Graciliano Ramos VIDAS SECAS ´ DA OBRA ANALISE DÁCIO ANTÔNIO DE CASTRO PERFIL BIOGRÁFICO Graciliano Ramos (Quebrangulo, AL, 1892 — Rio de Janeiro, RJ, 1953) foi o mais velho dos dezesseis filhos do casal Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro. Em 1894, seu pai trocou o comércio pela criação de gado e se transferiu para a fazenda Pintadinho, arredores de Buíque, no estado de Pernambuco, onde Graciliano fez seus primeiros estudos. Um longo período de seca tornou impossível a vida na fazenda, e, em 1904, a família retornou para Viçosa (Alagoas). De 1911 a 1914, ajudou o pai numa loja de tecidos, em Palmeira dos Índios. Entre um freguês e outro, escreve sonetos e crônicas, enviados para jornais alagoanos e cariocas. Aos 22 anos vai para o Rio de Janeiro, para trabalhar como revisor. Em 1915, a morte de três irmãos e um sobrinho, vítimas da peste bubônica, o traz de volta a Palmeira dos Índios. Retoma o comando da loja Sincera. Rascunha seus primeiros contos, dois dos quais — “A carta” e “Entre grades”, sob decisiva influência de Eça de Queirós, serão os embriões dos romances São Bernardo e Angústia. Em 1926, é nomeado presidente da Junta Escolar da cidade. Sua verve e inteligência como pedagogo impressionam favoravelmente os políticos da região, que o lançam candidato a prefeito de Palmeira dos Índios. Vitorioso, realiza notável administração, de que dão conta dois relatórios enviados ao governador Álvaro Paes. Redigidos com modéstia e informalismo, revelam a competência do prefeito e antecipam o brilhante estilista que Vidas secas e Infância confirmariam. É nomeado diretor da Imprensa Oficial do Estado de Alagoas, renunciando a dois anos de mandato na prefeitura. Pouco antes de deixar a prefeitura, recebe uma carta de Augusto Frederico Schmidt, que o consultava a respeito da possibilidade de ele escrever um romance. Caetés, que já vinha sendo escrito há cinco anos, será editado por Schmidt em dezembro de 1933. Com a revolução de 1930, Graciliano Ramos afasta-se do cargo público e retorna a Palmeira dos Índios. Nos fins de tarde, refugia-se na sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Amparo, onde escreve os primeiros capítulos de São Bernardo. Em 1933, torna-se diretor da Instrução Pública, operando drásticas modificações na estrutura educacional de Alagoas. Em março de 1936 é preso, sob a acusação de ser aliancista. É conduzido ao Recife, e de lá enviado ao Rio de Janeiro. Essa experiência virá relatada em Memórias do cárcere, Foto de Graciliano com seu filho, o escritor Ricardo Ramos. de publicação póstuma. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 105 • ANGLO VESTIBULARES Libertado, hospeda-se na casa de José Lins do Rego, um dos amigos que mais se empenharam por sua libertação. Fixa-se no Rio de Janeiro. Em 1940, é nomeado inspetor federal de ensino secundário. Adere oficialmente ao Partido Comunista Brasileiro em 1945, ano em que começa a trabalhar como revisor no Correio da Manhã (RJ). Em 1951, é eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores. É convidado a visitar a União Soviética, Tchecoslováquia, Portugal e França, experiência relatada na obra Viagem. De volta ao Brasil, consulta médicos sobre fortes dores no peito que sentira durante a viagem. Estes lhe recomendam ir à Argentina, onde especialistas diagnosticam um câncer na pleura em estágio avançado. Como a cirurgia fosse inútil, recomendam seu retorno ao Brasil; os cinco meses seguintes, Graciliano suporta à base de morfina. Falece no Rio, aos sessenta anos. O SEGUNDO TEMPO MODERNISTA Vidas secas é uma obra que se insere no ciclo do romance regionalista nordestino desenvolvido ao longo da década de 1930, constituindo-se num dos marcos do Neo-Realismo na literatura brasileira. O crítico Tristão de Athayde refere-se à década de 1930 do seguinte modo: “Passou a hora das coisas bonitas”. Com efeito, um grupo de escritores nortenordestinos mobilizou-se para tomar os problemas da região como pano de fundo de sua experiência literária. A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, é considerado o marco inicial do ciclo do romance regionalista nordestino. O FILÃO REGIONALISTA Desde o Romantismo, o regionalismo se constituiu num dos filões temáticos mais explorados pelos escritores brasileiros. A convicção de que o verdadeiro Brasil é o do sertão decorre do modo “caranguejo” como se processou a colonização portuguesa, que procurou se concentrar no litoral, dada a dificuldade de penetração no interior do país. Essa convicção, de fundo nacionalista, reforça-se com a Independência, levando escritores a enveredar pelo sertanismo. José de Alencar (O sertanejo, 1876) e Frânklin Távora (O cabeleira, 1876) são os escritores que melhor representam essa tendência, ao oferecerem uma visão grandiloqüente e apocalíptica da seca de 1777. No Realismo, em sintonia com a teoria do determinismo que influencia a estética, o regionalismo se “desidealiza”. Os autores mostram-se agora empenhados em revelar como a realidade é influenciada por pressões exercidas pelo meio, pela raça e pelo momento histórico. Escritores como Rodolfo Teófilo (A fome, 1888), Domingos Olímpio (Luzia homem, 1903) e, principalmente, Oliveira Paiva (D. Guidinha do Poço, SISTEMA ANGLO DE ENSINO 1891, publicado em 1952) passam a denunciar aspectos retrógrados de nossa organização rural, como o regime de apropriação da terra, o aproveitamento e a transformação dos recursos naturais, a permanência das relações de trabalho nos mesmos moldes da era colonial. A prosa pré-modernista, ainda alinhada com a concepção, instaurada pelo Realismo, de arte como instrumento de crítica social, alargou essa visão problematizadora da sociedade rural brasileira, incorporando ao texto literário as particularidades sintáticas, fonéticas e vocabulares do falar regional. Duas obras do período que se estende do Realismo ao Pré-Modernismo podem ser consideradas como antecipadoras e/ou preparadoras de Vidas secas. A saga do vaqueiro nordestino em sua lida diária com o gado e as exíguas possibilidades de sobrevivência que lhe restam nos períodos da seca, deixando-lhe como única saída a migração, foram temas explorados, inicialmente, em Dona Guidinha do Poço, romance realista-naturalista de Manuel de Oliveira Paiva (1861-1892), cujo estilo lembra o de Graciliano Ramos, pelo despojamento e pela inclusão de vocábulos e expressões regionais: Estava-se em fevereiro e nem um pingo de água. O poço da Catingueira, o mais onça da ribeira do Banabuiú, que em 1825 não pôde esturricar, sumia-se quase na rocha, entre as enormes oiticicas, de um lado, e do outro o saibro do rio. Era um trabalhão para os pobres vaqueiros: aqui, alevantar uma rês caída; ali, fazer sentinela nas aguadas a fim de proteger o gado amofinado contra a crueldade do mais forte; e, todos os dias que dava Nosso Senhor, cortar rama. E ainda tinham de percorrer constantemente as veredas e batidas para acudir prontamente à rês inanida de fome e sede, perseguir os porcos, que algum desalmado vizinho teimava em criar, persegui-los a bala, porque o torpe cabeça-baixa impestava os bebedouros. (São Paulo, Ática, 1982) A outra referência é Os sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1909), obra pré-modernista de cuja costela parece ter saído Vidas secas. Os sertões, misto de sociologia, literatura, reportagem de guerra, revelam a admiração de Euclides da Cunha pelos sertanejos, a compreensão de suas lutas contra a natureza, constituindo um protesto contra o desprezo com que são tratados pelo governo federal. O princípio da tragédia que orienta a vida de Fabiano e de seus descendentes é um prolongamento de um conceito instaurado por Euclides da Cunha em Os sertões. É uma verdade histórica que vem de longe: Euclides já dizia que o sertanejo copia o pai, como o pai copia o avô, como o avô copiava o bisavô, numa seqüência de gestos que se perpetuam eternamente: é uma genealogia em que não há progresso social. • 106 • ANGLO VESTIBULARES No fragmento transcrito a seguir, de “O homem” (segunda parte de Os sertões), Euclides descreve o vaqueiro nordestino, num retrato muito próximo do que Graciliano Ramos desenharia de Fabiano: Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias [...]. O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista o de guerreiro antigo cansado da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e, resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado — é como a forma grosseira de um campeador medieval em nosso tempo. (São Paulo, Círculo do Livro, s/d.) No século XX, o fenômeno da seca também foi referência para obras como A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, O quinze (1930), de Rachel de Queirós, e Seara vermelha (1946), de Jorge Amado, entre outras. Vidas secas (1938), entretanto, distingue-se pela técnica narrativa e pela singularidade da estrutura de romance, inovações que superam o empenho documental, testemunhal das obras mencionadas. A tendência regionalista se renovou, em meados da década de 1940, com Guimarães Rosa, que criou poeticamente um sertão imaginário, a partir das vivências do homem da região centro-oeste do Brasil. A PUBLICAÇÃO DE VIDAS SECAS A gestação de Vidas secas1 começou num modesto quarto de pensão, localizado à rua Correia Dutra, 164, no bairro do Catete, Rio de Janeiro. Ali, ainda com a cabeça raspada — lembrança da temporada na Ilha Grande —, em carta, datada de 7 de maio de 1937, à esposa, Heloísa de Medeiros Ramos, que permanecera em Alagoas, Graciliano conta como foi o primeiro movimento de elaboração da obra: Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos. A diferença é que eu quero que eles apareçam antes do sono, e padre Zé Leite pretende que eles nos venham em sonhos, mas no fundo todos somos como a minha cachorra Baleia e esperamos preás. É a quarta história feita aqui na pensão. Nenhuma delas tem movimento, há indivíduos parados. Tento saber o que eles 1 Todas as citações provêm da 63ª- edição da obra (São Paulo, Record, 1992), com ilustrações de Aldemir Martins. SISTEMA ANGLO DE ENSINO têm por dentro. Quando se trata de bípedes, nem por isso, embora certos bípedes sejam ocos; mas estudar o interior duma cachorra é realmente uma dificuldade quase tão grande como sondar o espírito dum literato alagoano. Referindo-me a animais de dois pés, jogo com as mãos deles, com os ouvidos, com os olhos. Agora é diferente. O mundo exterior revela-se a minha Baleia por intermédio do olfato, e eu sou um bicho de péssimo faro. Enfim parece que o conto está bom, você há de vê-lo qualquer dia no jornal. Baleia é como esse poeta que gostava de cheirar roupa de mulher. (GARBUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V., 1987, p. 241.) Três meses depois da carta, Graciliano providencia a vinda da esposa e dois filhos, que passam a morar com ele na pensão de da. Elvira, no Rio. Toda manhã, bem cedinho, tirava do fundo de um armário uma garrafinha de cachaça, tomava um gole em jejum, arrumava os três maços de Selma que fumava diariamente e sentava-se à mesa para escrever a saga da família de retirantes nordestinos. O projeto inicial era produzir um romance, mas a conta da pensão não podia esperar. Por isso, cada capítulo ficou sendo uma espécie de episódio, logo vendido para La Prensa, um dos mais prestigiosos jornais da Argentina, atendendo a uma encomenda de um amigo, Benjamin de Garay, que solicitara a Graciliano “umas histórias do Nordeste”. Algumas dessas estórias, por intermediação de Rubem Braga, são também vendidas para O Jornal, do Rio de Janeiro, por cem mil réis. Para ganhar dinheiro, Graciliano usou do artifício de publicá-las, com títulos diferentes, em vários jornais e revistas, como O Cruzeiro, Diário de Notícias, Folha de Minas e Lanterna Verde. Era o único meio de aplacar a fome de dinheiro semanal da dona da pensão, que perdera suas parcas economias na roleta do Cassino da Urca. No ensaio Alguns tipos sem importância, escrito em agosto de 1939 e publicado, posteriormente, em Linhas tortas (1962), Graciliano dá outro depoimento sobre a produção de Vidas secas: Em 1937 escrevi algumas linhas sobre a morte duma cachorra, um bicho que saiu inteligente demais, creio eu, e por isso um pouco diferente dos meus bípedes. Dediquei em seguida várias páginas aos donos do animal. Essas coisas foram vendidas, em retalho, a jornais e revistas. E como José Olympio me pedisse um livro para o começo do ano passado, arranjei outras narrações, que tanto podem ser contos como capítulos de romance. Assim nasceram Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia [...]