A História e a Memória nas narrativas de moradores de ocupações recentes em Foz do
Iguaçu-PR
Lucas Eduardo Gaspar (UNIOESTE/Bolsista de Iniciação Científica/CNPQ)
[email protected]
RESUMO: Utilizando-se de um referencial teórico da História Vista de Baixo, criado pela
nova geração de marxistas britânicos do século XX, que busca principalmente pensar e
produzir o conhecimento histórico a partir dos “sujeitos comuns” que muitas vezes foram
negligenciados pela história, é que proponho este trabalho, que busca principalmente traçar
um diálogo entre memória e a história de moradores de ocupações de áreas urbanas de Foz do
Iguaçu. As ocupações analisadas neste trabalho são recentes, datando do final do ano de 2012
e início de 2013 e são nas ações e significações feitas por seus moradores que reside um
campo ainda aberto de disputa por memórias, espaço social e também pela cidade em si. Por
isso é importante utilizar das narrativas destes sujeitos para compreendermos e analisarmos,
com maior profundidade, quais os significados e sentidos que estes moradores atribuem as
suas memórias e ações e como isto, de alguma forma, cria um espaço comum e os orienta a
lutar, mesmo que ilegalmente, pelo direito a moradia. Para esta analise, utilizo então, em
grande medida da História Oral, que possibilita o contato direto e a criação da fonte oral pelo
pesquisador, que possibilita também visualizar de maneira clara, tanto o processo histórico,
quanto os sentidos atribuídos tanto pelos sujeitos, como pelo grupo em suas narrativas.
PALAVRAS-CHAVE: História; Memória; Cidade; Ocupações.
ABSTRACT: Using a theoretical of history from below, created by the new generation of
British Marxists of the twentieth century, which seeks mainly think and produce historical
knowledge from the " common subjects " that were often neglected by history is that this
work suggest that seeks mainly to trace a dialogue between memory and history of residents
of urban occupations of Foz do Iguaçu. The occupations analyzed here are recent, dating from
the end of 2012 and beginning of 2013 and is in the actions and meanings made by their
residents that resides in a field still open dispute memories, social space and also the city
itself. It is therefore important to use the narratives of these individuals to understand and
analyze in greater depth the meanings and senses that these residents attribute at their
memories and actions and how this somehow creates a common space and guides them to
fight, even that illegally, the right to housing. For this analysis I use largely on oral history,
which allows direct contact and the creation of the source, oral, by the researcher, which also
allows to clearly visualize the historical process as the meanings attributed by the subject as
the group in their narratives.
KEYWORDS : History , Memory; City ; Occupations .
Para que este artigo possa ser apresentado de uma forma mais didática a um público
mais amplo, não limitado somente aos historiadores, decidi por dividir este trabalho em
alguns segmentos que explicitem, de forma clara, as concepções teóricas que parto até a
problemática central dos sujeitos nas ocupações das áreas urbanas de Foz do Iguaçu.
Em um primeiro momento gostaria então de realizar algumas reflexões a respeito da
base teórica que orienta minha pesquisa, por isso trarei alguns autores que formulam questões
a respeito da “História Vista de Baixo”. Também realizarei uma análise de minha fonte
principal, as narrativas orais e a maneira de se trabalhar com elas, ou seja, a História Oral e
por fim, neste primeiro momento, realizarei um breve comentário sobre a problemática da
memória, como este campo se caracteriza e como devemos tratá-lo.
Posteriormente realizarei o paralelo entre todos estes pressupostos teóricos e
metodológicos em relação a minha pesquisa atual, analisando assim o movimento de
ocupações recentes de áreas urbanas do município de Foz do Iguaçu, percebendo qual a
importância em analisarmos, principalmente, as vozes dos sujeitos principais desses
movimentos, de como eles elaboram sentidos e significados para suas ações e mais, como
significam e resignificam sua memória em relação a moradia e a cidade.
HISTÓRIA, MEMÓRIA E GENTE COMUM: ALGUMAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS
Quando falamos em História Vista de Baixo ou História da Gente Comum, de início já
deixamos bem claro que tipo de conhecimento histórico queremos construir, é um
conhecimento histórico que leva em consideração e explicita o antagonismo de classes
presentes em nossa sociedade, mostrando como isso se distancia da chamada História Oficial.
