,
acende-se uma luz „em resistência‟, que ilustra o parceiro de cena, “o pobre
companheiro do ator”, a quem em geral se presta pouca atenção. A luz „em resistência‟
no palco é rapidamente substituída por um foco intenso do proscênio, ilustrando a figura
do “apontador”, que associo à preocupação com o texto. Por fim, voltam a piscar os
focos sobre a plateia e então tem fim o experimento, com o qual se reforça a
importância de olhar e ver os objetos que estão no próprio palco, e com eles afastar-se
das preocupações e interesses que não se relacionam com o universo ficcional que ali
se estabeleceu.
Com os exercícios de observação dos objetos a partir de pontos luminosos, o
ator tem a oportunidade de entender seus próprios processos interiores e pode
começar a controlar sua capacidade de concentração e aprender a dirigir sua atenção.
Para facilitar a concentração e o direcionamento da atenção sem exceder os limites da
ficção, Stanislávski (1980, p.131), sugere a noção de círculos de atenção. “Já não se
trata de um único ponto, senão de todo um setor de pequena extensão e que contém
140
El ojo del actor que ve y mira un objeto atrae la atención del espectador y lo oríenta hacia el verdadero
objeto que debe mirar. A la inversa, una mirada vacía aleja la atención del espectador del escenario.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 128)
141
Es la prueba más convincente de que el alma del intérprete dormita, o de que su atención está en
alguna otra parte, fuera de los límites del teatro y de la vida imaginaria de la escena. (STANISLAVSKI,
1980, p. 128)
71
muitos objetos independentes”142.
Os círculos de atenção, assim como os objetos de atenção, dividem-se em três
proporções – pequeno, médio e grande – e servem para afastar a atenção dos atores
do buraco negro do proscênio, mantendo sua concentração circunscrita aos limites da
ficção.
As
três
instâncias
do
“cìrculo
de
atenção”
são
demonstradas
por
Tórtsov/Stanislávski também com o auxìlio de um foco de luz. Para ilustrar o “pequeno
cìrculo de atenção”, ilumina inicialmente uma pequena parcela do cenário, somente o
espaço onde se encontra um ator. Nesse pequeno círculo, é possível ao ator sentir-se
como que no isolamento de seu quarto. Este estado é denominado por Stanislávski
(1980, p.132) de “solidão em público. Você está em público porque estamos todos aqui.
Está só, porque o pequeno cìrculo de atenção o separa de nós”143.
Particularmente prefiro me referir a um estado de “privacidade em público” 144,
pois para mim caracteriza melhor do que o termo “solidão” o estado descrito por
Stanislávski (1980, p. 131), quando Názvanov descreve que durante o exercício com o
auxílio do foco de luz experimentou a sensação de estar imerso no pequeno círculo de
atenção:
Dentro desse círculo, como em nosso lar, não há ninguém que infunda medo ou
nada do que se envergonhar. Ali se esquece que do escuro, por todos os
ângulos, há olhos estranhos que observam como se vive. No pequeno círculo
de luz me sinto bem resguardado, mais ainda que em minha própria casa, pois
nela a poltrona, curiosa, espia pelo buraco da fechadura, enquanto que no
pequeno círculo as paredes negras da escuridão que a circunda parecem
impenetráveis. No estreito círculo luminoso, tal como acontece quando alguém
concentra sua atenção, se torna fácil examinar os objetos em todos os seus
menores detalhes e, além disso, viver os sentimentos e ideias mais íntimos e
realizar ações complicadas; pode alguém resolver problemas difíceis, chegar ao
mais sutil das próprias sensações e ideias; se torna possível a comunhão com
outra pessoa, sentir sua presença, confiar os pensamentos mais íntimos,
restabelecer
na
memória
o
passado,
sonhar
com
o
futuro.
145
(STANISLAVSKI,1980, p. 131)
142
Ya no se trata de un solo punto, sino de todo un sector de pequeña extensión y que encierra muchos
objetos independientes. (STANISLAVSKI, 1980, p. 131)
143
[...] soledad en público. Está usted en público, porque estamos aqui todos nosotros. Está solo, porque
lo separa de nosotros el pequeño círculo de atención. (STANISLAVSKI, 1980, p. 132)
144
Em meus estudos efetivo essa substituição dos termos, porque idiossincraticamente minha resposta é
diferente ao estímulo destas duas palavras.
145
Dentro de ese círculo, lo mismo que en el propio hogar, no hay nadie que infunda temor ni nada que
avergüence. Ahí se olvida que desde la oscuridad, desde todos los ángulos, hay ojos extraños que
observan como vive uno. En el pequeño círculo de luz me siento a buen resguardo mas aún que em mí
propia casa, pues en ésta la poltrona, curiosa, espía por el ojo dela cerradura, mientras que en el
pequeño círculo las paredes negras de la oscuridad que lo bordean parecen impenetrables. En el
72
Quando em privacidade, não ignoro a existência do outro, mas meus esforços,
mesmo que estando sozinho vão estar de certo modo direcionados ao mundo exterior,
ao outro, o que não acontece quando estou solitário, onde o outro não me interessa, a
não ser para me afastar dele; meus esforços não irradiam para além do meu ser, ao
contrário, são introjetados, bloqueando o fluxo energético interior/exterior, impedindo a
comunhão desejada entre atores e público.
Ampliando o foco de luz e aumentando a área iluminada, abarcando agora além
do ator algumas peças da mobília a sua volta, Tórtsov/Stanislávski (1980, p. 132) tem
ilustrado o “médio cìrculo de atenção”, o qual já não pode ser observado com apenas
um olhar. Ao ampliar-se o círculo de atenção, diminui a densidade da escuridão à volta
do ator, obrigando-o a um esforço maior para manter sua atenção dentro dos limites do
círculo sem distrair-se, como afirma Názvanov/Stanislávski (1980, p. 132): “Se o
pequeno círculo pode ser comparado a um quarto de solteiro, o médio círculo se
assemelha a uma casa de família. Assim como uma casa de dez cômodos, fria e vazia
se torna incômoda para um indivíduo solitário, senti desejo de retornar ao meu pequeno
cìrculo de atenção”146. Diferentemente do que acontece no pequeno círculo, que por si
só sugere questões de caráter mais íntimo, pessoal, e ações pequenas, o médio círculo
oferece espaço para ações mais amplas, para temas mais gerais.
Com relação ao grande círculo, suas dimensões “dependem do alcance da
vista”147. No caso do teatro, circunscreve-se ao espaço total de atuação no palco,
podendo se estender para além deste, no caso de haver intervenção no meio da
plateia. Quanto maior for o círculo, maior o esforço desprendido pelo ator em manter
viva sua atenção, já que esta tende naturalmente a se dispersar em grandes ambientes.
Na execução dos exercícios com os círculos de atenção, já sem o auxílio da
estrecho círculo luminoso, tal cual sucede cuando uno concentra su atención, resulta fácil examinar los
objetos en todos sus menores detalles y, además, vivir los sentimientos e ideas más íntimos y realizar
acciones complicadas; puede uno resolver tareas difíciles, llegar a lo más sutil de las propias sensaciones
e ideas; se vuelve posible la comunión con otra persona, sentir su presencia, confiar los pensamientos
más íntimos, restablecer en la memoria el pasado, soñar con el futuro. (STANISLAVSKI, 1980, p. 131)
146
Si el círculo pequeño se puede comparar con un cuarto de soltero, el círculo medio se asemeja a una
vivienda de família. Así como una casa fría y vacía, de diez habitaciones, resulta incómoda para un
indivíduo solitario, yo senti deseo de retornar a mi pequeño círculo de atención. (STANISLAVSKI, 1980,
p. 132)
147
[...] dependen del alcance de la vista. (STANISLAVSKI, 1980, p. 132).
73
iluminação, Tórtsov/Stanislávski (1980, p. 133) indica alguns recursos técnicos que
ajudam os atores a manterem-se concentrados dentro dos limites dos círculos de
atenção, já que com o ambiente todo iluminado evidencia-se novamente o “buraco
negro” do proscênio: “Para isso é preciso demarcar a superfìcie fixada, ou o cìrculo de
atenção visual, com linhas formadas pelos próprios objetos que se encontram no
cômodo”148; e mais:
[...] à medida que o círculo aumenta, é preciso ampliar a área de atenção. No
entanto, ela pode continuar crescendo somente enquanto conseguirem manter
a linha imaginária que delimita o círculo. Assim que seu limite começar a vacilar
e a se dissipar, devem retroceder rapidamente a um círculo menor, capaz de
149
ser abarcado pela atenção visual. (STANISLAVSKI,1980, p. 133)
Recorrer a um “objeto-ponto” é um ótimo recurso nos casos de dispersão, para
obter-se novamente o domìnio do foco de atenção. “Se te perdes em um grande cìrculo,
refugia-te o mais breve possível num pequeno”150. Depois de dominado o foco e
estabelecido o pequeno círculo de atenção, pode-se novamente ampliá-lo ao limite
médio e depois grande, sempre com a ajuda da imaginação. Esse processo deve ser
repetido inúmeras vezes, até que os atores estejam habituados a deslocar a atenção de
forma inconsciente e mecânica de um círculo para outro sem relaxar a atenção,
conforme aconselha Tórtsov/Stanislávski (1980, p. 134): “Nos terrìveis momentos de
confusão e pânico, devem lembrar que quanto mais amplo e vazio é o círculo maior,
tanto mais compactos e densos devem ser dentro dele os círculos pequenos e médios,
e tanto mais fechada a privacidade em público”151.
Outro recurso utilizado na Escola de Tórtsov/Stanislávski (1980, p. 136-137) para
ilustrar os círculos de atenção, são aros de madeira de diferentes tamanhos que o ator
carrega pelo espaço estando em seu centro. A linha demarcada pelo aro ajuda a
148
Para ello hay que deslindar la superficie fijada, o el círculo de atención visual, con líneas constituidas
por los mismo objetos que se encuentran en la habitación. (STANISLAVSKI, 1980, p. 133)
149
a medida que el círculo aumenta, debéis ensanchar vuestra superfície de atención. No obstante, ésta
puede continuar creciendo sólo mientras logréis retener la línea imaginaria que bordea el círculo. Tan
pronto como vuestro límite empiece a vacilar y disiparse, debéis retroceder rápidamente a un círculo
menor, capaz de ser abarcado por la atención visual. (STANISLAVSKI, 1980, p. 133).
150
Si te pierdes en un círculo grande, refúgiate lo antes posible en uno pequeño. (STANISLAVSKI, 1980,
p. 137)
151
En los momentos terribles de confusión y pánico, debéis recordar que cuanto más amplio y vacío es el
círculo mayor, tanto más estrechos y densos deben ser dentro de él los círculos pequeños y medianos, y
tanto más cerrada la soledad en público. (STANISLAVSKI, 1980, p. 134)
74
manter a linha do contorno do círculo de atenção dentro de limites claramente fixados,
aguçando a atenção do ator a tudo o que entra em seu campo de visão, como que
ampliando a visibilidade dos objetos abarcados pelo círculo.
Depois
de
demonstrar
os
círculos
a
partir
do
ator
como
centro,
Tórtsov/Stanislávski (1980, p. 134-135) demonstra os círculos pequenos, médios e
grandes situados fora do ator, ou melhor, com o ator fora deles. Nessa variação do
exercício, os atores devem traçar, diminuir e ampliar mentalmente os círculos de
atenção situados fora deles tal como executado quando estavam no centro do círculo.
“Até então, com todos os círculos de atenção, nos encontrávamos em seu centro, mas
agora estávamos no escuro, fora do feixe de luz”152.
Os exercìcios descritos acima se ocupam da “atenção dirigida a objetos que se
encontram fora” do ator; objetos inanimados que “não se viam infundidos pelo “se”, as
circunstâncias dadas, as criações da imaginação”153, e formam a primeira parte do
trabalho dedicado à atenção e à concentração.
Na segunda etapa do trabalho dedicado à atenção cênica, depois de familiarizar
os atores com objetos externos, por necessidade da atenção pela própria atenção, a
observação do objeto pelo objeto em si, é preciso aproximá-los aos “objetos e à
atenção não da vida exterior, real, senão da vida interior, imaginária”154.
Stanislávski (1980, p. 138) ainda nos apresenta uma série de exemplos de
objetos exteriores e interiores que se conectam aos movimentos da imaginação –
“porque não vejo” fulano? “Agora relembre o sabor do caviar”; “relembre o cheiro do
salmão”; “relembre da marcha fúnebre de Chopin” – para defender sua tese que:
[...] na vida interior, a princípio criamos representações visuais [...]; mas depois,
através destas representações, despertamos as sensações interiores de um
dos cinco sentidos e fixamos definitivamente nele nossa atenção, que, por
conseguinte, chega ao objeto de nossa vida imaginária, não por uma via direta,
senão indireta, através do que poderíamos chamar um objeto auxiliar.
155
(STANISLAVSKI,1980, p. 139)
152
Hasta entonces, con todos los círculos de atención, nos habíamos hallado en su centro, pero ahora
estábamos en la obscuridad, fuera del haz luminoso. (STANISLAVSKI, 1980, p. 134)
153
La atención dirigida hacia objetos que se encuentran fuera [...]; no se veìan infundidos por el “si”, las
circunstâncias dadas, las creaciones de la imaginación. (STANISLAVSKI, 1980, p. 138)
154
[...] a objetos y la atención no ya de la vida exterior, real, sino de la vida interior, imaginaria.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 138)
155
[...] en la vida interior nos creamos en un princípio representaciones visuales[...]; pero después, a
través de estas representaciones, despertamos las sensaciones interiores de alguno de los cinco
75
Seguindo as postulações de Stanislávski na elaboração de seu sistema, é
preciso primeiro dominar os aspectos exteriores do movimento da atenção dentro dos
círculos, para então conseguir sua livre movimentação pelo universo ficcional, ou seja,
pelo mundo imaginário, interior:
[...] a dificuldade está no fato que os objetos de nossa vida imaginária são
instáveis e esquivos. Se o mundo material que nos rodeia na cena requer uma
atenção altamente treinada, este requisito é muito mais rigoroso quando se
156
trata dos frágeis objetos imaginários. (STANISLAVSKI,1980, p. 139)
Para superar a dificuldade no domínio dos objetos imaginários, se faz necessário
o adestramento da atenção interior no sentido de não deixar que as lembranças da
própria vida distraiam o ator da vida do papel. Do mesmo modo que se desenvolve a
atenção exterior, na vida interior e na imaginação o ator pode valer-se dos pontos e
objetos próximos ou distantes e dos círculos de atenção pequenos, médios e grandes
para manter-se aferrado ao objeto de atenção corretamente relacionado ao universo
ficcional.
Contudo, Stanislávski (1980, p. 140), nos lembra que isso só é possível mediante
“trabalho intenso, prolongado e sistemático”, e que o desenvolvimento da atenção
interior é importante porque “grande parte da vida do artista na cena, durante o
processo criativo, transcorre no plano dos sonhos e da ficção, das circunstâncias dadas
pela imaginação”157.
A obtenção do domínio da atenção interior, segundo o conselho de
Tórtsov/Stanislávski (1980, p. 141), “requer uma força de vontade, uma firmeza e um
domínio de si que poucos possuem. Por isso, a par com o trabalho cênico é preciso
sentidos y fijamos definitivamente en él nuestra atención, que, por consiguiente, llega al objeto de nuestra
vida imaginaria, no por un vía directa, sino indirecta, a través de lo que podríamos llamar un objeto
auxiliar. (STANISLAVSKI, 1980, p. 139)
156
[...] la dificuldad estriba en que los objetos de nuestra vida imaginaria son inestables e inasibles. Si el
mundo material que nos rodea en la escena exige una atención muy adiestrada, este requisito es mucho
más riguroso cuando se trata de los objetos frágiles, imaginarios. (STANISLAVSKI, 1980, p. 139)
157
[...] una labor intensa, prolongada y sistemática. [...] gran parte de la vida del artista en la escena,
durante el proceso de la creación, trascurre en el plano de los sueños y la ficcción, de las circunstancias
dadas por la imaginación. (STANISLAVSKI, 1980, p. 140).
76
exercitar a vontade na vida privada”158. Para converter o objeto concreto num estímulo à
criação em cena é preciso encobri-lo com o véu da fantasia e da imaginação. “O que
atrai a atenção na cena não é o objeto em si, [...] senão aquilo que forjou a imaginação.
Ela refaz o objeto, e com a ajuda das circunstâncias dadas o converte em motivo de
atração” 159. Dotado pelo poder da imaginação do ator, o objeto então se transforma em
acordo com a necessidade da cena:
Esse objeto transformado cria uma reação interior, emotiva, de resposta. Essa
atenção não só se interessa pelo objeto; atrai para o trabalho todo o sistema
criador do artista e junto com ele prossegue sua atividade criadora. É preciso
saber transformar o objeto e, com ele, a própria atenção, para que deixem de
ser formais, intelectuais, racionalizados, e se convertam em orgânicos,
160
sensíveis. (STANISLAVSKI,1980, p. 142)
Concentração e imaginação direcionadas para a comunicação entre os atores e
destes com os espectadores através do que Stanislávski denomina “raios de energia”,
porque o ator comunica também o que está além das palavras, até mesmo nos
silêncios. A aquisição do domínio da atenção pelo aluno no curso da UFSM se dava
principalmente nas aulas de Interpretação e Laboratório, nas quais se trabalhava nos
primeiros
semestres
sobretudo
com
objetos
imaginários
e
com
o
direcionamento/deslocamento da atenção através dos círculos.
2. 4 A ORGANICIDADE NA CENA OU A AÇÃO VERDADEIRA E O “MÁGICO SE”
– Significa que nas condições da vida do
papel e em plena analogia com a vida deste,
é preciso pensar, querer, esforçar-se, agir de
modo correto, lógico, harmônico, humano. Só
então o artista consegue aproximar-se do
personagem e começa a sentir em uníssono
com ele.
158
[...] requiere una fuerza de voluntad, una firmeza y un dominio de sí mismo que pocos poseen. Por
eso, a la par con la tarea escénica, hay que ejercitar la voluntad en la vida privada. (STANISLAVSKI,
1980, p. 141)
159
[...] lo que atrae la atención en la escena no es el objeto mismo, [...] sino lo que ha forjado la
imaginación. Ésta rehace el objeto, y con la ayuda de las circunstancias dadas lo convierte en motivo de
atracción. (STANISLAVSKI, 1980, p. 141)
160
Ese objeto trasformado crea una reacción interior, emotiva, de respuesta. Esa atención no sólo se
interesa por el objeto; atrae al trabajo todo el sistema creador del artista y junto con él prosigue su
actividad creadora. Hay que saber trasformar el objeto y, con él, la atención misma, para que dejen de
ser fríos, intelectuales, razonadores, y se vuelvan cálidos, sensibles. (STANISLAVSKI, 1980, p. 142)
77
Na nossa linguagem isto se chama viver o
papel. Este processo e a palavra que o
expressa adquire na nossa arte uma
significação primordial e extraordinária em
todos os sentidos. A vivência ajuda o artista
a cumprir o objetivo essencial da arte cênica,
que consiste em criar a vida do espírito
humano do papel e transmitir esta vida na
cena
sob
uma
forma
artística.161
(STANISLAVSKI, 1980, p. 61)
Para uma representação verdadeira, orgânica e natural “O que faz falta é
incendiar a imaginação!”162, Como afirma Tórtsov/Stanislávski (1980, p.85-87) aos seus
alunos/atores durante um “étude” de pesquisa de ações circunstanciadas a partir do
cenário, no qual estes reclamavam da falta de estímulos. A imaginação é um dos mais
influentes elementos do sistema e o “se” é o combustível para que se possa acendê-la.
A pergunta “o que você faria se...” desencadeia na atitude do ator em situação de
representação uma mudança radical no seu comportamento diante da situação
proposta, provocando simultaneamente à realização do objetivo externo da ação, os
impulsos internos, os motivos e as circunstâncias pelas quais se realiza a ação. O “se”
possui uma
“qualidade
peculiar, uma espécie
de
poder” 163,
o
de
produzir
“instantaneamente uma transformação, um estìmulo interior”164.
[...] esta pergunta incita [o ator] a responder com a ação, e esta é um excelente
estímulo para a imaginação. Pode ainda acontecer que a ação não se realize,
senão que siga sendo até certo ponto um desejo não realizado. O importante é
que tenha surgido esse desejo, e que o sintamos não só psiquicamente, senão
também de maneira física. É uma sensação que dá maior força à ficção.
165
(STANISLAVSKI,1980, p. 118)
161
– Esto significa que en las condiciones de la vida del papel y en plena analogía con la vida de éste, es
preciso pensar, querer, esforzarse, actuar de un modo correcto, lógico, armónico, humano. Sólo entonces
el artista logra acercarse al personaje y empieza a sentir al unísono con él.En nuestro lenguaje esto se
llama vivir el papel. Esto proceso y la palabra que lo expresa adquieren en nuestro arte una significación
primordial y extraordinaria en todo sentido. La vivencia ayuda al artista a cumplir el objetivo esencial del
arte escénico, que consiste en crear la vida del espírito humano del papel y transmitir esta vida en la
escena bajo uma forma artística. (STANISLAVSKI, 1980, p. 61)
162
!Lo que hace falta es encender la imaginación! (STANISLAVSKI, 1980, p. 85)
163
[...] una cualidad peculiar, una especie de poder. (STANISLAVSKI, 1980, p. 89)
164
[...] instantáneamente una transformación, un estímulo interior. (Idem)
165
[...] esta pregunta incita a responder con la acción, y esta es un excelente estímulo para la
imaginación. Puede suceder aun que la acción no se realice, sino que siga siendo hasta cierto punto un
deseo no realizado. Lo importante es que haya surgido este deseo, y que lo sintamos no sólo
psíquicamente, sino también de manera física. Es una sensación que dá maior fuerza a la ficción.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 118)
78
O ator já não pensa em como prosseguir e nem se preocupa mais com a forma
externa, e sim com o conteúdo interno do ponto de vista da tarefa proposta, trazendo
maior atenção aos detalhes que o cercam e desenvolvendo ações a partir destes
impulsos, que lhe sugerem os meios de lutar contra as circunstâncias geradas pela sua
própria imaginação. Este processo reforça a tese de Stanislávski resumida na fala de
Tórtsov ao final de mais uma aula: “a aula de hoje nos ensinou que toda ação no teatro
deve ter uma justificação interna e ser lógica, coerente e possível na realidade”166.
A utilização da palavra “se” é notável antes de tudo no sentido de que inicia toda
a criação e “cumpre seu papel por si só, de uma só vez, sem necessidade de
complemento nem de ajuda”167. Tórtsov/Stanislávski (1980, p. 89) os denomina de
“mágicos” porque provocam de modo instantâneo, instintivo, a própria ação, e sob sua
influência, o ator é conduzido como que num passe de mágica à ação verdadeira, pois
por seu intermédio:
criam-se de um modo normal, orgânico, natural, as ações internas e externas.
[...] O “se” é para os artistas uma alavanca que nos transporta da realidade ao
único universo no qual se pode realizar a criação. Existem alguns “se” que
somente dão um impulso para o desenvolvimento posterior, gradual e lógico da
168
criação. (STANISLAVSKI,1980, p. 88)
Continuando com a análise das caracterìsticas e qualidades do “se”, é preciso
salientar que existem os “se” “simples” e os “se” “complexos”: simples quando
provocam, de modo imediato, instintivo, uma reação; complexos quando justificam esta
ou aquela atitude ou conduta do personagem, e se constituem do entrelaçamento de
todas as referências apresentadas tanto pelo autor, quanto pelo diretor, cenógrafo,
iluminador etc., e que influenciam na ação concreta do ator em cena:
[...] nas obras complexas se entrelaçam uma grande quantidade de “se”, dos
autores e de outras origens, que justificam tal ou qual conduta e tais ou quais
atitudes dos heróis. Neste caso, o “se” não é simples, e sim complexo. O autor,
166
[...] la clase de hoy nos enseño que toda acción en el teatro debe tener una justificación interna y ser
lógica, coherente y posible en la realidad. (STANISLAVSKI, 1980, p. 88)
167
[...] cumple su papel por sí solo, de una sola vez, sin necessitar complemento ni ayuda.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 89)
168
[...] se crean de un modo normal, orgânico, natural, las acciones internas y externas. [...] El “si” es para
los artistas una palanca que nos traslada de la realidad al único universo en el que se puede realizar la
creación. Existen algunos “si” que sólo dan un impulso para el desarollo posterior, gradual y lógico de la
creación. (STANISLAVSKI, 1980, p. 88)
79
ao criar a obra, diz: “Se a ação se desenrolasse em tal época, em tal paìs, em
tal cômodo da casa; se ali viveram tais pessoas, com tal disposição de humor,
com tais ideias e sentimentos; se chocam entre si por tais ou quais
circunstâncias, e assim sucessivamente.
O diretor, ao apresentar a obra, completa o plano do autor com seus próprios
“se” e diz: Se entre os personagens existissem tais relações, se tivessem tais
hábitos, se vivessem em tal ambiente, etc., como atuaria nessas circunstâncias
o artista situado em seu lugar? Por sua vez, o cenógrafo que imagina o lugar
onde transcorre a ação, o eletrotécnico que dispõe a iluminação e outros
colaboradores [também] integram a moldura da obra com sua imaginação
169
artística. (STANISLAVSKI,1980, p. 89)
Outra caracterìstica qualitativa do “se” é seu caráter de fantasia, já que é uma
suposição e não fala de fatos reais, e sim possíveis. Este é para Stanislávski o segredo
da força de influência do “se” na imaginação do ator: ele não afirma nada, só presume.
“Se acontecesse...”170 Propõe um problema ao qual o ator dá sua própria resposta para
que se solucione. Com isso o estìmulo e a determinação dele [do “se”] proveniente se
dá sem esforço, pois “o assombroso “se” cria um estado que exclui toda a violência”.171
Ao despertar no artista a atividade interna e externa de um modo natural, sem
violência, ou seja, sem o risco de expô-lo ao artificialismo, o “se” demonstra outro de
seus atributos: o de estimulante de nossa atividade criadora interior em direção à ação
exterior. Esse processo artificial desencadeado de forma natural pelo “se” é análogo ao
processo instintivo de lógica e consequência na ação que sucede na vida real e esta
propriedade fundamental do “se“ o aproxima de um dos pilares do ideal de escola
dramática na acepção de Stanislávski; “ação/atividade na criação e na arte”172.
