ARTIGOS TEMÁTICOS
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Futebol e Psicanálise em Jogo
Francisco Martins∗
Resumo
Futebol é o assunto maior no Brasil e no mundo. A Psicanálise pouco se ocupou do tema futebol. O
artigo visa estudar a temática de maneira exemplar, apresentando quatro temas que relacionam a
Psicanálise com o futebol: a linguagem, a bola como objeto de desejo, o pé e o ato falho no
momento decisivo. As quatro linhas direcionam um projeto maior de articulação entre os dois
domínios e que se perfazerá em um futuro livro, “Footanálise - Por que o Futebol nos é tão Vital?”.
A qualificação da linguagem, do desejo, do corpo e das formações do Inconsciente se faz presente
na articulação pretendida e que no presente artigo é introduzida.
Palavras-chave: Futebol, Psicanálise, Inconsciente, Ato Falho, Linguagem.
Abstract
Football is a main issue in Brazil and all over the world. Psychoanalysis did not work this subject a
lot yet. This article aims to study the matter presenting four themes which relate football and
psychoanalysis. They are: language, the ball as desire object, the foot and Freudian slip in a decision
moment. These four lings head to a bigger project linking football and psychoanalysis that will be
performed in a future book: Footanalyse - Why Football is so Vital for us? Language, desire, body
and Unconscious formations are presented through the article.
Keywords: Football, Psychoanalysis, Unconscious, Freudian Slip, Language.
∗
Psicólogo Clínico, Psiquiatra, Psicanalista, Professor Titular da Universidade de Brasília (UnB). [email protected]
http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf
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Futebol é uma linguagem?
Gol: Homenagem a Garrincha
Newton Rezende
No nosso amor pelo futebol, transcrevemos o código do jogo em codificação lingüística
portuguesa e encontramos mais poesia do que prosa. É o que acontece com quem ama: a realidade
psíquica acaba dominada pelo desejo e fascinação por transformar a realidade efetiva concreta.
Assim flagramo-nos em devaneio pulsional:
O futebol é mais que um folguedo. O futebol é a sublimação do brasileiro. Nosso regozijo é o
passe. Nossa delicadeza é o drible. Nosso orgasmo é o gol. Nossa beatitude é o time em uníssono.
Nossa felicidade é a partida. Dizer o futebol é sermos nossa utopia.
Ao associar emergiu de imediato uma prosa que é uma poesia que realmente apreciamos –
recitamo-la:
“O futebol não é um jogo. O futebol é a poesia do brasileiro. Nossa prosa é o passe. Nosso
verso é o drible. Nossa estrofe é o time. Nosso estribilho é o gol. Nossa metáfora é a vida. Falar de
futebol é falar de nós mesmos.” (KATZ, 2005/2006, p.20). Quem sonhou alguma vez com futebol,
especialmente se for brasileiro, assinará embaixo essa prosa-poesia de Leonel Katz.
Há 50 anos, o futebol seria mais ainda nossa poesia, dado o analfabetismo que grassava. A
impulsão para a criação teria que tomar outros rumos que não o literário. A dança, a música, o
futebol. Os humildes e trabalhadores poderiam ser ouvidos aí e ter vez, pelo menos nestas atividades
altamente sublimatórias. A criação se faz, então, no dia-a-dia do povo, seja nas metáforas
banalizadas ou no drible diabólico. Desconfiemos de que futebol seja somente linguagem. A
linguagem não é tudo, ela depende também do corpo pulsional e dos outros códigos semióticos.
Novo devaneio emerge em reação positiva a erudição de um outro texto, ainda que não em
uma das teses defendidas (Franco Júnior, 2007): futebol = linguagem. Permitimo-nos, então, um
devaneio outro: música = futebol.
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Ah! O universo da solfa. O futebol é a música do torcedor. Cada craque é um músico. Cada
armação é um solfejo. A tática, a partitura. O pianista é o meia-armador. O primeiro violino, o
ponta. O goleador, o virtuose. O técnico, o maestro. A melodia, o passe. Nossa filarmônica é o time
campeoníssimo. Nossa harmonia é a jogada em conjunto. Nossas notas são os toques de bola. Nosso
canto é o gol. Nosso treino é a afinação. Nosso time não joga, faz composições. Nossa vitória é uma
sinfonia. Nossa existência é nada sem “musicabol”.