. Vidas secas são cenas da vida do Buíque. Foi se armando assim, peça por peça, a estrutura desse “romance desmontável”, como o classificou Rubem Braga, companheiro de letras de Graciliano, que morava na mesma pensão. Vidas secas foi publi- • 107 • ANGLO VESTIBULARES cado em março de 1938, dois meses antes do ataque integralista ao Palácio do Catete, residência oficial de presidentes da República que, na época, hospedava Getúlio Vargas, ditador desde a instauração do Estado Novo, a 10 de novembro de 1937. O ano de 1938 seria também marcado pela participação da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo, realizada na França (em que obtém o 3ºlugar, eliminada pela Itália nas semifinais), e pelas mortes de Lampião e Maria Bonita, assassinados em Sergipe. No plano internacional, marcariam esse ano a publicação de A náusea, de Jean-Paul Sartre, a realização da Grande Exposição Internacional do Surrealismo, em Paris, a primeira apresentação de Guernica, mural em que Pablo Picasso denuncia o bombardeio da cidade basca pelo comando condor da Luftwaffe alemã, em apoio às tropas monarquistas de Francisco Franco, durante a Guerra Civil Espanhola. É também em 1938 que Orson Welles realiza a célebre performance que deixaria os americanos arrepiados: transmite pelo rádio a “invasão” dos Estados Unidos por marcianos. Em julho de 1944, a propósito de Vidas secas, Graciliano prestou o seguinte depoimento ao colunista João Condé, de O Cruzeiro: No começo de 1937 utilizei num conto a lembrança de um cachorro sacrificado na Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos. Transformei o velho Pedro Ferro, meu avô, no vaqueiro Fabiano; minha avó tomou a figura de sinha Vitória; meus tios pequenos, machos e fêmeas, reduziram-se a dois meninos. Publicada a história, não comprei o jornal e fiquei dois dias em casa, esperando que meus amigos esquecessem Baleia. O conto me parecia infame — e surpreendeu-me falarem dele. A princípio julguei que as referências fossem esculhambação, mas acabei aceitando como razoáveis o bicho, o matuto, a mulher e os garotos. Habituei-me tanto a eles que resolvi aproveitá-los de novo. Escrevi “Sinha Vitória”. Depois, apareceu "Cadeia". Aí me veio a idéia de juntar as cinco personagens numa novela miúda — um casal, duas crianças e uma cachorra, todos brutos. Octávio de Faria me dissera, em artigo enorme, que o sertão, esgotado, já não dava romance. E eu havia pensado: — Santo Deus! Como se pode estabelecer limitações para essas coisas? Fiz o livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E sem amor. Nisso, pelo menos, ele deve ter alguma originalidade. Ausência de tabaréus bem-falantes, queimadas, cheias e poentes vermelhos, namoro de caboclos. A minha gente, quase muda, vive numa casa velha de fazenda. As pessoas adultas, preocupadas com o estômago, não têm tempo de abraçar-se. Até SISTEMA ANGLO DE ENSINO a cachorra é uma criatura decente, porque na vizinhança não existem galãs caninos. A narrativa foi composta sem ordem. Comecei pelo nono capítulo. Depois chegaram o quarto, o terceiro etc. Aqui ficam as datas em que foram arrumados: “Mudança”, 16 julho 1937; “Fabiano”, 22 agosto; “Cadeia”, 21 junho; “Sinha Vitória”, 18 junho; “O menino mais novo”, 26 junho; “O menino mais velho”, 8 julho; “Inverno”, 14 julho; “Festa”, 22 julho; “Baleia”, 4 maio; “Contas”, 29 julho; “O soldado amarelo”, 6 setembro; “O mundo coberto de penas”, 27 agosto; “Fuga”, 6 outubro. Apesar de Graciliano já desfrutar de alguma fama, a primeira edição de Vidas secas vendeu pouco. Mesmo bem recebida pela crítica, os mil exemplares da obra demoraram dez anos para se esgotar. Até a morte do escritor, em 1953, foram lançadas somente três pequenas edições. APRESENTAÇÃO DE VIDAS SECAS Vidas secas se destaca, dentre as obras de Graciliano Ramos, por explorar em grau máximo experimentações no modo de narrar. O romance representa sua consagração como escritor, nele atingindo seu mais elevado grau de depuração estilística. De fato, a obra surpreendeu pela concisão e pelos efeitos de sentido criados pelas manobras com a linguagem. A amarga experiência vivida como preso político teve muito a ver com a gestação de Vidas secas, que se deu nos meses seguintes à sua libertação. Parece ter iluminado a decisão de Graciliano retomar as raízes regionais. A 4 de maio de 1937 escreveu “Baleia”, resgatando emocionadamente a figura de um cachorro de seu avô. A partir desse conto — verdadeiro núcleo gerador da obra —, os outros episódios foram-se acumulando, de forma espontânea e imprevista, sem obedecer a um plano rígido no modo de narrar. Ao final, cada um dos treze capítulos apresentava uma organização interna própria, enredada por um acentuado domínio da unidade de espaço, sem a preocupação ostensiva de fixar referências temporais muito nítidas. Externamente, conseguia uma estrutura bem demarcada, com doze páginas, em média, por capítulo-quadro. Ao contrário dos romances anteriores, em que os capítulos vinham numerados ou separados por espaços em branco, os episódios de Vidas secas receberam títulos, que impõem limites aos assuntos tratados, focalizando ora o traço dominante no espírito da personagem (ex.: “O menino mais novo” — a imitação do pai como domesticador de animais bravios), ora situações que envolvem todas as personagens (“Mudança” — a caminhada nômade da família). • 108 • ANGLO VESTIBULARES O romance adquire uma dimensão épica, por problematizar, com lúcida radicalidade, as exasperantes condições de sobrevivência no sertão, definida concretamente pela viagem sem rumo da família de flagelados. Reproduz, metonimicamente, por meio do relato da existência sem destino de Fabiano, de Sinha Vitória, do menino mais velho e do menino mais novo, o drama que ultraja multidões de errantes sem-terra. Adequando harmoniosamente a linguagem a essa temática social, Graciliano soube explorar com talento a descontinuidade dos episódios, o que lhe possibilitou abandonar uma técnica aplicada nas obras anteriores: inserir um romance dentro de outro. Por trás dos eventos narrados, subjaz permanentemente o tema da utopia de justiça social. Em Vidas secas, esta chama de esperança se sustenta na determinação com que os retirantes perseguem uma possibilidade concreta de participação social. Isso se manifesta no anseio maior que congrega todas as personagens em torno de uma aspiração comum: o direito à cidadania, tema representado por desejos particularizados de cada personagem. Sinha Vitória, ao almejar uma cama com lastro de couro, na verdade acalenta o sonho de viver com o mínimo de conforto material; já Fabiano alimenta a fantasia de fixar-se num grande centro urbano, com um trabalho regular, para não mais correr o perigo de sucumbir à fome e à sede; o menino mais velho, obcecado em conhecer o significado de certas palavras, pretende inconscientemente a aquisição de um saber que goze de reconhecimento social, dado pela escolaridade; o menino mais novo, imitador do pai vaqueiro, revela em sua quimera o desejo de continuidade na profissão do pai, algo que se mostra quase impossível numa existência tão descontínua. Baleia, que sonha com comida até na hora da morte, representa a angústia diante da carência de recursos até para satisfazer os apetites e necessidades biológicas, demonstrando que, na paisagem embrutecedora do nordeste, homens e animais se igualam na luta contra a adversidade das condições de sobrevivência. A estrutura do romance é aberta, em grau inversamente proporcional ao fechamento existencial que encurrala as “vidas secas”. Com a lucidez de quem aprendeu a observar pragmaticamente a realidade, Graciliano anula o deslumbramento maniqueísta e anuncia o anseio por um futuro melhor já nas páginas iniciais do romance. Entretanto, registra-a no futuro do pretérito, para firmar o quanto sonha com essa possibilidade, mesmo consciente dos imensos obstáculos que impediam sua consecução: “Sinha Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de Sinha Vitória remoçaria, as nádegas bambas de Sinha Vitória engrossariam, a roupa encarnada de Sinha Vitória provocaria a inveja das outras caboclas. [...] A fazenda renasceria — e ele, SISTEMA ANGLO DE ENSINO Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer dono daquele mundo.” (p. 15-16). Essa utopia é retomada na página final: “Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes e brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos.“ (p. 126) Deve-se destacar também a circularidade que compõe a arquitetura romanesca de Vidas secas, como desenho que descreve o movimento de um bumerangue: o romance termina como começou. Ao final, os flagelados iniciam nova andança, que repete certas características da que se registrara no início. O capítulo “Fuga” pode ser lido, assim, como o princípio de “Mudança” e este marcaria o fim daquele. As vidas se secam não só fisicamente. A seca calcina a alma das personagens, se se considera o problema moral, manifesto sobretudo na dificuldade que sentem para estabelecer relacionamentos interpessoais. A exploração econômica, que os submete tanto quanto a crueldade da natureza, condena-os a viver num mundo primário. A perspectiva da morte torna-se, para eles, a única certeza. A linguagem rarefeita dos flagelados espelha a degradação do universo em que vivem. A reprodução sistemática dos mesmos modelos sintáticos, o posicionamento muito semelhante das palavras nas orações, a insistência na repetição de vocábuloschave, o acúmulo de pausas na narração, são recursos que se somam para produzir, entre outros, o efeito de desumanização das personagens. Esses recursos, explorados com tanta habilidade por Graciliano, associam-se complementarmente ao tema, orientando-se com funcionalidade para confirmar o seu significado. Afinal, não basta apenas denunciar a reificação de Fabiano; sobretudo, é preciso reconhecer os instrumentos que o autor operou para persuadir o leitor dessa desumanização. Daí a insistência, por exemplo, com que se enfatizam, em vários momentos da narrativa, os pés das personagens. Graças à alquimia metonímica, o narrador faz com que eles sejam vistos como a parte mais importante do corpo, pois a ameaça permanente do nomadismo exige dos sertanejos deslocamentos constantes e involuntários. A dificuldade de relacionamento interpessoal manifesta-se sobretudo no plano da estruturação da linguagem. Há pequena incidência do discurso direto; isso acontece não apenas porque as personagens sejam semi-analfabetas. Nos poucos diálogos que travam, acumulam-se tantos ruídos que elas se frustram ou se inibem no uso da linguagem. Conversam muito pouco, valendo-se muitas vezes de onomatopéias, sons guturais e animalescos. Até o papagaio, em seu curto intervalo de vida, aprendeu apenas a imitar aboios e latidos. • 109 • ANGLO VESTIBULARES Esse rudimentarismo psicológico dos membros da família sertaneja é, no entanto, aparente. Num exame mais acurado dos monólogos, vai se observar que, embora haja, de fato, acentuado desnivelamento entre a vida interior e a exterior dessas criaturas, a todo momento elas procuram demonstrar a capacidade de sentir, de desejar, de levantar problemas para resolver. Esse traço as nobilita como seres humanos, diferenciando-as dos animais brutos. Tal comportamento é extensivo inclusive a Baleia, que pensa como gente, mesmo que seja uma gente que, por força das circunstâncias, tenha de viver como bicho. Nota-se, então, que a narrativa foi engendrada de forma a apontar, dialeticamente, a relação contraditória entre a precariedade dos recursos de linguagem — para figurativizar o tema da marginalização social — e a competência do monólogo interior para figurativizar o rico substrato de humanidade das personagens —, apesar da incompetência de formalizá-lo segundo moldes de linguagem mais sofisticados. ENREDO Os Capítulos–Quadros Os treze quadros que compõem Vidas secas levam o leitor a acompanhar o passo erradio dos retirantes, o percurso incerto desses flagelados cujo destino é condicionado por um sol que brilha como se existisse unicamente para castigá-los. A seqüência descontínua das cenas possibilita uma leitura aleatória dos capítulos intermediários, porque o romance não segue um esquema convencional de enredo. A estrutura do livro é definida por três movimentos: retirada — permanência na fazenda — retirada. Mais que qualquer outra obra da tradição literária brasileira, Vidas secas condensa todas as pressões que circunstanciam a miséria sertaneja. A precisão no desenho das imagens, sem concessões sentimentais, revela que o que realmente pesa, no dia-adia dos retirantes, é