“O “se” simples ou “mágico” dá inìcio à criação”173, pois a ação nasce do impulso
gerado pelo “se”, aplicado diante das circunstâncias dadas do papel:
169
[...] en las obras complejas se entrelaza una gran cantidad de los “si” de los autores y de otro origen,
que justifican tal o cual conducta y tales o cuales actitudes de los héroes. Ahì el “si” no es simple, sino
complejo. El autor, al crear la obra, dice: “Si la acción se desarrollara en tal época, en tal paìs, en tal lugar
de la casa; sí ahí vivieron tales personas, con tal disposición de ánimo, con tales ideas y sentimientos; si
chocan entre sì por tales o cuales circunstancias”, y asì sucesivamente.El director, al presentar la obra,
completa el plan del autor con sus propios “si” y dice: Si entre los personajes existieran tales relaciones,
si tuvieran tales hábitos, si vivieran en tal ambiente etc., ?como acturía en esas circunstancias el artista
situado en su lugar? A su vez, el escenógrafo que imagina el lugar donde trascurre la acción, el
eletrotécnico que dispone la iluminación y otros colaboradores integran el marco de la obra con su
imaginación artística. (STANISLAVSKI, 1980, p. 89)
170
Si ocurriera... (STANISLAVSKI, 1980, p. 90)
171
[...] el asombroso “si” crea un estado que excluye toda violencia.(STANISLAVSKI, 1980, p. 90)
172
[...] actividad en la creación y en el arte. (STANISLAVSKI, 1980, p. 91)
173
[...] el “si” simple o “mágico” da comienzo a la creación.(STANISLAVSKI, 1980, p. 91)
80
Sobre este assunto deixarei que em meu lugar lhes fale Aleksander Pushkin!
Em seu comentário sobre o drama popular, diz Aleksander Serguiêievitch:
“Sinceridade das emoções, sentimentos que parecem verdadeiros em
circunstâncias dadas [sic! Supostas]: eis o que exige nosso espírito de autor
dramático”. Acrescento de minha parte que exatamente o mesmo exige o nosso
espírito de autor dramático, com a diferença de que as circunstâncias, que para
o autor são propostas, para nós os artistas, hão de estar dadas. Foi assim que
em nosso trabalho prático se firmou a expressão “circunstâncias dadas”, que
estamos utilizando. [...] nosso amado “se” nos ajuda a cumprir com o preceito
174
de Pushkin. (STANISLAVSKI,1980, p. 91)
Para compreender o aforismo de Pushkin, desvendar sua essência interior e
captar a ideia toda da uma vez, Stanislávski (1980, p. 91 e ss.) aconselha desmembrálo nas suas partes lógicas e analisar cada uma em separado. Sobre a “sinceridade das
emoções”, acrescenta que “é a autêntica e viva paixão humana, o sentimento da
vivência do próprio artista”175; quanto aos “sentimentos que parecem verdadeiros”, diz
que não fazem referência aos sentimentos reais em si, senão a algo análogo e muito
próximo a eles, são as “emoções reproduzidas indiretamente, por incitação de
sentimentos internos” 176. Por fim, define as “circunstâncias dadas” como sendo todos os
fatores que possam interferir na montagem, desde aqueles ligados diretamente ao
texto, e mesmo o que for integrado por diretores, técnicos e atores, que não poderá ser
ignorado no aqui agora da representação.
O “se” sempre impulsiona a ação, lhe dá inicio, e as “circunstâncias dadas” a
desenvolvem, “mas suas funções são um pouco diferentes: o “se” dá um impulso à
imaginação adormecida, enquanto que as “circunstâncias dadas” dão fundamento ao
“se”. Entre eles ajudam a criar o estìmulo interior”.177 Do mesmo modo que o “se”, as
“circunstâncias dadas” são uma abstração intelectual, uma invenção da imaginação, e
174
!Sobre este tema dejaré que en mi lugar os hable Aleksander Pushkin! En su comentario sobre el
drama popular, dice Aleksander Serguéievich: “Sinceridad de las emociones, sentimientos que parecen
verdaderos en circunstancias dadas [sic! supuestas]: he aquí lo que exige nuestro espírito del autor
dramático”. Agrego por mi arte que exactamente lo mismo exige nuestro espìritu del autor dramático, con
la diferencia de que las circunstancias, que para el autor son propuestas, para nosotros los artistas, han
de estar dadas. Asì es como en nuestra labor práctica se ha afirmado la expresión “circunstancias
dadas”, que estamos utilizando. [...] nuestro amado “si” nos ayuda a cumplir con el precepto de Pushkin.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 91)
175
Es la auténtica y viva pasión humana, el sentimento de la vivencia del artista mismo. (STANISLAVSKI,
1980, p. 92)
176
[...] emociones reproducidas indirectamente, por la incitación de sentimientos internos.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 92)
177
Pero sus funciones son algo distintas: el “si” da un impulso a la imaginación adormecida, mientras que
la “circunstancias dadas” dan fundamento al “si”. Entre ellos ayudan a crear el estìmulo interior.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 92)
81
lhe servem como complemento. Sem elas, o “se” não pode atingir sua força de estìmulo
e nem mesmo existir. Colocado frente às circunstâncias dadas, o “se” funciona como
procedimento concreto para incitar/estimular uma adequada atividade interior, que pode
então ser facilmente traduzida pelas ações físicas.
O segredo deste processo consiste em não forçar o sentimento, deixar que este
brote por si só e não pensar na sinceridade das emoções, porque estas não
dependem de nós, senão que surgem espontaneamente, não se submetem às
ordens nem à violência. Tratem de vivê-las sinceramente, e então os
“sentimentos que parecem verdadeiros” surgirão por si mesmo. Dirijam toda
178
vossa atenção às “circunstâncias dadas”. (STANISLAVSKI,1980, p. 92-93)
No contexto da pesquisa de Stanislávski, a “ação é um processo psico-físico de
luta contra as circunstâncias dadas para alcançar o objetivo, que se dá no tempo e no
espaço de uma forma teatral qualquer”179. Ou seja, a ação é o resultado da superação
dos obstáculos e nasce da luta contra forças contrárias ao objetivo. Para Merener (apud
STANISLAVSKI, 1980, p. 173):
A concepção de Stanislávski sobre a ação cênica como uma luta que se trava
para alcançar o objetivo proposto firmou-se definitivamente em seu trabalho
sobre as obras da dramaturgia soviética; nelas, era preciso personificar em
cena as imagens dos heróis contemporâneos, ativos lutadores por suas
convicções, e revelar o tema da luta de classes. Através dos confrontos e da
luta dos personagens que descobrem o conflito da peça, Stanislávski passava a
mostrar o plano ideológico da obra. (MERENER apud STANISLAVSKI, 1980, p.
180
173)
É a partir de todo o gênero de “circunstâncias dadas” e de uma série de “se” do
autor, do diretor, atores, cenógrafo, iluminador e demais criadores do espetáculo que se
178
El secreto de este proceso consiste en no forzar el sentimiento, dejar que éste brote por sí solo y no
pensar en la sinceridad de las emociones, porque éstas no dependen de nosotros,sino que surgen
espontáneamente, no se someten a las órdenes ni a la violencia. Tratad de vivirlas sinceramente, y
entonces los “sentimientos que parecen verdaderos” surgirán por si mismos. Dirigid toda vuestra atención
a las “circunstancias dadas”. (STANISLAVSKI, 1980 p. 92-93)
179
Este conceito de ação é oriundo das aulas com os professores Tovstonógov e Katsmann,
retransmitido por Dagostini por ocasião do seminário de aproximação teórica ao Método da Análise Ativa,
ministrado em março de 2000, UFSM/RS.
180
La concepción de Stanislavski sobre la acción escénica como una lucha que se libra por alcanzar el
objetivo planteado se afirmo definitivamente en su trabajo sobre las obras de la dramaturgia soviética; en
ellas había que encarnar en la escena las imágenes de los héroes contemporáneos, luchadores activos
por sus convicciones, y revelar el tema de la lucha de clases. A través de los choques y la lucha de los
personajes, que descubren el conflito de la pieza, Stanislavski pasaba a mostrar el plan ideológico de la
obra. (MERENER apud STANISLAVSKI, 1980, p. 173)
82
cria em cena uma atmosfera similar à da vida real. Nas palavras de Tortsóv/Stanislávski
é o que fazemos com o trabalho do autor:
Damos vida àquilo que está entre linhas, colocamos nossos próprios
pensamentos no que o autor escreveu, e estabelecemos nossa própria relação
com os outros personagens da obra e as condições em que vivem; incutimos
em nós todos os materiais que recebemos do autor e do diretor, os trabalhamos
e completamos com nossa própria imaginação. E este material chega a ser
parte de nós, espiritual e até fisicamente; nossas emoções são sinceras e como
resultado final alcançamos uma atividade real, autêntica e produtiva,
intimamente unida à trama secreta da obra; criamos imagens vivas e típicas
com as paixões e os sentimentos do personagem personificado.
181
(STANISLAVSKI, 1980, p. 93)
Na aproximação da atmosfera da cena àquela que se percebe na vida, a ação
deixa de apresentar unicamente sua característica exterior, formal, carregando em si o
conteúdo emocional análogo ao proposto na obra pelo autor. Ao deixar transparecer o
caráter interno da ação, o ator não impressiona mais simplesmente por seu domínio
técnico, mas também pela vida interior do personagem que traspassa a técnica e nela
imprime a marca pessoal do artista.
Quando o ator sofre, ama, sente ciúmes ou pede perdão pelo simples fato de
manifestar esses sentimentos, porque assim está escrito no livreto, e não
porque é o que vive em sua alma, e assim se criou a vida do papel na cena,
não lhe resta outra saìda senão a “interpretação em geral”. [...] A arte
verdadeira e a atuação “em geral” são incompatíveis. Uma destrói a outra. A
arte ama a ordem e a harmonia, e no “geral” reinam o caos e a desordem. [...] O
geral é superficial e frívolo. Apliquem, pois, ao papel a lógica e a coerência, e
assim desaparecerão essas características negativas. No geral se começam
muitas coisas e não se termina nenhuma. Evitem as tarefas inconclusas.
182
(STANISLAVSKI, 1980, p. 94-95)
181
Damos vida a aquello que está entre líneas, ponemos nuestros propios pensamientos en lo que el
autor ha escrito, y establecemos nuestra propia relación con los otros personajes de la obra y las
condiciones en que viven; infiltramos en nosotros todos los materiales que recibimos del autor y el
director, los trabajamos y completamos con nuestra propia imaginación. Y este material llega a ser parte
de nosotros, espiritual y hasta físicamente; nuestras emociones son sinceras y como resultado final
alcanzamos una actividad real, auténtica y productiva, íntimamente unida a la trama secreta de la obra;
creamos imágenes vivas y típicas con las pasiones y los sentimientos del personaje encarnado.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 93)
182
Cuando el actor sufre, ama, siente celos ou pide perdón por el solo hecho de manifestar esos
sentimientos, porque así está escrito en el libreto, y no porque eso es lo que vive en su alma, y así se
creó la vida del papel en la escena, no le queda más salida que la “interpretación en general”. [...] el arte
verdadero y la actuación “en general” son incompatibles. Lo uno destruye lo otro. El arte ama el orden y
la armonìa, y en lo “general” reinan el caos y el desorden. [...] Lo general es superficial y frìvolo. Aplicad,
pues, al papel la lógica y la coherencia, y así desaparecerán esas características negativas. En lo general
se empiezan muchas cosas y no se termina ninguna. Evitad las tareas inconclusas. (STANISLAVSKI,
1980, p. 94-95)
83
O segredo do ator para Konstantin Serguiêievitch (1990, p. 237) consiste em não
buscar na expressividade exterior a força da vida do personagem, e sim em seu interior,
na concentração incondicional de sua razão-vontade-sentimento para a realização da
ação em circunstâncias determinadas. O processo de aprendizagem do “sistema” tem
como objetivo “elaborar de uma vez por todas na cena, ao invés das ações “em geral”,
a ação humana verdadeira dirigida a uma finalidade”183. Do contrário, o que alcança o
ator é somente uma imitação, “uma paródia das paixões e dos elementos que as
constituem”184. “Todo meu sistema se reduz a isso: entender os momentos
fundamentais do papel e poder agrupá-los logicamente, refletindo-os numa sequência
de ações físicas sinceras”185.
– O “se”, as “circunstâncias dadas” e as ações internas e externas são fatores
muito importantes de nosso trabalho. Mas não são os únicos. Necessitamos
além deles toda uma sequência de atitudes, qualidades, dons especiais,
artísticos, criadores (imaginação, atenção, senso de verdade, objetivos,
antecedentes cênicos, etc). Por razões de brevidade convencionamos por
agora em chamá-los com uma só palavra: elementos. (STANISLAVSKI, 1980,
186
p. 96)
Assim, Stanislávski (1980) chama a atenção para os principais elementos do
“sistema” que dizem respeito ao trabalho do ator sobre si mesmo no processo das
vivências: “se” mágico, circunstâncias dadas, imaginação, atenção, relaxamento dos
músculos, acontecimentos e conflitos, verdade e credulidade, memória emocional,
comunicação e ajudas exteriores.
2. 5 UNIDADES (ACONTECIMENTOS) E OBJETIVOS (CONFLITOS)
Eu observava os grandes artistas, tentando
esclarecer a mim mesmo durante quantos
183
[...] elaborar de una vez por todas en la escena, en vez de las acciones “en general”, la acción humana
verdadera dirigida a un fin. (STANISLAVSKI, 1980, p. 95)
184
[...] una parodia de las pasiones y de los elementos que las constituyen. (STANISLAVSKI, 1980, p. 94)
185
Todo mi sistema se reduce a esto: entender los momentos fundamentales del papel y poder
agruparlos lógicamente, reflejándolos en una serie de acciones físicas sinceras. (STANISLAVSKI, 1990,
p. 180-181)
186
– El “si”, las “circunstancias dadas” y las acciones son factores muy importantes de nuestro trabajo.
Pero no son los únicos. Necesitamos además toda una serie de aptitudes, cualidades, dones especiales,
artísticos, creadores (imaginación, atención, sentido de la verdad, objetivos, antecedentes escénicos,
etc). Por razones de brevedad convendremos por ahora llamarlos con una sola palabra: elementos.
(STANISLAVSKI, 1980, p. 96)
84
minutos eles seriam capazes de permanecer
sozinhos diante da ribalta, sem ajuda de fora, e
reter em si a atenção do público. E observei
ainda o quanto são diversas as suas poses, os
movimentos e a mímica. A experiência me
mostrou que o máximo da capacidade de um
ator reter ininter-ruptamente a atenção de uma
platéia de mil espectadores, com uma cena
forte e envolvente, era de sete minutos (coisa
imensa!) enquanto que o mínimo, com uma
cena comum tranqüila era de um minuto (o que
também é muito!). Para mais já não lhes resta
variedade de recursos expressivos, têm de
repetir-se, o que afrouxa a atenção, até a
mudança brusca seguinte, que provoca novos
procedimentos de personificação e um novo
estímulo à atenção dos espec-tadores.
(STANISLAVSKI, 1989, p. 235)
A compreensão humana de um todo complexo é limitada. Não se pode, por
exemplo, saber o conteúdo de uma obra literária sem que a tenhamos lido ou ouvido
sua história desde o início, como também não se pode chegar de um ponto a outro do
espaço sem percorrer e vivenciar o percurso que há entre estes pontos. Nosso
entendimento das coisas está limitado pela lógica e conseqüência dos acontecimentos,
gerados a partir de determinadas circunstâncias. Cada circunstância pode gerar
situações diversas, dependendo do ponto de vista de quem as observa. Neste ponto,
nos chama atenção Stanislávski (1977) sobre o ponto de vista do qual deve o ator
observar o mundo a volta de seu personagem: o ponto de vista do autor. Do soma
conjunta das circunstâncias propostas pelo autor e dos acontecimentos que delas
provém, nos quais o personagem está envolvido, é que se pode concluir qual seja
relmente a razão de ser de tal personagem no universo da obra. Para Stanislávski, o
verdadeiro trabalho de criação da idéia da obra “exige do artista amplo e variado
conhecimento, constante auto-disciplina, a subordinação de seus gostos e hábitos
pessoais às exigências da idéia, e algumas vezes também, determinados sacrifìcios” 187.
Um diretor não pode começar a trabalhar numa obra sem conhecer a idéia, o
187
[...] exige del artista amplio y variado conocimiento, constante auto disciplina, la subordinación de sus
gustos y hábitos personales a las exigencias de la idea, y algunas veces tanbién, sacrificios definidos.
(STANILÁVSKI apud GORCHAKOV, 1956, p. 48)
85
tema básico. [...] [Atores e Diretores] precisam ampliar sua compreensão dela [a
idéia]. Precisam estabelecer os acentos e os pontos culminantes que lhes
ajudarão a mostrá-la em sua forma mais expresiva e a comunicar seu pleno
significado. Precisam esforçar-se ao máximo para fazer com que a idéia seja
estimulante, colorida, poderosa e importante para os espectadores. É isso que
dará à representação juventude perdurável, senão eterna, ao menos útil
durante todo o tempo que seja vital a idéia da obra. (GORCHAKOV, 1956, p.
188
49)
Em acordo com Stanislávski (Apud GORCHAKOV, 1956, p. 148), antes que o
diretor comece a trabalhar com os atores, “especialmente com os jovens”, deve
compreender como, e partindo de que circunstâncias históricas o autor criou seus
personagens. O diretor precisa saber quais os aspectos do caráter revelam a
personalidade de cada um dos personagens e o sentido de sua conduta em família e na
sociedade. E, por fim, deve saber também por que quer apresentá-los ao público
contemporâneo. Se o diretor apresenta estes três problemas vinculados ao “fio
condutor” da obra, seus atores “nunca se afastarão da interpretação verdadeira de seus
personagens e expressarão a idéia da obra brilhante e plenamente através dos
personagens e de sua conduta”.
Para Knébel (1996, p. 31), “compreender a época em que vive o personagem
significa
descobrir
uma
das
circunstâncias
dadas
mais
importantes”189.
As
“circunstâncias dadas” na definição de Stanislávski (1980, p. 92):
A fábula da obra, seus feitos e acontecimentos, a época, o tempo e o lugar da
ação, as condições de vida, nossa ideia da obra enquanto atores e diretores, o
que acrescentamos de nós mesmos, a montagem, os cenários e figurinos, os
adereços, a iluminação, os ruídos e sons, e tudo mais que os atores devem
190
levar em consideração durante sua criação. (STANISLAVSKI, 1980, p. 92)
188
Un director no puede comenzar a trabajar en una obra sin conocer la idea, el motivo básico.[...] Tienen
que ampliar su comprensión de la misma. Tienen que establecer los acentos y los puntos culminantes
que les ayudarán a Vds. a mostrar-la en su forma más expresiva y a comunicar su pleno significado.
Tienen que esforzarse Vds. al máximo pra hacer que la idea sea estimulante, colorida, poderosa e
importante para los espectadores. Esto es lo que dará a la representación juventud perdurable, si no
eterna, por lo menos útil durante todo el tiempo que sea vital la idea de la obra. (GORCHAKOV, 1956, p.
49)
189
Comprender la época en que vive el personaje significa descubrir una de las circunstancias dadas
más importantes. (KNÉBEL, 1996, p. 31)
190
La fábula de la obra, sus hechos, acontecimientos, la época, el tiempo y el lugar de la acción, las
condiciones de vida, nuestra idea de la obra como actores y régisseurs, lo que agregamos de nosotros
mismos, la puesta en escena, los decorados y trajes, la utilería, la iluminación, los ruidos y sonidos, y
todo lo demás que los actores deben tener en cuenta durante su creación. (STANISLAVSKI, 1980, p. 92)
86
É através do estudo do autor das circunstâncias por ele fornecidas que se
descobrem particularidades e detalhes que sem este estudo, poderiam parecer banais
e ser desconsiderados pelo diretor, alterando a comunicação da ideia central do autor
na obra, requisito de importância cabal na acepção stanislavskiana:
Aqui temos uma fonte inesgotável para a imaginação do ator e do diretor. Terá
que se imaginar não somente a época, os costumes, as relações entre os
personagens, senão, compreender que, para eles, além de um presente houve
um passado e haverá um futuro.
Stanislávski escreveu: “é impossìvel que o presente exista não somente sem
passado, bem como sem futuro. Dizem que esse não podemos conhecer nem
pressentir. Sem dúvida, desejá-lo, ter uma visão dele não é somente possível,
senão necessário...
Se na vida não pode haver presente sem passado nem futuro, na cena, reflexo
191
da vida, há de acontecer o mesmo.” (KNÉBEL, 1993, p. 32)
Como um timoneiro que conduz um barco por um canal, de ancoradouro em
ancoradouro, o ator deve guiar-se pela linha lógica dos acontecimentos principais, pois
como no trajeto entre um ponto e outro, existem lugares sem ancoradouro, mas que lá
estão. Para se descobrir dentre uma dezena de acontecimentos quais seriam os
principais, Stanislávski (1980, p. 170) aconselha a técnica de exclusão:
Não divida a peça sem necessidade, nem se deixe guiar pelas partes menores
no momento da criação; Trace a linha do canal apenas com as partes maiores,
bem elaboradas e animadas em cada um dos fragmentos que as formam. A
técnica do processo de dividir em partes é bastante simples. Formule esta
pergunta: Sem quais elementos não pode existir a peça analisada? E depois,
comece a relembrar todas as suas etapas essenciais, sem entrar em detalhes.
192
(STANISLAVSKI, 1980, p. 170)
A divisão da peça em partes menores é uma medida transitória. Como vimos, no
momento da criação, as partes menores são incorporadas às maiores, formando a linha
191
Aquí tenemos una fuente inagotable para la imaginación del actor y el diretor. Uno ha de imaginar no
sólo la época, las costumbres, las relaciones entre los personajes, sino compreender que, para éstos
además de un presente hubo un passado y habrá un futuro.
Stanislavski escribió: “es imposible que el presente exista no sólo sin passado, sino sin futuro. Dicen que
éste no lo podemos conocer ni pressentir. Sin embargo desearlo, tener una visión de él, no sólo es
posible, sino necessário...
Si en la vida no puede haber presente sin passado ni futuro, en la escena, reflejo de la vida, ha de ocurrir
lo mismo.” (KNÉBEL, 1996, p. 32)
192
[...] no fragmenteis la pieza sin necesidadni os guiéis em el momento de la creación por los trozos
pequenos; trazad la línea del canal sólo por los trozos mayores, bien elaborados y animados em cada
uma de las partes que los forman. La técnica del processo de dividir em trozos es bastante sencilla.
Formuláos esta pregunta: ?Sin qué elementos no pude existir la pieza analizada? Y después comenzad a
recordar todas sus etapas esenciales, sin entrar em detalles. (STANISLAVSKI, 1980, p.170)
87
ininterrupta de ação. Este procedimento facilita o trabalho do ator de abarcar através
das partes menores a obra e o papel em sua totalidade, pois em cada pequena parte há
um objetivo criador que conduz ao grande objetivo.
Depois de dividir o texto em suas partes principais, comece a juntá-las
separando aquelas em que é possìvel encontrar o “eu quero” expressado pelo
mesmo verbo. Então, passe a uni-las, anotando cuidadosamente quantas vezes
haveis expressado os movimentos interiores do personagem na obra com uma
única e mesma definição.
Daí deduzirás as principais razões e causas que motivaram que a vida interior
da pessoa que esteja representando no palco tome certas formas exteriores,
assim como qual era a natureza de tais formas exteriores. Isso se fará evidente
a partir daquelas qualidades de seu caráter que já haviam sido observadas no
193
personagem e selecionadas com antecipação. (STANISLAVSKI, 1990, p.181)
Salomón Merener (apud STANISLAVSKI, 1980, p. 171), tradutor da obra de
Stanislávski ao espanhol enfatiza que o mestre não abandona os métodos habituais de
análise da peça ao dividi-la em acontecimentos e objetivos, mas que quando define as
partes estabelece “um princìpio exato”, segundo o qual a denominação definitiva do
acontecimento não se dá pela situação dos personagens – que determina o
acontecimento em particular – , nem pela contingência dominante nesta ou naquela
cena (como era habitual em suas primeiras montagens no T. A. M.), senão pela ação,
ou pela principal circunstância dada.
A maior precisão possível em cada fração do papel – até na menor – é o único
[procedimento] que pode salva-los de uma sobreatuação e despertar vossos
poderes de intuição. Já sabem como analizar o papel, como descobrir suas
qualidades gerais mais características integrando gradativamente as que
possuem características comuns e como descobrir a ação completa e a idéia
dominante da obra. Divida todo o papel em pequenas partes exatamente da
mesma maneira. Em cada parte busque o tema que pode ser expressado
mediante um predicado. Apesar do fato de que a vida toda é uma ação
contìnua, de que o “eu quero” está presente no homem a cada instante, segue
sendo certo que o mais difícil no mundo é expresar mediante um verbo o que se
193
Después de dividir el papel en sus partes principales, empezad a juntarlas separando aquellas en las
que es posible encontrar el “yo quiero” expresado por el mismo verbo. Entonces proceded a unirlas,
anotando cuidadosamente cuántas veces habéis expresado los movimientos interiores de vuestro héroe
en la obra con una y la misma definición.
De ahí deduciréis las principales razones y causas que motivaron que la vida interior de la persona que
estáis representando en el escenario tomara ciertas formas exteriores, así como cuál era la naturaleza de
dichas formas exteriores. Esto se hará evidente a partir de aquellas cualidades de vuestro carácter que
ya habéis observado en el personaje y seleccionadas con anticipación. (STANISLAVSKI 1990, p. 181)
88
deseja em cada parte de um papel que se deve analizar. (STANISLAVSKI,
194
1990, p. 179)
Para Dagostini (2007, p. 38) o diretor só pode iniciar o desvendamento da
estrutura da ação do texto “depois de compreender ativamente a verdade subjetiva das
personagens, da qual nasce a lógica de seu comportamento, suas valorizações e
apreciações, e de esclarecer as causas, o solo no qual nascem os conflitos”.
Vamos passar agora ao esquema da análise propriamente dita. Tratarei da
aproximação ao método conforme assimilado nos três primeiros semestres do curso de
Artes Cênicas da UFSM, e experimentado nos demais exercícios de Encenação até o
fim da graduação. Gostaria de salientar que o Curso de Direção Teatral da UFSM no
período de minha graduação esteve fundamentado nos princípios gerais de Direção
idealizados por Stanislávski:
[...] o estudante da Faculdade de Direção deve passar por todas as etapas do
trabalho cênico, em todas as suas especialidades. Somente neste caso, ele
poderá conhecer na prática [o funcionamento de] um palco, já que o estudo
teórico por si só é muito pouco e insuficiente para a prática [teatral].