Este último tipo de história é, em suma, construída pelos grupos dominantes, uma história que
tem um caráter sempre conformista e homogeneizador.
Pensando especificamente na cidade de Foz do Iguaçu , também encontramos as
histórias Oficiais, que limitam a cidade à terra das cataratas, do turismo e do comércio. Essa
construção está intimamente ligada com a busca de alguns grupos dominantes, através da
elaboração, de uma visão e memória da cidade, efetivar interesses, tanto econômicos como
sociais, em que “a constituição dessa visão, como hegemônica, legitimaria os projetos e
interesses econômicos de tais grupos. Tratava-se, portanto, de uma tentativa de articulação da
história desses grupos com a história da própria cidade” (SOUZA, 2010, p.153), trazendo as
qualidades, vantagens e evoluções da cidade como atrativo e também como uma forma de
controle social. Pois “a ocultação é um dos procedimentos mais comuns nesse dispositivo de
controle do passado pelo poder. O passado é um estorvo do qual é preciso se livrar.”
(CHESNEAUX, 1995, p. 32). A história, ou a ocultação dela, se utiliza desses artifícios sendo
“capaz de dar lições, de distribuir lauréis aqueles que conseguiram manter-se em cena ou
mesmo de conduzir julgamentos do alto de seu ‘tribunal’ (...) e as vezes ela guarda seus
‘enigmas’, recusa-se a falar.” (CHESNEAUX, 1995, p. 22).
É contra este tipo de formulações históricas que proponho à análise histórica, a partir
da gente comum, que não visa sobrepor a relevância histórica de certos sujeitos acima de
outros, mas sim de partir de outros sujeitos, que não os das classes dominantes, para o
entendimento do contexto histórico e social em que vivem. Pondo em evidência
principalmente as contradições sociais, as disputas tanto pelo espaço da cidade, quanto pela
sobrevivência, os confrontos que ocorrem entre esses grupos, tanto físicos como ideológicos.
Vendo a história de um outro ângulo, conseguimos enxergar o que estava sendo ocultado, mas
o nosso trabalho não é somente o de enxergar o ocultado, mas também de analisá-lo e colocálo em pé de importância com o que sempre é tido como verdade ou história oficial.
Partindo então desses trabalhadores que lutam por habitação é que construímos o
conhecimento histórico, entendemos a classe não como totalmente determinada pelo Estado,
sociedade ou economia de um período, mas sim a classe enquanto seu próprio fazer-se, como
os indivíduos que a constituem, pensam e agem, ou seja, como sujeitos, assim como afirma
Thompson no primeiro volume de A formação da classe operaria inglesa “ a classe é
definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, essa é sua única
definição.” (THOMPSON, 2011, p.12)
Analisamos esta classe trabalhadora não somente através do tipo de trabalho que
exerce, mas também de sua vida cotidiana que pode nos informar também sobre como estes
sujeitos se inserem no espaço social, como também lutam e significam este espaço, passando
do mundo do trabalho para o mundo dos trabalhadores pois, analisando este segundo mundo,
podemos entender mais claramente os pensamentos, significações e ações dos trabalhadores e
de sua classe, ou seja, como formam pensam e agem na classe.
Buscamos compreender como sujeitos específicos significam e interpretam a
vida deles próprios, nos modos de projetar, trabalhar, morar, se relacionar, se
comunicar, festejar, comemorar, etc.; nos modos como se apropriam de e
reelaboram valores, sentimentos, experiências, memórias e expectativas...
Buscamos lidar com os modos culturais cotidianamente vividos e
construídos, trabalhando-os acima de qualquer compartimentação, na
perspectiva de que a história se faz, por homens e mulheres, em todas as
dimensões da vida social, num embate de tendências alternativas entre si.
(KHOURY, 2009, p.123)
E essa mudança de visão, em que agora se foca no trabalhador, faz com que o
historiador pense em outras questões também, ampliando assim, essa visão de classe
incorporando outras categorias de trabalhadores tanto das cidades como do campo, podendo
perceber assim outras lutas desses trabalhadores além das que se dão nas fábricas e sindicatos.