Será que nossas impulsões de desejo fazem com que o futebol seja transmutado em nossas
mentes como música ou poesia? Acreditamos que é uma comparação metaforizada, mas muitas
vezes a metáfora se efetiva quase como se o que se passasse na mente musicalizada, poetizada fosse
o que se vê no espetáculo futebolístico. Poderíamos dizer que o futebol é similar ao teatro ou a
outras atividades laborativas humanas, tal como o profissionalismo o fará. O futebol merece
reconhecimento particular e apreciação semiótica específica, tal como recebe a linguagem, o teatro,
a música, o gesto, o brincar, o trabalhar. E, por evidência, precisamos de uma semiótica geral que
reúna todas essas atividades humanas de codificação, diferenciadas e interarticuladas, ainda que
permeáveis entre elas.
O futebol elicia a produção metafórica e de outras figuras de linguagem na fala ordinária e na
cultura erudita. Em 1964, dirigindo a Portuguesa, Gentil Cardoso prometeu, antes de um jogo contra
o Vasco (de uniforme preto e branco e largamente favorito), uma vitória. “Vai dar zebra”. E deu. Só
que ao contrário do favorito. Para deleite dos adversários, a Portuguesa venceu por 2 a l, e a frase
entrou para o próprio cotidiano da vida brasileira por via da ironia. A plasticidade do futebol fascina
e leva alguém a designar com movimento termos da vida cotidiana: a “folha seca” de Didi, a
“bicicleta” de Leônidas, o drible “rabo-de-vaca”, a “pedalada” do Robinho, o “boa noite” da
cabeçada de cima para baixo, que não sabemos a origem, pois está perdida na fundura da tradição
oral. Compartilhamos com Risério que o movimento inverso, neologismos e palavras do jargão
futebolístico – o futebolês –, invadem a linguagem ordinária e erudita.
É assim que, quando vejo que alguém finalizou alguma coisa (cena de filme, peça
publicitária, poema, passagem de romance, conquista amorosa ou sexual) com alta
categoria, posso comentar: ‘gol de letra’. Do mesmo modo, vendo que tem de fazer tudo
numa equipe de trabalho, o sujeito reclama: porra, além de bater o escanteio, ainda tenho
que correr pra cabecear?’. Muitos signos verbais originários do mundo do futebol passaram
a fazer parte de nossa fala diária. Alguns exemplos: bola pra frente, marcar homem-ahomem, ir pro chuveiro, bola dividida, jogar na retranca, dono da bola, driblar, bater na
trave, (...), ganhar no tapetão, deixar na cara do gol, correr para o abraço. (RISÉRIO, 2007,
p. 305)
Como vemos, Risério “botou pra quebrar”, “entrou rasgando”, “deu um olé”, “deu um banho
de bola”, “entrou de sola” na demonstração.
O processo semiótico envolvendo linguagem e futebol é uma via de, no mínimo, duas mãos.
Temos uma futebolização da vida por intermédio das expressões com origem na denominação dos
movimentos plásticos, da cenestesia do corpo, dos acontecimentos, e temos a poetização do futebol,
a massa da tradição oral, dos códigos da linguagem ordinária, dos jargões e também de outras
linguagens ancoradas em códigos e culturas milenares permeando toda esta atividade esportiva.
Denunciamos: os grandes esquecidos nos estudos eruditos antes do século XX foram a linguagem e
o corpo. O futebol ajuda a reforçar esta denúncia e solicita que seus mais diversos fenômenos agora
não sejam tratados somente como signos verbais.
É certo que a linguagem recobre como um tapete invisível tudo que existe de real, concreto,
imaginário, o mais além da imaginação, o impossível mesmo. A linguagem recobre a própria
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linguagem: tanto a fala quanto a língua. Ela se diz e se denomina. Na obscuridade, ela acende uma
vela, que é a consciência, mas sempre perseguida por algo não linguístico, porém, animal, orgânico:
o pulsional. Tão obscuro quanto aquilo que habita o indizível, mas que existe. Temos indicadores,
imagens, marcas que a linguagem pode e deve tentar ir lá, estender seus domínios no seu esforço
totalitário holístico sem fim, mas falibilista. Sempre faltante, a palavra é essencial para tirar-nos da
nossa orfandade bastarda deixada por quem a criou. Quem a criou é assunto não resolvido. Quem
não apela para a ideia de que Deus a criou pode adotar algo darwiniano, tal como ela seja produto de
interação entre pelo menos 20 e poucos macacos famintos e com impulsão sexual. Ela se organiza
como diferenciação da capacidade de comunicar. A linguagem não só recobre como se infiltra em
tudo. No conceito, na coisa, no fonema, tudo denominando e moldando a consciência de quem se
introduz na realidade por meio dela. Apontar os limites destes signos é uma empreitada não feita.