195
(STANISLAVSKI, 1986, p. 268-269)
A seguir, passo a descrever o esquema de aproximação téorico/prático ao
“Método da Análise Ativa” conforme transmitido no curso de graduação em Direção,
reforçando que o foco da pesquisa é a condução do processo criativo do ator pelo
diretor através das postulações dos últimos anos de trabalho de Stanislávski pela
abordagem de Dagostini.
194
La mayor precisión posible en cada fracción – hasta la más pequeña – del papel es lo único que
puede salvaros de una sobreactuación y despertar vuestros poderes de intuición. Ya sabéis como
analizar el papel, cómo descubrir sus cualidades generales más características integrando gradualmente
las que poseen rasgos comunes y cómo descubrir la acción completa y la idea dominante de la obra.
Dividís todo el papel en pequeñas partes exactamente de la misma manera. En cada parte buscáis el
tema que puede ser expresado mediante un predicado. A pesar del hecho de que la vida entera es una
acción continua, de que el “yo quiero” está presente en el hombre a cada instante, sigue siendo cierto
que lo más difícil en el mundo es expresar mediante un verbo lo que se desea en cada parte de un papel
que se debe analizar. (STANISLAVSKI, 1990, p. 179)
195
el estudiante de la Facultad de Dirección debe pasar por todas las etapas del trabajo escéncico, en
todas sus especialidades. Sólo en este caso podrá él conocer prácticamente um escenário, ya que el
estúdio teórico por sí solo es muy poco e insuficiente para la práctica. (STANISLAVSKI, 1986, p. 268)
89
3 GENEALOGIA DO MÉTODO DA ANÁLISE ATIVA EM SANTA MARIA/RS
O novo método criado por K. Stanislávski e em
desenvolvimento por seus seguidores traz uma
contribuição fundamental para a análise da
obra, e seus princípios desempenham papel
importante para a arte do diretor e do ator. Suas
buscas e descobertas se deram essencialmente
no sentido de resgatar o que há de vida por trás
e um texto e de seus conceitos, revelando,
assim, a ação que gera a palavra, para que
possa ser vivenciada pelo ator. (DAGOSTINI,
2007, p. 39)
Havia uma particularidade em relação ao Curso de Artes Cênicas da UFSM, que
na época de minha graduação unia o trabalho de experimentação prática e pesquisa
teórica no que refere à preparação e formação do diretor e do ator.
Em meados da década de 1980, enquanto que na maioria das instituições
brasileiras só se tinha acesso ou conhecimento das obras de Stanislávski traduzidas a
partir das versões do Inglês, em Santa Maria/RS, Nair Dagostini, a primeira brasileira a
estudar no LGITMiK - Instituto Estatal de Teatro, Música e Cinema de Leningrado N. K.
Cherkacov 196 (1978-1981) iniciava suas atividades como pedagoga teatral no Curso de
Educação Artística Licenciatura Plena em Artes Cênicas, extinto em 1995. A
Abordagem de Nair Dagostini (2007) traz um ponto de vista diferente sobre o que se
pensava de Stanislávski no Brasil naquela época: a Análise Ativa.
No ano de 1992, a Profª. Drª. Nair Dagostini coordena o processo de
estruturação e elaboração do Curso de Bacharelado em Direção e Interpretação
Teatral. De acordo com Dagostini (2007), o currículo do curso aprovado pelo Conselho
Universitário em 1994, “foi construìdo sobre uma base comum para ambas as opções” e
que “o método da análise ativa ocupou o lugar de centro unificador do processo de
educação e formação do artista como um todo.”197
196
LGITMiK – N. K. Cherkacov. Em 1993 passou a ser denominado Academia Estatal de Arte Teatral de
São Petersburgo – SPGATI. Mais detalhes em DAGOSTINI, 2007, p. 3-15.
197
DAGOSTINI, 2007, p. 15 e p.16, respectivamente.
90
3.1 PRIMEIROS PROCEDIMENTOS: A DIVISÃO DA PEÇA E A REVELAÇÃO DO
SUPEROBJETIVO DO AUTOR
O objetivo essencial da cuidadosa análise da
obra é o de o diretor poder aprofundar, com
base nos fatos superficiais da fábula, a
essência do comportamento das perso-nagens,
ou seja: “revelar o seu verdadeiro sentido, a
abertura do subtexto, os estí-mulos, impulsos
internos, os motivos e os secretos movimentos
da alma, os quais determinam subjetivamente
a lógica e a verdade do comportamento
humano”. (SULÍMOV, 2002, p.06 apud
DAGOSTINI 2007, p. 39)
A professora de Encenação I do ano de 1999 fora Adriane Maciel Gomes,198 e a
disciplina propunha desenvolver a capacidade de expressão e comunicação visual no
espetáculo, mediante a linguagem não-verbal e a composição cênica. A ementa199
propunha os fundamentos da direção teatral e os elementos da comunicação do
espetáculo. A proposta apresentada foi „extrair a metáfora‟ do conto Uma Vela para
Dario, de Dalton Trevisan200. Na época, confesso que „extrair a metáfora do texto‟ me
pareceu meio vago, mas hoje entendo que foi uma forma interessante de apresentar a
divisão da peça em seus acontecimentos principais para traduzir o tema e a ideia
do conto e introduzir o conceito de superobjetivo do autor. Como informa
Gorchakov (1956, 187) “antes de tudo, [...] é preciso estabelecer a lógica dos
acontecimentos e o fluir do dia para a obra e para cada personagem.”201
198
Graduada em Educação Artística – Habilitação em artes Cênicas pelo Curso de Licenciatura da UFSM
(1993-1997), Mestre em Letras pelo Programa de Pós Graduação em Literatura e Cultura Russa do
Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo – SP (2008), atualmente professora do Curso de Artes Cênicas da
Universidade Estadual de Londrina – PR.
199
As informações sobre objetivos, ementa e conteúdo programático foram extraídas dos programas da
Disciplina Encenação I a VIII, cursados entre os anos de 1999-2003. Também podem ser acessadas no
Portal da UFSM na Web com algumas diferenças devidas à adaptação do programa por cada professor.
200
TREVISAN, Dalton. Cemitério de Elefantes. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1975.
201
Antes que nada, [...] es preciso establecer la lógica de los acontecimientos y el fluir del dia para la obra
y para cada personaje. (GORCHAKOV, 1956, p. 187)
91
Não se falou em Análise Ativa, mas seguiram-se os procedimentos de divisão do
texto nos acontecimentos principais para a determinação da ideia e consequentemente
sua metáfora.
A partir da leitura inicial do texto, foi-nos proposto que fizéssemos a sinopse e
que a partir dos principais fatos narrados encenássemos a metáfora do texto. O conto
de Trevisan apresenta estrutura dramática clássica, com início–desenvolvimento–
clímax–final e seus acontecimentos foram determinados em análise conjunta.
Os personagens do conto Uma Vela para Dario são os transeuntes de uma
grande cidade, preocupados quase que exclusivamente consigo mesmo e com seu
cotidiano rotineiro, o corre-corre metropolitano e Dario, que no meio de toda agitação é
acometido de um mal súbito e morre no meio da calçada. Uma chuva se anuncia. A
partir disso, o autor narra a relação que se estabelece entre o corpo estirado na calçada
e a reação dos transeuntes que por ele passam e vão-lhe roubando os pertences até a
chegada do rabecão.
Tivemos aulas práticas conduzidas como a um ensaio, onde havia a preparação
psicofísica inicial, de preparação do corpo e arejamento mental. Tratava-se de introduzir
os alunos no universo de aquisição da psicotécnica para então começar o trabalho de
criação sobre o texto. Afora as 15 aulas com duração média de 4 horas, incluso
intervalo, tivemos precisamente 3 ensaios. Cada aluno/diretor também não dispunha
de muitos atores, já que trabalhamos circunscritos à turma de 20 alunos. Trabalhei com
três atrizes: Carina da Silva Mafalda, Silvana Baggio Ávila e Ellen Londero. As atrizes
vestidas de preto, com guarda-chuvas encobrindo-lhes o rosto. Uma música de ritmo
acelerado ao fundo. Atravessam a cena em rápidas entradas e saídas de cena até o
colapso. Os guarda-chuvas encobrem a visão do corpo estirado. Uma das atrizes entra
lentamente e atravessa a cena empurrando um caminhão caçamba de brinquedo com
uma vela acesa. Tudo volta ao ritmo normal, acelerado. Lembro que as apresentações
de alguns colegas foram interessantes, mas o meu exercício em particular foi um caos.
Estava baseado no tempo-ritmo da música e na precisão das entradas e saídas das
atrizes em cena nas marcas e no tempo de duração da música, o que requer muito
maior quantidade de ensaios e qualidade técnica do que dispúnhamos. Os colegas de
turma com os quais ainda tenho contato não esquecem o fato de que intervim junto às
92
atrizes durante a apresentação, apressando-as, tentando ajustar seus tempos de
entrada e saída. Dizem que foi hilário... Anedotas a parte, o processo de colaboração
que se instalou entre a turma foi notável até o final da graduação. É certo que teatro
não se faz sozinho, mas é certo também que a convivência diária num curso intensivo
durante quatro, cinco anos entre um mesmo grupo pode ser algo estressante, mas
também muito produtivo.
Como informa Dagostini (2007, p. 49-50), na etapa da análise da estrutura da
obra “é aconselhável que o diretor parta primeiramente para a descoberta dos seus
acontecimentos principais, a fim de que possa ter a totalidade da mesma, partindo do
geral para o particular e para o singular”. Para descobrir o superobjetivo da obra,
Stanislávski (1980) aconselha minucioso exame por meio de repetidas leituras e divisão
da obra em partes menores. Não esmiuçar os acontecimentos no início da análise, mas
perceber a obra em sua totalidade através dos principais acontecimentos é o que
se recomenda nesta fase.
Para uma atuação orgânica, verdadeira, Stanislávski (1980, p. 207) ressalta que
é necessário “um esquema nìtido e a linha da ação interior”202 e que para cria-los “é
preciso conhecer a natureza, a lógica e a continuidade dos sentimentos”203. A questão
da natureza, da lógica e continuidade dos sentimentos está longe de ser fácil de se
esclarecer, até por conta das questões filosóficas que advém dos termos „natural‟,
„lógico‟ e „contìnuo‟ e nós, artistas cênicos, precisamos abordar a questão do ponto de
vista fìsico, concreto; como disse Stanislávski (1980, p. 207), “nos guiamos pela
experiência prática, humana, pelas lembranças da vida, a lógica, a sucessão, a verdade
e a crença naquilo que fazemos no palco”204 e é desse ponto de vista que devemos
partir para elucidar a questão do sentimento, devemos nos guiar pela atividade, pelo
conjunto das ações.
É justamente essa mudança no ponto de vista que gerou a alteração dos
procedimentos anteriores de Stanislávski. Antes, os estágios do trabalho com os atores
sobre o papel, se dividiam no período analítico, de mesa, e no período de trabalho nos
202
[...] un plan claro y la línea de la acción interior. (STANISLAVSKI, 1980, p. 207)
[...] preciso es conocer la naturaliza, la lógica y la continuidad de los sentimientos. (Idem)
204
Nos guiamos por la experiência práctica , humana, por los recuerdos de la vida, la lógica, la sucesión, l
verdade y la creencia en lo que hacemos en el escenario. (STANISLAVSKI, 1980, p. 207)
203
93
ensaios; nos seus últimos anos de trabalho como diretor e pedagogo, esta divisão
deixou de existir e a análise era executada com os atores em cena, com o estudo e
realização das ações propostas no texto, estudado e dividido previamente pelo diretor
em seus acontecimentos principais e objetivos. Portanto, é em ação que se reconhece
sua afirmação de que “o procedimento de conhecer a linha lógica dos sentimentos
através da linha lógica da ação física justifica-se plenamente na prática”205.
3. 2 O UNIVERSO E A IDÉIA CENTRAL DA OBRA: AÇÕES, SITUAÇÕES E
CIRCUNSTÂNCIAS
A análise “racional” da obra fornece
conhecimento profundo do texto, por meio da
penetração na vida e nos acontecimentos da
obra que levam à compreensão e apreensão de
toda sua amplitude, da idéia principal que a
sustenta, o superobjetivo. Apreender a
totalidade do superobjetivo da obra significa
apreender a concepção do autor. Ele contém a
idéia e o tema da obra que são estabelecidos
pelo diretor preliminarmente ao trabalho de
experimentação com o ator. (DAGOSTINI,
2007, p. 49)
No segundo semestre de encenação, sob a orientação da Professora Mestre
Rozane Silva Cardoso206, a proposta era a de exercitar a capacidade de trabalhar com
elementos do espetáculo, através das relações do texto com o jogo cênico. Os alunos
eram orientados no como proceder a condução dos ensaios para a plasmação cênica
do material textual e para a comunicação da ideia central do texto, a partir dos
estudos sobre a vida e a obra do autor selecionado.
A turma era orientada em aula e depois cada aluno procedia a condução de seu
próprio ensaio, em horário alternativo. Ao final do semestre, cada aluno deveria
apresentar uma situação onde se concretizasse a ideia central da matéria textual
205
[...] el procedimiento de conocer la línea lógica de los sentimientos a través de la línea lógica de la
acción física se justifica plenamente en la práctica. (STANISLAVSKI, 1980, p. 208)
206
(In memorian). Graduada em Educação Artística Licenciatura Plena em Artes Cênicas pela UFSM/RS
(1992), Mestre em Ciência do Movimento Humano pela UFSM/RS (2001). Foi Professora Auxiliar do
Departamento de Artes Cênicas da UFSM/RS até o ano de 2007.
94
escolhida. Além da condução dos ensaios em aula, cada aluno/diretor recebia
orientação individual na condução da análise e estruturação das ações, situações e
circunstâncias do texto e nos estudos sobre a vida e obra do autor, com ênfase nas
características mais marcantes de sua obra, bem como o acompanhamento de dois
ensaios, um no começo do semestre para acompanhar os procedimentos de condução
do ensaio pelo diretor e outro ao final do semestre, de afinação da cena.
O estudo da vida e obra do autor facilita a comunicação cênica da ideia
central do texto, a definição de seu „universo‟:
O chamado universo da obra, o seu plano geral, universal, engloba toda a obra
e é também chamado de grande círculo. Este constitui o universo no qual a
história vai ser contada. Nesse grande círculo, nós detectamos e evidenciamos,
em primeiro plano, o acontecimento inicial e o acontecimento final, para se
estabelecerem como marcos, por sua “estabilidade”. Tudo o que ocorrer entre
esses dois acontecimentos é aquilo que poderíamos chamar de história, onde o
tema se desenvolve. O universo onde a história está inserida, marcado desde o
seu início, pode ser constituído de um ou mais acontecimentos, dependendo de
cada autor, da especificidade da obra em questão e de seu projeto
composicional.
Saber determinar o universo da obra, o solo no qual ela vai germinar e se
desenvolver, é de importância fundamental, pois é nele que as personagens
tecem a sua vida. Do entendimento multifacetado desse universo em seus
aspectos sociais, econômicos, políticos, culturais, existenciais, depende, em
grande parte, a complexidade da história. Esse universo deve ser concretizado
cenicamente, no espetáculo, através da construção dos acontecimentos ou
acontecimento inicial. Ele é o trilho onde a vida da obra passa a transcorrer, no
qual as personagens lutam, desejam, odeiam, amam, etc. (DAGOSTINI, 2007,
p. 50)
O autor escolhido por mim para o exercício daquele semestre foi Ariano
Suassuna, e o texto, O Auto da Compadecida. A história acontece no interior do
Nordeste brasileiro, uma terra seca, onde se desenrolam as peripécias de um homem
do povo chamado João Grilo, e seu inseparável amigo, Chicó, que vive inventando
histórias fantásticas para justificar seus medos e atitudes para escapar da miséria.
O universo que se apresenta ao analisarmos aspectos característicos da
realidade social do espaço cultural que alimenta esta obra de Ariano Suassuna, é o
mundo dos poderosos e dos oprimidos por eles, os graus de hierarquia dentro da
instituição “Igreja Católica” e o tráfico de influências entre o clero e os mantenedores do
poder capitalista imperante, contra os excluídos do sistema.
95
Os personagens são estereotipados e inseridos no realismo cotidiano, presos ao
protótipo do tipo regional, o quengo ardiloso, burlesco. Na peça ainda são
estigmatizados os servidores do clero e a burguesia local, posto que a estrutura social
está altamente hierarquizada. Há também os personagens alegóricos, advindos da
religiosidade medieval e regional, que configura uma visão de mundo binária, expressa
mediante seres sagrados, benfazejos e maléficos, representantes de concepções que
fazem parte do imaginário sertanejo. São eles: Palhaço(apresentador); João Grilo;
Chicó; Padre João; Major Antônio Morais; Sacristão; Padeiro; Mulher do Padeiro;
Bispo; Frade; Severino do Aracaju; Cangaceiro; Demônio; O Encourado (o diabo);
Manuel (Nosso Senhor Jesus Cristo); A Compadecida (Nossa Senhora).
João Grilo e Chicó são funcionários da padaria local e são mal pagos e
maltratados pelos patrões, ela uma mulher safada, adúltera, apegada aos bens
materiais e a seu animal de estimação e o marido, um total e completo objeto nas mãos
da esposa. O cachorro dela adoece e ela ameaça largar do marido se o cachorro
morrer, exigindo que o bicho seja abençoado pelo padre. João Grilo é quem, no fim das
contas, resolve o problema do benzimento do cachorro inventando um testamento para
o cachorro, onde o animal deixava para os membros do clero significativa quantia em
dinheiro. Com tudo planejado, João Grilo só precisa convencer o amigo a finalizar seu
plano para se vingar dos patrões. Quando a Mulher aparece para cumprir o testamento
do cachorro, ainda lamentando a perda do cachorro, João Grilo lhe oferece um gato
que “descome dinheiro”. Chicó busca o gato e a mulher se retira toda contente, pois
além de ter de novo um animal de estimação, vai poder recuperar as despesas com a
morte do cachorro. O Clero aparece para receber o dinheiro e eis que surgem Severino
do Aracaju, um temido cangaceiro e seu bando, que julgam, condenam e matam a
todos, menos João Grilo e Chicó, que os enganam com uma história de gaita mágica,
que ressuscita os mortos, arquitetada para matar a mulher e incriminar o padeiro,
quando estes viessem reclamar a compra do gato. A armação da gaita funciona e eles
matam os cangaceiros. Porém, num último suspiro um dos homens de Severino atira
em João Grilo, que também morre. A partir daí, a ação se desloca para o plano
espiritual, onde mais uma vez João Grilo demonstra toda a sua astúcia e consegue
negociar com o Diabo, Jesus e Nossa Senhora um bom fim para todos e para ele, é
96
claro, uma nova chance de voltar a vida e reencontrar seu amigo Chicó. De Volta, está
todo feliz porque pensa que está rico, mas logo Chicó lhe dá a notícia de que, para que
ele fosse salvo da morte, prometeu todo o dinheiro à Nossa Senhora.
A peça apresenta cenas na padaria, no pátio da igreja e no céu, com seus
personagens alegóricos. Vassalo (1993), em seus estudos sobre Ariano Suassuna
afirma que tais características em sua obra constituem signos relevantes da
medievalidade ainda presente na região, esquema implantado desde o início da
colonização e que perdurou até um passado recente. Além disso, o texto apresenta
inúmeros traços que o caracterizam como Épico: a ausência das três unidades formais,
estabelecidas por Aristóteles; o uso de prólogo e epílogo, monólogo e aparte; o
apresentador que se dirige ao público; o emprego da música e da ação trazida dos
bastidores bem como os personagens estereotipados. Ainda em acordo com Vassalo
(1993), a obra está classificada na categoria genérica da literatura épico-religiosa
medieval, no sentido em que por motivo ideológico anula as unidades temporais e
espaciais e funde o religioso e o profano. É um auto popular. Mostra prólogo em cada
ato, feito pelo apresentador que também se ocupa do epílogo. O terceiro ato se passa
no céu, em flagrante desrespeito à unidade de lugar. No texto, a saturação dos limites
de tolerância dos oprimidos com a exploração impingida pelo sistema, culmina na
concretização de um plano de vingança contra os maus tratos sofridos.
O acontecimento selecionado para apresentação do exercício deste segundo
semestre foi quando João Grilo tenta convencer o amigo a finalizar o plano de
vingança, motivada pelos maus tratos sofridos enquanto esteve doente, que culminaria
na morte dos patrões. A ação principal do acontecimento é a vingança de João Grilo; o
que promove a unidade de ação é a preparação da vingança definitiva contra os
patrões e demais mandatários da cidade e o entrelaçamento das ações fica por conta
das peripécias que advém das circunstâncias que se apresentam para que consiga o
determinado fim (a vingança). Os obstáculos enfrentados por João Grilo nesta tentativa
de vingança são o ceticismo, a relutância e o medo de Chicó, de quem necessita da
ajuda e a resistência da mulher em querer comprar o gato por causa das despesas,
além do maior deles, a luta pela sobrevivência, que é o conflito principal.
97
O personagem principal, João Grilo, encarna a figura do herói negativo,
sublimador das classes pobres, que se desforra no plano da sátira e da zombaria.
Contrapõe-se, segundo Vassalo (1993) aos valores da identificação ou modelos de
conduta e constitui um antimodelo paródico, posto que é um anti-herói. Cobre-se de
simpatia popular, que o desculpa pela falta de escrúpulos e pela ausência moral de
qualquer remorso. Analfabeto, pobre, inteligente e autoconfiante, autossuficiente, acha
que pode se livrar até mesmo do inferno; é louco por uma embrulhada, sente-se
explorado pelos patrões, pois recebe pouco, trabalha barato e bem, tendo consciência
de suas qualidades profissionais. Já passou fome e comeu macambira na seca, mas
sua grande reclamação é não ter recebido atendimento quando adoeceu, em contraste
com a total servidão ao cachorro de estimação da patroa à mesma época. Por outro
lado não é ladrão, mas defende-se como pode. Caracteriza-se pela atividade lúdica e
gratuita, que lhe advém das peripécias em que se intromete sem premeditação. Suas
soluções são sempre puramente individuais, a título de acerto de contas: quer se vingar
dos patrões que o ignoraram durante sua doença. No entanto não tem alma ruim.
Chicó, fiel escudeiro de João Grilo, por sua vez, é um contador de histórias fantásticas
(grandes mentiras). Para Vassalo (1993), representa o homem do Nordeste, em sua
pureza, com seus provérbios, fórmulas e crenças, por sua obstinação em sobreviver a
tudo e por sua incrível capacidade de adaptação. Supersticioso e pouco confiante está
sempre metido nas confusões armadas pelo amigo. Já teve um envolvimento com a
mulher do patrão, tipo social que representa as figuras da burguesia em ascensão e a
hierarquia social, com todas as suas barreiras. Prepotente, gananciosa, adúltera,
apegada ao dinheiro e totalmente dedicada aos animais, não gosta de gente e,
segundo ela mesma, tem medo da solidão.
Os atores foram Franciele Garzela como mulher do padeiro, Pablo Canalles
como Chicó e Ricardo Paim como João Grilo. O momento inicial girou em torno de João
Grilo convencer o amigo a se vingar dos patrões para enriquecer com o negócio da
padaria. A cena foi montada utilizando como proscênio diferentes níveis de palco e
escadas. A opção por este espaço para a encenação é decorrente do fato de o texto
não especificar um lugar de ação e de haver situações que acontecem no pátio da
Igreja, na Padaria, na rua e até no Céu. O fato de haver escadaria ascendente e
98
descendente e vários níveis, remete-nos às dualidades céu/inferno, ricos/pobres,
patrões/empregados, mandantes/subalternos, demonstrando as distâncias entre eles e
a possível derrocada dos poderosos e a ascensão dos oprimidos. O texto foi mantido
praticamente na íntegra, salvo adaptações necessárias para o claro entendimento da
situação pretendida.
Durante os ensaios, a ação proposta na improvisação do momento inicial foi a
troca de uma lâmpada. Os objetos disponibilizados aos atores foram a lâmpada e uma
escada dobrável. Pablo deveria ajudar Ricardo na troca, segurando a escada. Pablo
tinha por obstáculo o medo da eletricidade, enquanto que Ricardo, a falta de firmeza da
escada. Ricardo não poderia trocar a lâmpada se Pablo não segurasse a escada.
Quando convencia o amigo de participar do plano intelectual, conseguia finalizar a
tarefa física. Já a mulher tinha por objeto a coleira de seu animal de estimação morto,
que por vezes era usado como chicote, ilustrando o domínio da hierarquia social
exercido pela mulher.
3. 3 TOMANDO CONHECIMENTO DO MÉTODO NA ÍNTEGRA
A análise da obra por meio dos fatos e
acontecimentos atinge a essência do método,
pois possibilita a concretização da ação, que se
dá
através
da
determinação
dos
acontecimentos
seqüenciais.
Os
acontecimentos são o sustentáculo da ação e
através deles, de forma sucessiva, vivenciamos
tudo o que acontece na obra. O conhecimento
da obra, possibilitado pelo processo de
valorização dos fatos, transformados em
acontecimentos pelo diretor, constitui a matéria
da arte teatral. (DAGOSTINI, 2007, p. 43)
No terceiro semestre da Disciplina Encenação tomamos conhecimento do
Método da Análise Ativa. Embora já viéssemos trabalhando em acordo com seus
procedimentos há dois semestres, não tínhamos ciência disso.
99
A ementa da Disciplina foi elaborada pela Profª. Drª. Nair Dagostini, que foi a
„titular da cadeira‟ até o ano de 1999207, e propunha desenvolver a capacidade de
interpretar e analisar a obra dramática em seus elementos estruturais e ativos e
proporcionar ao aluno diretor/ator o exercício da criação cênica. Foi ministrada na forma
de seminários com exposição oral nos quais realizou-se a análise teórica208 de Romeu e
Julieta, de William Shakespeare (1564-1616), e do conto A Feiticeira, de Anton Tchekov
(1860-1904).
Tive o privilégio de assistir por duas vezes o seminário de aproximação téorica
ao método, no ano 2000, quando cursei Encenação III e como ouvinte no ano de 2001,
anos nos quais a parte prática da Disciplina foi orientada pelas Professoras Mestres
Adriane Maciel Gomes e Rozane Silva Cardoso, respectivamente.
