UNICENTRO, Guarapuava/PR – 17 e 18 de junho de 2010
O Relato como Notícia e História: a memória da Fronteira
nos jornais de Foz do Iguaçu1
Emerson dos Santos DIAS – jornalista, especialista em História e Sociedade e
mestre em Ciências Sociais.
Universidade Estadual de Londrina (UEL - PR)
RESUMO
Apreender detalhes da História local por meio de relatos e fazer com que os
depoimentos se tornem fontes para novas produções jornalísticas e também subsídios
para pesquisas acadêmicas. Esta iniciativa, intencional ou acidental, identificada em
jornais que circularam ou circulam em Foz do Iguaçu (PR) é o objeto da pesquisa aqui
apresentada. As investigações concentraram-se principalmente nas primeiras décadas do
século passado (1910 a 1930) e buscaram reproduzir fatos históricos importantes da
chamada “Tríplice Fronteira” (Brasil, Argentina e Paraguai, onde Foz está localizada) a
partir de relatos publicados posteriormente. O resgate histórico e a valorização dos
pioneiros expuseram detalhes sobre a visita de Santos Dumont (1916) e a formação da
Coluna Prestes (1924-1925), entre outros fatos de relevância nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo; História oral; memória; tríplice fronteira.
A relevância da pesquisa resumida no artigo aqui apresentado é reforçada em
dois ambientes que envolvem Comunicação e História: o da reconstrução do cenário
que servia de pano de fundo para convivências e conflitos sociais da época (História
Cultural) e o da utilização dos relatos – obtidos por meio de reportagens e entrevistas
com pioneiros – para exatamente reconstruir um painel temporal e a partir dele oferecer
uma representação da realidade onde os moradores se encontravam (reunindo
estratégias do Jornalismo, da Análise Documental e também da História Oral). A opção
metodológica principal para resgatar e avaliar o material foi a da Análise Documental,
ancorada nestas duas linhas acadêmicas das Ciências Humanas. Por meio desta análise,
buscaram-se indícios (entrevistas, fotos e depoimentos para a reconstrução do cenário
exposto) e ainda dados e informações em livros, revistas e principalmente jornais da
região, para amparar a construção da memória coletiva da Tríplice Fronteira e assim
entender as mudanças drásticas ocorridas entre 1910 e 1930. “A Análise Documental,
muito mais que localizar, identificar, organizar e avaliar textos, sons e imagens,
funciona como expediente eficaz para contextualizar fatos, situações, momentos.
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Trabalho apresentado no GT História do Jornalismo, componente do I Encontro Paraná/Santa
Catarina de História da Mídia.
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Consegue, dessa maneira, introduzir novas perspectivas em outros ambientes, sem
deixar de respeitar a substância original dos documentos. (MOREIRA, 2005, p. 276).
O recorte geográfico e temporal (Foz do Iguaçu nas primeiras décadas do século
XX) foi definido a partir de leituras que mostraram o período como rico em referenciais
históricos e jornalísticos locais, regionais e nacionais. Basta citar como exemplo o
encontro dos movimentos tenentistas de São Paulo e Rio Grande do Sul, ocorrido entre
setembro de 1924 e abril de 1925 em Foz, que resultou na formação da Coluna Prestes,
grupo revolucionário que percorreu 25 mil quilômetros pelo Brasil e também países
vizinhos, na tentativa de conscientizar a população brasileira a se posicionar contra a
passividade da sociedade (e das próprias Forças Armadas) diante das oligarquias
políticas e econômicas que dominavam o País.
O tema citado anteriormente (Foz ocupada pelos movimentos tenentistas) já foi
discutido em trabalhos e publicações anteriores do autor (DIAS, 2009; DIAS, 2007),
porém em um viés interdisciplinar visando uma análise mais sociológica e
antropológica que historiográfica e jornalística. Ao tentar compreender os conflitos de
identidade e a formação da memória cultural dos moradores de Foz do Iguaçu – para
lançá-los como referência que direcionaram o processo histórico da região partindo da
situação exposta – pesquisas anteriores ofereceram um panorama do ambiente que
propiciou o surgimento da famosa Coluna Prestes a partir de relatos dos pioneiros
registrados por jornais e revistas da cidade.