a ausência de qualquer possibilidade de vida contínua. Tudo permanece estanque, sem que os membros da família possam alcançar uma comunhão maior entre si: o que os vincula é o silêncio, o não saber fazer uso da palavra para abrir brechas que os levem a conhecer o mundo, para além dos estreitos limites do cotidiano. As palavras cujo significado Fabiano desconhece são inequívoco sinal de perigo: por meio delas, o patrão, o soldado amarelo, o fiscal da prefeitura, enfim, o governo, conseguem submetê-lo, como já o fizeram com seu pai e avô e, provavelmente, virão a fazer com os dois meninos, a despeito do sonho paterno de enviá-los para o Sul, para que possam estudar. I – Mudança Cena do filme Vidas Secas. Ática Iório, com um dos meninos às costas, Maria Ribeiro, carregando o outro menino, e a cachorra Piaba no papel de Baleia. Por tudo isso, Vidas secas é um romance áspero, mas a verdade que carrega em sua dura poesia é tão densa, que o torna permeável a todas as sensibilidades. De forma contundente, aponta para a urgência da reforma agrária no país. A advertência de Fernando Sabino, na abertura da adaptação cinematográfica de Vidas secas, ganha hoje proporções muito mais dramáticas que as de 1963 (época da realização do filme) e, sobretudo, que as de 1938 (publicação do livro) pela amplitude que tais problemas assumiram nas últimas décadas: “Este filme não é apenas a transposição fiel, para o cinema, de uma obra imortal da literatura brasileira. É antes de tudo um depoimento sobre uma dramática realidade social de nossos dias e a extrema miséria que escraviza 27 milhões de nordestinos e que nenhum brasileiro digno pode mais ignorar.” SISTEMA ANGLO DE ENSINO Uma família sertaneja, constituída pelo vaqueiro Fabiano (pai), sinha Vitória (mãe), dois filhos (referidos como “menino mais novo” e “menino mais velho”), acompanhados da cachorra Baleia, atravessa a caatinga. Na condição de flagelados retirantes, eles dormem no leito seco dos rios, permanentemente atormentados por sede, fome e cansaço. Arrastam-se pelo solo estorricado, com seus minguados pertences. A certa altura, o filho menor se deita no chão, sem forças para continuar. Fabiano se enraivece, a ponto de pensar em abandonar o menino; depois, apieda-se dele, coloca-o nas costas e prossegue a caminhada, ainda mais lentamente. Não sabem para onde ir. Angustiados, sem perspectiva, atenuam a fome com o sacrifício do papagaio e com um preá, caçado por Baleia. Homens e animais igualam-se na condição de retirantes. A expressão “seis viventes” (Fabiano, sinha Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo, Baleia e o papagaio) coloca-os num mesmo plano. Aproxima-os o destino comum, materializado nas necessidades pelas quais passam durante a seca nordestina. Enquanto os humanos são zoomorfizados, • 110 • ANGLO VESTIBULARES Baleia apresenta sentimentos e pensamentos nitidamente humanos, num processo simbólico de antropomorfização. A morte do papagaio, apresentada no passado, é assim relatada: [...] Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal” (p. 11). Já no capítulo inicial, Graciliano manifesta preferência por uma seleção lexical mais direta, áspera, dura e agressiva. Tal tratamento, além de caracterizar o vocabulário típico da região, parece querer provocar o leitor, retirando-o de seu estado de acomodação ou apatia e estimulando-o a recorrer constantemente ao dicionário para conhecer o significado dos termos regionais. II – Fabiano A família se aloja numa fazenda abandonada, alimentando-se de “raiz de imbu e sementes de mucunã”. Após uma trovoada, aparece o dono da fazenda e expulsa os invasores. Fabiano finge-se de desentendido e se oferece para trabalhar como capataz vaqueiro. O fazendeiro aceita a oferta e lhe entrega as peças de ferro para marcar a posse do gado. Satisfeito por ter encontrado refúgio, Fabiano temporariamente esquece os sofrimentos. A princípio, compara a si próprio e a família a “ratos”. Depois de preparar um cigarro de palha, exclama em voz alta que é um homem. Como está próximo dos filhos, contém-se, preferindo identificar-se como “cabra”, forma nordestina de se referir a pessoas de nível social inferior. A expressão conota também a idéia de animalização, de adaptação e resistência a ambientes agressivos e inóspitos. A seguir, orgulha-se por se sentir mais como um bicho: “Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades”. Tomava conta da fazenda, do pouco gado que restara da outra seca, da casa, de coisas que não eram dele. Criava raízes em terra alheia. Entendia-se com os animais, usando a mesma linguagem para se comunicar com a mulher e os filhos. Diz assemelhar-se a um “macaco”. Progressivamente, Fabiano conscientiza-se de sua condição inferior. A enumeração dos caracteres físicos enfatiza sua irrelevância como indivíduo socialmente situado. A auto-imagem degradante de Fabiano se completa ao se considerar “uma coisa da fazenda, um traste”, pois, apesar de branco como os patrões, falta-lhe o essencial — a propriedade —, uma vez que “vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios”. Não era uma pessoa diante de quem outras pudessem se inclinar, em sinal de respeito. Apesar de tudo, espera que os filhos venham a ser como ele: Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, con- SISTEMA ANGLO DE ENSINO sertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de seu Tomás da bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estômago doente e das pernas fracas (p. 24). Seu Tomás da bolandeira era conhecido por ter a máquina de triturar cana-de-açúcar e ralar mandioca, puxada por animais que movimentam uma roda grande, acionando o rolete da moenda. III – Cadeia Aproveitando a estabilidade temporária, Fabiano vai à feira da cidade fazer compras. Inseguro e desconfiado, visita as lojas, sempre pechinchando melhores preços ou reclamando da qualidade dos produtos. Na bodega em que toma uma cachaça, Fabiano é convidado por um soldado amarelo para jogar cartas. Responde, negaceando, com expressões emprestadas de seu Tomás, empregadas de forma completamente desarticulada: “— Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme”. No trinta-e-um, perde dinheiro e, acabrunhado, retira-se do jogo sem se despedir do parceiro. Enquanto pensava no álibi com que iria justificar-se perante a esposa, Fabiano é abruptamente empurrado pelo soldado amarelo, que o censura por abandonar o carteado. Dizendo-se desrespeitado, o soldado pisa no pé de Fabiano, que retruca xingandolhe a mãe. O soldado dá um apito e, imediatamente, todo o destacamento aparece para apoiar a voz de prisão a Fabiano. A vingança sádica da autoridade mesquinha se completa na cadeia: Fabiano é impiedosamente surrado, recebendo golpes de facão no lombo; passa a noite a remoer sua revolta, em completo estado de confusão mental. Para ampliar a conexão com a realidade, o narrador, antes de Fabiano ser violentamente interpelado pelo soldado amarelo, registra minuciosa e simultaneamente imagens do cotidiano de um povoado, no interior nordestino: [...] A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminação, trepando numa escada, acendia os lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por cima da torre da igreja; o doutor juiz de direito foi brilhar na porta da farmácia; o cobrador da prefeitura passou coxeando, com talões de recibos debaixo do braço; a carroça de lixo rolou na praça recolhendo cascas de frutas; seu vigário saiu de casa e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; sinha Rita louceira retirou-se (p. 28-9). IV – Sinha Vitória Sinha Vitória se revolta com a rotina dos afazeres domésticos. Indignada, enerva-se com Baleia e com os filhos. A certeza de ter que continuar dormindo numa cama de varas e a lembrança do papa- • 111 • ANGLO VESTIBULARES gaio que fora obrigada a sacrificar intensificam sua amargura. Cafuza e inteligente, ela dirige o marido, bronco e bruto. Na discussão com Fabiano, faz alusão ao dinheiro perdido no jogo e na bebida. O marido retruca, censurando a esposa por ter comprado “sapatos de verniz [...] caros e inúteis”. Sinha Vitória sonha possuir uma cama confortável, de lastro de couro cru e estrado de sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira. Pensa nas diversas maneiras de obtê-la: venderia as galinhas e a porca marrã, deixaria de comprar querosene. Cachimbando, alimenta a esperança de, algum dia, conseguir o que deseja, e isso a deixa quase feliz. V – O menino mais novo O menino mais novo procura em vão aproximarse dos parentes. Fixa-se no pai; admira-o, especialmente quando o vê montar a égua alazã. Imagina, um dia, fazer o mesmo, principalmente para demonstrar coragem junto ao irmão mais velho e a Baleia. Precisa fazer uma proeza, algo que os deixe maravilhados. Para tanto, resolve cavalgar num bode: desastrado, acaba caindo numa ribanceira, sob os risos e chacotas do irmão mais velho e o olhar de censura de Baleia. Para se consolar, imagina-se adulto e, espelhado no pai, vê-se no lombo de um cavalo bravio, “de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicacho”, disparando livre pela caatinga. VI – O menino mais velho Ao ouvir sinha Terta pronunciar a palavra inferno, o menino mais velho, intrigado, pede à mãe que lhe desvende o significado dessa palavra. Depois de dizer que era um lugar cheio de fogueiras e espetos quentes, a mãe indigna-se com a nova pergunta do filho: “— A senhora viu?” Revoltada com a própria incapacidade de lhe dar uma explicação satisfatória, aplica-lhe um cascudo e expulsa-o da cozinha. Humilhado, o filho vai se esconder na caatinga, perto da lagoa vazia. Procura consolo junto à cachorra, também enxotada. Relegados ao mesmo plano, os dois se entendem: “O menino beijou-lhe o focinho úmido, embalou-a. A alma dele pôs-se a fazer voltas em redor da serra azulada e dos bancos de macambira” (p. 60). Abraçada pelo menino, Baleia sente que “O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanações que vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com alguma carne” (p. 62), que sinha Vitória preparava. VII – Inverno Quando chega a estação das chuvas, a família se reúne ao redor do fogão de lenha. Sonolentos, os meninos ouvem os pais conversarem animadamente e desfiarem seus sonhos de felicidade. Com a caatinga verde, gado para aboiar e feijão com rapadura para comer, afasta-se o perigo da seca. Temporaria- SISTEMA ANGLO DE ENSINO mente, Fabiano tranqüiliza-se, na esperança de que essa situação permaneça. Sinha Vitória, mais realista, apavora-se com a possibilidade de uma enchente: as águas sobem perigosamente... VIII – Festa Vestindo roupas de passeio, confeccionadas especialmente para a ocasião, a família vai passar o Natal na cidade. Como Fabiano comprara tecido em quantidade insuficiente, as roupas haviam ficado curtas e apertadas. A sensação de ridículo aumenta com o desconforto e a falta de hábito de usar sapatos: o constrangimento quase anula o deslumbramento. Na igreja, só sinha Vitória identifica-se com a religiosidade do ambiente e procura participar da missa. Os meninos amedrontam-se com tanta gente, e Fabiano, deslocado e ainda traumatizado pelo confronto com o soldado amarelo, compara-se aos tipos da cidade e se sente inferiorizado. Foge da igreja e vai até a bodega, onde se embriaga; bêbedo, enchese de coragem para reclamar que o dono do botequim misturara água à bebida e desafia os presentes. Como ninguém aceita suas provocações, Fabiano recolhe-se, prostrado, junto à família. IX – Baleia Baleia fica hidrófoba. Antes de se decidir a sacrificá-la, Fabiano, supersticiosamente, coloca um colar de sabugos de milho queimados no pescoço da cachorra. Todos se desesperam com o sofrimento dela, principalmente Fabiano, por ter de cumprir a difícil missão de lhe dar um tiro. A agonia da cachorra, narrada em “câmara lenta”, amplifica seu halo de humanidade. Ela entremeia cenas do passado (quando caçara um preá, que saciou a fome de todos) com o presente (não entendia o porquê do tiro). Agindo assim, Fabiano procurava abreviar-lhe o sofrimento e evitar que a família se contaminasse. Em seu desvario, à véspera da morte, Baleia sente-se entrando num espaço de liberdade e de caça farta, sem limites para saciar-lhe a fome. X – Contas Como meeiro, Fabiano vivia numa permanente condição de achatamento social: tinha sempre de recorrer ao patrão para satisfazer necessidades básicas, como comida, roupa e instrumentos para o trabalho. Pagava, por isso, um preço bem superior ao do mercado, o que o deixava continuamente endividado junto ao fazendeiro. Convidado para um acerto de contas, Fabiano vai até a casa do patrão. Os cálculos do fazendeiro se mostram muito diferentes dos de sinha Vitória. Como Fabiano não sabia ler (“um bruto, sim senhor”), sinha Vitória realizava as somas e diminuições. Fazia-o de forma rudimentar, utilizando “sementes de várias espécies”. Mas a diferença entre as contas se • 112 • ANGLO VESTIBULARES devia ao fato de que o patrão computava à divida os “juros” do empréstimo. Sentindo-se lesado, Fabiano reclama, mas sua contestação é sufocada pelo patrão. Passivamente, o vaqueiro aceita a justificativa dada pelo fazendeiro. Torna a ficar revoltado ao se lembrar do que lhe acontecera na feira da cidade. Tentava vender um porco quando foi surpreendido pelo fiscal da prefeitura; além de multá-lo por vender carne sem pagar imposto, o funcionário o insultara e o escorraçara do lugar. [...] Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele (p. 95). A miragem de permanecer na fazenda vai se desfazendo. Neste capítulo, fica evidente a dificuldade de expressão de Fabiano diante de pessoas que julga superiores, no caso, o dono da fazenda e o fiscal da prefeitura. Acabrunhado diante dos poderosos, Fabiano tenta reproduzir um discurso que não era o seu, demonstrando dificuldade em organizar o raciocínio. Identifica o patrão como “governo”, representante arbitrário das instituições sociais, especialmente porque usava uma linguagem que estava além das possibilidades de seu entendimento. XI – O soldado amarelo Observador arguto da natureza, Fabiano sai pela caatinga, à procura de reses fugidas. Examina o chão, decifrando sinais que lhe permitem diferenciar os rastos de uma égua ruça dos de sua cria. De repente, depara-se com o soldado amarelo, perdido na caatinga. O reencontro se dá um ano após o vaqueiro ter sido preso. Ao evocar aquele episódio, Fabiano é tomado pelo desejo de vingança. Embora fosse concreta a oportunidade da revanche, num gesto de grandeza, o vaqueiro apieda-se do soldado: Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força (p. 107). Deixa-o partir, pois o vê como representante de instituições abstratas e até inúteis mas que deviam ser respeitadas: “— Governo é governo”. XII – O mundo coberto de penas Aves de arribação anunciam novo ciclo de seca. Elas constituem um símbolo ambíguo: de um lado, acentuam os efeitos da seca, porque bebem a pouca água existente; de outro, servem de alimento e, tem- SISTEMA ANGLO DE ENSINO porariamente, impedem que a família morra de fome. Os animais começam a tombar. Fabiano procura atirar nos pássaros, garantindo alimento para os próximos dias. Atemorizado, pensa no que significam o soldado amarelo e o dono da fazenda. Sente-se numa encruzilhada: tanto poderia ser vaqueiro como cangaceiro. Nota igualmente como sua sina se assemelha à de Baleia... Volta para casa, infeliz e revoltado com sua impotência, julgando-se um “Cabra safado, mole. Se não fosse tão fraco, teria entrado no cangaço e feito misérias”. Neste episódio, o inconsciente da personagem procura suprir as lacunas do consciente, conclamando-a a transformar a revolta em ação: — Fabiano, meu filho, tem coragem. Tem vergonha, Fabiano. Mata o soldado amarelo. Os soldados amarelos são uns desgraçados que precisam morrer. Mata o soldado amarelo e os que mandam nele (p. 111). XIII – Fuga Com a chegada novamente da seca, a princípio Fabiano pensa em resistir e permanecer na fazenda. No entanto, a morte de um número cada vez maior de reses faz com que ele se decida a tentar a sobrevivência noutro lugar. Desconsolados, o casal e os filhos resolvem partir de madrugada, evitando outro e constrangedor encontro com o patrão, pois não têm como saldar a dívida acumulada. Despojados de tudo, iniciam nova retirada, levando às costas os poucos bens. Caminham sob um céu implacavelmente azul. Asperamente, Fabiano ordena à família que marche em ritmo mais intenso. Lembram-se de Baleia e, para atenuar o sofrimento, começam a conversar sobre um futuro melhor. A intermitência da seca parece reservar-lhes o indesejado papel de Sísifos sertanejos. Para eles, a vida é um eterno recomeço. Sem destino, só lhes resta a opção da retirada. Fabiano sonha ainda com os filhos aprendendo a ler e indo morar numa cidade grande: sinha Vitória alimenta, mais uma vez, a esperança de poder um dia dormir numa cama de lastro de couro. ESTRUTURA DA OBRA Vidas secas é uma composição literária aberta: seus capítulos são autônomos, ordenam-se por justaposição. Esse tipo de estrutura permite leituras variáveis, em seqüência aleatória, numa disposição diversa da proposta pelo autor. Isoladamente, os capítulos são quadros, painéis diversificados a convergir para um mesmo drama. “Baleia”, o nono capítulo na seqüência de publicação mas o primeiro a ser escrito, é o único que recebe o tratamento de conto, por apresentar características fundamentais deste gênero: um único conflito dramático, uma tensão interna apresentada já num pré-clímax, que se atenua num epílogo sem pos- • 113 • ANGLO VESTIBULARES sibilidade de continuação, e uma unidade dramática, fruto de rigorosa condensação de efeitos e pormenores. Os outros capítulos não apresentam tais traços; são apenas quadros autonômos, que se justapõem, com recorrências e cruzamentos entre si. Curiosamente, no conjunto, esse “romance desmontável” tem um todo coeso, homogêneo, que resulta do tema e da organicidade de concepção. Embora todos os membros da família enfrentem basicamente os mesmos obstáculos, cada capítulo focaliza particularmente uma das figuras do plano geral: Fabiano, sinha Vitória, os dois meninos, Baleia. A problemática humana — fome, miséria e necessidade de fuga — determina a unidade dramática dos capítulos. Praticamente, só existe uma seqüência narrativa básica, definida pelos movimentos de partida e de chegada da família sertaneja. Essa arquitetura cíclica se delineia pela repetição da mesma ordem: há uma convergência entre o primeiro capítulo (“Mudança”) e o último (“Fuga”), pois ambos são marcados pela mesma pressão implacável da seca, que afugenta a família e impede qualquer forma de estabilidade. Desse modo, a obra termina da mesma forma que começa. Os capítulos intermediários retratam flagrantes da existência cotidiana desse grupo de pessoas, sem grandes mistérios. O romance abre-se com a caminhada dos retirantes, em busca de um lugar menos castigado pela seca. Encerra-se com outra, que, afinal, é o mesmo caminhar. Tem-se, assim, o efeito de circularidade, pois se prevê a retomada da mesma fuga. Nada se altera: “mudança” e “fuga” distinguem-se apenas no nome; são rotas de quem pretende desviar-se da morte. O deslocamento para o Sul — miragem final — não é nem confirmado nem negado. É apenas uma esperança, e isso é decisivo para manter acesa a chama da vida. Os episódios independentes facultam ao leitor outras combinações de seqüência, como um leque que se abre para a percepção de outros significados. O drama das personagens pode assim ser vislumbrado sob outras e diferentes perspectivas, pois a realidade se torna menos previsível e mais complexa, envolvendo surpresas e acasos. Muitas vezes, os títulos dos capítulos indicam circunstâncias em que se encontra a família: “Mudança”, “Cadeia’, “Inverno”, “Festa”, “Contas” etc. Isso reforça a arquitetura fragmentária do romance: não existe uma transição entre os capítulos, porque não há continuidade no destino dos retirantes. Essa técnica de justaposição dos episódios confere modernidade à estrutura narrativa, pois rompe com a linearidade e a relação de causalidade, características da literatura do século XIX. Pode-se dizer também que, ao estruturar seu romance em capítulos compartimentados, Graciliano SISTEMA ANGLO DE ENSINO Ramos conseguiu espelhar na organização interna da obra o ilhamento do sertanejo, impossibilitado de constituir uma forma de vida gregária, que conseguisse ordenar um entendimento razoável tanto entre os membros da família como desta com a sociedade. Isso faz com que as personagens tenham do mundo uma percepção fragmentada, desconexa. Esse aspecto também exige do leitor um permanente trabalho de amarração das imagens, para poder alcançar uma visão de totalidade do drama sertanejo. FOCO NARRATIVO Vidas secas, único romance de Graciliano Ramos com enunciação em 3ª- pessoa, apresenta um aspecto inovador para esse foco de relato: a onisciência é prismática. Diferentemente do narrador onisciente tradicional, que vê tudo e sabe de tudo, posicionando-se muitas vezes ostensivamente, em Vidas secas, o relato é conduzido de tal forma que o leitor entra em contato direto com a realidade, enxergando-a pelo prisma da personagem que está em cena. Assim, uma mesma realidade é vista por óticas distintas, variando conforme a personagem que a focalize. Isso se torna possível graças ao emprego do discurso indireto livre, que dá ao narrador-observador um posicionamento discreto: sua “voz” quase se confunde com a das personagens. Em “Inverno”, o leitor “vê” a chuva, guiado pelo olhar de Fabiano e sinha Vitória; já em “Fuga”, que encerra o romance, a retomada da sina de retirantes é focalizada sob a ótica do menino mais velho. Assim, acumulam-se ângulos de visão parcial, próprios de cada personagem do romance. Como o narrador se dissimula por trás do relato, flagrantes aparentemente desconexos, quando reunidos, trazem uma conjugação entre aspectos sociais, naturais e psicológicos distintos mas complementares para formar o perfil das personagens e das situações. De fato, enquanto a consciência do social se dá pela vivência de uma situação hostil, que gera fome e incompreensão, o componente psicológico emerge independentemente dessas pressões do contexto, nas lembranças, muitas vezes agradáveis, de festas, vaquejadas e novenas. Tal simultaneidade resulta da decisão do narrador de usar a onisciência não para retratar o ambiente, mas como instrumento de análise comportamental e psicológica. Esse traço empresta ao romance um perfil bem mais complexo do que aquele que teria se o narrador se limitasse a descrever fatos e personagens. O discurso indireto livre cria uma convergência solidária entre a expressão do narrador e a da personagem. Falas ou pensamentos dos membros da família sertaneja (incluindo Baleia) vêm inseridos no relato do narrador, o que permite ao autor sondar verticalmente o universo mental das personagens para revelar o quanto ele se encontra esgarçado. • 114 • ANGLO VESTIBULARES Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pés. Fabiano comunicou isto à sinha Vitória e indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro, não era? Sinha Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano afirmou o que havia perguntado. Então ele não conhecia aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher tivesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois lhe faltava convicção [...] (p. 123). É importante que se destaque igualmente o fenômeno do mutismo introspectivo das personagens. Silenciosas e circunspectas, elas substituem o diálogo — forma mais natural de trocarem informações — pela linguagem gestual ou gutural: [...] a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão. — Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isso não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo. [...] Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto (p. 9-10). Como se percebe, o filho mais velho, em vez de explicar ao pai que já não consegue caminhar, senta-se no chão e põe-se a chorar. Em seu rudimentarismo psicológico, o pai, em vez de conversar com ele, passa a xingá-lo e a espancá-lo. Em seguida, vendo que sua atitude não produz nenhuma reação no filho, começa a falar consigo mesmo, esbravejando contra a paisagem. Para compensar a quase ausência de diálogos, o narrador registra, com absoluto poder de síntese, planos da realidade exterior, atos, gestos e movimentos das personagens: [Fabiano] Alcançou o pátio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas pretas, deixou atrás os juazeiros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o carro de bois. As alpercatas dos pequenos batiam no chão branco e liso. A cachorra Baleia trotava arquejando, a boca aberta. SISTEMA ANGLO DE ENSINO Aquela hora sinha Vitória devia estar na cozinha, acocorada junto à trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, preparando a janta. Fabiano sentiu vontade de comer. Depois da comida, falaria com sinha Vitória a respeito da educação dos meninos (p. 25). TEMPO As referências temporais na obra são discretas. O capítulo inicial (“Mudança”) e o final (“Fuga”) oferecem ao leitor dados suficientes para perceber que a trama se desenrolará entre duas estiagens. Embora a cronologia não seja explícita, os painéis ou cenas autônomas deixam transparecer algumas ordenações temporais mais concretas que outras. De fato, sabe-se apenas que, dentro do quadro cíclico da seca, uma família se estabelece provisoriamente numa fazenda; a partir daí, é necessário uma investigação detalhada para levantar indicadores que demarquem com clareza a passagem do tempo. De posse desses dados, pode-se deduzir que marido e mulher aparentam a mesma idade. A diferença de idade entre os meninos também é pequena. Dentro desses limites, os indicadores temporais têm um duplo movimento: alguns se referem ao presente da narrativa, outros representam experiências do passado, resgatados pela memória, sequiosa de tempos mais felizes. Sabe-se, por exemplo, que o reencontro de Fabiano com o soldado amarelo, na caatinga, deu-se um ano após sua vexatória prisão. De modo geral, os acontecimentos não estão datados em relação à memória das personagens, como se percebe pelas passagens seguintes: “Recordou-se do que sucedera anos atrás, antes da seca, longe”; “fazia horas que pisavam a margem do rio”; “Entrava dia e saía dia”; “Viveria muitos anos, viveria um século”. No final, registra-se a seguinte observação: “Dobrando o cotovelo da estrada, Fabiano sentia distanciar-se um pouco dos lugares onde tinha vivido alguns anos; o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia esmoreceram no seu espírito” (p. 120). O que se pode ter como norma é que lembranças desagradáveis ou humilhantes são sempre mais recentes. Essa dissolução do tempo cronológico produz um efeito psicológico e estilístico notável, na medida em que amplifica a carga de dramaticidade das personagens, intensificando a sensação de viverem num mundo regido pela instabilidade: não se sabe nem de onde Fabiano e família vêm como também para onde caminham. Ignora-se quando chegaram, quanto tempo demoraram e durante quanto tempo terão de caminhar: “Os pés calosos, duros como cascos, metidos em alpercatas novas, caminhariam meses. Ou não caminhariam?” (p. 121). O esvaziamento do tempo cronológico possibilita ao narrador desviar-se da exterioridade dos acontecimentos, podendo registrar o fluxo mental das • 115 • ANGLO VESTIBULARES personagens, revelador da reificação e do caos instaurados em suas vidas. Ao longo do relato, para intensificar a noção de tempo interior, os verbos vêm nos pretéritos imperfeito, perfeito e mais-que-perfeito, registrando como essa família rústica reage psicologicamente às pressões da natureza e da sociedade. A angústia, o medo, a opressão revelam em toda sua brutalidade a face mais arcaica do país. Os indicadores temporais evidenciam também a incipiente organização social em que vivem as personagens, oriundas da economia rural. O campo tinha seus mecanismos de produção ainda atrelados a um formato semifeudal, não se articulando com as exigências do mercado consumidor urbano, que já se achava num estágio econômico mais avançado, próximo do capitalismo. Esse choque manifesta-se agressivamente em “Contas”, na passagem em que Fabiano vai à cidade tentar vender um porco. Acuado pelo fiscal da prefeitura, o sertanejo revela todo o seu despreparo para enfrentar as instituições da sociedade. ESPAÇO Pode-se dizer que o verdadeiro protagonista alegórico de Vidas secas está no espaço social e físico. A família sertaneja tem suas possibilidades de vida e de realização bloqueadas tanto pela natureza adversa como pelos limites impostos por aqueles que detêm alguma forma de poder: o “dono da fazenda”, o “soldado amarelo” e o funcionário da prefeitura. A paisagem natural é tão hostil que é possível falar na existência de um contra-espaço nesse romance. Inóspito, o agreste sertão nordestino tornase o principal responsável pela periódica expulsão dos sertanejos. Essa região apresenta como característica dominante o clima tropical semi-árido, com chuvas escassas e irregulares. Predominam ali os rios intermitentes — rios “vaziados”, no dizer de João Cabral de Melo Neto —, pois ficam parte do ano totalmente secos. Apresentam drenagem exorréica, ou seja, em épocas de chuva (o “inverno” sertanejo) suas águas correm em direção ao mar; no período da estiagem, seus mananciais temporariamente se extinguem: seus leitos viram rotas de fuga para o litoral. A monotonia marca o tom do ambiente: não há florestas nem montanhas para distrair a visão e atenuar a secura. Quase sempre sinistra e desolada, a paisagem permite que se veja longe e fundo, tornando ainda mais ostensivo o drama dos retirantes. Determinador de destinos, o espaço torna essa marcha vã, pois o caminho que procuram se fecha em si mesmo, não leva a parte alguma. Paisagem e linguagem tendem a se fundir: a aridez do semi-árido nordestino encontra seu paralelo na escassez das falas das personagens. SISTEMA ANGLO DE ENSINO A infalibilidade dos urubus, traçando círculos em torno desses seres, tem efeito similar aos condicionamentos socioeconômicos implacáveis, que lhes impõem como única saída o nomadismo. Fechadas, as aspirações têm de ser adiadas continuamente. A dificuldade de interação, imposta pela geografia, cresce em função da crise do trabalho e da sua demanda. Além do mais, Fabiano é vaqueiro, atividade solitária na região. No capítulo “Cadeia”, constata-se que o isolamento de Fabiano é pleno e definitivo. Anda a esmo pela cidade, num meio estranho, cheio de situações e desafios constrangedores. As pessoas, o comércio e as instituições o deixam acuado, reduzido à sua inferioridade e impotência. Minado, reage passivamente, retrai-se. O ilhamento impõe às personagens certa afasia: por não interagirem, ficam “sonadas”, incapazes de ler a realidade. Falam pouco, e ainda assim com um discurso emaranhado e desconexo. Se o trabalho duro na fazenda dava a Fabiano alguma consciência de utilidade, a cidade dissolve isso, pois o reduz, explora e corrompe. As instituições sociais — genericamente designadas por ele como “governo” — são entidades abstratas e distantes, associadas permanentemente a algo que se deve temer. Também no capítulo “Festa” ficam patentes o conflito e o contraste entre campo e cidade: Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo. Os caixeiros, os comerciantes tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar nas ruas tropeçando. Por isso Fabiano se desviava daqueles viventes [...] Estava convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins (p. 76). Ao se confrontar com as imposições de uma organização social impermeável, arcaica e preconceituosa, Fabiano é punido: por reagir contra a arbitrariedade do soldado amarelo, é preso e espancado; por questionar a contabilidade do patrão, é ameaçado de expulsão da fazenda; por tentar vender carne de porco na feira, é multado. Alfredo Bosi, no ensaio “Céu, inferno” (GARBUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V., 1987, p. 386), estabelece uma correspondência bastante esclarecedora entre espaço e comportamento psicológico das personagens. A alternância climática, segundo ele, explicaria a oscilação entre felicidade e angústia • 116 • ANGLO VESTIBULARES no comportamento do sertanejo. A estação das chuvas, característica do “inverno” nordestino, dá a Fabiano a sensação de que ele pode se aprumar na vida e até mesmo confiar no patrão; já a seca, com seu sol causticante, o expõe à inclemência da retirada, remetendo-o bruscamente à realidade, um pesadelo com suas marcas de desgosto e pavor. Nessa última circunstância, a natureza assume tal poder desagregador que, praticamente, decide o destino das personagens. Fabiano conjetura: “Se a seca chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o promotor e o delegado” (p. 66-7). A idéia de vingança não se consuma porque chove. Com a chuva, ele “esquecia as pancadas e a prisão, sentia-se capaz de atos importantes” (p. 67). Como conclusão, destaque-se que Fabiano e sua família se orientam no mundo por meio de índices, um tipo de signo assim denominado por Charles Sanders Peirce (Semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1995). As lições da semiótica de Peirce foram propostas, sobretudo, para a leitura do mundo não-verbal. Índice é um sinal diretamente ligado a seu objeto, à coisa a que se refere (p. ex.: trovão → tempestade; aves de arribação → seca; soldado amarelo → ódio etc.). Alguns estudiosos, como Antônio Risério, vêem toda a vida sertaneja regida por índices. O sertanejo os recolhe por toda parte, observando as manifestações da natureza. O índice é universalmente importante: em todas as sociedades, o homem se acostuma com eles. Por meio deles é que se constrói um raciocínio fundamental à vida, chamado indução; noutros termos, é próprio do homem amadurecer certos conhecimentos gerais a partir da observação repetida de experiências singulares, manifestadas por meio de índices. A indução, portanto, permite ao homem prever eventos futuros e tomar os devidos cuidados para se preservar. O que acontece com Fabiano, entretanto, é algo semelhante ao que acontece com os animais quando se altera seu habitat natural: eles se desnorteiam, não podem mais confiar nos índices habituais. Fabiano e sua família se mostram a toda hora angustiados porque se vêem repentinamente atirados pela seca numa espécie de “desconcerto do mundo”. Os índices, outrora tão confiáveis, impõem a dúvida e o temor. Certamente, muitos deles eram novos, desconhecidos (não se pode esquecer de que a família fora deslocada de seu habitat). O que é dramático e tenso é justamente perceber, a cada passo, que Fabiano hesita diante de quase todos os sinais, como um animal acuado. É curioso observar que, independentemente disso, Fabiano também se mostra um dedicado aprendiz dessas novas formas do perigo. Isso faz parte do seu heroísmo natural, em que emerge um lado “bicho”, que quer reconhecer certas formas já desaprendidas. SISTEMA ANGLO DE ENSINO Charles Peirce também falou nos símbolos que representam as formas do pensamento. Ora, Fabiano não está totalmente alheio a estas últimas. O discurso indireto livre o mostra como um homem que, dentro de suas limitações, pensa e raciocina, isto é, um homem que trabalha com idéias ou símbolos. Entretanto, seu próprio faro animal lhe diz que todo pensamento ou palavra excessiva poderia ser naquela hora um perigo a mais. De qualquer forma, pode-se dizer que Vidas secas é um romance em que todos os símbolos da cultura vão sendo gradativamente devorados pelos índices da sobrevivência. A presença de índices ocorre intensamente no romance. Como exemplo, pode-se evocar o episódio em que Fabiano tenta “farejar” uma novilha para lhe fazer curativo. Como não consegue encontrá-la, desiste e decide-se a fazer o curativo nas pegadas do animal, rezando em cima do rastro deixado na areia. Toda a caracterização de Fabiano como um “homem empurrado pela seca” é uma multidão de índices, que o tipificam como um homem que dialoga com os elementos da natureza. Observe esta seqüência, do capítulo final do livro: Agora Fabiano examinava o céu, a barra que tingia o nascente, e não queria convencer-se da realidade. Procurou distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidão que todos os dias espiava, com o coração aos baques. As mãos grossas, por baixo da aba curva do chapéu, protegiam-lhe os olhos contra a claridade e tremiam. Os braços penderam, desanimados. — Acabou-se. Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul. Estremeceu como se descobrisse uma coisa muito ruim (p. 117-8). A reação de Fabiano diante da iminência de uma nova seca é instintiva e a resposta, imediata: o desânimo e a tremedeira tomam conta do vaqueiro. PERSONAGENS De acordo com a já clássica divisão de Lucien Goldmann, Vidas secas pode classificar-se como romance de tensão crítica. As personagens principais representam a típica família sertaneja nordestina (pai, mãe, filhos, com estes os animais: cachorro, papagaio) em conflito com a paisagem natural e com as personagens que representam os signos do poder: o dono da fazenda, o soldado amarelo e o funcionário da prefeitura. Com isso, pode-se dizer que o conjunto das personagens alcança uma dimensão alegórica, pois elas se distribuem em pólos opostos mas representativos da ordem socioeconômica regional. • 117 • ANGLO VESTIBULARES O romance provoca impacto justamente pelo notável grau de verossimilhança alcançado: a construção de personagens é tão habilmente engendrada que elas parecem transformar-se em seres reais. Para marcar o estado de embrutecimento a que foram reduzidas, o autor recorre freqüentemente a comparações com animais, que demonstram a existência insípida, a aflição e os anseios desses seres, inertes diante das imposições da paisagem natural e social: “Estava escondido no mato como tatu”; “era como um cachorro, só recebia ossos”; “Fabiano estacou desajeitado, como um pato”. A propósito da afetividade das personagens do romance, no depoimento dado ao jornalista João Condé, Graciliano Ramos comenta: “A minha gente, quase muda, vive numa casa velha de fazenda; as pessoas adultas, preocupadas com o estômago, não têm tempo de abraçar-se”. A passagem seguinte, extraída do capítulo inicial, confirma tal declaração: Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de sinha Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava (p. 13). PERSONAGENS Fabiano Vaqueiro do sertão nordestino, competente na lida do gado e perfeitamente entrosado com o meio rural. Na cidade, sente-se como um estrangeiro que é violentado por instituições sociais incompreensíveis e abstratas. Genericamente as vê como manifestações do “governo”, distantes de sua realidade porque não resolvem seus problemas. A retração, a desconfiança e o temor de Fabiano se ampliam nos confrontos com o soldado, o patrão e o funcionário da prefeitura. Nessas situações, sente-se tão diminuído e marginalizado que constantemente é comparado a um animal: é “quase uma rês” ou ainda “Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia”. No Dicionário da língua portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, o verbete fabiano vem assim anotado: “(Do antr. m. Fabiano, decerto) subst. m. Lus. 1. Indivíduo inofensivo; pobre-diabo. 2. Indivíduo qualquer, desconhecido, joão-ninguém”. Se, de um lado, isso sugere embrutecimento, do outro parece representar uma extraordinária capacidade de resistência, cujos limites são superados com fibra e dignidade. Uma vez que a organização social não lhe possibilita realização individual, só lhe resta uma saída: fugir, buscando nova possibilidade de integração. Fabiano constitui, assim, um “herói” problemático, marcado pela contradição SISTEMA ANGLO DE ENSINO entre a revolta e a passividade. O que mais o atormenta é a impotência de não se sentir "dono" da própria linguagem, que lhe é subtraída pela condição social adversa. O que mais o anima é a perspectiva de que, algum dia, seus filhos possam vir a dominá-la. Em princípio, possuir uma linguagem articulada significa ter possibilidade de acesso a uma melhor compreensão do mundo. As circunstâncias de pressão transformam Fabiano num ser que vive alternadamente situações de estabilidade (“Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. [...] Ele, sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra” — p. 19) e sufoco (“Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca” — p. 19). Um traço importante da personalidade de Fabiano é a crença quase absoluta nos poderes sobrenaturais. Quando se vê em situações difíceis, o vaqueiro apela para as superstições: em “Mudança”, olha para o céu e se põe a contar estrelas, por achar que isso traria a chuva; em “Fabiano”, para curar uma novilha doente, monta um cruz com gravetos e reza, fazendo o curativo nas pegadas que o animal deixara na areia; em “O menino mais velho”, considera que uma entidade protetora segurava-o na sela quando domava animais xucros. Por fim, em “O mundo coberto de penas”, atemoriza-se com a possibilidade de Baleia, em quem dera um tiro, virar uma alma penada para vir assustá-lo. Sinha Vitória Por ser mais astuta que Fabiano, é menos vulnerável que o marido. Suporta, com constantes reclamações, a carga dos afazeres domésticos e lida impacientemente com os filhos. Algumas vezes, os resmungos transformam-se em palmadas nas crianças. Diferencia-se também do marido pelo instinto de posse, manifesto no sonho de vir a ter uma “cama de lastro de couro”, igual à de seu Tomás da bolandeira. A posse desse objeto básico representa, para ela, uma forma de realização, de alcance duma espécie de consciência de cidadania, fundamental para a construção de sua auto-imagem, pela necessidade de sentir que vive uma vida plena e autêntica não só no domínio da natureza, mas sobretudo no domínio da cultura. Para atenuar suas frustrações, nas horas de aflição costuma apelar para Deus e para a Virgem Maria. A vontade de alcançar um mínimo de conforto e bem-estar brota de uma personalidade mais decidida, não tão tosca e primitiva como a do marido. Sua condição de âncora da família se manifesta no episódio do “acerto de contas” com o patrão: é ela • 118 • ANGLO VESTIBULARES quem faz os cálculos, dando a Fabiano a certeza de que fora ludibriado pelo fazendeiro. Mesmo na condição subumana de retirante, ela demonstra possuir uma certa destreza mental, é “letrada”, e detém, de certa maneira, a supremacia da família, pois “orienta” Fabiano. Quando Baleia ficou doente, a ponto de poder contagiar a família, a racionalidade de Vitória foi maior que a estima pela cachorra: pressionou o marido na decisão de se livrar da cachorra. Ao contrário de Fabiano, as comparações que sinhá Vitória faz da família com animais assumem sempre caráter negativo: “o costume de encafuar-se ao escurecer não estava certo, que ninguém é galinha”. Os Meninos As crianças, único fiapo de esperança possível de um futuro melhor, são referidas em todo o romance como “menino mais novo” e “menino mais velho”. A ausência de nomes que as singularizem revela o processo de despersonalização a que foram submetidas pelas injunções sociais. Em nenhum momento, o narrador se refere ao rosto das crianças. Assim, a questão da miséria está diretamente relacionada ao problema da nomeação e da ausência de fisionomia dos meninos. Serve como referência confirmadora de sua baixa condição econômica, de sua insignificância social. Apesar ou por causa disso, os pais intuem que educar os filhos é a única maneira de romper com o círculo vicioso imposto pela fome, pela sede e pelo desemprego. O mais novo, em sua ingenuidade, vê no pai um modelo a ser seguido; o mais velho, mais inquieto e permanentemente movido pela curiosidade, ousa perguntar aos pais o significado da palavra inferno. Fabiano sequer dá importância à interpelação do filho; a mãe, revoltada com a própria incapacidade de dar uma resposta satisfatória, aplica-lhe um cascudo. Amargurado, o menino mais velho refugia-se junto a Baleia, seu par. Os pais desejam mudar-se para as cidades grandes do Sul, perseguindo a sorte de um futuro diferente: “Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias”. No romance A hora da estrela (1977), cuja narrativa central parece ter sido desentranhada de uma possível continuidade de Vidas secas, Clarice Lispector aponta que não é bem isso o que pode acontecer: Macabéa e Olímpico, flagelados nordestinos, conseguem fugir da seca, do desespero e da pobreza nordestinas migrando para o Rio de Janeiro. Mas o que os aguarda, ali, é a continuidade de uma vida miserável de marginalizados sociais. SISTEMA ANGLO DE ENSINO Baleia De certa maneira, a cachorra é tratada como gente e, assim humanizada, torna-se um membro da família, especialmente para os meninos que a transformam numa espécie de irmã. Sua magreza de vira-lata é anulada já pela escolha do nome, demonstração de afeto própria do sertanejo nordestino, que costuma dar a seus animais nomes de peixe. O que, a princípio, aparenta ser uma ironia (pois ela em nada lembra um cetáceo), é muito mais uma compensação, dada a secura da terra. Os trancos e pontapés que recebe deixam-na revoltada e, tal como os homens, “cogita” da possibilidade de fuga: Baleia detestava expansões violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e bocejou. Para ela os pontapés eram fatos desagradáveis e necessários. Só tinha um meio de evitá-los, a fuga (p. 60). Nesta caricatura, Alvarus faz um cruzamento entre a representação biográfica e ficcional de Graciliano Ramos. Instalado num cenário agreste, o escritor, magra e com o eterno cigarro entre os dedos, traz numa coleira sua famosa personagem, a cachorra Baleia. • 119 • ANGLO VESTIBULARES Na passagem em que é morta pelo tiro de Fabiano, o processo de antropomorfização de Baleia se completa: “Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo” (p. 88). Seu Tomás da Bolandeira Tido, a distância, como exemplo de “sabedoria”, é acariciado por Fabiano como modelo de indivíduo alfabetizado e ideal. Embora não intervenha diretamente em nenhum episódio do romance, seu Tomás da bolandeira serve de escada, como se diz em teatro, para estabelecer um contraste com as expectativas de Fabiano e, sobretudo, de sinha Vitória. Embora sábio e culto (até “votava”...), seu Tomás estava falido. Mesmo assim, Fabiano procurava imitarlhe o vocabulário. Algumas palavras ele não entendia, as idéias ficavam truncadas; iludia-se com isso, achando que, por imitá-lo, melhorava de situação. Ao se referir a esta personagem, o narrador cria torneios de linguagem culta, caracterizando-o como uma pessoa de certa leitura que, por isso mesmo, transforma-se num arquétipo em que as demais personagens se espelham. O Soldado Amarelo Se a natureza oprime (basta evocar a imagem dos urubus traçando círculos em torno dos retirantes), mais hostis são os homens que representam o poder, em suas várias manifestações. O soldado amarelo simboliza o despotismo dos militares acuando os “paisanos”. Nessa mesma perspectiva, o sargento Getúlio, protagonista do romance homônimo de João Ubaldo Ribeiro, publicado em 1971, é uma espécie de extensão da personagem de Graciliano. Freqüentemente, esta personagem é evocada apenas como “o amarelo”, cor que simboliza, no imaginário popular, o desespero, o ódio e a raiva. Por ressentimento, impõe-se com arrogância diante de Fabiano, prendendo-o de forma injusta e arbitrária. Quando se encontram pela segunda vez — o soldado estava perdido na caatinga (o amarelo ganha aí a conotação de medo) —, a situação tinha tudo para se inverter. Fabiano, entretanto, contém seu ímpeto revanchista e poupa o soldado, talvez por perceber que matá-lo de nada adiantaria, pois não era assim que poderia resolver suas dificuldades. O Dono da Fazenda Símbolo do poder econômico opressor (“o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru”, p. 24), representa o imobilismo de uma estrutura social que, aliada a outros elementos, acaba por determinar o nomadismo dos retirantes. SISTEMA ANGLO DE ENSINO O Fiscal da Prefeitura Representa, juntamente com o dono da fazenda e o soldado amarelo, as instituições sociais em seus estágios menores, genericamente identificadas por Fabiano como “governo”. Figura como símbolo da intolerância da máquina governamental. ELEMENTOS ESTILÍSTICO-TEMÁTICOS Quando prefeito em Palmeira do Índios, Graciliano Ramos recrutou os presos da cadeia municipal para construir uma estrada com quilômetros e quilômetros de reta, ligando a cidade a um município vizinho. No famoso relatório de suas atividades à frente da prefeitura, ele faz o seguinte comentário sobre esse episódio: “Procurei sempre os caminhos curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis”. A determinação do prefeito pode servir como referência para a representação do método depurado do estilista: não existem curvas no texto de Graciliano Ramos. Sucinta, dura e descarnada: assim é a tessitura verbal de Vidas secas. Sua obsessão pela redação gramaticalmente imaculada e elegante lembra Machado de Assis. Embora seu estilo não possua o jogo de ambigüidade e ironia do autor de Dom Casmurro, é preciso dizer que de todos os escritores brasileiros o mais “clássico”, o mais “machadiano” é Graciliano, pela correção da escrita, que decanta conscientemente o jorro da oralidade e evita fazer concessões ao gênero populista. O Estilo Cacto A sugestão de secura envolve o livro todo, marcando a vida das pessoas e a paisagem em que elas desfiam sua angústia. O tratamento dado à linguagem assombra pela fusão entre a ordem e o caos: onomatopéias, monossílabos guturais e gestos aglutinam-se para demonstrar a alternância entre uma condição de vida digna e as reduzidas possibilidades de sobrevivência das personagens, esmagadas pela agressividade do clima e pelos deslocamentos periódicos a que são obrigadas. O estilo de Graciliano Ramos se caracteriza pela sobriedade no uso dos adjetivos; ele prefere dar nome às coisas. Daí, o critério e a sintonia fina na seleção dos substantivos. Essa virtude é, aliás, exaltada por João Cabral de Melo Neto no poema “A palo seco”: ..................................... A palo seco existem situações e objetos: Graciliano Ramos, desenho de arquiteto. ..................................... • 