Posteriormente, nos anos de 2004 e 2005, como professor colaborador pude
aprimorar meu conhecimento do método orientando a Disciplina Encenação III, por
indicação da Profª. Ms. Rozane, que havia sido minha orientadora no processo de
graduação em Direção. Trabalhei praticamente repetindo os estudos teóricos conforme
recebidos da Profª Nair. Procedi inicialmente com a análise dos textos para a
transmissão do conhecimento teórico do método e, posteriormente, com a orientação
prática dos ensaios de cada orientando, que foi responsável por montar um
acontecimento da obra Romeu e Julieta. Os acontecimentos foram apresentados
publicamente, seguindo sua ordem para o público poder acompanhar o desenrolar da
história sequenciadamente. A experiência pode ser conferida em vídeo, no acervo da
Videoteca do Curso de Artes Cênicas da UFSM.
Como a disciplina compunha os currículos de Interpretação e Direção, era
ministrada tanto para alunos/atores como para alunos/diretores, com o conteúdo
dividido em 4 unidades – para uma melhor compreensão do mesmo – mas trata-se de
etapas de um processo único, ou que faz referência à unidade da obra analisada.
207
A transmissão do conhecimento do método para a análise do material textual continuou na forma de
seminário ministrado por Dagostini até o ano de 2003, com orientação prática da Profª. Ms. Rozane Silva
Cardoso. Participei como ator de um dos exercícios cênicos da turma de 1999, último ano em que a parte
prática da disciplina foi orientada por Dagostini. Naquele ano, o texto analisado e distribuído entre os
alunos para o exercício de encenação foi O Nariz, de Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852).
208
Situacional e não psicológica nem literária.
100
A abordagem nas 3 primeiras unidades debatidas em aula era teórica, diz
respeito ao Diretor/Encenador e sua aproximação à obra dramatúrgica e ao
embasamento de sua concepção em relação à ideia do autor da obra. Do ponto de vista
do diretor, a análise é sempre ativa, mesmo teórica, pois é a partir dela que se
estabelecem as relações entre a obra dramatúrgica ou proposta de montagem e a
montagem em si. Para a análise do texto implicam os conceitos de Circunstância Dada
(Inicial e Principal) e de Linha Transversal de Ação; a divisão da obra em seus
acontecimentos principais – Inicial, Fundamental, Central e Final – e sua nomeação, o
esclarecimento do Tema e da Idéia da obra em acordo com a teoria proposta por
Stanislávski, a determinação dos objetivos e conflitos e os reconhecimentos e
mudanças nas relações dos personagens; a constituição do “romance de vida” da obra
e dos personagens, a narração e descrição de suas ações motivacionais, o subtexto.
Subsequentemente na quarta e última unidade, a esfera prática, que trata da
relação Ator/Diretor, a da concretização cênica do texto dramático, era orientada
individualmente com cada aluno e seu grupo de atores209. Os diretores procediam com
seus atores a experimentação psicofísica dos acontecimentos do texto.
3. 3. 1 A ANÁLISE ATIVA E SEUS PROCEDIMENTOS
O método da Análise Ativa foi desenvolvido por Stanislávski ao final de sua vida.
É a síntese de árduo trabalho como ator, diretor e pedagogo e de seu pensamento
artístico legado e desenvolvido por alguns de seus discípulos na Rússia, principalmente
por Maria Osípovna Knébel, em Moscou210, e, posteriormente, por Gueórgui
Tovstonógov, seu aluno, em Leningrado211 (hoje São Petersburgo). O trabalho de ambos
é o mais significativo no que tange à Análise Ativa e a partir de suas abordagens é que
surgem as possíveis variantes. O Método da Análise Ativa é um mecanismo destinado
ao diretor ou, mais exatamente, para o diretor e o ator trabalharem em cooperação.
209
Todos precisavam apresentar cenicamente uma situação dramática completa ao final do semestre,
dirigindo sua própria montagem e atuando na montagem de algum colega.
210
GITIS – Instituto Estatal de Arte Teatral de Moscou A. V. Lunatchrski. Em 1991 passou a ser chamada
RATI – Academia Russa de Arte Teatral.
211
LGITMiK - Instituto Estatal de Teatro, Música e Cinema de Leningrado N. K. Cherkacov. Em 1993
passou a ser denominada Academia Estatal de Arte Teatral de São Petersburgo – SPGATI.
101
Conforme exposto por Dagostini (2000), a Análise Ativa é “(...) a estrutura do texto
através da ação. Nos leva a descobrir a situação que está por trás das palavras” 212.
O Método compreende duas instâncias específicas, a prática e a teórica; pode-se
dizer que com ela é possível atingir a totalidade da obra dramatúrgica, seu „corpo‟ e
„alma‟ personificados no espetáculo teatral.
Os dois pedagogos do teatro citados acima são os representantes destas duas
instâncias do método, como se pode inferir a partir de seus escritos e práticas
individuais, um de um ponto de vista mais teórico (Tovstonógov), que orientava
diretores, e outra do ponto de vista mais prático (Knébel)
213
, pedagoga de atores. De
qualquer forma, faces da mesma moeda.
A divisão da peça ou texto em partes é o primeiro procedimento do diretor no
método de Análise Ativa. O procedimento de separação dos acontecimentos é descrito
no romance de Stanislávski (1980, p. 165-180), numa analogia com a divisão de um
peru assado durante um almoço. Na divisão da obra, o método da Análise Ativa
contempla a estrutura dramatúrgica clássica ao reproduzir sua estrutura:
São quatro os acontecimentos considerados essenciais no universo da obra e
que devem ser identificados para que se possa ter uma visão geral da mesma:
o acontecimento inicial, que nos situa no contexto onde vai eclodir o
problema, e que inicia a principal circunstância dada; o acontecimento
fundamental, determinado pela principal circunstância dada que deslancha a
história; o tema, em que inicia a linha transversal da ação, que carrega e une
em um único fio todas as ações dos acontecimentos sequenciais que compõem
a história; o acontecimento central, que deve constituir o ápice do conflito, o
clímax, o fim da linha transversal da ação; o acontecimento final, também
chamado de principal, pois ele abrange a solução ou não do conflito. Nele deve
desembocar a ideia graças à qual o autor escreveu a obra, consciente ou
214
inconscientemente, junto com o superobjetivo do diretor. (DAGOSTINI, 2007,
P. 50)
Stanislávski (1989, p. 206) fala também da importância da “arte de revelar com
nitidez o enredo da peça, a sua ação externa”, e lembra que não raras vezes assistimos
peças sem entender com clareza “a sequência dos acontecimentos e sua
interdependência básica. E isso é o primeiro que deve ser destacado na peça, senão
212
D‟AGOSTINI, Seminário “Teoria do Espetáculo e Estética Aplicada”, março de 2000.
Refiro-me ao modo de transmissão do conhecimento teórico do método segundo a ênfase de
Tovstonógov na direção e da importância atribuída por Knébel (1991, 1996) enquanto pedagoga de
atores aos études, que nada mais são senão as improvisações sugeridas pelo diretor a partir da análise.
Ambos pedagogos tem amplo espectro prático em seus trabalhos.
214
Grifos meus.
213
102
fica difícil falar do seu aspecto interno.” Isso, dito em relação ao público e, se parece
difícil ao público a falta de sequência nos acontecimentos, imagine a falta de lógica e
coerência para o ator em cena. Ao discorrer sobre a importância da análise da obra
pelo diretor, Dagostini (2007, p. 49) fala ser fundamental o conhecimento da estrutura
dramatúrgica da obra, pois é isso que possibilita ao diretor “antever” e “intuir” o
superobjetivo e a ação transversal.
Nair D‟Agostini (2007, p. 26), fiel ao mestre russo, ao discorrer sobre o
superobjetivo diz que “é ele que movimenta todas as forças psìquicas, elementos,
ações e atitudes dos atores em suas personagens. é um dos elementos fundamentais
do “sistema” para a atitude do diretor diante da análise da obra, para a concretização do
espetáculo e para o ator na criação do papel”. É o superobjetivo que deverá orientar
todo o trabalho do diretor e do ator na concretização do espetáculo e ele não está de
forma alguma determinado ou preso a padrões estéticos. Nas palavras de Stanislávski
(1980, p.320):
Assim como da semente nasce uma planta, de uma ideia ou sentimento próprio
do escritor brota sua obra. Suas ideias, sentimentos e sonhos percorrem como
uma linha vermelha toda sua vida e o guiam durante a criação. Servem-lhe de
base, e desse gérmen brota sua produção literária; juntamente com suas dores
e alegrias, constituem o motivo pelo qual empunha a caneta. Transmitir todo
esse material espiritual é o principal objetivo do espetáculo. De agora em diante
convencionaremos chamar a esse fim essencial, que mobiliza todas as forças
psíquicas e elementos das atitudes do ator em seu personagem de o
215
superobjetivo da obra. (STANISLAVSKI, 1980, p. 320)
Como vimos, em O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo no Processo das
Vivências, Stanislávski (1980, p. 320), assinala que o principal objetivo do diretor e do
ator através do espetáculo é transmitir o material espiritual que o autor imprime a sua
obra, sua motivação ao escrevê-la, o que ele denomina o “superobjetivo”. Em O
Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo no Processo da Encarnação, Stanislávski (1983, p.
257-258) amplia a responsabilidade da aproximação ao superobjetivo para todas as
215
Así como del grano nace la planta, de una idea o sentimiento particular del escritor brota su obra. Sus
ideas, sentimientos y sueños recorren como un hilo rojo toda su vida y lo guían durante la creación. Le
sirven de base, y de esse germen brota su producción literaria; juntamente com sus penas y alegrias,
constituyen el motivo por el cual toma la pluma. Trasmitir todo este material espiritual es el objetivo
principal del espectáculo. De ahora en adelante convendremos en llamar a este fin essencial, que
moviliza a todas las fuerzas psíquicas y elementos de la actitud del actor en su personaje. el
superobjetivo de la obra. (STANISLAVSKI, 1980, p. 320)
103
pessoas envolvidas no processo de trabalho e reitera o objetivo do artista
(ator/diretor/equipe técnica) estendendo-o para a arte teatral, praticamente nos mesmos
termos usados no livro sobre as Vivências, reforçando a importância deste conceito em
sua teoria:
O objetivo do teatro é criar a vida interior da obra e do personagem e a
plasmação cênica do núcleo fundamental e da ideia que fizeram nascer a
criação do poeta e do compositor. Cada trabalhador do teatro, começando pelo
porteiro, o encarregado do guarda-roupa, o bilheteiro, o caixa, com os quais se
encontra primeiro o espectador que vem para nos ver, e terminando pela
administração, a inspeção, a direção e finalmente, os artistas, que são cocriadores do poeta e do compositor, por cuja obra se reuniu o público, todos
servem ao fim fundamental da arte e estão integralmente subordinados a ele.
Todos, sem exceções, são participantes do espetáculo. (STANISLAVSKI, 1983,
216
p. 257)
Em nota, o tradutor Salomón Merener chama a atenção para uma variante
posterior desta mesma passagem, que consta dos arquivos de Stanislávski em Moscou:
O objetivo essencial de nossa arte consiste em criar a vida humana interior dos
personagens da obra e em personificar artisticamente esta vida na cena. Todos
os que trabalham no teatro, sem exceção, estão obrigados a ajudar em tal ou
qual medida para que se consiga este objetivo essencial da arte e do
217
espetáculo. (STANISLAVSKI, 1983, p. 257, nota 11)
A Análise Ativa oferece, na qualidade de condutor do processo criativo do ator,
um meio de acessar a integralidade psicofísica na utilização de seu aparato em cena,
no estabelecimento de uma dramaturgia do espetáculo.
Além de se mostrar um
excelente conector entre o imaginário do ator e a realidade ficcional, a Análise Ativa se
apresenta como uma alternativa de ordenação dramatúrgica para os mais diversos
gêneros literários. Isso oferece, no meu entendimento, uma maior possibilidade de
plasmação cênica em relação aos experimentos que não se apoiam nesse
216
El objetivo del teatro es crear la vida interior de la obra y del personaje y la encarnación escénica del
núcleo fundamental y de la idea que hicieron nacer la creación del poeta y del compositor. Cada
trabajador del teatro, empezando por el portero, el encargado del guardarropa, el taquillero, el cajero, con
los que primero se encuentra el espectador que viene a vernos, y terminando por la administración, la
intendência, el director y finalmente, los mismos artistas, que son co-creadores del poeta y el compositor,
por cuya obra se ha reunido el público, todos sirven al fin fundamental del arte y están íntegramente
subordinados a él. Todos, sin excepción, son participantes del espectáculo. (STANISLAVSKI, 1983, p.
257)
217
El objetivo essencial de nuestro arte consiste en crear la vida humana interior de los personajes de la
obra y en encarnar artisticamente esta vida en la escena.Todos los que trabajan en el teatro, sin
excepción, están obligados a ayudar en tal o cual medida que se consiga este objetivo essencial del arte
y del espectáculo. (STANISLAVSKI, 1983, p. 257, nota 11)
104
procedimento. Com isso, o diretor, homem de teatro, pode apropriar-se do elemento
dramático do texto para a construção da dramaturgia do espetáculo, bem como fugir
dos psicologismos e clichês geralmente associados à utilização do „Sistema
Stanislávski‟.
Quando executa o esquema teórico da Análise, o diretor vai se imbuindo do
material que irá se condensar e dar a forma e a unidade do espetáculo.
Nesta
aproximação inicial o diretor deve estudar, além do texto em si, o autor e seu período,
não para uma reconstrução histórica de cenários e figurinos, mas para melhor entender
as expressões utilizadas pelo autor, o que ele realmente quis dizer com o que disse,
para familiarizar-se com o universo da obra e com a ideia central que ela carrega. É
claro que nesta tarefa são muitos os fatores que influenciam na profundidade a que a
Análise pode chegar: o grau de informação que se tem acerca do tema tratado modifica
o resultado, bem como a vivência da pessoa que a realiza. As circunstâncias estão
dadas pelo autor, no caso de um texto, ou pelos atores, no caso de improvisação
temática, e dependendo do ponto de vista que se as observam, elas tomam novas
cores.
O primeiro passo da Análise Ativa é dividir o texto em partes menores, chamadas
„Acontecimentos‟. O critério para a definição dos acontecimentos é o cerne da
estrutura dita dramática, de causa e consequência – início, desenvolvimento, clímax e
final. Em cada acontecimento se tem definidos estes quatro momentos
denominados Momento Inicial, Momento Fundamental, Momento Central e
Momento Final. Em cada acontecimento são identificados os personagens, sua ação,
seus objetivos imediatos e também sua contra ação, o obstáculo que determina sua luta
para atingir o superobjetivo, aquilo para que o personagem foi escrito. Como num
fractal, esta mesma estrutura se repete no todo. Separados os acontecimentos,
detecta-se qual deles corresponde, no texto, ao Acontecimento Inicial; identifica-se
onde está a Principal Circunstância Dada, e ali será o Acontecimento Fundamental;
em
sequência
o
Acontecimento
Central
e
o
Acontecimento
Final.
No
Acontecimento Inicial encontra-se a Circunstância inicial, que define o Universo,
que deve obrigatoriamente ser antagônico à Principal Circunstância Dada, onde
surge o Tema. A Principal Circunstância Dada marca o início da Linha Transversal de
105
Ação, que é “o caminho por onde o superobjetivo se afirma ao longo da obra”
(DAGOSTINI, 2007, p. 31-32)218. Cada acontecimento possui seu caráter objetivo e
subjetivo, e é a trama baseada no ponto de vista individual do diretor e que o ajuda a se
aproximar das circunstâncias dadas, da linha transversal de ação e do superobjetivo da
peça.
Depois de dividido o texto, cada acontecimento é analisado em separado,
buscando seu Objetivo, a Circunstância Dada que o gerou, a identificação dos
personagens que nele estão envolvidos, seus objetivos e ações219. A estrutura dos
acontecimentos da peça é o núcleo do método da análise ativa. Dentre os
acontecimentos, determina-se quais são os acontecimentos principais –
inicial;
fundamental; central e final. Da união do Universo (Acontecimento Anterior), do Tema
(que surge com a Principal Circunstância Dada [P.C.D.]), da Linha Transversal de Ação
(que inicia no Acontecimento Fundamental no qual está a P.C.D.) e do Acontecimento
Final, obtém-se a Idéia do texto. Nas palavras de Dagostini (2007, p. 50):
Ao determinar a estrutura básica da obra, o diretor já tem condições de
vislumbrar o tema e a idéia da obra, mas é aconselhável não os formular
ainda. A análise detalhada de cada acontecimento exige do diretor a seleção
exata da circunstância única que o determina, a qual dá origem ao
acontecimento e, conseqüentemente, gera o conflito entre todas as
personagens que dele participam.
Em cada acontecimento, além de ser determinada a circunstância que lhe deu
origem, deve ser desvendado o objetivo do mesmo para a história, no projeto
de composição do autor, as personagens que participam dele, seus objetivos e
obstáculos. A circunstância e o acontecimento devem abarcar todas as
personagens que estão envolvidas no conflito naquele determinado momento.
(DAGOSTINI, 2007, p. 50)
Stanislávski (1980, p. 177), chama a atenção para a escolha acertada na
denominação dos acontecimentos e dos objetivos de cada um deles. Os
acontecimentos devem sempre ser nomeados por um verbo de ação substantivado,
ou então, por um provérbio ou dito popular, que deverá contemplar a “essência interior”
do acontecimento, o que ele realmente quer dizer, o que está por detrás das palavras.
Enquanto o diretor procura a palavra mais acertada, “ao mesmo tempo sonda e estuda
218
Os conceitos de “superobjetivo”, “linha transversal de ação” e “circunstâncias dadas” são esclarecidos
por DAGOSTINI, 2007, p. 26-35.
219
A descrição do processo de Análise Ativa da estrutura da obra é descrita por DAGOSTINI, 2007, p.
49-57.
106
o pedaço [do texto], o cristaliza, obtém sua síntese. Na escolha do nome se encontra o
próprio objetivo. Uma denominação correta, que determina a essência do fragmento,
descobre o seu objetivo oculto”220. Uma nomeação “precisa” atribui “força e importância”
ao acontecimento, reforça Stanislávski (1980, p. 323): “[...] dissemos também que a
troca do substantivo por um verbo, reforça o ímpeto da aspiração criadora. Estas
condições se manifestam em grau ainda maior na denominação verbal do
superobjetivo”221.
A concretização desse trabalho exige um esforço imenso do diretor, pois, além
do entendimento coerente das personagens com aquilo que o autor
fornece na obra, é necessário, para preencher os vazios da mesma, uma
grande imaginação. Considerada esta a principal força do diretor, que
deve ser coerente com o cerne das personagens e do universo em que
222
elas estão inseridas : o mundo cultural, artístico, econômico, político,
histórico, costumes, mentalidade da época, etc. O diretor tem que realizar um
grande trabalho de preparação que ultrapasse a primeira visão, adquirindo “um
enfoque imaginativo” do texto, próprio de um artista. (DAGOSTINI, 2007, p. 37)
De posse da Análise Ativa, o diretor, de uso dos verbos utilizados para a
nomeação de cada situação, apresenta aos atores uma proposta de jogo
improvisacional, levando em conta o objetivo de cada personagem. Segundo a
Professora Nair D‟Agostini, a partir da análise do texto, o ator realiza études sobre as
situações do texto - ou tangenciais a este223 - que é dividido em unidades de ação e
motivação. Ele investiga ações físicas em circunstâncias e situações que viabilizem a
composição do personagem através de partituras de ações. Constrói uma linha
contínua de ações físicas através de uma partitura, justificadas pelo objetivo. Cria uma
dramaturgia interna própria pelo pensamento e ação (subtexto) que gera um texto
próximo àquele construído pelo autor, através da visualização ativa das falas
construídas. A ação psicofísica se compõe de todos os elementos da ação (são as leis
orgânicas e a percepção) e o subtexto é o resultado do uso de todos esses elementos.
220
[...] al mismo tempo sondea y estudia el trozo, lo cristaliza y hace su sínteses. En la elección del
nombre se encuentra el objetivo mismo. Uma denominación correcta, que determina la esencia del
fragmento, descubre el objetivo que encierra. (STANISLAVSKI 1980, p. 177)
221
[...] dijimos también que el remplazo del substantivo por un verbo refuerza el ímpetu de la aspiración
credora. Estas condiciones se manifiestan em grado aun mayor durante la denominación verbal del
superobjetivo. (STANISLAVSKI 1980, p. 177)
222
Grifos meus.
223
Situações tangenciais são as referências no texto sobre o passado dos acontecimentos, não explícitos,
que devem ser construídos com o ator.
107
As ações físicas estimulam as emoções, o inconsciente, onde o aparato físico está
totalmente relacionado com o mental.
Em acordo com a exposição oral de Dagostini, Tovstonógov demarca três
círculos de circunstâncias – o GRANDE (relacionado com o superobjetivo e ultrapassa
os limites da peça – o contexto do diretor e sua equipe), o MÉDIO (estritamente
relacionado com as circunstâncias e com a linha transversal de ação da peça) e os
PEQUENOS (relativos aos acontecimento localizados e com a ação local). Analisando a
peça, o diretor vai do geral (grande círculo) para o específico (pequeno círculo), e
depois retorna ao geral. O grande círculo é o universo da peça, enquanto que o médio
círculo é o padrão de inter-relações das pessoas dentro desse universo. A Linha
Transversal de Ação demarca o inìcio e fim do „médio cìrculo‟ e os Acontecimentos são
os „pequenos cìrculos.
Depois de realizada a análise da peça pelo diretor, isso não significa que ele
deva falar sobre os resultados dessa análise com seus atores. Conforme Dagostini,
Tovstonógov aconselha os diretores a manter o ator dentro do pequeno círculo de
circunstâncias e dar a ele um impulso para começar uma ação concreta dentro do
acontecimento local. Esse procedimento irá manter o diretor dentro de seus próprios
tema e idéia, e vai deixar essa idéia (superobjetivo) desenvolver-se através do conflito
dramático e do conjunto dos acontecimentos, que estão todos interrelacionados.
Seguindo as postulações de Stanislávski, Tovstonógov sugere começar com a
determinação do tema e da idéia da montagem, bem como com a criação do “romance
da vida”224 (o “passado, presente e futuro” de Stanislávski) – com a recriação detalhada
da vida do personagem. Em acordo com Dagostini:
Tovstonógov aconselha a não partir imediatamente para a fase analítica da
estrutura da ação, mas desvendar a vida da peça, entrar no universo das
personagens, situar-se no mundo delas, perscrutar seus desejos, suas alegrias,
tristezas, conflitos, amores, ódios, relações e inter-relações. Esse processo de
envolvimento com a vida da obra é concretizado através da chamada criação
da “novela da vida” da obra, na qual o diretor completa todas as informações
que estão ausentes na mesma, do passado, do presente e até do futuro das
personagens. (DAGOSTINI, 2007, p. 37)
224
A Drª. Nair Dagostini utiliza também o termo “novela da vida” da obra. (DAGOSTINI, 2007, p. 37)
108
O “romance da vida” faz com que o diretor possa “entender os motivos dos atos
e das ações das personagens”, justificando cada mudança na ação e nos “ínfimos
movimentos da alma”.
Ainda em conformidade com Dagostini (2007, p. 38),
“penetrando através dos fatos, da fábula, que se dão na superfície ou no
comportamento das personagens” o diretor pode decifrar a natureza interna do conflito.
Para ela, as respostas às perguntas “que surgem durante o processo de criação do
“romance da vida”, vêm do maior entendimento da vida das personagens”:
[...] O diretor deve realizar um estudo detalhado da vida dessa obra, das
personagens, para, só depois, determinar os acontecimentos, as circunstâncias
dadas, idéia, o tema, a linha transversal de ação, os objetivos, etc.
Somente depois de o diretor ter realizado essa importante etapa do estudo do
texto, “o romance da vida”, o qual possibilita ao diretor dialogar com o autor,
explicando zonas obscuras da obra e, decifrar, nos próprios acontecimentos, a
natureza interna dos motivos das personagens, pode passar para a análise da
estrutura dessa obra, determinando, assim, os acontecimentos, as
circunstâncias e os demais elementos que constituem a ação e a composição
da mesma. (DAGOSTINI, 2007, P. 38-39)
O universo da peça está sempre „prenhe‟ do conflito e gradualmente esse conflito
cresce e então ocorre o choque da circunstância dada inicial com a principal
circunstância dada. Este conflito toma o seu lugar no acontecimento fundamental. Por
exemplo, em “Romeu e Julieta” o acontecimento inicial é a inimizade entre as famílias.
Aqui a circunstância inicial, ou o universo (de hostilidade e de ódio) se revela. Neste
universo, Romeu, que está apto para o amor, decide que vai ao baile organizado pelo
inimigo de seu pai e se apaixona por Julieta – o acontecimento fundamental da peça.
Dessa forma acontece o choque da circunstância dada inicial e da principal
circunstância dada – o amor entre os filhos de duas famílias rivais. Eis de onde surge a
linha transversal de ação, a luta pelo direito de amar. O próximo passo no conflito é o
acontecimento central, a morte dos apaixonados. Todos os conflitos são expostos, o
retorno de Romeu do exílio, o casamento às escondidas. Aqui termina a linha
transversal de ação; Os jovens amantes estão mortos, não há ninguém para lutar pelo
amor. Na sequência temos o acontecimento final. O universo ainda ecoa os
acontecimentos anteriores. Montecchio e Capuletto se reconciliam ou talvez só
estabeleçam uma trégua momentânea.
109
Para ilustrar o processo descrito com Romeu e Julieta, utilizo o texto escolhido
para o exercício deste terceiro semestre de Encenação, a crônica Enquanto Dure, das
Comédias da Vida Privada, de Luís Fernando Veríssimo225. Apresento a seguir a
divisão do texto em acontecimentos em acordo com a teoria da Análise Ativa. No caso
específico de Enquanto Dure, temos somente os quatro acontecimentos principais,
estando o acontecimento central dividido em dois momentos.
3. 3. 2 O TEXTO E SEUS ACONTECIMENTOS PRINCIPAIS: UM EXEMPLO
1º ACONTECIMENTO: Separação (Universo – Circunstância Inicial)
Acontecimento Inicial: Desgaste do relacionamento.
Circunstância Dada: A divisão dos bens.
“Depois da separação veio aquele momento difícil que é o da divisão das coisas.