A pesquisa abarcou vários autores (Drummond (1986), Sodré (1978), Prestes
(1997), Veiga (1992), Meirelles (2002), entre outros) e também buscou dados em
arquivos de jornais e revistas da cidade (“Nosso Tempo”, “Hoje Foz”, “Gazeta do
Iguaçu” e “Memória de Foz”, entre outros). No entanto, devido à brevidade da
apresentação aqui proposta, o presente artigo se utilizará de um projeto desenvolvido
por dois jornalistas, Silvio Campana e Chico Alencar, que perceberam a importância de
juntar depoimentos (publicados em periódicos) de dezenas de moradores em uma única
publicação oficial. Longe de desconsiderar o trabalho de ambos, Campana & Alencar
(1997) deram voz aos pioneiros, mas de maneira solta e aleatória, sem a intenção de
organizar as entrevistas em temas ou períodos históricos, mesmo porque o objetivo dos
mesmos era, inicialmente, coletar este material para valorizar e resguardar o trabalho
pioneiro de muitos moradores. “Uma missão gratificante: colher dos nossos ‘velhinhos’
seus depoimentos e suas histórias sobre os primeiros anos de nossa cidade, sobre as
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adversidades que eles enfrentaram para implantar aqui, no Extremo-Oeste do Paraná e
nesta tríplice fronteira Brasil-Paraguai e Argentina, este cidade única em todo o imenso
território nacional. Foram eles, os nossos pioneiros, as legítimas sentinelas avançadas
do Brasil” (CAMPANA & ALENCAR, 1997, p. 5).
Coube a pesquisa, cujos resultados estão aqui apresentados resumidamente,
buscar uma ordenação e ao mesmo tempo uma experimentação, no sentido de selecionar
trechos de mais de 75 entrevistas e dar linearidade à História Cultural da comunidade
iguaçuense das primeiras décadas do século passado. O importante foi impor sobre a
análise documental uma sistemática que envolvesse a identificação de normas culturais
em fatos cotidianos, usando a “história antropológica” de Certeau (1998) e a “história
social” de Burke (2002), para depois utilizar referenciais da “história cultural” de
Chartier (1990) e extrair a matéria-prima dos padrões identificados nos objetos culturais
produzidos. São “as ‘visões de mundo’, os sistemas de valores, os sistemas normativos
que constrangem os indivíduos, os ‘modos de vida’ relacionados aos vários grupos
sociais, as concepções relativas a estes vários grupos sociais, as idéias disseminadas
através de correntes e movimentos de diversos tipos” (BARROS, 2005, p. 130).
Durante pesquisas realizadas entre 2005 e 2009, foram coletados referenciais
que formaram, tal qual coletas arqueológicas e antropológicas, a representação de vários
momentos importantes da chamada Tríplice Fronteira, a começar pela fundação a
Colônia Militar de Foz do Iguaçu em 1889. Relatos de pioneiros e as observações do
sargento José Maria de Brito, um dos oficiais da expedição que fundou a Colônia
Militar, abriram veredas nas malhas da memória social pouco conhecidas e pouco
observadas pelas pesquisas acadêmicas. Num relato em primeira pessoa, publicado
artesanalmente por Brito pela primeira vez em 1937 e resgatado em 2005, a região já
havia sido cartografada como território brasileiro na transição Império-República, mas
permanecia isolada do resto do país, ocupada por uma maioria castelhana. “Por ocasião
da descoberta da foz do Iguaçu, o território brasileiro já era habitado. Existiam no
mesmo 324 almas, assim descritas: brasileiros, 9; franceses, 5; espanhóis, 2; argentinos,
95; paraguaios, 212; inglês, 1.” (BRITO, 2005, p. 56-57).
Também foi possível recriar situações de intimidade entre os moradores do então
pequeno vilarejo e pessoas ilustres, como um dos maiores cientistas brasileiros: Alberto
Santos Dumont (1873-1932). Por meio de depoimentos colhidos, percebe-se como foi
importante a atuação do aviador na criação de do maior referencial turístico da região: o
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Parque Nacional do Iguaçu.