Por isso, é importante o uso das fontes orais, que serão as fontes principais analisadas
nesse trabalho e que propiciam a investigação mais aprofundada das ações e pensamentos dos
sujeitos, pois são produzidas por eles mesmos. Além disso, estas fontes possuem
características autônomas e funções específicas que servem de complemento para as fontes
escritas, assim como essas últimas também complementam, da mesma maneira, as fontes
orais, não excluindo uma a outra. E “na realidade, as fontes escritas e orais não são
mutuamente excludentes” (PORTELLI, 1997, p. 26), mas cumprem funções específicas que,
em seus campos, podem preencher determinados espaços ou responder determinadas
questões.
Sabemos que qualquer tipo de documentação e fontes contém uma carga de
subjetividade, que esta não pode ser excluída ou anulada de forma alguma, mas em relação às
fontes orais essa característica é latente, pois esse tipo de fonte é construída num processo em
que a subjetividade de duas pessoas entra em cena, a do entrevistado e a do entrevistador e, ao
contrário do que pode parecer, a fonte oral não é fruto somente da narrativa do entrevistado e
sim de todo esse processo de interação e participação ativa dos dois sujeitos. Sendo seu
conteúdo independente das necessidades e hipóteses do pesquisador, pois o narrador pode
conter o que mais lhe é conveniente mas, de alguma forma, sendo delimitados os temas e as
questões por ele, o entrevistador.
Outra característica específica da fonte oral, que está ligada intimamente com seu
caráter subjetivo, é o fato de que nas narrativas o pesquisador deve estar atento ao fato que é
narrado, a sua historicidade, mas deve também concentrar sua atenção aos sentidos da
narrativa que são elaborados pelo entrevistado, incluindo tanto utilizar o “conteúdo” do
narrado sobre um determinado processo histórico ou evento quanto os significados
construídos para esse processo histórico ou evento-acontecimento. São esses sentidos que
irão, não como o entrevistado lembra exatamente do acontecido, mas como ele, no momento
da narrativa interpretou e organizou esse momento vivido por ele, como lembra Alessandro
Portelli (1997, p. 33): “Assim, a utilidade específica das fontes orais para o historiador
repousa não tanto em suas habilidades de preservar o passado quanto nas muitas mudanças
forjadas pela memória.” Ou seja, são essas mudanças, as reformulações, os sentidos atribuídos
ao fato é que são de grande importância para a análise desse tipo de material.
Mas, apesar dessa grande carga de subjetividade das fontes orais, devemos nos
lembrar de que ela também é de grande utilidade factual ou objetiva para os pesquisadores,
pois “fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que
acreditavam estar fazendo e o que agora pensa que fez.” (PORTELLI, 1997, p.31). Por isso,
as fontes orais merecem um crédito diferente, pois não existem “falsas” fontes orais, o
importante dessa fonte não é sua aderência ao fato, mas o significado atribuído, a imaginação
e o simbolismo nele exposto, que nos orientam para uma analise histórica diferente, mas
válida.
Partilhando então da ideia de Portelli de que “não dispomos de fatos, mas dispomos
de textos” (PORTELLI, 1996, p. 4) vemos as fontes orais como qualquer outro tipo de
documento escrito, contém sua carga de subjetividade que não deve ser excluída e sim
analisada, e também utilizada pelo pesquisador, que assim como um texto, a narrativa foi feita
por alguém, elaborada, selecionando ou deixando de fora alguns elementos e principalmente
que serviu para responder questões sobre o passado postas em seu presente, então “o
problema não é qual é a relação entre a vida e história; mas, em vez disso, qual é o lugar da
história dentro da vida.” (PORTELLI, 2010, p.160).
Ao adentrar no campo da História Oral, adentramos também no campo da memória, e
mais, não só de uma memória, mas de múltiplas memórias, por isso devemos estar atentos ao
real sentido de sua análise que não é o de resgate do passado a partir delas, mas sim, entender
os significados que esses relatos, em todos os seus sentidos, tanto como na forma de narrativa,
quanto o que é narrado e “esquecido”, tem em relação e diálogo com o presente, como a
autora mesmo diz “num movimento não só retrospectivo, mas fundamentalmente
prospectivo”(KHOURY, 2009, p.125) Ao se utilizar da História Oral, podemos entender as
múltiplas interpretações das memórias dos sujeitos e relacioná-las com o que está se passando
no presente ou das questões que partem dele.