Tudo o que eles tinham acumulado juntos, ou trazido das suas vidas separadas para
compartilharem, de repente, precisava ser reidentificado como “Meu” ou “Seu”. Mais
prática, como sempre, Taís já tinha tudo organizado quando José Eduardo chegou no
apartamento.”
2º ACONTECIMENTO: Reencontro (Acontecimento Fundamental – P. C. D.)
Acontecimento Inicial: Separação
Circunstância Dada: Chegada de José Eduardo
“– Esta pilha aqui é das minhas coisas, essa pilha é das suas coisas, esta caixa
é para as coisas que vão fora.
– Me parece justo.
– Como, “justo”? Não tem nada a ver com justiça. O que é meu é meu e o que é
seu é seu. Isto não é redistribuição de renda.
– Me expressei mal. Desculpe. Não quis dizer “justo”. Quis dizer “tá”. De acordo.
– Se fosse uma questão de justiça, eu é que tinha que reclamar. Sua pilha é
muito maior do que a minha.
– Está certo, Taís.
225
VERÍSSIMO, Luis Fernando. Comédias da Vida Privada. Porto Alegre : L & PM Ed., 1994.
110
– O que você tinha de papel velho... Só de suplemento cultural guardado para ler
depois tem mais de um metro.
– Está bem, Taís.
– Você quer a Efigênia?
Era uma pequena escultura, um busto de mulher que ele apelidara de Efigênia.
– Não, não.
– Você sempre gostou dela.
– Pode ficar.
– Alguma coisa da cozinha?
– Não.
– A mostarda?
– Não. Nada. Bom, talvez aquelas alcaparras italianas.
– Que alcaparras italianas?
– Aquele vidrinho. As alcaparras pequeninhas.
– José Eduardo, aquele vidrinho acabou há mais de um ano.
– É? Então não quero nada.
– Você quer examinar a minha pilha?”
3º ACONTECIMENTO: O Desacordo (Acontecimento Central)
Acontecimento Inicial: Divisão dos bens
Circunstância Dada: Possível desconfiança de José Eduardo quanto à divisão
1º Momento: Impasse.
“– Não precisa, eu... Espera aí. Esse Vinícius de Moraes é meu.
– É meu.
– Não senhora. Tenho certeza de ter comprado esse livro. Lembro até a livraria.
– Eu ganhei esse livro, José Eduardo.
– De quem?
– Não me lembro.
– Arrá!
– Como “arrá”?
111
– Arrá. A, erre, erre, a. Você não lembra porque não ganhou de ninguém. O livro
é meu.
Taís não disse nada. Pegou o livro da sua pilha, irritada, e abriu na primeira
página.
– Está aqui. Tem até dedicatória. “Taìs. Que o nosso amor seja eterno enquanto
dure. Um beijo carinhoso do...”
Ela parou. Ele perguntou:
– Quem?
Taís hesitou. Depois respondeu.
– Você.
– Eu?!
– Você me deu o livro. Vinte de outubro de 86. Nós éramos namorados.”
2º Momento: Possibilidade de reconciliação.
“Ele pegou o livro das mãos dela, leu a dedicatória, depois fechou o livro e
recolocou na pilha. Os dois ficaram em silêncio, emocionados. Ela foi olhar pela janela,
para disfarçar. Ele espiou dentro da caixa de coisas que iam fora, só para ter o que
fazer.”
4º ACONTECIMENTO: Indignação (Acontecimento Final)
Acontecimento Inicial: Desconforto/Recaída
Circunstância Dada: O time de botão no lixo
“– Taís! Meu time de botão!
– O quê?!
– Você ia botar meu time de botão no lixo!
– Francamente, José Eduardo. Estava no fundo do armário.
– Olha aqui! Olha aqui!
Ele tinha resgatado um botão de dentro da caixa e o brandia como prova
acusatória.
– O Rivelino! Você ia jogar fora o Rivelino!
112
3. 3. 3 ESQUEMA DA „ANÁLISE ATIVA‟ DO TEXTO
Nº 1 - Acontecimento: SEPARAÇÃO
Palavras-chave: “Tudo o que eles tinham acumulado juntos, ou trazido das suas
vidas separadas para compartilharem, de repente, precisava ser reidentificado como
“Meu” ou “Seu”.”.
Objetivo do Acontecimento: Apresentar o Universo do texto.
Circunstância dada que gerou o acontecimento: A divisão dos bens.
Objetivo de Taís: Reidentificar o que é dela e o que é do ex-marido.
Obstáculo de Taís: Saber o que é de quem.
Ação de Taís: Dividir; Separar; Organizar; Esperar.
Nº 2 - Acontecimento: REENCONTRO
Palavras-chave: “– Esta pilha aqui é das minhas coisas, essa pilha é das suas
coisas, esta caixa é para as coisas que vão fora.”
Objetivo do Acontecimento: Possibilitar um acordo.
Circunstância dada que gerou o acontecimento: A chegada de José Eduardo.
Objetivo de Taís: Mostrar sua organização.
Obstáculo de Taís: O descaso de José Eduardo com a situação.
Ação de Taís:Reencontrar; Mostrar; Discutir; Argumentar.
Objetivo de José Eduardo: Pegar seus pertences.
Obstáculo de José Eduardo: A insistência de Taís em discutir a divisão.
Ação de José Eduardo: Chegar; Observar; Reecontrar; Aceitar.
Nº 3- Acontecimento: O DESACORDO.
1º Momento:Impasse
Palavras-chave: “– Não precisa, eu... Espera aí. Esse Vinícius de Moraes é meu.
– É meu. – Não senhora. Tenho certeza de ter comprado esse livro. Lembro até
a livraria. – Eu ganhei esse livro, José Eduardo”.
113
2º Momento: Possibilidade de reconciliação
Palavras-chave: “Ela foi olhar pela janela, para disfarçar. Ele espiou dentro da
caixa de coisas que iam fora, só para ter o que fazer.”
Objetivo do Acontecimento: Mostrar que a reconcialiação é possível.
Circunstância dada que gerou o acontecimento: A possível desconfiaça de José
Eduardo com relação à posse do livro.
Objetivo de Taís: Comprovar que o livro é seu.
Obstáculo de Taís: José Eduardo.
Ação de Taís: Disputar; Discordar; Ler; Argumentar; Lembrar.
Objetivo de José Eduardo: Comprovar a posse do livro.
Obstáculo de José Eduardo: Taís.
Ação de José Eduardo: Recolocar; Ler; Espiar; Surpreender, Disputar;
Concordar; Lembrar; Disfarçar.
Nº 4 - Acontecimento: INDIGNAÇÃO
Palavras-chave: “– Você ia botar meu time de botão no lixo! – Francamente, José
Eduardo. Estava no fundo do armário. – Olha aqui! Olha aqui!”
Objetivo do Acontecimento: Mostrar que mesmo reconcialiados, as diferenças
continuam.
Circunstância dada que gerou o acontecimento: O time de botão no lixo.
Objetivo de Taís: Mostrar que a culpa pelo fim do relacionamento é do outro.
Obstáculo de Taís: Indignação e insistência de José Eduardo.
Ação de Taís: Esclarecer; Discutir; Disputar;
Objetivo de José Eduardo: Responsabilizar as ações de Taís pelo fim do
relacionamento.
Obstáculo de José Eduardo: O pouco caso de Taís.
Ação de José Eduardo: Questionar; Disputar; Discutir.
IDÉIA: Num mundo de relações matrimoniais conflituosas, a luta pela determinação da
propriedade e da identidade pessoal, reaproxima as pessoas e gera novos conflitos. O
gráfico abaixo, elaborado a partir das indicações de Dagostini obtidas no Seminário de
114
conhecimento teórico do Método da Análise Ativa, na graduação, demonstra os círculos
circunstanciais do texto Enquanto Dure:
Acontecimento Inicial
Acontecimento Fundamental
Circunstância Incial
Principal Circunstância Dada
Acontecimento Central
L
I
N
H
A
T
R
A
N
S
V
E
R
S
A
L
D
E
A
Ç
Ã
O
Acontecimento Final
Na montagem da crônica utilizei como objetos de cena diversas malas de
tamanhos e cores diferentes, que a atriz ia trazendo ou jogando na cena e dividindo de
acordo com as indicações do texto, tomando mais cuidado com aquelas que seriam as
suas e sendo menos cuidadosa com as malas que seriam do marido.
A relação estabelecida pela atriz com as malas, ora jogadas, ora chutadas ou
colocadas com cuidado dava o tom cômico dessa apresentação do universo da
separação e deixava claro qual monte era de quem. Seu metodismo na arrumação de
suas malas dava pistas sobre seu caráter e o motivo das possíveis desavenças com o
marido. Os atores foram Aline Castaman e Joel Cambraia Machado, meus colegas de
turma. Inicialmente, trabalhei com uma atriz iniciante, mas ela precisou ser substituída
pouco antes da apresentação pública porque apresentou muitas dificuldades em atuar,
pois ainda não dominava a psicotécnica, prerrogativa para uma atuação orgânica. Seu
problema foi, no meu entender, a dificuldade em usar a imaginação e em adaptar as
115
ações concretas de manipulação das malas ao universo ficcional. Não era possível
afinar a cena de modo convincente, sem que o que se visse parecesse mecânico e
forjado, falso.
O domínio da psicotécnica pelos atores é imprescindível para alcançar
resultados satisfatórios ao se trabalhar pelo método da Análise Ativa, do contrário, os
atores não conseguirão desenvolver études aproveitáveis e consequentemente, a
estrutura do espetáculo fica comprometida. A maneira como o ator se relaciona com o
mundo imaginário, ou a capacidade do ator de relacionar-se com situações propostas
vão dar a medida da organicidade na cena. Se o ator transita bem entre a realidade da
cena e as circunstâncias propostas pelo autor, tornadas realidade pelo processo
imaginativo, a comunicação do conteúdo sensível se dá de forma natural, orgânica. Isso
nos faz concluir que a imaginação é um dos principais elementos do sistema na
condução do ator pelo universo ficcional.
Fotos: Paulo Fernando Machado
116
3.4 PRINCÍPIOS DO PROCESSO DE CRIAÇÃO CÊNICA EM DIREÇÃO
As
pesquisas
desenvolvidas
por
ele
[Stanislávski] durante toda a sua vida artística,
como diretor, ator e pedagogo, as quais
originaram o seu “sistema”, culminaram no
método das ações físicas. Como decorrência
deste, por meio de um processo constante de
investigação, preocupado em captar o impulso
de vida que originou a criação do autor, K.
Stanislávski nos contempla com o método de
análise ativa. O método constitui-se num
paradigma do diretor teatral para a análise da
obra do autor, através da ação, e é um meio
para o ator recriar, em seu sentido mais
profundo, a atualidade da obra, dando origem
ao espetáculo. (DAGOSTINI, 2007. P. 22)
No quarto semestre de curso, a ementa da Disciplina propunha a organização do
processo de criação cênica e a integração dos elementos do espetáculo através do
estabelecimento da linguagem cênica do espetáculo e da escolha dos procedimentos
técnicos na condução do treinamento do ator nos ensaios. O objetivo era exercitar a
capacidade de trabalhar com os elementos que compõem o espetáculo teatral e
relacionar o processo de criação com a concepção do diretor/encenador. A condução
do processo criativo seria encaminhado seguindo o Método da Análise Ativa.
A Professora neste quarto semestre da Disciplina Encenação foi Cândice Moura
Lorenzoni226. Depois de algumas discussões e seminários sobre os gêneros e estilos
literários e dramáticos, foi-nos proposta a montagem de um texto dramatúrgico em um
ato. A partir da escolha do texto, o aluno/ator-diretor precisava elaborar um „projeto de
pesquisa‟, onde apresentasse o esquema de análise do texto, estudos sobre a vida e a
obra do autor, a justificativa da escolha de seus procedimentos de condução do
trabalho dos atores nos ensaios, bem como a descrição de sua concepção de
montagem: a cenografia, a iluminação, o figurino e os adereços, a maquilagem, a
sonoplastia, enfim todos os elementos do espetáculo. A carga horária da disciplina foi
disponibilizada no sentido de viabilizar a pesquisa teórica para a elaboração do projeto
226
Graduada em Educação Artística – Habilitação em artes Cênicas pelo Curso de Licenciatura da
UFSM/RS (1993-1997), Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da
UFSM/RS (2007). Atualmente, professora na mesma instituição.
117
e os ensaios eram agendados em horários extraclasses.
Depois da apresentação
pública do exercício, era preciso entregar um relatório com a descrição dos
procedimentos dos ensaios, relatando as similaridades e discrepâncias com relação ao
idealizado no projeto e ao que fora conseguido concretamente, na prática dos ensaios e
com a finalização do processo, depois da apreciação do público. A relação entre a idéia
central do texto e a concepção da montagem era o que deveria ser estabelecido pelo
aluno/diretor no espetáculo.
A peça montada foi Augusto Jantar, de Alcione Araújo. Os atores foram Aline
Castaman e Daniel Terra. No texto, o autor apresenta um casal extremamente
requintado, esnobe, pura classe. Quando Frederico Augusto chega em casa, a esposa
Augusta Maria informa que a serviçal os deixou. O marido sente muito pela perda e
comenta que realmente não se pode contar com os serviçais; sugere que jantem fora.
Augusta Maria informa ao marido que lhe preparou uma surpresa: ela mesma preparou
o jantar! – Jantemos, sugere o marido, que se delicia com o prato e insiste querer saber
se a receita e de Augusta Maria ou da antiga cozinheira. Como são de uma educação
refinada, não podem falar de boca cheia, aumentando a tensão no diálogo,
entrecortado e confuso, sobre de quem é a receita. Por fim, o marido explode em
curiosidade, esquecendo toda finesse e cuspindo comida pra todo lado. A mulher fica
chocada e também irrompe numa saraivada de comida sobre o marido ao repreendê-lo.
Os dois se recompõem, se desculpam e retomam o jantar. Depois de tudo, Frederico
Augusto não vê problemas em pegar a comida com a mão, já que o que tem em seu
prato é um grande osso. Augusta Maria também não vê problema e comenta que
realmente, Eulália, a cozinheira, tinha ossos muito grandes.
Fotos: Paulo Fernando Machado.
118
Na montagem, a aparente grandeza de caráter dos personagens foi transferida
aos objetos de cena, ampliados em escala, para contrastar com o tamanho dos atores,
ilustrando que, de fato, eles eram pequenos e mesquinhos. Foi montada uma sala de
jantar de tamanho gigante, onde os atores pareciam pequenos bonecos colocados num
mundo fantasioso, o da afirmação de seu status social elevado e de sua condição de
superioridade. O texto foi encenado como crítica à excessiva valorização material da
sociedade consumista.
Na condução dos ensaios, procedi no sentido de selecionar exercícios e técnicas
corporais que imprimissem no corpo dos atores determinadas características préexpressivas correspondentes aos elementos do sistema, principalmente prontidão,
precisão, determinação, atenção, concentração e resistência e adaptação. Na parte
inicial propunha o trabalho de liberação das articulações, músculos e ligamentos com
Eutonia, técnica utilizada para regular o tônus muscular e desenvolver a noção de
consciência corporal. Na sequência, os atores praticavam alguns exercícios de força,
como flexões, apoios e abdominais, exercícios acrobáticos, como rolamentos, saltos e o
uso de apoio invertido; e também exercícios apreendidos com o grupo afro-peruano
„Teatro del Ritmo‟, denominados „o corte da cana‟, „bola de fogo‟ e „o vôo da águia‟,
aliados a dois exercìcios apreendidos com a Profª. Drª. Nair Dagostini, „a mesa‟ e „o
guarda-chuva‟,
que
trabalham
basicamente
as
noções
de
dilatação,
contração/expansão, espaço/tempo. Também trabalhávamos a liberação do aparato
vocal, pesquisando a desconstrução dos vocábulos com ênfase em sua sonoridade.
Com isso, busquei valorizar a ação e a partir de seu estímulo a emissão vocal.
Inicialmente, propunha palavras do texto desvinculadas da sintaxe, aleatoriamente,
para despertar no ator um texto próprio, próximo ao do autor. As palavras eram
selecionadas e oferecidas como estímulo em acordo com o acontecimento que era
improvisado. Aos poucos, iam-se formando as frases e ao final, os atores se
apropriaram do texto do autor e o incorporaram à sua movimentação em cena.
Um fator relevante com relação à pratica dos ensaios neste semestre é que o rol
de exercícios selecionados continuou a ser utilizado sistematicamente nos processos
de montagem posteriores, dentro e fora da academia.
119
3. 5 O ANO DA OPÇÃO
O “sistema”, resultado da investigação e
inquietação de toda uma vida, complementase com a sistematização do método de
análise ativa, que contém em si o método
das ações físicas.227 Este permanece em
aberto como meio e possibilita chegar à
essência da obra dramática, ao núcleo que
determina o sentido da criação, a ação e sua
recriação pelo ator. Nesse processo é
promovido o desenvolvimento psicofísico
integral do ator, em seu papel, resultando no
espetáculo, uma unidade da criação do autor,
do diretor e do ator. (DAGOSTINI, 2007, p. 234)
Um semestre antes da opção por Interpretação ou por Direção, o aluno
ator/diretor tem a oportunidade de produzir um espetáculo, nos moldes da produção
profissional, para o qual deverá buscar apoio financeiro junto a parceiros locais, com
recomendação. Até então, os espetáculos eram parcialmente financiados pela
Universidade, com as verbas destinadas ao Projeto de Extensão Montagem de
Espetáculos por Alunos e pelos próprios acadêmicos.
No quinto semestre da disciplina Encenação, os alunos diretores elaboravam um
projeto de montagem para captação de recursos, seguindo orientações tidas em uma
disciplina contígua, Legislação e Produção. O projeto deveria comportar a estrutura
comumente utilizada com objetivos, justificativa (artística e comercial), metodologia,
orçamento, cronograma e todas as informações adicionais que constavam dos projetos
de montagem descritos anteriormente. Seguindo o programa da disciplina, os alunos
diretores tinham como objetivo concretizar a concepção cênica e desenvolver uma
metodologia para o trabalho do ator com base na idéia do projeto de montagem teatral.
A ementa propunha a transcrição cênica da matéria textual e questionamentos sobre a
linguagem do ator. A carga horária da disciplina estava distribuída de forma ao aluno
conseguir desenvolver seu projeto de montagem bem como angariar fundos junto aos
apoiadores. Extraclasse já se desenvolvia o trabalho de treinamento físico dos atores,
227
Grifo meu.
120
com quem se continuaria os ensaios por praticamente um ano inteiro, ou, dois
semestres letivos. Ao final do semestre, além do projeto concluído, era preciso
apresentar ao menos 60% da estrutura do espetáculo concluída, para então, no sexto
semestre, finalizar-se com a apresentação pública. O professor naquele semestre fora
Camilo Scandolara228.
Na matrícula do sexto semestre do Curso de Artes Cênicas da UFSM, o
estudante fazia a opção por Interpretação ou por Direção Teatral. Até então, as
disciplinas do currículo eram comuns a ambas. Minha opção inicial foi Direção Teatral,
tendo concluído posteriormente também o curso de Interpretação.
Em continuidade ao projeto iniciado no semestre anterior, com o objetivo de
conhecer e operacionalizar os meios de produção teatral e encenar um espetáculo, a
ementa da disciplina propunha a realização da montagem teatral articulada pelo
diretor/encenador. Este, entendido como catalisador dos demais colaboradores da cena
– o ator; o cenógrafo; o figurinista; o maquiador; o iluminador; o criador da trilha sonora
e a equipe técnica – e dos elementos constitutivos do espetáculo.
Neste semestre praticamente não tivemos orientação, por que o professor
substituto da disciplina passou em concurso público para efetivo em outra instituição, o
que deixou a turma em descoberto até o remanejamento docente. Os alunos diretores
tiveram que apresentar seus trabalhos e ser avaliados por professores que não
acompanharam o processo inicial da montagem. Isso gerou problemas para alguns
alunos, pois as resoluções cênicas aprovadas pelo orientador anterior, não estavam em
acordo para os novos professores. A turma foi dividida entre as professoras Rozane
Silva Cardoso e Adriana Dal Forno229, que à época ainda estava afastada para
conclusão do mestrado.
O texto que selecionei para montar foi um conto do norte-americano Max
Shulman (1919-1988). O Amor é uma Falácia230. Um texto de humor inteligente, bem
228
Graduado em Educação Artística – Habilitação em artes Cênicas pelo Curso de Licenciatura da
UFSM/RS (1993-1997), Mestre em Artes pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP/SP
(2006). Atualmente, professor do Curso de Artes Cênicas da UEL – PR.
229
Possui graduação em Licenciatura Plena em Educação Artística Habilitação Artes Cênicas pela
UFSM/RS (1990) e mestrado em Artes pela UNICAMP/SP (2002). Atualmente é professora assistente da
UFSM/RS.
230
As Calcinhas Cor de Rosa do Capitão – Antologia de contos humorísticos dos melhores autores. Porto
Alegre: Editora Globo, 1973. Distribuição promocional pelos Postos Ipiranga.
121
escrito e bem traduzido por Luis Fernando Veríssimo. Uma pérola para a introdução do
estudo e ensino da lógica na Filosofia, utilizado na UFSM pelo Prof. Dr. Ronai Pires da
Rocha231 em suas aulas de lógica.
O texto é dito na primeira pessoa e conforma dois tempos/espaços: de narrativa
e de diálogos. A resolução cênica para transitar entre um espaço/tempo e outro foi a
utilização de iluminação por lanternas nas partes narradas (tempo presente) e com luz
geral nos diálogos (tempo passado). A iluminação de lanternas ajudou a compor o
universo do personagem principal, que depois dos fatos ocorridos e que ele narra,
acaba vendo o seu mundo desmoronar, se torna soturno, depressivo, sem
perspectivas, transformando-o no oposto do que ele era quando dos seus dezoito anos:
“frio, calculista, perspicaz, arguto e astuto”.
Nesta montagem, como tive praticamente um ano para ensaios, foi possível
desenvolver um trabalho sitemático de treinamento físico. Repetimos basicamente o
treinamento descrito no processo da Encenação IV, trabalhando no nível préexpressivo
numa primeira etapa e subsequentemente com ensaios de criação, montagem e
afinação.
Nos ensaios de criação, trabalhei no sentido de elaborar a “partitura” de cada
personagem, acontecimento por acontecimento de forma aleatória, com estímulos
verbais diversos, isoladamente. Cada ator desenvolvia sua pesquisa de movimentos a
partir dos mesmos estímulos. Os movimentos eram selecionados, nomeados e
memorizados pelos atores, que tomavam notas para facilitar a retomada dos
movimentos nos ensaios posteriores. Com isso, os atores criaram um arsenal de
movimentos que, posteriormente foram arranjados de forma a virarem ações concretas
que eram juntadas aos études dos acontecimentos em acordo com a análise. Juntando
esses movimentos, que não passavam de movimentos abstratos, sem objetivo nem
justificação, com a inserção da circunstância dada e do objetivo do acontecimento para
o qual eles seriam usados, tornavam-se ações justificadas pelos atores e ia-se criando
a impressão de ações concretas, verossímeis, apropriadas para cada acontecimento.
231
Graduado em Filosofia pela UFSM/RS (1973) e Mestre em Filosofia pela UFSM (1977). Atualmente é
professor adjunto no Departamento de Filosofia da UFSM/RS.
122
Para a estruturação da movimentação cênica dentro do pequeno círculo
(acontecimento), a estratégia utilizada foram os études silenciosos. Quando, a partir da
improvisação os atores chegavam a uma movimentação coerente com a proposta de
montagem, a fixáva-mos e então a complementávamos com a movimentação
pesquisada em separado. Algumas ações surgiam no próprio étude e eram também
memorizadas e anexadas à estrutura que se ia fixando. O texto também foi sendo
improvisado
a
partir
das
circunstâncias
propostas.
Também
trabalhamos
a
desconstrução semântica do texto para depois juntá-lo em sua coerência causal. Com o
desenrolar dos ensaios, os atores recebiam primeiro palavras-chave, depois se
juntavam duas palavras em uma idéia e por fim criavam-se as frases, substituídas pelas
do autor em cada acontecimento.
Quando se fixava a movimentação de um acontecimento, com a colagem dos
movimentos adequados à circunstância e aos objetivos, partia-se para a afinação da
cena, onde os atores precisavam, por meio do trabalho sobre si mesmos, tornar
orgânicos e naturais aqueles movimentos que se haviam criado em separado e que no
princípio nada significavam, convertendo-os em ações, para o estabelecimento do jogo
cênico e da linha ininterrupta das ações do texto.
No primeiro semestre de ensaios, os atores estavam completamente perdidos
dentro de meu processo, sem entender muita coisa. Estávamos pesquisando somente
coisas aleatórias, sem uma conexão aparente. Eles não conheciam o texto em
profundidade, já que havíamos realizado somente uma primeira leitura em conjunto
sem maiores discussões. Debatemos a situação dos personagens no universo do texto
e determinamos seus objetivos amplos. Trabalhei todo o primeiro semestre com eles
assim, „às escuras‟. Eles recebiam apenas indicações sobre as circunstâncias e
estímulos no sentido de direcioná-los ao objetivo local (do acontecimento) na
construção da linha ininterrupta das ações rumo ao superobjetivo. Quando começamos
a juntar os movimentos em partituras, a colocar as partituras de movimento juntamente
com a movimentação improvisada nos études e o texto correspondente de cada
acontecimento, foi como se o universo do texto se descortinasse aos atores, que a
partir disso iam se apropriando daquela movimentação mecânica e a preenchendo com
vida.
123
Optei pelo texto por serem poucos personagens envolvidos, 3 (três), dois
homens e uma mulher, o que seria um facilitador para uma possível temporada com o
espetáculo. A temporada não foi possível, mas fizemos cerca de 10 apresentações e é
um número excelente no universo acadêmico de Santa Maria, onde, na maioria das
vezes, os espetáculos não passavam da estréia... Quando muito havia duas sessões.
O fato de o espetáculo ter sido apresentado diversas vezes é o grande
diferencial
deste
trabalho.
Como
primeiro
espectador,
pude
acompanhar
o
desenvolvimento dos atores na apropriação do texto e como eles foram alcançando a
cada apresentação, uma liberdade em cena que dava a impressão de que de fato, eles
“eram” os personagens. Vale ressaltar que o espetáculo não é do tipo realista, pois não
apresentávamos em cena nenhum cenário, e como objetos de cena, além do figurino (o
“casaco de pele de marmota”), somente as lanternas que iluminavam o tempo
„presente‟ da narrativa e que era manuseado pelos próprios atores em cena.