Foi a visita, realizada em 19162, que alavancou o processo de formação do
parque. Passagem que é lembrada em diversos relatos recolhidos em jornais e também
catalogados por Campana & Alencar (1997): “Para o desespero do meu pai, o grande
inventor caminhou em direção à tora [presa sobre uma das rochas das cataratas] e,
lentamente equilibrou-se entre o céu e o abismo sem medir as conseqüências nem se
preocupar com o tempo. Cruzou os braços e permaneceu de pé, contemplando a
Garganta do Diabo”, disse Elfrida Engel Nunes Rios (1905-1991), descrevendo em
detalhes as ações do famoso aviador. O pioneiro José Werner (1900-1990) também
acompanhou a ilustre visita. “O pessoal gracejava: pois é, Santos Dumont, nóis esperava
o senhor por riba, mas o senhor veio por baixo”. Já Marieta Schinke (data de
nascimento desconhecida e falecida em 1984), foi mais longe. “Houve uma grande
festa, baile e tudo mais. Eu dancei uma valsa com Santos Dumont”.
Foi com a mesma intimidade que falavam do aviador que estes e outros
pioneiros relataram, por exemplo, a presença dos movimentos tenentistas na região de
fronteira. “Lembro que era formada por jovens altos, fortes e bonitos, muito bem
educados. Foi uma pena que tenham perdido a revolução. Se tivessem vencido, acho
que hoje o Brasil estaria melhor”, avaliou Marieta Schinke. “Todo mundo ficou com
medo, pensando que os revolucionários iriam matar a todos. Mas quando [os homens de
Isidoro Lopes] chegaram e viram aquilo [fuga para os países vizinhos], disseram que
quem tinha fugido devia voltar porque não iria acontecer nada de mal a ninguém”,
afirmou Alfredo Mertig (1914-1997).
Por meio de relatos tão próximos como estes, é possível dar contorno às dúvidas
e angústias dos moradores. Perguntas como “em qual grupo confiar: Tenentes ou
Legalistas?” podem ser respondidas com depoimentos como o de Elfrida Rios, que
detalhou o comportamento das tropas federais e também o que aconteceu quando as o
Exército chegou à cidade. “Vieram quatro contingentes das forças legalistas para
expulsar os revolucionários. Eram 4 mil homens, que se instalaram em quatro
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Santos Dumont visitou a Vila Iguaçu entre 26 e 27 de abril de 1916 hospedando-se no quarto número 2
do Hotel Brasil, na verdade uma pequena pensão com capacidade para 14 hóspedes, descreve a pioneira
Elfrida Engel Nunes Rios (CAMPANA & ALENCAR, 1997, P. 87). Depois de conhecer as cataratas,
seguiu para Curitiba tentar recorrer junto ao então Presidente do Estado do Paraná, Affonso Alves de
Camargo, para que as terras que abrangiam a foz do Rio Iguaçu – pertencentes a particulares – se
tornassem patrimônio público. Naquele mesmo ano – 28 de julho – o decreto nº 63 declarava de utilidade
pública os 1.008 hectares que abrangiam as 275 quedas das cataratas. Somente em 1939, por decreto do
Presidente Getúlio Vargas, a área passou a se chamar Parque Nacional do Iguaçu.
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acampamentos [na região]. Quando as forças revolucionárias se retiraram, [os legalistas]
fizeram miséria. Encheram o ‘tanque’ de cachaça, montaram em seus cavalos e saíram
por aí, aprontando, dando tiros e fazendo algazarra”, explicou Elfrida, lembrando ainda
que o marido – um funcionário público que trabalhava na Coletoria – perdeu o emprego
porque as autoridades do Governo trataram a família como traidora por não ter fugido
do vilarejo durante a permanência dos rebeldes. “Ele foi desligado do serviço e nós
ficamos sem nada. Eu tinha feito um vestido (...) e tive de vendê-lo por 200 mil réis,
com o que meu marido alugou uma canoa e foi ao Paraguai comprar uma lata de banha,
um saco de açúcar e um saco de trigo para repartir com minha mãe. Passamos mal,
muito mal”, lamentou a pioneira.