Perigosa por se utilizar da própria dívida da linguagem para entender o mais além e aquém da
linguagem.
Por si o futebol não é uma linguagem nem idioma universal. Trata-se, sim, de um trabalho
que pode vir a ser uma arte, entendida arte como sendo um trabalho refinado e que passa pelo
reconhecimento do outro. Em cada língua moderna, desenvolve-se todo um vocabulário específico,
um jargão, às vezes, gíria metaforizada para as atividades que envolvem o mundo da bola. Existem
termos “especializados” presentes no noticiário e crônicas. Podemos apontar alguns banalizados: gol
de placa = gol fabuloso, por contiguidade ao gol que Pelé fez no Maracanã e mereceu uma placa;
fazer cera = operação por similaridade à abelha, fazendo o tempo passar; lenha = partida difícil, por
contiguidade à dureza do lenho; frango = por similaridade escorregadia a de uma bola fácil que o
goleiro aceita, tomando gol; tijolo quente = por similaridade ao calor e fricção entre o tijolo quente e
a bola quando chutada com violência para quem vai pegar; por debaixo da saia = drible sofrido por
debaixo das pernas, e assim por diante. Este jargão se faz sobre a atividade futebolística. Nem assim,
o futebol é uma linguagem no sentido de produzir significados e significantes per se, ou de
comunicar como fazem as línguas naturais. É um jargão dentro da língua portuguesa. No caso
acima, estamos falando português acerca do futebol. Menos ainda, a atividade futebolística, seus
lances, movimentos são uma língua. Não se fala futebol como se fala japonês, inglês ou tupiguarany. Joga-se futebol.
Por mais que apreciemos o estruturalismo linguístico e também a obra cinematográfica de
Pasolini (PASOLINI, 1970) isso não nos convence acerca da atividade futebolística como sendo
baseada em podemas ou unidades mínimas de movimento com o pé:
De fato as ‘palavras’ da linguagem do futebol são formadas exatamente como as palavras da
linguagem escrita - falada. Ora, como se formam estas últimas? Formam-se por meio da
chamada ‘dupla articulação’, vale dizer, por infinitas combinações dos ‘fonemas’ - que, em
italiano, são as 21 letras do alfabeto. Os ‘fonemas’ são, pois, as ‘unidades mínimas’ da
língua escrita - falada. Se quisermos nos divertir definindo a unidade mínima da língua do
futebol, podemos dizer: ‘Um homem que usa os pés para chutar uma bola’. Aí está a
unidade mínima, o ‘podema’ (se quisermos continuar a brincadeira).
Eis que Pasolini usa os signos, a morfologia, a fonologia, a gramática, a sintaxe e o mundo
em enunciação da língua italiana para falar de futebol, e não os podemas. Por mais que o podema
possa vir a ser uma unidade significante de uma nova língua viva, ele não preenche a chamada
função metalinguística da linguagem, i.e. a capacidade no exemplo do italiano falar da própria
língua italiana. Nunca ninguém usou podemas para falar de futebol e menos ainda para jogar
futebol. Ninguém falou futebolês para falar do próprio futebolês. Ninguém falou futebolês até hoje,
só no jargão futebolístico, como circunscrição particular dentro do grande sistema semiótico
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integrado com o sistema da língua. Nem fazemos tentos com as palavras. Só o fazemos
metaforicamente, integrando os diversos códigos. Divertimo-nos, porém com a comparação criativa
do cineasta italiano. Aceitamos que um fonema reflete o império da forma que é linguagem, e que
esta é uma seriação sígnica. Já o futebol não tem uma gramática, nem o gesto adquire o estatuto de
unidade mínima de uma linguagem falada. Não traduzimos o futebol para outro tipo de futebol e
atividade. Caso comparemos com a dança, que implica comunicação e atividade específica,
demandando também uma semiótica especifica, poderíamos dizer que tanto o futebol quanto a dança
são articulados com as línguas diversas e com a atividade de fala, constituindo uma vasta atividade
semiótica interarticulada, agora inclusive entre futebol e dança, e também com a linguagem falada e
a escrita. E no caso do trabalho? O trabalho não é traduzível como a linguagem o é. Ele lida com
meios para atingir fins. É uma atividade mediada por instrumentos, e não especificamente por
signos. É outra maneira humana de mediar e que não pode ser confundido com a atividade sígnica
linguística. Quando o chamado estilo de um futebol é copiado, ele passa a fazer parte de um novo
futebol, recombinado. Não é assim que Zagallo admirou e copiou algo da Holanda Laranja
Mecânica? Nem por isso deixamos de ser futebol canarinho. Charles Miller, aquele que jogou
futebol primeiro no Brasil (em S. Paulo), copiou de alguém e nem por isso perdeu sua originalidade.