Fotos: Paulo Fernando Machado.
124
3. 6 O ÚLTIMO ANO: A BUSCA DE UMA LINGUAGEM
K. Stanislávski, com o método de análise
ativa, concretiza o ideal das buscas artísticas
e metodológicas de seu “sistema”, que
sempre foi o de possibilitar a formação de um
ator que ultrapasse a mera interpretação de
um texto, que participasse ativamente do
processo de criação, sendo resgatada a sua
individualidade como sujeito criativo, através
de sua especificidade artística. (DAGOSTINI,
2007, p. 24)
Nos dois últimos semestres do Curso de Direção Teatral, o acadêmico precisava
elaborar um projeto de encenação mediante experimentação prática e pesquisa teórica,
que resultasse, obviamente, na montagem de um espetáculo. Ao final do segundo
semestre o espetáculo precisava ser apresentado publicamente e o aspirante a Diretor
deveria proceder a defesa descritiva de seu projeto de encenação diante de uma banca
avaliadora.
Com o intuito de verificar minha aptidão em Direção Teatral, lancei-me na busca
de um texto que possibilitasse na montagem a utilização dos vários elementos do
teatro. Cheguei ao conto Onde os Oceanos se Encontram (Anexo 1)232. À primeira
leitura, a linguagem poética do texto despertou meu interesse, pois remetia a uma
grande possibilidade cênica, embora parecesse loucura a idéia de se colocar uma praia
no palco.
Foto: Leandro Campos Queixa.
232
COLASANTI, Marina. Um Espinho de Marfim e outras histórias. São Paulo: L&PM Editores,1999.
125
3. 6. 1 UMA DRAMATURGIA CONSTRUÍDA
A partir da eleição do texto, defini o tema para minha monografia de graduação
em Direção Teatral: "O Enquadramento Trágico e o Ator: uma Poética Possível" (2003).
O trabalho estabelece as relações entre o herói trágico na sua desmedida e o ator na
busca de um corpo cênico.
Dei início aos ensaios procurando estabelecer uma rotina na preparação do ator,
para confirmar a eficácia dos métodos e exercícios de preparação do ator pesquisados
no período da graduação. Repeti os exercícios já lisados acima, apreendidos ao longo
do curso e que considero de extrema importância no desenvolvimento das "leis
orgânicas do homem em ação", propostas por Stanislávski. Tais exercícios foram
utilizados como parâmetro para a identificação dos limites de cada ator e como
indicador de um possível ponto em específico a ser atacado no sentido de sanar ou
atenuar tais limitações na busca de um 'corpo cênico'. Todos os exercícios
selecionados para o treinamento tinham a ver com os elementos do sistema
Stanislávski e estavam relacionados com identificar as limitações físicas dos atores e
com treinamento específico diminuí-las ou eliminá-las. A partier do treinamento, o maior
problema que se identificou foi a falta de consciência corporal, e em virtude disso, um
acúmulo de tensões desnecessárias na execução dos exercícios.
Passamos praticamente todo o primeiro semestre praticando o treinamento físico
e desenvolvendo o projeto. Então, a partir da Análise Ativa do texto começamos a
pesquisar ações e desenvolver jogos e improvisações buscando o universo poético. Era
preciso criar com as atrizes uma relação estreita, de cumplicidade, um estado de
harmonia para explicitar a ordem do mundo na qual estavam inseridas as personagens.
Sabíamos o que acontecia, só precisávamos descobrir como acontecia.
Depois de pesquisar em études com as atrizes quais eram as ações praticadas
por suas personagens, de acordo com a análise do texto, procurei estabelecer a
seqüência destes acontecimentos e fazer deles a rotina daquelas irmãs a serviço do
mar (Acordar, esperar, recolher, banhar, enrolar, entregar, brincar, tecer, espreguiçar,
dormir). A rotina estabelecia o universo de ordem no qual estavam inseridas as irmãs
ninfas, e era a partir da rotina que se estabelecia a ordem do mundo que precisava ser
126
quebrada para se estabelecer o conflito indicado no texto. A quebra da rotina se dá com
a chegada de uma terceira pessoa, a harmonia que havia entre as irmãs deixa de existir
e é quebrada a ordem natural, já não há mais a rotina, uma vida servil, mas sim uma
busca por satisfação pessoal.
A cada ensaio executávamos o nosso treinamento físico e partíamos para a
pesquisa de movimentos a partir de verbos de ação e também substantivos. A maior
parte destes movimentos foram selecionados e agrupados em partituras, que eram
retomadas e ampliadas a cada nova pesquisa. Então, partimos para a improvisação
das situações do texto para criar a movimentação das cenas, e dentro desta
movimentação inserimos os movimentos das partituras que foram incorporados aos que
surgiram nas improvisações, até a finalização da estrutura do espetáculo.
Com o estabelecimento do conflito, fui em busca da individualidade dos
personagens, o que cada um deles queria para si, como satisfazer suas vontades,
superando o obstáculo que era o outro, que também queria o mesmo, satisfação. Todos
os objetivos e obstáculos que conduziam a linha direta de ação dos personagens estão
implícitos no texto, e a partir da análise e das improvisações clarificaram-se e tomaram
forma. Toda movimentação e a estrutura das cenas foram criadas a partir de
improvisações e da pesquisa de movimentos guiadas por palavras-chave retiradas da
Análise Ativa. Finalizados os ensaios de criação, tínhamos a estrutura das cenas que
comporiam o espetáculo em mãos, só restava agora adequar o foco, o ritmo, a
velocidade, a intensidade e a veracidade dos movimentos a que tínhamos chegado
para estabelecer a linha direta de ação dos personagens.
O texto foi seguido praticamente à risca, pois procurei fidelidade à poesia da
autora, embora tenha optado pela não utilização das falas. Tentei codificar a linguagem
do conto através da ação, dos figurinos, do cenário, da iluminação, da disposição
espacial, da trilha e dos efeitos sonoros.
Com o cronograma apertado, fui me preocupando demasiado com a
estruturação do espetáculo e deixei em segundo plano o treinamento físico. Em
conseqüência disso, tive um retrocesso no desenvolvimento físico dos atores e também
na estrutura do espetáculo, que a esta altura havia se cristalizado. As qualidades que
haviam nascido com as improvisações tinham se perdido e estávamos longe da
127
organicidade que se queria alcançar. Precisava retomar o desenvolvimento daquilo a
que tinhamos me proposto, a criação de um 'corpo cênico'.
Neste ponto do processo precisei apelar para os elementos externos sugeridos
pelo texto. A presença do mar em cena passou a ser de vital importância. A ação das
atrizes dependia do tempo de sua movimentação em vários momentos da estrutura e
isso passou a ser um grande problema, pois tive dificuldades em disponibilizar o
número de pessoas necessárias para executar seus movimentos, além dos recursos de
produção.
Mas meus problemas não se resumiram ao mar; tive dificuldades em concentrar
minhas energias no sentido de trabalhar a estrutura e transformar os movimentos
pesquisados com as atrizes em ações concretas, ajustando-lhes o foco, o ritmo, as
qualidades, direcionar a linha direta de ação dos personagens e do espetáculo ao longo
das situações apontadas na análise, pois precisava ainda me preocupar em
supervisionar a produção, a pesquisa musical, a confecção dos figurinos, dos objetos
de cena, administrar os problemas pessoais do elenco, além dos meus próprios.
Subjetividades à parte, chegára ao ponto onde precisava transferir todas as qualidades
pesquisadas no treinamento físico com os atores na execução das cenas,
concatenando situação por situação e construindo a passagem de um acontecimento
para outro, a mudança na ação - os saltos - a superação dos obstáculos, enfim, fazer
valer as leis orgânicas do homem em ação.
Depois da apresentação da estrutura bruta do espetáculo para a banca
examinadora, houve mudanças na concepção da disposição espacial, que até então
seria "palco italiano" com elevação do público e saída dos atores por baixo deste, para
"semicircular", com os atores em cena todo o tempo. Foram feitos os ajustes da
estrutura a esse novo espaço e a solução das saídas ficou por conta de outro elemento
do texto, uma fonte de água doce. Faltava ainda resolver alguns problemas de
produção, executar os cenários, finalizar os objetos de cena, os figurinos, resolver a
iluminação do espetáculo e ajustar a trilha e os efeitos sonoros e, principalmente,
solucionar a execução do mar. Não consegui disponibilizar tantas pessoas quanto
seriam necessárias para concretizar a concepção inicial de utilizar somente corpos na
execução do mar. Precisaria de, no mínimo, 30 pessoas e só tinha 13 à disposição.
128
Resolvi então lançar mão de uma solução que já havia sido pensada anteriormente,
que seria a utilização de tecido manuseado pelas pessoas de que eu dispunha.
É claro que tantos ajustes não poderiam ser feitos somente pelo diretor. Na
execução desta montagem tive o apoio de diversas pessoas: uma equipe responsável
pela trilha e efeitos sonoros, uma pessoa responsável pelos figurinos outra para a
iluminação, três pessoas envolvidas com a confecção dos objetos de cena e em todos
os momentos tive total apoio da professora orientadora na supervisão destas tarefas. É
preciso ressaltar que ela soube como ninguém tomar as rédeas do processo e conduzir
seu orientando a bom termo até a conclusão dos trabalhos, dando um exemplo de
respeito, disciplina, esforço e dedicação total ao trabalho, sabendo magistralmente
conduzir o processo, que chegara ao seu momento mais conturbado. O maior obstáculo
eram nossas próprias limitações e era hora de ultrapassar os limites de cada um,
inclusive do diretor.
O prazo para o término do processo e apreciação do trabalho estava a cada
ensaio mais próximo e a equipe correndo contra o tempo. Eu ainda tinha um longo
caminho pela frente até conseguir transformar os movimentos dos atores em ações,
pois a cristalização da movimentação ainda persistia. A solução foi desfragmentar toda
a partitura e reconstrui-la passo-a-passo.
Depois de uma maratona de 36 horas tínhamos montado o cenário, ajustado o
espaço cênico, instalados os equipamentos e instrumentos sonoros, definido a
maquiagem, os figurinos já estavam prontos, tínhamos todos os adereços de cena e
estávamos pela primeira vez no espaço onde aconteceria a estréia, no dia seguinte. A
partitura de cada ator já havia sido aprimorada na construção da linha interna de ação e
a junção com os outros elementos foi o toque final. Estávamos prontos para o ensaio
geral. Pode-se dizer que foi o primeiro ensaio com o céu, o mar, a fonte, os atores, a
música e a iluminação, enfim, todos os elementos do espetáculo. Estavam no palco, o
céu, o vento, o mar (e o seu som), a água doce, os mortos e a história do conto.
129
3. 6. 2 UMA ILHA
Uma ilha. Eis o cenário da ação contida no texto. Como Diretor, eu tinha
um desafio pela frente, que era o de recriar este mundo no palco. Não dispunha de
muitos recursos, mas consegui disponibilizar uma equipe disposta a enfrentar o desafio.
Todas as informações necessárias à recriação deste universo diziam respeito a essa
ilha e todos os elementos que ela continha.
A pesquisa dos elementos do espetáculo partiu destas informações.
Para os figurinos, partimos da indicação de que as personagens eram duas
ninfas, irmãs e que viviam sozinhas na ilha, "desde sempre". Quais seriam as
possibilidades de veste para estas personagens? Usariam elas roupas? Com que
material elas poderiam ter confeccionado suas roupas? A idéia inicial era de se usar
como que um vestido transparente com sobreposição de flores, idéia que foi mantida,
com modificações. Optamos por um sutiã revestido de flores e folhas com aplicação de
lenços transparentes em tons pastel. A roupa dos mortos foi feita com retalhos de
algodão cru. Na maquiagem seguiu-se a mesma idéia.
A iluminação teve papel fundamental no espetáculo, pois acumulava duas
funções. Além de finalizar a composição do universo, ela ajudava a compor "o céu" e "o
mar", projeções de luz azul e verde, respectivamente, sobre duas telas de T.N.T.233
branco. O céu funcionava suspenso como rotunda, disposta semicircularmente, atrás da
qual ficavam as pessoas responsáveis pelas "ondas do mar". Tinha 14,0 metros de
comprimento por 4,20 metros de altura. O mar era um retângulo com 10,0 metros de
comprimento por 4,20 metros de largura. Ficava "solto" no chão, sendo movimentado
por 13 pessoas. Três eram responsáveis pela movimentação das marés e outras dez,
auxiliadas por 08 ventiladores, produziam as ondas.
Seguiu a indicação de dia e noite, com as nuanças de anoitecer e amanhecer
conduzidas pela ação das personagens no desenrolar de sua rotina. Tínhamos duas
gerais, uma amarela, para o "dia" e uma azul com gobos, para a "noite". Cinco
233
T.N.T.: tecido não tecido.
130
refletores eram responsáveis pela projeção do céu, quatro azuis e um vermelho 234, para
diferenciar o dia e a noite, e cinco refletores projetavam o verde do "mar".
Para o espaço cênico, como a platéia do Anfiteatro Caixa Preta é móvel,
dispusemos a estrutura de módulos que a compõe semi-circularmente, do ponto onde
chegava a "maré cheia" até os fundos do teatro. Os módulos foram colocados de forma
a criar um desnível que decrescia no sentido "mar"-fundos, onde novamente se
elevava. Lográvamos com isso criar no espaço os penhascos à beira da praia, como se
o público estivesse observando do alto. Pura subjetividade.
Com a mudança da concepção do espaço, introduzimos no cenário uma fonte de
água doce, que ficava no centro do semicírculo formado pelos módulos, onde havia
uma abertura, que também servia de entrada para o público.
De início, a fonte serviria para solucionar as saídas de cena, para deslocar o foco
de atenção do público para a cena principal, que em alguns momentos se passava na
praia. Contudo, acabou destacando-se mais do que se pretendia, e isso de certa forma
foi bom, pois também auxiliou os atores na construção de sua ação interna. Os objetos
de cena manuseados pelas atrizes foram aviados em conformidade com as indicações
do texto. Precisávamos dos tecidos que eram usados no ritual com os mortos e de
algum recipiente utilizado para o banho dos mesmos. Optei pela utilização de algodão
cru para os tecidos e pela confecção de uma bacia em formato de concha para o
banho, que era utilizada para retirar água da fonte. O manuseio dos tecidos foi
pesquisado em separado com as atrizes e depois de encontrarmos a forma,
introduzimo-la na partitura de ações que compunha sua rotina diária. Como havia a
repetição desta rotina por três vezes, eram três peças de tecido com 5,0 metros de
comprimento por 1,40 metros de largura. O cenário era a junção de todos estes
elementos, complementado pela trilha e efeitos sonoros, que foi composta e executada
por acadêmicos do Curso de Música da UFSM/RS a partir da leitura do texto, de
referências do diretor e de observação aos ensaios. Houve a participação de
acadêmicos de Percussão, Flauta e Violão, que se utilizaram também de teclados e de
música eletroacústica. A música foi fator determinante para estabelecer a atmosfera do
espetáculo. Esteve presente todos os momentos, desde o primeiro instante do
234
O refletor vermelho funcionou conjugado à geral de "dia".
131
espetáculo, inicialmente com os ruídos do vento e do mar, sons de pássaros ao
amanhecer e de insetos ao anoitecer e trilhas incidentais para reforçar a atmosfera de
algumas situações.
Fotos: Adriana Dal Forno
132
CONCLUSÃO
Conclusão parcial de um processo que recém iniciou: a vida na arte. Difícil dizer
que é disso que se trata no trabalho sobre si mesmo, da vida. A vida diária que nos
escapa à atenção esguia da resistência de si mesmo, que se deve superar a cada
minuto. A vida no aqui-agora, no momento presente, com presença. Presença de
espírito também. Claro, para poder superar as pequenas desavenças que insistimos em
cultivar... Vida corrida, falta de paciência. OK. Pontos de vista. O meu, o seu, o do
vizinho... bem, ele não fala a mesma língua. Humm..., me parece que seu gramado está
mais verde. Vou regar o meu jardim. Perfeito! Fazer por mim mesmo. Quem sabe se
plantar em solo fértil, a grama vem melhor! Foi o que tentei fazer, o meu próprio jardim,
com gramado, flores e espinhos.
ANÁLISE ATIVA. Caráter analítico, de pesquisa improvisacional e adaptativo.
Prático. Pragmático. Sintético. Funcional. Não discuto teoricamente os equívocos sobre
as teorias de Stanislávski, os confirmo na prática do pensamento completo,
desenvolvido, articulado: na busca da sistematização das qualidades necessárias a
uma atuação convincente em cena, depois de muita observação, prática e
experimentação, Stanislávski chega às ações físicas, que acabam se tornando na
sequência das pesquisas, um instrumento na aplicação do método da Análise Ativa.
Observação, experimentação e prática... A partir da ação, o ator penetra no universo da
obra, circunstanciada pelo autor. A partir dos fatos descritos no texto pelos
personagens, o diretor constrói o acontecimento cênico a partir da circunstância dada.
Os elementos do sistema se prestam para embasar este processo, libertando o ator
para a cena, para agir naturalmente a partir da circunstância dada. No aqui-agora da
cena, vivendo a circunstância.
A vida de que falo(ei) não desvincula carne e fluxo
energético... experienciação/vivência + personificação/encarnação = corpo e alma/ação
orgânica.
No dia a dia dos ensaios, a discussão teórica pouco ajuda para a descoberta do
fluxo orgânico da ação. O que conta é o envolvimento intelectual do diretor com o texto
e o contexto do autor. Este trabalho, por mais que seja teórico, movimenta a prática do
133
conhecimento da essência daquilo que é humano, de caráter ativo e por consequência,
teatral. No fim, o que vale é a prática e a teoria que se pode inferir dela, não pelo escrito
em si, mas pelo valor qualitativo que esta pode agregar à continuidade do trabalho, que
na proposta ético-artística-pedagógica de Stanislávski ultrapassa a vida profissional e
se converte num processo permanente, de envolvimento com a arte em todas as
instâncias da vida. No caso da montagem teatral, a leitura da teoria sem a prática se
anula, porque se não se concretiza aquilo de que se está falando, ou se ao menos já
não se tentou, a discussão é vazia. Nesse sentido, a aproximação teórica ao método é
insuficiente para garantir a utilização do método pelo diretor. É preciso que ele também
domine os elementos do sistema para então poder conduzir o ator pelo processo
criativo e eis aí uma de suas maior limitações.
A descrição dos processos de encenação no decurso dos 8 semestres da
disciplina me fizeram ver a coerência que havia no encaminhamento do processo
pedagógico dentro do Curso. Além da prática pedagógica, havia o comprometimento
ético e artístico, o que é uma questão determinante em se falando de Teatro, sobretudo
na Academia. Ensinar a prática do Teatro com tempo determinado é algo que se torna
estranho... O tempo de assimilação dos conteúdos e mesmo o entendimento das
práticas realizadas em aula não é o mesmo para cada um. Algumas coisas só entendi
com a prática e bastante tempo depois. Como ensinar resistência física, por exemplo,
sem desenvolvê-la? Levemos em consideração que cada semestre letivo dura em
média quatro meses e que esse tempo é curto para todos as etapas da montagem de
um Shakespeare, por exemplo. Foram quatro experimentos curtos, e dois de maior
extensão. Em cada semestre, alguma coisa se destacava no desenvolvimento da
técnica. A aproximação à ideia central do texto pelo estabelecimento de uma metáfora
no primeiro semestre já foi um excelente estímulo à imaginação do aspirante a diretor e
apontava uma das primeiras lições: a separação do texto em suas partes principais e a
aproximação à ideia central do texto, e o respeito ao autor e sua obra. Ao dividir a obra
em suas partes constituintes, uma a uma, o diretor facilita para o ator o trabalho de
aproximação ao universo ficcional, construindo no imaginário e na lembrança do ator, o
passado, o presente e dirigindo-o ao futuro, ao encontro do superobjetivo, o fim da
história, a motivação final do dramaturgo.
134
A ênfase no respeito ao trabalho de quem escreveu a obra seguiu-se em todos
os semestres, nunca deixando de afirmar também a autoria do diretor e do ator no
processo da montagem. Na encenação do segundo semestre, a ênfase era ainda no
autor e na obra, no desvelamento do universo no qual estavam imersos os
personagens. Com este exercício, ficou claro o quão prejudicial ao texto pode ser a
tendência, se esta não está de acordo com a ideia da obra. A concepção do diretor
deve estar em concordância com o que se presume que pense o autor, do contrário,
quando se pensa no todo, aquele fragmento de tendência contrária fica desconectado,
se desvia da linha transversal de ação que perpassa cada pequeno objetivo, todos
seguindo na mesma direção, a resolução do conflito gerador da ação. Foi uma
experiência para fazer entender o processo de reagrupamento dos pequenos círculos,
na composição da linha transversal de ação, do particular ao geral com a resolução dos
pequenos problemas que se complementam na composição do todo da obra. O diretor
descobre pela análise que, quando desvenda do texto a ação, determinada pela
circunstância dada, engendra a luta do personagem rumo ao objetivo. Foi também um
experimento de resolução cênica, já que não se podiam ignorar os outros
acontecimentos ao elaborar a concepção de montagem do acontecimento em
particular, que deveria resolver-se em si e convergir para a realização da ideia central.
No terceiro exercício, com o conhecimento teórico do Método da Análise Ativa e
com os elementos do sistema praticamente assimilados na prática, foi possível
experimentar um novo modo de conduzir a montagem, o étude circunstanciado. A maior
constatação a que cheguei nesse experimento, foi que o ator precisa ter o controle
sobre o seu aparato psicofísico bem como saber conduzir sua atenção dentro dos
círculos com o uso da imaginação. Se o ator não se permite „viajar‟ nos domìnios do
seu mundo imaginário, que ele precisa criar a partir das referências que recebe do
diretor, ele não consegue conectar as ações de forma orgânica, fluida; não se
estabelece o processo interior que o coloca inserido no acontecimento, conhecendo seu
passado, vivendo o presente em direção ao futuro. A imaginação é a locomotiva que
conduz o ator pelos trilhos da linha transversal de ação, abastecida pelo combustível do
“se mágico” que engendra o seu movimento. Stanislávski se referia à linha transversal
de ação como a espinha dorsal do espetáculo, o centro nevrálgico por onde passam
135
todos os impulsos que conduzem ao superobjetivo da obra, a esta altura já enriquecido
com os superobjetivos artísticos de toda a equipe de produção.
A montagem de Augusto Jantar foi um desafio à parte, pois tratava de trabalhar a
ação na quase imobilidade. A imensidão do palco, aliada ao tamanho desproporcional
da sala de jantar e dos utensílios utilizados pelos atores, obrigava uma qualidade extra
na condição de quase imobilidade. A movimentação permitida pelos padrões da
„etiqueta‟ eram a medida da possibilidade de ação dos atores, já que o texto, como
sugere o título, propõe o jantar. A partir dessa condição, trabalhei no sentido de
promover a dilatação do corpo dos atores, não pela exageração da movimentação, mas
pela irradiação da segunda natureza do ator, desenvolvida no processo de treinamento,
durante os ensaios e durante o processo de formação até então, já que os atores
também eram alunos do curso. Ambos apresentavam o domínio dos elementos do
Sistema, condição indispensável para a montagem via Análise Ativa. E aqui temos
outro fator limitador dos procedimentos via Análise Ativa. A maior dificuldade foi
conseguir realizar todas as etapas da montagem dentro do prazo de um semestre
letivo, ou seja, quatro meses.
Ficou claro com meu processo de montagem do exercício de encenação do
quarto semestre que é imprescindível que o diretor compreenda a universalidade da
circunstância dada dentro do contexto da obra, para poder melhor conduzir o ator em
seu processo criativo interior, para que possa oferecer os melhores estímulos para sua
imaginação, para que a resposta seja o “como se” mais verossímil. O diretor empresta a
circunstância dada ao ator que cria o seu próprio “se” e age em resposta ao estímulo
circunstancial.
O exercício de encenação realizado no quinto e sexto semestres foi importante
para demonstrar que a ligação de todos os pequenos acontecimentos no
estabelecimento da linha transversal de ação do personagem é um processo gradual, e
na academia, muitas vezes esse processo não chegava nem mesmo a se estabelecer.
Isso acontecia pois os exercícios eram atropelados pelo início do próximo semestre
letivo, já que as apresentações eram o encerramento das atividades em cada semestre.
Além disso, a Universidade não oferecia uma estrutura de manutenção e circulação dos
espetáculos na forma de projetos de extensão. Com relação à linha direta de ação do
136
espetáculo, esta fica mais evidente por conta dos elementos exteriores de ajuda ao ator
e ao espectador, cenários, figurinos, adereços, iluminação, trilha sonora, enfim, um
arsenal de recursos técnicos dos quais pode lançar mão o diretor, mas que, no fim das
contas, se o ator não sustenta a cena, por si só não bastam para expressar a
completude da obra.
Neste caso em particular, a Disciplina Legislação e Produção me estimulou a
conseguir agendar apresentações para o espetáculo, que sobreviveu por quatro anos,
fazendo duas, três apresentações por ano e para os mais diversos públicos.
Apresentamos em escolas de Ensino Médio, eventos Científicos de Filosofia, cursos
pré-vestibular, participamos da Primeira Mostra Universitária de Teatro de Santa Maria
e em parceria com o Departamento de Artes Cênicas convertemos o espetáculo em um
vídeo de média-metragem. O vídeo não finalizado de forma adequada por falta de
recursos. Para se ter uma ideia, o orçamento cobriu apenas as despesas de aluguel de
(pouco) equipamento de iluminação. O material ficou engavetado por anos, até que
resolvi fazer uma edição caseira para ter uma ideia do resultado, pois só havia assistido
algumas tomadas do material bruto235. A pertinência de falar do vídeo está no fato de
que durante as gravações e assistindo ao material durante a montagem, pude perceber
a familiaridade dos atores com a movimentação e com as ações da peça, agora
transpostas para o vídeo, que obviamente apresenta um estilo teatral, quase tipificado
na representação. Eles repetiam a partitura com tamanha naturalidade, independente
de onde começassem a repetir, transitavam com leveza por qualquer acontecimento e
em qualquer momento desse acontecimento. Para mim, mais uma vez se comprovou o
caráter adaptativo da Análise Ativa, ao trabalhar no roteiro de montagem, e desta vez
numa outra linguagem, com a qual se comprova também que como instrumento de
análise, o método se mostra eficiente também na adaptação para roteiros.