Existem ainda lacunas sobre o real comportamento dos rebeldes durante o estado
de sítio vivido pelos moradores. Drummond (1986) mostra atos de violência ocorridos
entre 1926 e 1927, quando a Coluna Prestes já marchava pelo Nordeste do País. “Os
oficiais da Coluna Prestes não conseguiram impedir que seus soldados, em represália à
hostilidade popular, fizessem requisições exorbitantes, saqueassem e incendiassem vilas
inteiras ou matassem prisioneiros desarmados” (DRUMMOND, 1986, p.143). O mesmo
pode ter ocorrido em Foz? Se houve, em qual intensidade?
Durante a coleta de material, encontramos registros de ações violentas no
decorrer da ocupação do Oeste Paranaense. O depoimento de José Werner mostrou que
houve excessos na região fronteiriça. “Sei que fuzilaram um homem, Franklin de Sá
Ribas, lá no Porto do Rio Paraná. Ele cuidava do Cartório do correio e levava gado ao
Paraguai. Os revolucionários o proibiram de fazer isso, mas ele continuou. Então o
condenaram à morte”. Ottília Ignez Werner Friedrich (1904-1999) também descreveu o
ocorrido. “Levaram o coitado à barranca do Rio Paraná, fizeram abrir sua própria
sepultura e o mataram”, afirmou.
O objetivo maior desta pesquisa, portanto, foi buscar dar voz e contornos à
memória de uma população, agente passivo e ativo da História, por meio de reportagens
publicadas na cidade. “Com os relatos dos moradores que vivenciaram tais conflitos
(primeiro envolvendo tenentes e depois as tropas legalistas), foi possível perceber como
os agentes da História usam uma linguagem própria e exclusiva. Por essa razão, são
detentores e ao mesmo tempo reféns do processo histórico e da narrativa histórica”
(DIAS, 2009, p. 61).
REFERÊNCIAS
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UNICENTRO, Guarapuava/PR – 17 e 18 de junho de 2010
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IN: Diálogos. Maringá : Editora da UEM, v. 9, n. 1, 2005.
BRITO, José Maria de. Descoberta de Foz do Iguaçu e fundação da colônia militar (1937).
Curitiba : Travessa dos Editores, 2005.
BURKE, Peter. Historia e teoria social. São Paulo : Editora Unesp, 2002.
CAMPANA, Silvio; ALENCAR, Chico de. Retratos. Foz do Iguaçu : Campana &
Alencar Ltda, 1997.
CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano. Petrópolis : Vozes, 1998.
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Trad.
Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
DIAS, Emerson dos Santos. Fronteira Sitiada: as memórias dos moradores de Foz
do Iguaçu sobre os movimentos tenentistas (1924-1925). IN: PRIORI, Angelo (org).
História, Memória e Patrimônio. Maringá : EDUEM, 2009, p. 49-64.
______________ A Narrativa Histórica sobre a Tríplice Fronteira a partir do
fotógrafo Harry Schinke (1920 – 1930). 2008. Monografia (Especialização História) –
UEM, Maringá.
______________. Fronteira Sitiada. III Seminário Internacional de História. Maringá,
set. 2007, (Trabalho apresentado em seminário: www.pph.uem.br/iiisih/resu_pdf.html).
DRUMMOND, José Augusto. O Movimento Tenentista: intervenção militar e
conflito hierárquico (1922-1935). Rio de Janeiro : Graal, 1986.
MEIRELLES, Domingos. As noites das grandes fogueiras: uma história da Coluna
Prestes. Rio de Janeiro : Record, 2002.
MOREIRA, Sonia Virgínia. Análise documental como método e como técnica. In:
DUARTE, Jorge (org.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo:
Atlas, 2005.
PREFEITURA MUNICIPAL. Memória de Foz do Iguaçu – Primeira Etapa. Foz do
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PRESTES, Anita Leocadia. A Coluna Prestes. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1997.
SODRÉ, Nelson Werneck. A Coluna Prestes: análise e depoimentos. Rio de Janeiro :
Civilização Brasileira, 1978.
VEIGA, Luiz Maria. A Coluna Prestes. São Paulo : Scipione, 1992.
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