120 • ANGLO VESTIBULARES Eis uns poucos exemplos de ser a palo seco, dos quais se retirar higiene ou conselho: perra13, pucumã14, quenga15, reúna16, tolda17 produzem também um efeito de despojamento, pela propriedade com que são aplicados, sem nenhuma concessão ao mero pitoresco. não o de aceitar o seco por resignadamente, mas de empregar o seco porque é mais contundente. ..................................... Um Livro “Mudo” (Quaderna, 1960, fragmento.) A expressão “a palo seco” é usada na região de Sevilha, Espanha, para designar o canto a capella, em que a voz forte e vibrante dos cantores dispensa o acompanhamento por instrumentos musicais. Ora, um dos traços de maior refinamento do estilista Graciliano é o uso de frases nominais, que apuram seu significado na força expressiva dos substantivos, selecionados tão criteriosamente que dispensam a presença de verbos e adjetivos como acessórios de acompanhamento. Sua beleza e harmonia, por vezes, alcançam a graça da prosa poética. O acúmulo de orações coordenadas e de frases nominais, curtas e densas, amplificam as sugestões de revolta e desencanto: Falta de criação. Tinha lá culpa? O sarapatel se formara, o cabo abrira caminho entre os feirantes que se apertavam em redor: — “Toca pra frente”. Depois surra e cadeia, por causa de uma tolice. Ele, Fabiano, tinha sido provocado. Tinha ou não tinha? Salto de reiúna em cima da alpercata. Impacientarase e largara o palavrão. Natural, xingar a mãe de uma pessoa não vale nada, porque todo o mundo logo vê que a gente não tem a intenção de maltratar ninguém. Um ditério sem importância (p. 102). À sintaxe tradicional, Graciliano Ramos associa um variado leque de termos regionais, que, ao mesmo tempo, ampliam o vocabulário do leitor e servem de acesso para um conhecimento específico das particularidades locais. Termos como emproado2, encafuarse3, esbrugar4, macambira5, mandacaru6, mangação7, marrã8, mossa9, mulungu10, parolagem11, pedrês12, 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 emproado: altivo, de cabeça empinada. encafuar-se: esconder-se. esbrugar: tirar a pele de um animal. macambira: fibra usada na confecção de esteiras ou cadeiras. mandacaru: arbusto característico das regiões de caatinga. mangação: gozação, zombaria. marrã: porca nova desmamada. mossa: cavidade entre os dentes do pau da canga dos carros de boi. mulungu: semente vermelha e preta de uma árvore leguminosa, também chamada de corticeira. parolagem: tagarelice, papo furado, conversa fiada. pedrês: cor de pedra, salpicada de preto e branco. SISTEMA ANGLO DE ENSINO Em Vidas secas praticamente não existem diálogos. Daí, a presença quase absoluta do monólogo interior. As personagens se comunicam por meio de exclamações, interjeições guturais, onomatopéias, muxoxos, resmungos e gestos. A comprovação da marginalidade lingüística dos retirantes é uma das chaves decisivas para a compreensão do livro. Quando o soldado amarelo convida Fabiano para jogar trinta-e-um, o vaqueiro não quer ir. A resposta, no entanto, caracteriza bem sua excessiva humildade e sua carência de instrução: “Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme” (p. 27). A resposta evasiva enerva o soldado, que, arbitrariamente, decide prender o vaqueiro. Outra dimensão do mesmo problema: o menino mais velho, que “Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca” (p. 55), ouve a palavra inferno e deseja saber seu significado. Como a mãe descreve de forma exagerada o mundo do diabo, ele ceticamente questiona a explicação materna com uma frase incisiva: “— A senhora viu?” (p. 54). O acanhamento faz com que o sertanejo só fale o que é estritamente necessário. Apresenta, no entanto, uma atividade psíquica intensa, à sua maneira chegam até a filosofar, como se percebe nos freqüentes monólogos. A dificuldade em organizar o raciocínio verbal, que parece emperrado, travado por bloqueios insuperáveis, é tal que, para tornar a comunicação eficiente, as personagens valem-se constantemente da mímica e dos gestos. O falar pouco também pode ser explicado pela inibição ou receio de incompreensão. Há poucos diálogos com os representantes do poder, a família sertaneja se frustra por não ser compreendida. Apesar de embrutecidas, possuem um certo discernimento, vivem se autocriticando, lamentando sua limitação verbal, sua dificuldade de abstração e de ordenação lógica, como se pode constatar na passagem seguinte: 13 perra: teimosa, obstinada, pertinaz. 14 pucumã: mancha preta que se impregna no teto da cozinha, resultante da fumaça produzida pelo fogão de lenha. 15 quenga: vasilha feita com a metade da casca do coco. 16 reúna: botinas, com elástico lateral, usadas por militares. 17 tolda: espigueiro de milho. • 121 • ANGLO VESTIBULARES [...] Não era propriamente conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de dominálas. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto (p. 63-4). Também as enumerações, as sistemáticas repetições referidas no monólogo interior das várias personagens, a ausência de diálogos, a dificuldade de expressão verbal, enfim, sinalizam a mais absoluta falta de perspectiva dessas personagens de se realizarem existencialmente. É como assistir a um filme mudo, em que só excepcionalmente as personagens dialogam, e o fazem de modo rudimentar. A atrofia mental, evidenciada por gestos, monossílabos ou frases soltas e incompletas, dimensiona o grau angustiante das apreensões, desgostos e provações de Fabiano e sua família. O vaqueiro transforma-se no protótipo do homem em seu estado primário — quase bicho —, embrutecido; seu embotamento mental parece ter sido forjado por um sofrimento secular, que leva pessoas como ele a revelarem um comportamento atavicamente passivo diante das várias formas de autoridade. A Objetivação Verbal Graciliano esquadrinha geometricamente as palavras: elimina do texto tudo o que se possa chamar de adorno. Diz o máximo com o mínimo: daí, a escolha de frases nominais curtas e de orações coordenadas por justaposição: Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, [...] Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali, de passagem, era hóspede. [...] Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para outro, cambaio, torto e feio (p. 19-20). Tal seleção, intencional, impede que o texto corra solto; o fluxo de leitura é freqüentemente interrompido por conectivos e sinais de pontuação. Este traço da sintaxe espelha, no plano estilístico, a desconexão e a descontinuidade existencial dos infelizes retirantes: a vida não flui, parece estar permanentemente entrecortada pela necessidade de resolver o problema da sobrevivência. Pode-se dizer que a sintaxe de coordenação — orações justapostas referidas sempre num mesmo nível hierárquico — constitui uma demonstração de que o próprio SISTEMA ANGLO DE ENSINO discurso da narrativa denuncia o estado de submissão a que se reduz a família dos desvalidos, impossibilitada de acesso aos estágios básicos de realização existencial. A leitura não corre porque é sempre interrompida pela pontuação, pelas conjunções, por frases titubeantes, que refletem vidas que não se resolvem. Como decorrência da técnica da justaposição aplicada aos capítulos, os parágrafos se organizam pelo acúmulo de orações coordenadas assindéticas, intercaladas com frases nominais, elípticas. Essa ordenação sintática parece refletir a própria desconexão mental dos retirantes. O pensamento dos retirantes se define pela incapacidade de estabelecer nexos entre o que vêem e sentem, tornando os fatos autônomos e isolados. Esse traço, habilmente explorado pelo autor na composição do romance, reflete-se no plano estilístico pela predominância dos períodos curtos, muitas vezes lacônicos, pelo reduzido número de diálogos, travados com vocabulário mínimo. Vidas secas é considerada uma obra-prima de sobriedade formal pelo esforço de objetivação em que se empenhou Graciliano Ramos, ao trabalhar com frases curtas. É econômica até a exaustão, preocupando-se com o essencial. Como comentou o escritor João Antônio (autor de Malagueta, Perus, Bacanaço): “Por vários motivos, éticos e estéticos, Graciliano Ramos é um caso à parte. Um caso de dignidade. Uma dignidade severina e fabiana”. Desde Aristóteles, já se dizia que a dimensão ética (ethos) é fundamental na obra literária. LEITURA E EXERCíCIOS 1. (UFRGS-2004) Leia o fragmento abaixo, extraído de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. “Olhou a caatinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo — anos bons misturados com anos ruins. A desgraça estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Ele marchando para casa, trepando a ladeira, espalhando seixos com as alpercatas — ela se avizinhando a galope, com vontade de matá-lo. Virou o rosto para fugir à curiosidade dos filhos, benzeu-se. Não queria morrer. Ainda tencionava correr o mundo, ver terras, conhecer gente importante como seu Tomás da Bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-Ia. Não queria morrer. Estava • 122 • ANGLO VESTIBULARES escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem. — Um homem, Fabiano. Coçou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não, provavelmente não seria um homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia." Considere as seguintes afirmações sobre o fragmento acima: I. Interessa ao narrador registrar, além da tragédia natural provocada pela seca, a opressão social que recai sobre Fabiano. II. Para não demonstrar seus sentimentos diante da proximidade da desgraça, Fabiano evita o olhar dos filhos. III. Fabiano tenta compreender o mundo, mas, respondendo ao conflito interno, rebela-se contra o seu destino. Quais estão corretas? a) Apenas I. b) Apenas I e II. c) Apenas I e III. d) Apenas II e III. e) I, II e III. 2. (UFMG-2003) Com base na leitura de Vidas secas, é CORRETO afirmar que, a) no início, as personagens passam fome e, no final, sofrem com o frio. b) no início, predomina a desgraça da seca e, no final, a desgraça da estação chuvosa. c) no início, a família está em fuga e, no final, a mesma situação se repete. d) no início, a família se encontra íntegra e, no final, se mostra desfeita. 3. (UFP-2004) Sobre o foco narrativo de Vidas secas, de Graciliano Ramos, é correto afirmar que a) o narrador onisciente conhece, o tempo todo, a interioridade de todas as personagens. b) o narrador onisciente tem acesso à consciência de uma personagem de cada vez. c) há vários narradores oniscientes contando a história. d) há um narrador onisciente contando a história a partir das percepções de uma única personagem. e) a história é narrada, alternadamente, por várias personagens. 4. (ITA-1996, adaptada) Leia o excerto seguinte: Cadeia [...] — Como é, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro? SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 123 • Fabiano atentou na farda com respeito e guaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira: — Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme. Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia. Atravessaram a bodega, o corredor, desembocaram numa sala onde vários tipos jogavam cartas em cima de uma esteira. — Desafasta, ordenou o polícia. Aqui tem gente. Os jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se enrascou. Fabiano encalacrou-se também. Sinha Vitória ia danar-se, e com razão. — Bem feito. Ergueu-se furioso, saiu da sala, trombudo. — Espera aí, paisano, gritou o amarelo. Fabiano, as orelhas ardendo, não se virou. Foi pedir a seu Inácio os troços que ele havia guardado, vestiu o gibão, passou as correias dos alforjes no ombro, ganhou a rua. [...] Repetia que era natural quando alguém lhe deu um empurrão, atirou-o contra o jatobá. A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminação, trepando numa escada, acendia os lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por cima da torre da igreja; o doutor juiz de direito foi brilhar na porta da farmácia; o cobrador da prefeitura passou coxeando, com talões de recibos debaixo do braço; a carroça de lixo rolou na praça recolhendo cascas de frutas; seu vigário saiu de casa e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; sinha Rita louceira retirou-se. Fabiano estremeceu. Chegaria à fazenda noite fechada. Entretido com o diabo do jogo, tonto de aguardente, deixara o tempo correr. [...] Outro empurrão desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. Mexeu-se para sacudir o chapéu de couro nas ventas do agressor. Com uma pancada certa do chapéu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e as pessoas em roda e moderou a indignação. Na catinga ele às vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se. Leia agora as seguintes asserções: I. Faz parte do romance em que o autor descreve a realidade a partir da visão do sertanejo, associando a psicologia das personagens com as condições naturais e sociais em que estão inseridos. ANGLO VESTIBULARES II. Faz parte da obra São Bernardo, romance em que o autor questiona o latifúndio e as relações humanas, associando a psicologia das personagens com as condições naturais e sociais em que estão inseridos. III. Faz parte da obra Vidas secas, romance em que o autor procurou denunciar a degradação humana decorrente de condições sociais e ecológicas adversas e o processo de revolução da estrutura social e econômica da paisagem açucareira do Nordeste, latifundiária e patriarcalista. Qual(is) asserção(ões) está(ão) correta(s) a propósito da obra em foco? a) Apenas a I. b) I e II. c) Apenas a II. d) I e III. e) Apenas a III. 5. No episódio em que se registra a morte de Baleia, as imagens do delírio da cachorra permitem dizer que, para ela, a morte seria: a) um espaço sem limites. b) um mundo cheio de pessoas diferentes. c) um lugar sem ação. d) uma modificação total de seus hábitos. e) uma prisão. 