Com a proximidade da finalização do Curso de Direção, para mim, enquanto
aspirante a diretor, ainda faltava explorar a “poética” da expressividade do corpo do ator
mais a fundo. A partir da eleição do conto de Marina Colassanti, essa possibilidade se
apresentou concretamente. O universo que a autora descortina em Onde os Oceanos
235
O resultado pode ser conferido em meu canal do Youtube, na web ou digitando-se “o amor é uma
falácia” em qualquer buscador.
137
se Encontram, uma ilha paradisíaca, habitada somente por duas ninfas irmãs,
cúmplices da morte, a seu serviço, era o desafio perfeito para o espetáculo de
graduação. O pequeno número de atores também motivou a eleição do texto, pois
poderia me dedicar mais tempo a cada um. Ao final do processo eram mais de 20
pessoas envolvidas na montagem. Com esta experiência ficou comprovado o amplo
espectro de atuação do diretor, que precisa estar apoiado em uma infinidade de outras
especialidades para conseguir concretizar sua concepção e afirmar-se como autor do
espetáculo. Sua autoria não desmerece o trabalho dos demais membros da equipe,
pois cada um, em sua especialidade, também é o autor daquilo que se concretizou com
o espetáculo, todos assinam o programa. E daí se pode tirar a grande lição:
generosidade e humildade são as qualidades mais necessárias à pratica do Teatro.
Não se pode fazê-lo sozinho. O Planejamento minucioso de cada fase também é
indispensável para o sucesso da montagem. Mas, principalmente a seleção do elenco e
da equipe de trabalho. Se faz necessário harmonizar a razão-vontade-sentimento de
cada artista envolvido no projeto e trabalhar com a estimulação do seu melhor,
possibilitando liberdade de criação, mas exigindo comprometimento.
Falar de meu processo artístico no mundo acadêmico acabou sendo o recorte
desta pesquisa. Não queria falar sobre meu processo e acabou que foi o que saiu no
momento da escrita. Cada vez mais percebia que falar do Método da Análise Ativa sem
falar do contexto em que ele foi desenvolvido e de como se deu sua transmissão até
ser por mim assimilado ao longo de minha trajetória artística, não soaria a amplitude do
estudo que o Método supõe.
Ao final desse processo, a impressão que tenho é que o comprometimento que o
Método exige faz com que ele seja um tipo de Passargada, onde poucos chegam e
quando chega percebe a pedra no sapato. A infinidade de elementos que se precisa
dominar para a aplicação de todo o seu potencial – analítico, improvisacional e
adaptativo – dificulta sua utilização. São necessários atores treinados nos elementos do
Sistema para sua aplicação efetiva e de modo funcional. De qualquer forma, se podem
utilizar os três aspectos que ela abrange isoladamente, conseguindo ainda assim algum
resultado.
138
Contudo, continuo um entusiasta, tanto do Sistema Stanislávski quanto do
Método da Análise Ativa, que contém em si o Método das Ações Físicas. Limitações
todos possuímos, e sempre que temos capacidade encontramos meios de superá-las. A
questão da assimilação dos elementos do sistema é só um fator temporal, e se houver
ao menos um grupo de atores com uma imaginação e disponibilidade, uma vez
assimilados os elementos permanecerão por bom tempo com o ator.
139
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
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Reynolds Hapgood foram deliberadamente ignoradas. Fazemos referência somente aos livros em Inglês
por conta dos estudos de Carnicke e Ruffini.
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148
ANEXO 1
ONDE OS OCEANOS SE ENCONTRAM236
Onde todos os oceanos se encontram, aflora uma ilha pequena. Ali, desde
sempre, viviam Lânia e Lisíope, ninfas irmãs a serviço do mar, que no manso regaço da
praia, vinha depositar seus afogados. Cabia a Lânia, a mais forte, tirá-los da
arrebentação. Cabia a Lisíope, a mais delicada, lavá-los com água doce de fonte,
envolvê-los nos lençóis de linho que ambas haviam tecido. Cabia a ambas devolvê-los
ao mar para sempre. E, na tarefa que nunca se esgotava, passavam as irmãs seus dias
de poucas palavras.
Foi num desses dias que Lânia, vendo um corpo emborcado aproximar-se
flutuando, entrou nas ondas para buscá-lo, e agarrando-o pelos cabelos o trouxe até a
areia. Já estava quase chamando Lisíope, quando, ao virá-lo de rosto para cima,
percebeu ser um homem jovem e lindo. Tão lindo como nunca havia visto antes. Tão
lindo, que preferiu ela própria buscar água para lavar aquele sal, ela própria, com seu
pente de concha, desembaraçar aqueles cachos.
Porém, ao envolvê-lo no lençol ocultando-lhe corpo e rosto, tão grande foi seu
sofrimento que, num susto, descobriu-se enamorada.
Não, ela não devolveria aquele moço, pensou com fúria de decisão. E rápida,
antes que Lisíope chegasse, correu para uma língua de pedra que estreita e cortante
avançava mar adentro.
- Morte! - chamou em voz alta chegando na ponta. - Morte! Venha me ajudar.
Não demorou muito, e sem ruído a Morte sai de dentro d'água.
- Morte - disse Lânia em ânsia -, desde sempre aceito tudo o que você me traz, e
trabalho sem nada pedir. Mas hoje, em troca de tantos que lhe devolvi, peço que seja
generosa, e me dê o único que meu coração escolheu.
Tocada por tamanha paixão, concordou a Morte, instruindo Lânia: na maré
vazante deveria colocar o corpo do moço sobre a areia, com a cabeça voltada para o
236
COLASANTI, Marina. Um Espinho de Marfim e outras histórias. São Paulo: L&PM Editores,1999, p.
75-78.
149
mar. Quando a maré subisse, tocando seus cabelos com a primeira espuma, ele
voltaria à vida.
Assim fez Lânia. E assim aconteceu que o moço abriu os olhos e o sorriso.
Mas, em vez de sorrir só para ela que o amava tanto, desde logo sorriu mais
para Lisíope, e só para Lisíope parecia ter olhos.
De nada adiantavam as insistências de Lânia, as descul-pas com que tentava
afastá-lo da irmã. De nada adiantava enfeitar-se, cantar mais alto que as ondas. Quanto
mais exigia, menos conseguia. Quanto mais o buscava para si, mais à outra ele
pertencia.
Então um dia, antes do amanhecer, ajoelhada sobre a ponta da pedra, Lânia
chamou novamente:
- Morte! Morte! Venha me atender.
E, quando a Silenciosa chegou, em pranto e raiva pediu-lhe que atendesse só ao
último de seus pedidos. Levasse a irmã. E mais nada quereria.
Seduzida por tamanho ódio, concordou a Morte. E instruiu: deveria deitar a irmã
sobre a areia lisa da maré vazante, com os pés voltados para o mar. Quando, subindo a
água, o primeiro beijo de sal a aflorasse, Ela a levaria.
E assim foi que Lânia esperou uma noite de luar, quente e perfumada, e
chegando perto de Lisíope lhe disse:
- Está tão linda a noite, minha irmã, que preparei tua cama junto à brisa, lá onde
a areia da praia é mais fina e mais lisa.
E, conduzindo-a até o lugar onde já havia posto seu travesseiro, ajudou-a a
deitar-se, cobriu-a com o linho do lençol.
Em seguida, sorrateira, esgueirou-se até uma árvore que crescia na beira da
praia, e subiu até o primeiro galho, escondendo-se entre as folhas. De olhos bem
abertos, esperaria para ver cumprir-se a promessa.
Mas a noite era longa, na brisa vinha cheiro de jasmim, o mar apenas
murmurava. E aos poucos , agarrada ao tronco, Lânia adormeceu.
Dorme Lânia na árvore, dorme Lisíope perto d'água, quando um raio de luar vem
despertar o moço que dorme, quase a chamá-lo lá fora com todo seu encanto. E ele se
levanta e sai. E estonteado de perfumes caminha, vagueia lentamente pela ilha, até
150
chegar à praia, e parar junto a Lisíope. No sono, o rosto dela parece fazer-se ainda
mais doce, boca entreaberta num sorriso.
Sem ousar despertá-la, o jovem se deita ao seu lado. Depois, bem devagar,
estende a mão, até tocar a mão delicada que emerge do lençol.
Sobe o amor no seu peito. Na noite, a maré sobe.
Já era dia quando Lânia, empoleirada no galho, despertou. Luz nos olhos,
procurou na claridade. Viu o travesseiro abandonado. Viu o lençol flutuando ao longe.
Da irmã, nenhum vestígio.
- A Morte fez o combinado - pensou, descendo para correr ao encontro do moço.
Mas não correu muito. Diante de seus passos, estampada na areia, deparou-se com a
forma de dois corpos deitados lado a lado. A maré já havia apagado os pés, breve
chegaria à cintura. Mas na areia molhada a marca das mãos se mantinha unida, como
se à espera das ondas que subiam.
151
ANEXO 2
Para verificar sua tese de que a biografia e os livros sobre o sistema seguem dia
a dia em sincronismo, Franco Ruffini realiza um estudo específico onde apresenta as
correspondências entre uma coluna e outra e, em nota, a exemplificação dessas
relações. Abaixo, segue a tradução da Tabela Comparativa das obras Minha Vida na
Arte e os dois volumes de O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo, do capítulo Trasmettere
l‟esperienza. I libri di Stanislavskij (Transmitir a experiência. Os Livros de Stanislávski).
In: RUFFINI, Franco. Stanislavskij: Dal Lavoro Dell‟Attore al Lavoro Su di Sé
(Stanislávski: Do Trabalho do Ator ao Trabalho Sobre Si). Roma. Editori Laterza: 2003,
pp. 27-35.
MINHA VIDA NA ARTE
O TRABALHO DO ATOR SOBRE SI MESMO
[NO PROCESSO DAS VIVÊNCIAS]
Primeiro volume
1863-1887
A
Infância
Artística
e
O
artista
na
237
Adolescência
não são ainda um tempo de
Stanislávski. Pertencem à vida de Konstantin
Alexéiev. Não deixam pistas conscientes do
“trabalho do ator sobre si mesmo" que
Konstantin Stanislavski conduz e experimenta na
escola de Tórtsov.
1888-1897
Começa a Juventude Artística. Dos primeiros
espetáculos da Sociedade Moscovita de Arte e
Literatura, até 'Otelo', que Stanislávski interpreta
em 1896, se desenrola o laborioso processo do
diletantismo aos limites do profissionalismo.
"Otelo" não foi um grande sucesso de público,
mas, sobretudo, foi para Stanislávski a prova
definitiva de que é impossível "espremer [de si]
[...] o sentimento trágico" a um comando.
Desenvolvem-se, durante esse período, todas as
variantes da imitação. Desde aquela de um
modelo formal externo com “O Cavalheiro
Avaro”, de Pushkin (1888), a aquela de um
modelo exterior, mas vivo, com “George Dandin”.
Stanislávski acreditava haver infundido nesse
modelo externo uma vida própria, mas não
demorou para reconhecer que “havia confundido
[...] uma espécie de histeria” com o ìmpeto da
verdadeira inspiração. Com “Um Destino
Amargo”, de Pisemski, Stanislávski pode criar a
237
Os alunos da escola apresentam [suas] cenas
ao professor. Tórtsov comenta, quando em
quando, advertindo-os contra a doença do
diletantismo que é a imitação. Ele finaliza os
testes de todas as turmas, mostrando a grande
distância que existe entre Arte Cênica e
artesanato cênico. A sua critica é primeiro contra
o modelo externo, de único efeito, ou mesmo
vivido. Quando o ator os imita, o que obtém é
somente “excitação artificial dos nervos
periféricos”. E mesmo imitando um modelo
criado por si mesmo, o ator não faz outra coisa
senão “repetir [uma] forma mecanicamente”. É a
vez de Kóstia, responsável pelo diário da Escola.
Irmana-se com “Otelo”. Tratando de “espremer
de [si] mesmo qualquer sentimento”, só
consegue cólica e rouquidão. Mas, no grito
“Sangue, Iago, sangue!”, Kóstia tem pela
primeira vez a experiência do “tornar-se”, e não
mais do imitar. Como subtrair esse resultado da
inspiração
casual?
Como
padronizar
/
Na tradução utilizo os títulos da edição brasileira de Minha Vida na Arte. (STANISLAVSKI, 1989) e das
edições argentinas de O Trabalho do Ator sobre Si Mesmo.(STANISLAVSKI, 1980 e 1983) (N.T.).
152
partir de si um paradigma, mas depois se limitou
a
imitá-lo.
A
primeira
experiência
verdadeiramente criativa se verifica com a
primeira [montagem de] “A Aldeia de
Stiepântchikovo” (1891), na qual Stanislávski é
finalmente capaz de “tornar-se” o personagem.
O
Encontro
Notável
com
NemiróvitchDântchenko (1897), durante o qual foi projetado
em detalhes o futuro Teatro de Arte de Moscou,
proporciona a entrada no território da "arte
cênica”.
1898-1906
Com os preparativos [de] Às Vésperas da
Inauguração do Teatro de Arte de Moscou e com
O Início da Primeira Temporada, começam as
atividades no Teatro de Arte [de Moscou]. A
memorável encenação de “A Gaivota” ficará
como emblema do Teatro de Arte, pintada na
cortina. Seguem o perìodo das “linhas
entrelaçadas”, ou seja, as realizações até a
morte de Tchekov: da Linha Histórica e de
Costumes (com as montagens de "Czar Feodor"
e "Júlio César", entre outras), à Linha do
Fantástico (com a montagem de “Branca de
Neve”), até a Linha Polìtico-Social (com a
montagem de “Um Inimigo do Povo”), só para
citar algumas. No fervor, até mesmo na
confusão, da busca artística de Stanislávski, há a
breve tentativa de colaboração com Meyerhold
no “Estúdio da Rua Povarskaia” (1905); há a
238
observação admirada dos quadros de Vrubel ,
nos quais Stanislávski descobre que o
movimento imaterial que vê não pode ser
alcançado
nem
procurando
na
própria
interioridade dos personagens pintados.
Em seguida há os sucessos de A Primeira
Viagem ao Exterior (1906), com o triunfo, em
particular, do personagem do Doutor Stockmann,
mas ainda com a insatisfação por este sucesso,
que só é sucesso pela “memória muscular”.
Acerca disso Stanislávski reflete num rochedo na
Finlândia, voltando-se para A Descoberta de
Verdades Há Muito Conhecidas. Juntamente
com a maturidade artística, começa a busca
programática pelo sistema. As experiências do
passado devem ser ordenadas em “prateleiras
do espìrito”. Stanislávski estabelece as “pedras
fundamentais” para suas pesquisas futuras.
238
sistematizar a arte cênica? Essa é a função da
escola, que está por começar.
No primeiro perìodo se colocam as “pedras
fundamentais” para a arte cênica. Não são
partes de um teorema. Não se poderão dar
como adquiridas de uma vez por todas como se
poderia fazer com as passagens pregressas de
uma dedução lógica. Há, primeiro de tudo, Ação.
O “Se”. As “Circunstâncias Dadas”. A ação deve
ser “fundamentada e útil”, para não degenerar
em imitação. Na cena, onde tudo é falso,
somente o “se” pode dar inìcio à ação, então “„a
circunstância dada‟ a desenvolve”. Em seguida a
Imaginação, que só pode nos transportar a outro
mundo se for disciplinada; A Atenção Cênica,
Mikhail Vrubel (1856-1910), pintor russo relacionado aos movimentos Simbolista e Art Nouveau. (N.T.)
153
para nunca se deixar levar pelo automatismo; a
Relaxação Muscular, sem a qual é impossível
focalizar a atenção; os Acontecimentos e
239
Objetivos
nos quais é preciso segmentar a
ação, para não perder sua presença; a Fé e
Sentido da Verdade, como condição –
preliminar, mas conquistada por esforço – para
agir de forma fundamentada e útil, apesar de, e
até mesmo através da ficção.
1907-1908
O Drama da vida, de Hamsun, com o qual fazem
seu ingresso no Teatro de Arte Satz e Sulier – o
cenógrafo Ilia Satz e Leopold Sulierjitski – é o
primeiro experimento consciente e programático
das verdades há pouco descobertas mas “há
muito tempo conhecidas”. Stanislávski busca
obter a “imobilidade trágica”. Não pode, diz ele,
pela falta de “boa convenção” cênica capaz de
sustentar o ator, e também pelo caráter
independente das paixões que deveriam ser
representadas naquele drama. A independência
das paixões dificulta – ao limite do impossível – o
ator utilizar seus recursos pessoais de memória
e emoção. O Veludo Negro, que colocado ao
fundo, permite que desapareça da vista tudo que
estiver pintado de preto, vai em direção à busca
por boas convenções cênicas: por boa
convenção deve-se entender “tudo aquilo que
auxilie na recitação do ator”. Stanislávski (re-)
descobre o veludo negro para a montagem de A
Vida de um Homem, de Andreiev. A visita [do]
Hóspede [Desconhecido] de Maeterlinck –
mestre do simbolismo – é a marca, ainda que
mundana, desta fase das pesquisas.
1909
Mas o bom convencionalismo cênico não é o
suficiente. Ocorre também que o desenho
psicológico do personagem [precisa] ser
detalhado e, de certa forma compatível com o do
ator. É isso mesmo o que se verifica com Um
Mês no Campo, de Turguêniev. Nesse
espetáculo, em que o personagem não possuía
o caráter absolutamente exagerado do drama de
Hamsun, Stanislávski, incapaz de se comunicar,
permanece praticamente imóvel. São suas,
finalmente, “radiações invisìveis da vontade do
sentimento”, que apesar de invisìveis podem ser
percebidas.
A ação real – explica Tórtsov – não é somente
ação exterior. Para adequar-se ao sentido da
verdade, a ação deve ser também – se não
principalmente – ação interior. O máximo da
ação pode ocorrer quando o ator está
“tragicamente inativo”. A ação interior deve
apoiar-se nas lembranças e emoções pessoais.
Mas despertar a Memória Emotiva não é fácil.
Não se pode agir diretamente. A ela só podemos
cercar de perguntas, de modo que em algum
momento você possa responder. O primeiro
recurso, e ainda a primeira ajuda para o ator,
vem da [própria] cena, quando esta foi feita
“para ajudar o ator”.
Apoiado por boas convenções cênicas,
firmemente ancorado na memória emotiva, que
é sua própria vivência, o ator poderá realizar a
Comunhão/Comunicação, com os companheiros
de cena e com os espectadores, sem precisar
recorrer a gestos e movimentos supérfluos, ou
seja, “somente com a irradiação”. A Adaptação
poderá então adequar a comunicação aos
conteúdos que o ator quer transmitir, naquela
situação específica.
1909-1913
239
Literalmente, “seções” e “tarefas”. Na edição argentina vê-se Unidades Y Objetivos.
154
Para um problema resolvido, a peça de
Turguêniev lhe abre, no entanto, outro ainda
mais grave. É a “nova paixão de Stanislávski”,
que se reforça ainda mais com o trabalho para
“Hamlet”, consequência do encontro com
Duncan e Craig: o “trabalho sobre o papel”.
Stanislávski decide afastar-se do Teatro de Arte
[de Moscou]. Tenta O “Sistema” Posto em
Prática na escola dramática Adasev, e decide
finalmente abrir O Primeiro Estúdio do Teatro de
Arte (1912): lugar de trabalho e de
experimentações intensas, mas também de
camaradagem
desinteressada,
como
testemunha a prática dos Kaputsniki, “repolho”
literalmente, espetáculos de cabaré com
montagem de números cômicos e clownescos
nos quais atuou o próprio Stanislávski.
As Forças Motrizes da vida psíquica (intelecto,
vontade, sentimento) se preparam para a
batalha com o papel. Todas as pedras
fundamentais são mobilizadas para obter, como
resultado de todo o processo O Subconsciente e
a Atitude do Ator em Cena, quando começa a
operar a “natureza criadora”.
[O TRABALHO DO ATOR SOBRE SI MESMO
NO PROCESSO DA ENCARNAÇÃO]
Segundo Volume
Única lacuna, e único pesar em momento futuro,
a insuficiente atenção aos problemas da
expressividade do corpo. Para se tornar eficaz, o
sistema requer exercícios sistemáticos. Mas
“todos esses exercìcios sistemáticos não foram
praticados”.
1914-1922
O resultado vem com os espetáculos
pushkianos, em particular “Mozart e Salieri”,
levado à cena em 1915. Não somente “as coisas
revividas se expressavam nos movimentos” –
relembra Stanislávski – “especialmente nas
palavras e na linguagem, contra minha vontade
se criava uma ruptura, uma dissonância”. Em
particular, para a palavra, sobretudo em versos,
não basta que o ator sinta, conclui Stanislávski.
No mais, O Ator Deve Saber Falar. Somente o
domínio da técnica poderá consentir-lhe que se
“afaste do papel”. Em “Mozart e Salieri”, ao invés
disso, a pressão dos sentimentos era tal que
Mas a psicotécnica não é suficiente, explica
Tórtsov, pressionado por seus próprios alunos.
Depois da descoberta inicial de que sem o
sentido da verdade o ator não consegue
realmente agir em cena, agora Stanislávski
descobre que o sentido da verdade, para ser
eficaz, não pode encontrar obstáculos na reação
física do organismo, que, portanto, deve ser
perfeitamente treinado. A Passagem para a
Encarnação, em outras palavras, requer um
adequado Desenvolvimento da Expressão
Corporal. Abrem-se as misteriosas salas da
escola de Tórtsov. Se começa com o trabalho
sobre a plasticidade. Entre os exercícios, fazer
escorrer uma imaginária bola de mercúrio, sem
deixá-la cair, por exemplo, dos ombros à mão.
Mas, adverte Tórtsov, ao ator não basta a
plasticidade exterior do dançarino. Acontece que
a ela é preciso associar a plasticidade interior.
Além do corpo, também A Voz e A Linguagem
devem ser adequadamente treinadas. O perfeito
controle do organismo físico e de suas funções
expressivas também permite ao ator estar
simultaneamente nas Perspectivas do Ator e do
Personagem. Sem esta capacidade, exemplifica
Tórtsov, as palavras não podem nunca se
conectar em “perìodos e pensamentos
completos”. É ao Tempo-Ritmo que Tórtsov e
seus
alunos
dedicam
maior
empenho.
“Abençoados os músicos, os cantores, os
dançarinos: podem contar com o metrônomo, o
diretor, o coreógrafo”. O ator deve suprir [tais
155
“cada palavra pronunciada era separada da
outra por grandes intervalos”.
Algum tempo depois, assistindo a um concerto,
Stanislávski descobre que á a música a chave
para resolver a fundo os problemas da palavra.
Inveja os cantores porque têm “a sua disposição
a batuta, a pausa, o metrônomo, o diapasão, a
harmonia, o contraponto”. Entrementes, com A
Revolução, acontece para o Teatro de Arte Uma
Catástrofe. Os atores profissionais se dispersam,
e a disponibilidade econômica e logística para
trabalhar se tornam cada vez mais escassas. De
sua inveja pelos cantores, Stanislávski pode
verificar a consistência trabalhando no Estúdio
de Ópera do Teatro Bolshói , de 1918 a 1922.
Aos cantores ensina o sistema, mas deles
aprende o valor do tempo e do ritmo. Não
somente, Stanislávski descobre também que o
cantor, graças à música, possui, em relação ao
ator, um importante instrumento a mais para a
vivência.
“Caim”, de Byron (1920) vem juntamente com
uma situação de extrema dificuldade. Mas é,
ainda assim, uma experiência útil. Stanislávski
descobre que, além de falar “no tempo e no ritmo
[...] devemos também saber como nos
movimentar no ritmo”. Idealiza para isso, um
Estúdio de balé.
1922-1924
Com a tournée euro-americana se conclui a
autobiografia de Stanislávski. Entre A Partida e o
Regresso, há um tempo de meditação, de olhar
em volta. Impera a forma, e Stanislávski não a
desaprova inicialmente. Só que, considera que
ela deve ser justificada, colocada em vida, para
que não seja vazia, mero formalismo. Avaliando
Um Resumo e o Futuro, define e esclarece sua
tarefa pedagógica. Escreverá sobre o sistema.
Ele anuncia sua articulação em: trabalho sobre si
mesmo e trabalho sobre o papel (a partir de um
texto), cada um por sua vez dividido em: trabalho
interior e trabalho exterior, vivência e
encarnação. Hoje, mais do que nunca, é
necessário garantir que o sistema não seja
tomado como um conjunto de fórmulas: um livro
de receitas.
carências] com seus próprios recursos: criar o
equivalente à música. Controlando o temporitmo da voz e da palavra, o ator não deve
somente expressar o sentimento, mas suscitá-lo.
“Entre o tempo-ritmo e o sentimento – diz
Tórtsov – há uma reciprocidade e uma
interdependência”.
Não tem validade somente para a voz e a
palavra, mas também para o movimento.
Executando a ação física segundo a Lógica e a
Continuidade/consequência, ou seja, com “o
tempo-ritmo correto”, a mesma coerência será
induzida na ação interior. Lembrem-se, diz
Tórtsov, que “quanto mais claras, concretas e
precisas sejam vossas ações, tanto menos
trairão vosso sentimento”.
A escola de Tórtsov se aproxima da conclusão
[do curso]. Depois de haver experimentado na
Caracterização a diferença entre forma vazia e
forma justificada, os alunos ouvem as
Considerações Finais. Tórtsov, com a ajuda do
assistente Rachmanov, faz o resumo do trabalho
desenvolvido naquele ano, dedicado ao trabalho
sobre si mesmo, em seus componentes da
vivência e da encarnação. O próximo ano será
dedicado ao trabalho sobre o papel, a partir de
um texto. Nas palavras de despedida, bem como
no balanço e em projetos futuros, ressoa/ecoa o
primeiro ensinamento de Tórtsov. Não existe
fórmula, nem sistema. Existe só a natureza
criativa. O trabalho do ator sobre si mesmo pode
servir somente para preparar o terreno.
156
Texto original da Tabela Comparativa das obras Minha Vida na Arte e os dois volumes
d‟O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo, do capítulo Trasmettere l‟esperienza. I libri di
Stanislavskij (Transmitir a experiência. Os Livros de Stanislávski). In: RUFFINI, Franco.
Stanislavskij: Dal Lavoro Dell‟Attore al Lavoro Su di Sé (Stanislávski: Do Trabalho do
Ator ao Trabalho Sobre Si). Roma. Editori Laterza: 2003, pp. 27-35.