Considero também, a memória como um campo de batalha, onde está sempre sendo
disputada por diferentes grupos e assim como na história, a memória possui também sua
vertente “oficial” e a sua “subalterna”. Consideramos aqui, a memória oficial ou dominante
como sendo uma “operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que
se quer salvaguardar” (POLLAK, 1989, p. 9) esta ação é feita por diversos grupos,
principalmente pelas classes dominantes, sendo assim, esta memória se caracteriza por:
[...] um exercício de hegemonia que se traduz como “trabalho de
enquadramento da memória”. Este trabalho de enquadramento da memória
constitui um processo homogenizador, uniformizador das diferenças,
excluídas e silenciadas por não corroborarem os elementos de identificação
de uma determinada coletividade ou grupo.(SOUZA, 2009, p. 118)
Tentando se distanciar desta prática é que utilizarei, em suma, das memórias dos
moradores das ocupações, para que possamos compor este campo de disputas, que trará
elementos a mais e distintos dos formulados pelas classes dominantes, que são de extrema
importância para que consigamos visualizar de forma mais abrangente e crítica dos sujeitos
que compõem a cidade e também como à disputam.
Ressalto também, que as memórias que serão trabalhadas aqui, não são de um passado
distante, nem contam fatos históricos abrangentes, mas nem por isso devemos esquecer do
caráter informativo que tanto as narrativas quanto as memórias desses sujeitos podem nos
propiciar. As memórias recentes destes sujeitos também se caracterizam como elaborações de
seu presente, que motivam suas ações e lutas, que dão sentido a disputa pela cidade e ao ato
de ocupar um terreno.
Por fim, uma última consideração teórica é importante, trabalharemos com processos
ainda inconcluídos, ou seja, a História Imediata, esse trabalho nos oferece várias
oportunidades de acompanharmos de perto podendo até mesmo participar do acontecimento.
Nossa relação com as fontes é também outra, pois como é uma experiência ainda em curso,
podemos retornar as fontes diversas vezes para solucionar questões e essas fontes podem,
além de nos responder, ser reformuladas. E “a ausência de marcos também concede uma
maior liberdade para as mais diversas elucubrações, transformado a História num verdadeiro
campo de possibilidades” (RODRIGUES, 1999, p.19), que permite ao historiador, constantes
reelaborações de perguntas, reflexões e até mesmo da mudança do curso da pesquisa. Mas,
apesar disso, não desconsideraremos o contexto histórico e social dos sujeitos que iremos
estudar.
Creio que, a partir dessa reflexão, a respeito do referencial teórico e metodológico,
pode-se pensar na criação de um conhecimento histórico que esteja comprometido com a
análise, não só de um grupo social, mas de toda sociedade a que este grupo pertence, como ele
a modifica e é modificado por ela e, além disso, assumindo uma participação de contato
político e pessoal com esses sujeitos, indo além da análise crítica, “o historiador deixa de
interpretar o mundo passando a ser capaz de transformá-lo.” (RODRIGUES, 1999, p.21)
OS CAMPOS DE DISPUTA: CIDADE, HISTÓRIA E MEMÓRIA
Assim como consideramos a história e a memória como campos que estão sempre sendo
disputados, no espaço da cidade ocorre o mesmo, não só no espaço físico, como acontecem
com as ocupações de terrenos, mas também do espaço social, que é disputado por sujeitos que
desejam se inserir e se sentir pertencentes à esta cidade. Por isso, proponho aqui uma análise
em conjunto de todos estes campos, pois eles existem, são significados e disputados
simultaneamente.
Mas, antes de iniciarmos essa análise da atual situação das ocupações urbanas em Foz
do Iguaçu, juntamente com estas disputas, devemos primeiro analisar quando esse movimento
começa na cidade, a partir de que período o processo de urbanização começa a enfrentar
problemas, as causas e consequências desses problemas. Para essa reflexão utilizarei aqui a
tese de doutorado “Formação Econômica e Social de Foz do Iguaçu: um estudo sobre as
memórias constitutivas da cidade”, da historiadora Aparecida Darc de Souza (2009). Souza
realiza uma análise historiográfica no primeiro capítulo de sua tese, tentado mostrar como as
produções vem se modificando ao longo das décadas de 1980 a 2000 e como essas produções
convergem ou divergem do projeto de criação de uma memória hegemônica sobre a
construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu e os benefícios trazidos para a cidade de Foz do
Iguaçu.