6. O pensamento dos retirantes se define por sua incapacidade de estabelecer nexos entre o que vêem e sentem. Os fatos lhes aparecem como sendo autônomos e isolados. Essa característica é amplamente utilizada pelo autor na composição do romance. Qual dos aspectos estilísticos referidos nas alternativas seguintes não se aplica a Vidas secas? a) uso de períodos curtos. b) número bem reduzido de diálogos. c) estrutura cíclica da narrativa. d) preferência pela sintaxe de coordenação. e) uso freqüente de conectivos causais. 7. (ITA-2005) O romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, publicado em 1938, é um marco da ficção social brasileira, pois registra de forma bastante realista a vida miserável de uma família de retirantes que vive no sertão nordestino. A cachorra Baleia tem um papel especial no livro, pois é sobretudo na relação dos personagens com esse animal que podemos perceber que elas não se desumanizam, apesar de suas condições de vida. Considerando essa idéia, explique qual a importância do capítulo “Baleia” no romance. 8. (Fuvest-1993) Vidas secas, reconhecidamente, compõe-se de capítulos que se constituem em quadros destacáveis, como se fossem narrativas autônomas. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 124 • a) O que confere unidade à obra? b) Qual a relação existente entre o capítulo inicial, “Mudança”", e o final, “Fuga”? (Vunesp-1996) As questões 9 e 10 têm como mote o Princípio 3º- da Declaração Universal dos Direitos da Criança (Assembléia Geral das Nações Unidas, 20/11/1959): “A criança tem direito a um nome e a uma nacionalidade”. Baseiam-se no poema-canção Meu guri (1981), de Chico Buarque e num trecho de Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos. Texto 1 Meu Guri Quando, seu moço, nasceu meu rebento não era o momento dele rebentar, já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome pra lhe dar. Como fui levando, não sei lhe explicar fui assim levando, ele a me levar, e, na sua meninice, ele um dia me disse que chegava lá. Olha aí, olha aí... Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri. E ele chega. Chega suado e veloz do batente e traz sempre um presente pra me encabular. Tanta corrente de ouro, seu moço, que haja pescoço pra enfiar! Me trouxe uma bolsa, já com tudo dentro, chave, caderneta, terço e patuá, um lenço e uma penca de documento pra finalmente eu me identificar, olha aí... ............................................ Chega estampado, manchete, retrato com venda nos olhos, legenda e as iniciais. Eu não entendo essa gente, seu moço. fazendo alvoroço demais. O guri no mato acho que tá rindo, acho que tá lindo de papo pro ar. Desde o começo eu não disse, seu moço? Ele disse que chegava lá! Olha aí, olha aí... Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri... BUARQUE, Chico. Almanaque, CD 510 010-2, Polygram, 1993. Texto 2 Mudança Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. ANGLO VESTIBULARES Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão. — Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo. RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 64ª- ed. Rio de Janeiro, Record, 1993. p. 9. 9. Comparando-se a charge, Meu guri e o fragmento de Vidas secas, percebe-se que, entre outras afinidades, há uma fundamental: a identidade daquelas crianças. Em vista desse comentário, responda: a) que afinidades se verificam em relação à nomeação das crianças? b) Cite e interprete o verso de Chico Buarque que explicitamente relaciona a questão da miséria com a da nomeação. 10. O chamado “ciclo nordestino” da moderna ficção brasileira compreende obras inspiradas em motivos sociais, entre as quais o flagelo das secas. São escritores representativos Rachel de Queiroz (Ceará, 1910-2003), Graciliano Ramos (Alagoas, 1892-1953), José Lins do Rego (Paraíba, 1901-1957) e Jorge Amado (Bahia, 1912-). Vidas secas focaliza uma família de retirantes que vive uma espécie de mudez introspectiva, em precárias condições físicas e num estado degradante de condição humana. Mediante essas observações: a) demonstre como se revela no texto essa espécie de “silêncio introspectivo” dos personagens. b) explique, com base em elementos do texto, por que Vidas secas é considerado um romance regionalista. RESPOSTAS 1. B Resolução comentada: A afirmação I ressalta um aspecto inovador no foco de relato em Vidas secas: é de 3ª- pessoa, mas diferente do narrador onisciente tradicional, pois a realidade é apre- SISTEMA ANGLO DE ENSINO sentada pela ótica da personagem que está em cena, no caso, Fabiano. Assim, por meio da tragédia instaurada pela seca, revela-se toda a opressão social e psicológica a que a família está submetida. Para apontar a correção da afirmação II, basta recuperar o trecho inicial do segundo parágrafo: o vaqueiro “Virou o rosto para fugir à curiosidade dos filhos”. Marginalizado e impotente, Fabiano revela uma consciência contraditória, estranha combinação de passividade e revolta. Chega a elaborar planos, mas não consegue realizá-los, visto que o próprio mundo lhe cerceia a possibilidade de ação. 2. C 3. B Resolução comentada: Vidas secas (1938), único romance de Graciliano Ramos com enunciação em 3ª- pessoa, apresenta um aspecto inovador para esse foco: a onisciência é prismática, ou seja, o relato é conduzido de tal forma, que o leitor entra em contato com a realidade, enxergando-a pelo prisma de quem está em cena. Assim, uma mesma realidade é vista sob óticas distintas. Isso é possível graças ao emprego do discurso indireto livre, que dá ao narrador-observador um posicionamento discreto: sua “voz” quase se confunde com a das personagens. No capítulo-quadro “Inverno”, o leitor “vê” a chuva, guiado pelo olhar de Fabiano e sinhá Vitória; já em “Fuga”, que encerra o romance, a retomada da sina de retirantes é focalizada sob a ótica do menino mais velho. Assim, acumulam-se ângulos de visão parcial, próprios de cada personagem do romance. 4. A. Resolução comentada: A asserção I é a única que configura corretamente o romance Vidas secas. A II associa o fragmento lido ao romance São Bernardo, o que é um equívoco. O que se afirma na III é impertinente, pois a natureza que se pinta em Vidas secas é a da região árida do sertão e não a da “paisagem açucareira” do Nordeste, que pertence à chamada Zona da Mata. 5. A. Resolução comentada: Para Baleia, a morte representaria a possibilidade de ingressar num espaço de liberdade e de caça farta, sem limites para saciar-lhe a fome. 6. E. Resolução comentada: Todas as outras alternativas apresentam, efetivamente, traços estilísticos pertinentes à obra. O único aspecto estilístico que não condiz com o livro é o uso freqüente de conectivos causais. • 125 • ANGLO VESTIBULARES 7. Resolução comentada: O romance Vidas Secas narra a trajetória de uma família de retirantes em sua busca pela sobrevivência. Depois de muitas dificuldades, eles encontram certa estabilidade em uma fazenda. Os capítulos do livro apresentam uma relativa independência, concentrando-se em episódios específicos ou em determinadas personagens da trama. A cadela Baleia é retratada como parte da família, dado que sugere, por si só, a animalização das personagens. Contudo, a morte da cachorra, narrada no capítulo “Baleia”, suscita reações comprovadoras da humanidade remanescente nas personagens que compõem a família. Assim, Fabiano sofre ao ser obrigado a sacrificar o animal doente; Sinha Vitória suporta a própria dor para amparar os filhos que choram. Tais atitudes demonstram a persistência de atributos humanos nesta família rebaixada em sua humanidade pelas condições do meio e da sociedade. 8. Resolução comentada a) Três fatores se associam para conferir unidade à narrativa de Vidas secas: I. A constância dos problemas mais prementes enfrentados pela família, na sucessão dos vários quadros; II. A proposta implícita de que cada capítulo focalize prioritariamente uma das figuras contidas no plano geral da obra, delineado no capítulo 1 (Fabiano, sinha Vitória, os dois meninos, Baleia); III. O eixo figurativo e a problemática humana (a fome, a miséria e a necessidade de fuga) determinam a unidade dramática dos capítulos como um todo. b) O que aproxima o capítulo “Mudança”, que abre o romance, do capítulo “Fuga”, o último da obra, é a seca. Cíclico, como a seca do Nordeste, o livro se inicia com o caminhar dos retirantes em busca de um lugar menos castigado pela seca da caatinga. No capítulo de encerramento, esses retirantes abandonam a fazenda que lhes serviu de refúgio temporário e procuram outro lugar onde possam sobreviver. Nada viria a mudar: no anseio de “mudança” ou de “fuga”, as forças motrizes que impulsionam as andanças e a vida dos sertanejos em seu ambiente hostil são a estiagem, a opressão social e a permanente esperança de uma vida melhor. fundamentalmente as seguintes afinidades: despersonalização, condição econômica insuficiente e falta de relevância social. Esses índices vêm representados, no texto 1, por “guri” e “rebento”; no texto 2, nas passagens “o filho mais novo”, “menino mais velho”, “condenado do diabo” e “o pequeno”. b) O verso de Chico Buarque que explicita tal questão é “e eu não tinha nem nome pra lhe dar”. A miséria material é tão absoluta (“não tinha nem”) que o “guri” é privado até de nome, índice que revela também sua miséria cultural. 10. Resolução comentada a) O mutismo introspectivo das personagens de Vidas secas se manifesta, nesse texto, sobretudo nos três últimos parágrafos. Aí, deveria haver um diálogo, mas o que há é uma troca brutal de informações por gestos, e não por palavras. O menino, em vez de explicar ao pai que não consegue mais caminhar, senta-se no chão e põe-se a chorar. O pai, por seu turno, em vez de pedir esclarecimentos, põe-se a xingá-lo e a espancá-lo. Em seguida, vendo que sua atitude não produziu efeito no filho, começa a falar consigo mesmo, esbravejando contra a paisagem. Esse tipo de diálogo indicia a dificuldade de comunicação reinante no grupo de retirantes, arquétipo das famílias pobres do Nordeste. 9. Resolução comentada a) A ausência de um nome que individualize as crianças, personagens dos três textos, revela SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 126 • b) A literatura regionalista procura descrever a vida humana num determinado espaço rural, com destaque para suas particularidades geográficas e sócio-culturais. Há vários indícios de regionalismo no texto, os quais podem agrupar-se em dois núcleos: o de alusão à paisagem e o de alusão ao homem. A paisagem é referida mediante referências à vegetação (“juazeiros”, “galhos pelados da catinga rala”) e aos acidentes físicos (“areia branca do rio”). As referências ao homem dominam o texto, que denuncia uma estreita relação entre indivíduo e paisagem — traço típico do regionalismo de Graciliano Ramos. Nesse sentido, o mutismo apontado no item anterior constitui um dos aspectos mais importantes de sua literatura, preocupada em analisar a influência opressiva e limitadora da geografia e da organização social nordestina no ser humano. Além disso, observa-se no texto o uso de palavras próprias da linguagem local, como os termos “cambaio” e “aió”. Ao optar por períodos curtos e coordenados, o narrador, de certa forma, procura imitar o rudimentarismo psicológico de suas personagens. ANGLO VESTIBULARES