LA MIA VITA NELL‟ARTE
IL LAVORO DELL‟ATTORE SU SE STESSO
Primo Tomo
1863-1887
L‟Infanzia artistica e l‟Adolescenza artistica non
sono ancora un tempo di Stanislavskij.
Appartengono alla vita di Konstantin Alekseev.
Non lasciano tracce consapevoli nel “lavoro
dell‟attore su se stesso” que Konstantin
Stanislavskij vorrà portare, e sperimentare nella
scuola di Torzov.
1888-1897
Comincia la Giovanezza artistica. Dalle prime
prove alla Società di arte e di letteratura di
Mosca, fino all‟”Otello”, che Stanislavskij
interpreta nel 1896, si snoda il faticoso processo
dal dilettantismo alle soglie del professionismo.
“Otello” non fu un grande successo di pubblico,
ma soprattuto fu per Stanislavskij la definitiva
riprova che è impossibile “spremere [...] il
sentimento tragico”, a comando. Si susseguono,
durante questo periodo, tutte le varianti
dell‟imitazione. Da quella di um modello esterno
formale con “il modello esterno formale con “il
cavaliere avaro” di Puskin (1888), a quello di un
modello esteriore però vivo con “Georges
Dandin”. Stanislavskij crede di aver infuso in
questo modello esterno una sua propria vita, ma
non tarda a riconoscere di “aver scambiato [...]
una sorta di isterismo” con l‟impeto della vera
inspirazione. Con “Destino amaro” di Pisemskij,
Stanislavskij riuscì a creare da sé il proprio
modello, ma poi si limitò ad imitarlo. La prima
experienza veramente creativa si verifica con il
primo “Villaggio Stepancikovo” (1891) in cui
Stanislavskij riesce finalmente a “diventare” il
personaggio. Il Famoso incontro con NemirovicDancenko (1897), durante il quale fu progettato
nei minimi dettagli il futuro Teatro d‟Arte di
Mosca, sancisce l‟ingresso nel territorio dell‟”arte
scenica”.
1898-1906
Con i preparativi Prima dell‟inaugurazione e con
l‟Inizio della prima stagione, comincia l‟attività al
Teatro d‟Arte. La memorabile messincena del
“Gabbiano” resterà, con l‟immagine dipinta nel
Gli allievi della scuola presentano delle scene al
maestro. Torzov commenta, di volta in volta,
mettendoli in guardia da quella malattia del
Dilettantismo che è l‟imitazione. Ne prende via via
in esame tutti i gradi, mostrando la grande
distanza tra Arte scenica e mestieri scenico. La
sua critica è dapprima contro i modelli esterni, di
solo effetto, o anche vissuti. Quando l‟attore li
imita, quello che ottiene è solo “eccitazione
artificiale dei nervi periferici”. E anche imitando un
modello creato da se stesso, l‟attore non fa altro
che “ripetere [una] forma meccanicamente”. È la
volta di Kostia, responsabile del diario della
Scuola. Si cimenta con “Otello”. Cercando di
“spremere da [se] stesso qualche sentimento”,
ottiene solo crampi e raucedine. Ma, nell‟urlo
“Sangue, Jago, sangue!”, Kostia per la prima volta
ha l‟esperienza del “diventare”, e non più
dell‟imitare. Come sottrarre questo risultato alla
casuale ispirazione? Come padroneggiare l‟arte
scenica? A questo serve la scuola, che sta per
cominciare.
157
sipario, come emblema del Teatro d‟Arte. Segue
il periodo delle “linee intrecciate”, cioè delle
realizazioni fino alla morte di Chechov: dalla
Linea storico-di costume (con le messe in scena
di “Zar Fëdor” e di “Giulio Cesare”, tra le altre),
alla Linea del fantastico (con la realizzazione
della “Fanciulla di neve”), alla Linea politicosociale (con la messa in scena di “Un nemico del
popolo”), solo per citare alcune. Nel fervore, ma
anche nella confusione, della ricerca artistica di
Stanislavskij, c‟è il breve tentativo di
collaborazione con Mejerchol‟d allo Studio sulla
Povarskaja (1905); c‟è l‟osservazione ammirata
dei quadri di Vrubel‟, in cui Stanislavskij scopre
che le movenze immateriali che vede no possono
essere raggiunte né cercandole nella propria
interiorità di attore né cercandole nell‟interiorità
dei personaggi dipinti. Poi ci sono i sucessi de
Primo viaggioall‟estero (1906), con il trionfo, in
particolare,
del
personaggio
del
Dottor
Stockmann, ma anche com l‟insoddisfazione per
questo successo, che è solo un successo per
“memoria dei muscoli”.
A questo riflette Stanislavskij dallo scoglio in
Finlandia, teso verso la Scoperta di verità da
lungo tempo note. Insieme alla maturità artistica,
inizia la ricerca programmatica per il sistema. Le
esperienze passate devono essere ordinate in
“scaffali dell‟anima”. Stanislavskij getta le “pietre
di fondamenta” per le sue ricerche future.
1907-1908
Il Dramma della vita, di Hamsun, con il quale
fanno il loro ingresso al Teatro d‟Arte Sac e Suler
– lo scenografo il‟ja Sac e Leopol‟d Sulerzickij – è
il
primo
esperimento
consapevole
e
programmatico delle verità da poco scoperte ma
“da lungo tempo note”. Stanislavskij cerca di
ottenere l‟”immobilità tragica”. Non vi riesce,
racconta, per la mancanza di “buone
convenzione” sceniche in grado di sostenere
l‟attore, e anche per il carattere assoluto delle
Nel primo periodo, si pongono le “pietre di
fondamenta” per l‟arte scenica. Non sono
passaggi di un teorema. Non le si potrà mai dare
per acquisite una volta per tutte, come si potrebbe
fare per passaggi pregressi di una deduzione
logica. Ci sono, prima di tutto, L‟azione. I “se”. Le
“circostanze date”. L‟azione deve essere “fondata
e utile”, per non degenerare in imitazione. Nella
scena, dove tutto è finto, solo il “se” può dare
avvio all‟azione, quindi “‟le circostanze date‟ la
sviluppano”. Poi L‟immaginazione, che può
portarci in un altro mondo solo se è disciplinata;
l‟Attenzione scenica, per non lasciarsi mai andare
all‟automatismo; la Distensione muscolare, senza
la cuale è impossibilefocalizzare l‟attenzione; le
Sezione e compiti in cui bisogna segmentare
l‟azione, per non perdere la presenza; il Senzo del
vero, come condizione – preliminare ma
conquistata a fatica – per agire in modo fondato e
utile, nonostante e anzi attraverso la finzione.
L”azione reale – spiega Torzov – non è solo
azione esteriore. Per adeguarsi al senso del vero,
l‟azione dev‟essere anche – se non soprattutto –
azione interiore. Il massimo di azione può aversi
quando l‟attore è “tragicamente inattivo”. L‟azione
interiore deve appoggiarsi ai ricordi e alle
emozione personalli. Ma destare la Memoria
emotiva non è facile. Non si può agire
direttamente. La si può solo circondare di richiami,
in modo che ad un certo punto vi risponda. I primi
158
passioni che in quel drama si dovevano
rappresentare. L‟assolutezza delle passioni
rende difficile – e al limite impossibile – all‟attore
far ricorso al proprio patrimonio personale di
ricordi ed emozioni. Il Velluto nero, che collocato
in fondale consente di far sparire alla vista tutto
quello che è colorato in nero, va nella direzione
della ricerca di buone convenzioni sceniche:
dove per buona convenzione deve intendersi
“tutto ciò che giova alla recitazione dell‟attore”.
Stanislavskij (ri-)scopre il velluto nero per la
messa in scena della Vitta dell‟uomo, di Andreev.
La visita Ospiti di Maeterlinck – maestro del
simbolismo – è il suggelo anche mondano di
questa fase di recerca.
1909
Ma le buone convenzioni sceniche non bastano.
Ocorre anche che il disegno psicologico del
personaggio sia particolareggiato e, in certo
modo, compatibile con quello dell‟attore. Proprio
questo ora si verifica con Un mese in campagna
di Trigenev. In questo spettacolo, in cui il
personaggio non aveva l‟assolutezza smisurata
del dramma di Hamsun, Stanislavkij riesce a
comunicare,
pur
restando
praticamente
immobile. Le sue sono, finalmente, “invisibili
radiazoni della volontà e del sentimento”, che pur
essendo invisibili giungono a segno.
1909-1913
Per un problema risolto, il dramma di Turgenev
ne apre però un altro ancora più grave. È la
“nuova infatuazione di Stanislavskij”, che si
rafforza ancora di più con le lavoro per l‟”Amleto”,
conseguente all‟incontro con Duncan e Craig: il
“lavoro sulla parte”. Stanislavskij decide di
staccarsi dal Teatro d‟Arte. Tenta un primo
Esperimento per l‟attuazione del “sistema” alla
scuola drammatica Adasev, e decide infine di
aprire un suo Primo Studio (1912): luogo di
lavoro e di sperimentazione intensi,ma anche di
scanzonato cameratismo, come testimonia la
pratica dei Kaputsniki, alla lettera “cavolate”,
spettacoli cabarettistici con montaggio di numeri
comici o clowneschi, nei quali si cimentò lo
stesso Stanislavskij.
richiami, e dunque il primo aiuto per l‟attore,
vengono dalla scena, quando questa sia formata
“per aiutare l‟attore”.
Sostenuto da buone convenzioni sceniche,
solidamente ancorato alla memoria emotiva, cioè
al proprio vissuto, l‟attore potrà realizzare la
Comunicazione, con i compagni di scena e con gli
spettatori, senza dover ricorrere a gesti e
movimenti superflui, cioè “con le sole radiazioni”.
L‟Adattamento
potrà
poi
adeguare
la
comunicazione ai contenuti che l‟attore vuole
trasmettere, nella situazione specifica.
I mottori della vita psichica (inteleto, volontà,
sentimento) si preparano a dar battaglia alla parte.
Tutte le pietre di fondamenta vengono mobilitate
per arrivare, come esito dell‟intero processo Alle
soglie del subconsciente, là dove comincia l‟opera
della “natura creatrice”.
Secondo Tomo
Unica lacuna, e unico rimpianto poi nel futuro,
l‟insuficiente
attenzione
ai
problemi
dell‟espressività del corpo. Per rendere efficace il
sistema, occorrono esercizi sistematici. Ma “tutti
questi esercizi sistematici non furono praticati”.
Ma la psicotecnica non basta, spiega Torzov
incalzato dai suoi stessi allievi. Dopo l‟iniziale
scoperta che senza il senso del vero l‟attore non
riesce ad agire realmente in scena, ora
Stanislavskij scopre che il senso del vero, per
essere efficace, non deve trovare ostacoli nella
159
reazione dell‟organismo fisico, il quale dunque
deve essere perfettamente allenato. Il Passaggio
all‟incarnazione, in altre parole, richiede un
adeguato Sviluppo dell‟espressività del corpo. Si
aprono le stanze misteriose della scuola di Torzov.
Si comincia con il lavoro sulla plasticità. Tra gli
esercizi, un‟immaginaria pallina di mercurio da far
scorrere senza farla cadere, ad esempio dalla
spalla alla mano. Ma, avverte Torzov, all‟attore
non basta la plasticità esteriore del danzatore.
Occorre che ad essa si associ la plasticità
interiore.
1914-1922
La resa dei conti arriva con gli spettacoli
puskiani, in particolare “Mozart e Salieri”, andato
in scena nel 1915. Non appena “le cose rivissute
si esprimevano nel movimento – ricorda
Stanislavskij – especialmente nelle parole e nel
linguaggio, contro la mia volontà si creava una
rottura, una stonatura”. In particolare, per la
parola, soprattutto se in versi, non basta che
l‟atore senta, conclude Stanilasvskij. In più,
L‟attore deve saper parlare. Solo la padronanza
tecnica potrà consentirgli di “allontanarsi dalla
parte”. In “Mozart e Salieri”, invece, la pressione
del sentimento era tale che “ogni parola gonfiata
era divisa dall‟altra da grandi intervalli”.
Ascoltando, qualche tempo dopo, un concerto,
Stanislavskij scopre che è la musica la chiave
per risolvere in profondità i problemi della parola.
Invidia i cantanti perché hanno “a dispozicione le
battute, le pause, il metronomo, il diapason,
l‟armonia, il contrapunto”. Nel frattempo, con La
rivouzione è sopravvenuta per il Teatro d‟Arte La
Catastrofe. Gli attori professionisti si disperdono,
e le disponibilità economiche e logistiche per
lavorare diventano sempre più esigue. Della sua
invidia per i cantanti, Stanislavskij può verificare
la consistenza lavorando, dal 1918 al 1922, ad
uno Studio operistico al Bol‟soj. Ai cantanti
insegna il sistema, ma da loro apprende il valore
del tempo e del ritmo. Non solo, Stanislavskij
scopre anche che il cantante, grazie alla musica,
ha un importante strumento in più rispetto
all‟attore per la reviviscenza.
“Caino” di Byron (1920) viene allestito in una
situazione di estrema difficoltà. Ma è, comunque,
un‟esperienza utile. Stanislavskij scopre che,
oltre che parlare “a tempo e a ritmo [...]
dobbiamo anche sapere altrettanto bene
muoverci a ritmo”. Sogna, per questo, un Studio
di balletto.
1922-1924
Con la tournée euro-americana si conclude
l‟autobiografia di Stanislavskij. Tra La partenanza
e il ritorno, ha il tempo di meditare, di guardarsi
Oltre il corpo, anche La voce e la parola vanno
adeguatamente addestrate. Il perfetto controllo
dell‟organismo fisico e delle sue funzione
espressive consente inoltre all‟attore di essere
contemporaneamente nella Prospettiva dell‟attore
e della parte. Senza questa capacità, esemplifica
Torzov, le parole non potranno mai collegarsi in
“periodi e pensieri completi”. È al Tempo-ritmo che
Torzov e i suoi allievi dedicano il maggior
impegno. “Beati i musicisti, i cantanti i ballerini:
essi hanno il metronomo, il direttore, il
coreografo”. L‟attore deve supplire con le sue sole
risorse: creare l‟equivalente della musica.
Controllando il tempo-ritmo della voce e della
parola, l‟attore può non solo esprimere il
sentimento, ma suscitarlo. “Tra il tempo-ritmo e il
sentimento – dice Torzov – c‟è una reciprocità e
una interdipendenza”.
Non vale solo per la voce e la parola, ma anche
per il movimento. Eseguendo l‟azione fisica
secondo Logica e consequenzalità, cioè com “il
tempo-ritmo giusto”, la stessa coerenza si troverà
indotta nell‟azione interiore. Ricordate, dice
Trozov, che “quanto più chiare, concrete e precise
saranno le vostre azioni, tanto meno tradirete il
vostro sentimento”.
La scuola di Torzov si avvia alla conclusione.
Dopo aver sperimentato nella Caratterizzazione la
differenza tra forma vuota e forma giustificata, gli
160
intorno. Impera la forma, e Stanislavskij non la
disapprova per principio. Solo, ritiene che essa
debba essere giustificata, messa in vita, per non
estare vuoto formalismo. Valutando I risultati e il
futuro, definisce e precisa il suo compito
pedagogico.
Scriverà
sul
sistema.
Ne
preannuncia l‟articolazione in: lavoro su se stessi
e lavoro sulla parte (a partire da un testo),
ognuno dei quali a sua volta articolato in: lavoro
interiore e lavoro esteriore, reviviscenza e
personificazione. È più che mai necessario, oggi,
affinché il su sistema non venga preso per un
insieme di formule: un ricettario di cucina.
allievi ascoltano gli Ultimi colloqui. Torzov, con
l‟aiuto dell‟assistente Rachmanov, fa il riepilogo
del lavoro svolto quell‟anno, dedicato al lavoro su
se stesso, nelle sue componenti della reviviscenza
e della personificazione. L‟anno prossimo sarà
dedicato al lavoro sulla parte, a partire da un testo.
Nelle parole di congedo, oltre a bilanci e progetti a
venire, risuona l‟insegnamento primo di Torzov.
Non esistono formule, né sistemi. Esiste solo la
natura creatrice. Il lavoro dell‟attore su se estesso
può servire solo a preparare il terreno.
161
ANEXO 3
Tradução da nota número 22 do capítulo Trasmettere l‟esperienza. I libri di
Stanislavskij (Transmitir a experiência. Os Livros de Stanislávski), de Franco Ruffini. Na
nota se podem ler as exemplificaçoes das relações entre Minha Vida na Arte e O
Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo em seus dois volumes relacionadas na tabela
comparativa acima. In: RUFFINI, Franco. Stanislavskij: Dal Lavoro Dell‟Attore al Lavoro
Su di Sé (Stanislávski: Do Trabalho do Ator ao Trabalho Sobre Si). Roma. Editori
Laterza: 2003, pp. 135-136.
Para uma discussão geral sobre o assunto, cfr. F. Ruffini, Romance Pedagógico.
Um estudo sobre os livros de Stanislávski240, cit. O período [citado] entre [os anos de]
1914-1920 é o ano de 1917, apresentado como ano divisor de águas na edição russa.
Logicamente, não é só por este motivo que Stanislávski trabalhou com particular
atenção [na edição russa]; já o mencionamos. [A diferença] pode ser vista também
numa comparação puramente quantitativa. Os capítulos A Guerra, A Segunda
Revolução, O Estúdio de Ópera, da edição americana se multiplicam na edição russa
em O Ator deve saber falar, A revolução, A catástrofe, Caim, O Estúdio de Ópera do
Teatro Bolshói. Mas há sobretudo uma mudança qualitativa: com “O ator deve saber
falar”, quase dando indicações de uma "coluna do conhecimento". Assim é, na verdade.
O capítulo se refere aos espetáculos pushkinianos, em particular a Mozart e Salieri,
encenada em 1915. Às voltas com os versos e com a profundidade psicológica do
personagem, a Stanislávski se revelam todas as suas carências técnicas relativas ao
uso da voz. A estes problemas é dedicado o capítulo correspondente do outro livro [O
Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo No Processo da Encarnação], A Voz e a
linguagem241. Stanislávski relembra, também, sua incapacidade naquela ocasião de
240
O artigo pode ser encontrado traduzido ao espanhol em MÁSCARA – Cuaderno Iberoamericano de
Reflexión sobre escenologia. Año 3, nº 15. Stanislavski: Ese Desconocido. México. Escenologia A. C.:
10/1993. RUFFINI, Franco. Novela Pedagogica – un estúdio sobre los libros de Stanislavski (Romance
Pedagógico. Um estudo sobre os livros de Stanislávski). Tradução de Margherita Pavia. Há também
neste artigo uma versão resumida da tabela comparativa entre Minha vida na arte e os dois volumes de
O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo.
241
Como utilizo as versões em espanhol da Quetzal, traduzo “linguagem” ao invés de “palavra”, como no
original italiano.
162
“distanciar-se do papel”: e raciocina em seguida, em termos de conhecimento, no
próximo capítulo do livro sobre o sistema, Perspectivas do ator e do personagem. Fica
convencido de que para “a arte de falar e de ler versos” é preciso em primeiro lugar
“procurar [as] bases na música” (La mia vita nell‟arte, cit., p. 450): e é à procura destas
bases que dedica o capítulo seguinte do livro sobre o sistema, Tempo-ritmo. Graças às
respectivas variações, o bloco da autobiografia da Revolução ao Estúdio de Ópera do
Teatro Bolshói corresponderá, ponto por ponto e na mesma ordem, ao bloco do livro
sobre o sistema de A Voz e a linguagem até Tempo-ritmo. Ainda mais exemplar é a
situação do período que vai de 1907 a 1914. Estes são os dois índices. Para a versão
russa: A descoberta de verdades há muito conhecidas, O drama da Vida, I. A. Satz e L.
A. Sulierjitski, O Veludo Negro, A vida de um Homem, Hóspedes de Maeterlinck, Um
mês no Campo, Duncan e Craig, O “sistema” posto em prática, O Primeiro Estúdio do
Teatro de Arte; para a edição americana: O Começo do meu Sistema, Leopold
Sulerjitsky, O Drama da Vida; Decepções, A Vida de um Homem, Um Visitante de
Maeterlinck, Duncan e Craig, A Fundação do Primeiro Studio, Um Mês no Campo. Além
das variações de estilo e de sotaque, as mudanças estruturais são impressionantes.
Stanislávski desloca o capítulo sobre O Drama da Vida para logo depois de A
Descoberta de Verdades Há Muito Conhecidas, e antecipa o capítulo sobre Um Mês no
Campo para antes daquele sobre Hamlet realizado com Gordon Craig. Assim fazendo,
delineia um percurso biográfico que se pode percorrer, em perfeito sincronismo no outro
livro. Por pontos: o Stanislávski que para o Drama da Vida tinha tomado “aos atores
todos os meios exteriores de interpretação” se reflete em Kóstia obrigado a ficar
“tragicamente inativo” (La Mia Vita Nell‟Arte, cit., p. 377-78); o Stanislávski que
finalmente em Um Mês no Campo foi capaz de dominar a imobilidade trágica se reflete
nos alunos de Tórtsov tentando se comunicar “com as suas irradiações”; e, por fim, em
relação ao trabalho sobre o papel, Tórtsov relembra que uma estátua desmembrada em
partes perde todo o seu fascínio, repetindo com as mesmas palavras aquilo que
Stanislávski havia dito em Minha Vida na Arte a propósito de Hamlet (p. 421). Graças às
eventuais variações, o bloco da autobiografia de O Drama da Vida a Duncan e Craig irá
corresponder, ponto por ponto e na mesma ordem, ao bloco de O trabalho do ator
sobre si mesmo [no processo das vivências] desde Fé e Sentido da Verdade até As
163
forças Motrizes da Vida Psíquica. A mesma correspondência se pode verificar para
todos os blocos paralelos dos dois livros, e para os dois livros juntos.
164
Texto original da nota número 22 do capítulo Trasmettere l‟esperienza. I libri di
Stanislavskij (Transmitir a experiência. Os Livros de Stanislávski). In: RUFFINI, Franco.
Stanislavskij: Dal Lavoro Dell‟Attore al Lavoro Su di Sé (Stanislávski: Do Trabalho do
Ator ao Trabalho Sobre Si). Roma. Editori Laterza: 2003, pp. 135-136.
Per una trattazione generale dell‟argomento, cfr. F. Ruffini,
Romanzo
Pedagogico. Uno studio sui libri di Stanislavskij, cit. Al centro del periodo 1914-1920 c‟è
quell‟anno 1917 introdotto come ulteriore spartiacque nell‟edizione russa. Logico, non
foss‟altro per questo motivo, che Stanislavskij vi dovesse lavorare con particolare
attenzione; ne abbiamo già accennato. Lo si vede anche ad un puro raffronto
quantitativo. I capitoli The War, The Second Revolution, The Opera Studio, dell‟edizione
americana si moltiplicano, nell‟edizione russa, in L‟attore deve saper parlare, La
rivoluzione, La catastrofe, Caino, Lo studio operístico al Bol‟soj. Ma c‟è soprattutto il
cambiamento qualitativo: con quell”attore che deve saper parlare”, a pretendere quasi
indicazioni dalla “colonna delle conoscenze”. Cosí è, infatti. Il capitolo si riferisce agli
spettacoli puskiniani, e in particolare a Mozart y Salieri, andato in scena nel 1915. Alle
prese con i versi e con la profondità psicologica del personaggio, a Stanislavskij si
rivelarono tutte le sue carenze tecniche relative all‟uso della voce. A questi problemi è
dedicato il capitolo corrispondente dell‟altro libro, Voce e parola. Stanislavskij ricorda,
inoltre, l‟incapacità in quell‟occasione di “allontanarsi dalla parte”: e ne ragiona quindi,
sul piano della conoscenza, nel successivo capitolo del libro sul sistema, Prospettiva
dell‟attore e della parte. Si convince che per “l‟arte del parlare e del leggere versi” è
necessario prima di tutto “cercare [le] basi nella musica” (La mia vita nell‟arte, cit., p.
450): ed è alla ricerca di queste basi che è dedicato il capitolo successivo del libro sul
sistema, Tempo-ritmo. Grazie alle variazioni apportatevi, il blocco dell‟autobiografia dalla
Rivoluzione a Lo studio operistico al Bol‟soj va a corrispondere, punto per punto e nello
stesso ordine, al blocco del libro sul sistema da Voce e parola a Tempo-ritmo. Ancora
più esemplare è la situazione per il periodo che va dal 1907 al 1914. Questi sono i due
indici. Per la versione russa: Scoperta di verità da lungo tempo note, Dramma della vita,
Sac e Sulerzickij, Il velluto nero, Vita dell‟uomo, Ospiti da Maeterlinck, Un mese in
campagna, Duncan e Craig, L‟esperimento pel l‟attuazione del “sistema”, Il primo studio;
165
per l‟edizione americana: The Beggining of my System, Leopold Sulerjitsky, The Drama
of Life; Disappointments, The Life of Man, A Visit to Maeterlinck, Duncan and Craig, The
Founding of The First Studio, A Month in The Country. A parte le variazioni di stile e
d‟accento, i cambiamenti strutturali sono imponenti. Stanislavskij sposta il capitolo sul
Dramma della vita subito dopo la Scoperta di verità da lungo tempo note, e anticipa il
capitolo su Un mese in campagna a prima di quello sull‟Amleto realizzato con Gordon
Craig. Così facendo, delinea un percorso biografico che può riproporsi, in perfetto
sincronismo nell‟altro libro. Per punti: lo Stanislavskij che per il Dramma della vita aveva
tolto “gli attori tutti i mezzi esteriore di interpretazione” si specchia in Kostia obbligato a
restare “tragicamente inattivo” (La mia vita nell‟arte, cit., pp. 377-78); lo Stanislavskij che
finalmente in Un mese in campagna riesce a dominare l‟immoblità tragica si specchia
negli allievi di Torzov che cercano di comunicare “con le sole radiazioni”; e infine Torzov
che, in rapporto al lavoro sulla parte, ricorda che una statua disunita in pezzi perde tutto
il suo fascino, richiama con le stesse parole ciò che Stanislavskij aveva detto nella Mia
vita nell‟arte a proposito dell‟Amleto (p. 421). Grazie alle variazioni apportatevi, il blocco
dell‟autobiografia dal Dramma della vita a Duncan e Craigi va a corrispondere, punto per
punto e nello stesso ordine, al blocco del Lavoro dell‟attore su se stesso dal Senso del
vero a I motori della vita psichica. La stessa corrispondenza si potrebbe verificare per
tutti i blocchi paralleli dei due libri, e per i due libri nel loro insieme.
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