É a partir desse levantamento historiográfico feito por Souza que podemos perceber
como os problemas urbanos de Foz do Iguaçu começaram ao mesmo tempo e a mesma
medida que a construção e os “benefícios” trazidos pela Usina de Itaipu. Analisando diversas
obras, Souza explicita que, segundo alguns autores, a construção da Usina foi um evento que
provocou profundas transformações na cidade de Foz do Iguaçu, distintos dos interesses
gerais da população, que teria sido “atropelada pela dinâmica do progresso”. Em síntese,
resultaram três grandes problemas para a cidade a construção da Usina de Itaipu: “o aumento
da pobreza, a falta de moradia e o aumento da criminalidade.” (SOUZA, 2009, p.48).
O problema da falta de moradia na cidade de Foz do Iguaçu, data então, do início da
construção da Usina de Itaipu, pois a cidade não estava preparada para o contingente de
trabalhadores que aquela construção implicava. Itaipu até investiu na construção de
residências, mas essas somente atendiam a seus trabalhadores e não ao restante da população
que veio a Foz do Iguaçu, mas acabou por não trabalhar na obra.
Foz do Iguaçu sofreu, com a obra de Itaipu, um acelerado processo de urbanização
“que transformou antigas áreas rurais em novos bairros, para acomodar a crescente população
atraída pela obra ou expulsa pela formação do lago.” (SOUZA, 2009, p.182) Ao mesmo
tempo que isso ocorria, cresciam o número de habitações precárias e favelas em Foz do
Iguaçu.
O movimento de ocupações urbanas atual de Foz do Iguaçu vem dessa longa trajetória
de transformações sociais trazidos com a construção da Usina de Itaipu. Ainda que
inconscientemente, esses moradores são, de alguma forma, herdeiros dessa “herança”, mas
herdeiros no sentido de constituintes e ativos nesse processo, não somente como vítima dele,
como lembra Emilio Gonzáles, em um artigo sobre ocupações na área urbana de Foz do
Iguaçu: “entendemos que esses movimentos de ocupação urbana podem ser pensados, em
certo sentido, como propulsores do desenvolvimento urbano dessa cidade, e não ‘reflexo’
dele”. (GONZÁLES, 2005, p.3)
Em minha pesquisa, apesar das diversas ocupações ocorridas nesse período de 2012 e
2013, analisarei em especial uma delas, a ocupação do Conjunto Bubas, que é uma área
particular da cidade de Foz do Iguaçu, localizada na parte sul da cidade. A ocupação dessa
área ocorreu no dia 14 de janeiro de 2013 e segundo dados dos moradores, já conta com
aproximadamente 868 famílias nessa área. Utilizarei algumas entrevistas neste artigo para
explicitar como os moradores interpretam e expõem sua situação e lutas. Em todas as
entrevistas, por um acordo com os moradores, serão utilizados pseudônimos.
Entrando agora nas narrativas desses moradores tentarei explicitar como estas fontes
são de grande riqueza para o campo da história desse movimento, de sua memória e de suas
ações. Segundo a entrevistada Vanessa: “no geral eles esqueceram dos menos favorecidos”,
nesta pequena frase podemos perceber claramente como os moradores desta ocupação
percebem, tanto sua situação social como também o descaso do Poder Público com a classe
mais pobre e quando seu companheiro, também presente nesta mesma entrevista, ressalta:
“teve que invadir pra saber que nóis existimo”, ele evidencia justamente o processo de disputa
pelo espaço urbano e pelo reconhecimento como sujeito social e portador de direitos que são
todos estes moradores. O ato da “invasão” então não é significado como um crime para estes
sujeitos, mas sim como uma ação de necessidade de condições mínimas de moradia,
sobrevivência e pertencimento social.
Podemos reforçar esta idéia a partir de outras entrevistas realizadas, como a de Marta,
quando ressalta que: “eu não tive a oportunidade de ter uma casa, daí a gente tem que sofrer
esses riscos pra poder conquistar né?”, ou seja, esse “riscos”, que neste caso é o ato de ocupar
um terreno é considerado como um elemento necessário para que se alcance uma conquista,
conquista essa que vai além da materialidade da casa própria, mas também em todo o
significado que ela tem para estes sujeitos.
Ainda na narrativa de Marta percebemos como estes sujeitos enfrentam a si próprios,
seus medos, receios e angustias, para que possam concretizar, ou lutar pela garantia de sua
moradia.
[...]a gente veio e eles a recém começaram a invadir aqui né? [...] A minha
irmã, minha mãe morava aqui no Bubas, daí a minha irmã ficou
sabendo, daí eu fiquei “ ai, será que eu vou?”, daí ele falou assim:
“vamo lá, você vai conseguir sua casa”, daí eu: “será?”, daí meu
marido falou assim: “a Marta não vai ter coragem de ficar”, até ele se
impressionou comigo porque a gente vem, montou o barraco e eu
fiquei.
Nesta fala percebemos o quanto esta ação mexe com os sentimentos e o interior das
pessoas, pois a necessidade, ligada a oportunidade de se conquistar uma casa própria, fez com
que Marta reelaborasse uma série de concepções que, para ela, eram imutáveis. Esta mudança
foi tão expressiva que nem mesmo seus familiares próximos, como é o caso de seu marido,
em um primeiro momento, acreditassem que seria capaz de realizar. Além de enfrentar a si
própria, Marta enfrenta outras pessoas que desacreditam ou podem não contribuir para a
conquista de sua casa própria, como foi o caso de sua chefe.
daí eu, “ai meu Deus, será?”, daí eu tava no meu horário de almoço, daí
minha patroa ligou e falou “Marta, vem trabalhar”, e eu falei “eu não vou
trabalhar hoje”, “Marta vem trabalhar”, daí eu “não, não vou”, daí eu
desliguei o celular, a gente foi e já comprou a lona, já montou aqui, no
mesmo dia foi meu marido no horário de almoço, almoçar e a gente ficou ai.
Daí minha patroa no outro dia me ligou cedo pra ir trabalhar, eu falei que
não ia mais, eu falei assim pra ela: “você tem sua casa, eu não tenho a
minha.”
Este embate nos mostra o caráter combativo que Marta atribuiu ao ato de ocupar, pois
enfrentou a si própria e a sua chefe para que continuar na ocupação, isso é confirmado quando
Marta narra que morou por 2 semanas em uma barraca de lona, quando acabara de mudar para
ocupação e que, posteriormente construiu apenas um cômodo de madeira para ela seu marido
e cinco filhos e também que teve que largar seu emprego para cuidar de seus filhos e de seu
barraco na ocupação, contando apenas, agora, com o trabalho do marido. Ou seja, com certeza
esta foi uma grande mudança, tanto na vida quanto nas idéias de Marta, pois considerava sua
vida anterior, em outro bairro e pagando aluguel, como uma vida “boa” porque ela e seu
marido trabalhavam e a casa era bonita e agora, mesmo com as dificuldades enfrentadas na
ocupação, a mudança é justificável: “ Por causa que a gente pagava aluguel e porque a gente
queria conquistar uma casa também, era o nosso sonho, imagina? Meu sonho é ter uma casa,
meu Deus.”
Além dos enfrentamentos pessoais, os moradores constantemente estão enfrentando a
sociedade que os cerca e este enfrentamento por diversas vezes aparecem em suas falas, por
isso cabe aqui analisar como eles se dão e seus significados. Na fala de Julia fica evidente o
seu sentimento em relação aos outros grupos sociais e sujeitos de outros bairros que
consideram a ocupação ilegítima e injustificável. Quando questionada sobre a relação com os
grupos dos outros bairros e como eles viam os moradores da ocupação, Julia responde:
“Como um bicho! É, como se nós não fosse seres humanos né? A maioria enxerga o pessoal
daqui como bicho.” Fala essa que se repetiu por diversas vezes em várias entrevistas
realizadas.
Logicamente que nenhum sujeito ou órgão Público chamou literalmente estes
moradores de “bichos”, pois por mais que desaprovem a ocupação, tem o mínimo de senso
ético e moral, mas esta palavra foi apropriada pelos moradores para representar como estavam
se sentindo. Foi a sua interpretação, de como a sociedade estava tratando o movimento e,
apesar de sentirem-se bastante ressentidos com este caráter que vinha ganhando o movimento,
não perdiam a oportunidade de expressar o quanto eram contrários a essa interpretação,
tentando assim, mostrar qual o real caráter desse movimento, segundo eles. Como foi o caso
de Julia que no momento em que sentiu sendo tratada como “bicho” discute com outro
indivíduo que mal conhecia.
[...] e eu até discuti isso com um senhor que jogou o lixo na rua e eu fui falar
com ele, ele “é...” eu falei “talvez o senhor tenha uma mansão, mas o pessoal
aqui não tem, o pessoal aqui não é bicho, agente procura manter tudo limpo,
a rua limpa, e o senhor vem jogar lixo como se nós fosse lixo”, isso dói, pra
qualquer um dói muito, porque a pessoa tá lá uma mansão não tem direito de
vir aqui, contaminar as pessoas que tão aqui, eles não tão aqui porque eles
escolheram tá aqui, é porque o governo não deu uma casa pra eles morar.
Este é o sentimento que os moradores da ocupação sempre ressaltam, um sentimento
de injustiça e que, por mais que eles saibam que estão fazendo algo que é considerado ilegal,
não devem ser tratados com descaso tanto dos outros sujeitos como pelo Poder Público. Por
isso, por vezes, não só expõem, mas lutam contra este caráter que o movimento vinha
ganhando. Como ressalta Vanessa quando questionada sobre o caráter do movimento:
[...] tá tomando um rumo assim, desde o começo, bem negativo né? Porque
agente esperava muito mais das nossas lei daqui de Foz né? Mas
infelizmente, tão tratando o pessoal ali como bicho, como ocupador, como
invasor, como nós tamo tomando as terras dos outros, só que ninguém tá
querendo tomar nada, todo mundo que ter o direito de ganhar uma casa,
porque se eles tivessem construído as 5 mil casa, nada disso teria acontecido,
então eu acho que a autoridade aqui de Foz, as pessoas, tem uma
discriminação como pessoal dali, daí trás muita tristeza né? Porque ninguém
tá ali porque quer.
Nesta fala, além de notarmos este caráter de negação da criminalização ou descaso
com o movimento ressaltando o quanto ele é legitimo, pois não estão efetivamente “tomando”
as terras, estão querendo pagar por elas. Nota-se também, a quem estes sujeitos atribuem a
culpa de um movimento de ocupação ter que se formar, que nas falas destas moradoras é o
Governo, o Poder Público. Esta consciência de que a culpa não é deles e sim do governo nos
mostram como estes sujeitos encaram a ocupação como um problema social mais amplo, que
atinge desde o não cumprimento de promessas até a não garantia de direitos sociais para estas
pessoas. Mostra também como esta luta esta inserida em um contexto mais amplo, não só de
garantia de moradia, mas de luta contra a descriminação constante que esses moradores
sofrem e também contra um governo que não está engajado no amparo de sua população.
Podemos considerar então o ato da ocupação como, principalmente, um apelo social
para o cumprimento de deveres do Poder Público, um apelo que não encontra outra maneira, a
não ser ocupar um terreno particular, para que seja notado e minimamente amparado, apelo
esse que não acaba no simples ato de ocupar, mas também no ato de justificar, permanecer e
sobrevier a esta ocupação, como ressalta Carlos:
[...] você tá pagando teu aluguel dificultado, passando fome, passado
medicação que você precisa que você deixa pra pagar teu aluguel, aí o que
que acontece, o Estado não vê isso daí eles só tão vendo agora porque foi
ocupado uma área, foi ocupada aquela área e o Estado tá vendo que
realmente existe pessoas necessitadas.
Em suma, apesar das dificuldades enfrentadas por este movimento percebe-se o
quanto os sujeitos que o integram estão em constate luta, não só pelo espaço ou por uma casa
própria, mas também pela integração na sociedade e pelos sentidos que o movimento pode ter,
usam como armas então, não somente sua força física, necessária para ocupar, mas suas
ideias, memórias e histórias para legitimar suas ações.
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A História e a Memória nas narrativas de moradores de ocupações