Entrou no amplo sincretismo de gestos e repertórios do dito nosso futebol. O original, a criação dita
primeira, nunca é produto de um só, solipticista, sem compartilhamento. A criação gestual do
futebol não pode ser confundida com a criação linguistica, ainda que ambas sejam criações que
constituem o humano.
Não obstante, o futebol como atividade mediada por regras se entremeia com a linguagem.
Dizemos que a linguagem mais que se sobrepõe à realidade dos movimentos. Ela recria o psiquismo
tal como temos acesso. Este mundo é regido não somente por leis naturais dadas. Passa a ser regido
por leis combinadas. Essas leis combinadas fazem o esporte agonista muito mais um trabalho, em
que o instrumento adquire um valor e um uso dentro de certas regras reguladoras da atividade. O
instrumento ou utensílio é um objeto que serve para se alcançar fins a partir de um meio. Existe uma
sobreposição intra e interpermeada entre trabalho e linguagem. É o caso do craque vendido para um
clube estrangeiro. Na “exportação” de jogadores – que talvez cumprisse nominar mais propriamente,
caso o trabalho deles não fosse tratado como uma mercadoria desejada e fetichizada, de emigração
de profissionais –, sem saber falar uma palavra de árabe ou de japonês, jogadores africanos, latinoamericanos e outros são bem-sucedidos no Oriente Médio, Europa ou Japão. Basta dar-lhes a bola
que eles sabem o que fazer. É similar a dar uma chave de roda, um instrumento, que o sujeito saberá
usá-lo no mundo de objetos que ele circula e sabe fazer funcionar. Os objetos instrumentos são
compartilhados largamente no mundo inteiro, as línguas, não. E a cidadania também não.
Quando uma laranja vira bola
Lembramos uma historinha ficcional acerca do que é a bola como objeto de mediação. Logo
que alguém constata pela primeira vez no sistema de significados e significantes um objeto novo,
acontecem efeitos de surpresa não só para o noviço, mas também para quem observa. Por exemplo,
uma Senhora da literatura rodrigueana que vai ao Maracanã pela primeira vez, pergunta
inocentemente ao seu acompanhante:
– Quem é a bola?
Foi-lhe apontado o objeto. Minutos depois volta a interpelar:
− Por que todos correm atrás da bola e chutam na direção das molduras?
Foi-lhe dito que os jogadores visavam fazer gols.
Algum tempo depois, a multidão gritou “Gol” e a Senhora ficou patética. Mas, logo que
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houve um novo gol, ela gritou mais que todos: “Gooool”.
Preferimos aqui dar o exemplo duma mulher que já está inserida no sistema de objetos da sua
cultura e conhece certamente algo acerca. Doravante, agora que ela sabe o que é uma bola no
sistema de objetos do futebol e das suas mais variadas integrações com os diversos outros códigos
semióticos, a coisa redonda feita de couro é uma bola de futebol. Todas as coisas apontadas pela
Senhora e denominadas são agora objetos, mesmo as coisas novas, nunca dantes vistas. Outrora
eram coisas entre outras, agora é um objeto pelo que o sujeito se interessou dentro de um sistema de
objetos que pode ser tratado por códigos semióticos integrados em uma vasta semiosis. O caráter
utilitário inicial parece ser fundado em desejos obtidos na cultura originária. Em cada uma, elege-se
o(s) objeto(s) de (seus) desejos. Desejar não é um ato voluntário somente. Acontece. O desejo é a
repetição de uma relação com um objeto prévio que foi prazeroso. Os objetos devem estar
potencialmente disponíveis, seja materialmente, no imaginário ou no desejo inconsciente. Não é
assim também no mundo da bola, desde os seus inícios? Nos primórdios da aquisição de habilidades
para vir a realizar atividades mediadas, como trabalhar, o brincar foi essencial. Criou uma base
segura para construir o mundo de cada um. A cada vez que temos satisfação no trabalho, aquele
velho e antigo prazer lúdico, agora em regozijo, retorna de forma nova e em algo modificada, mas
sempre aumentando a ideia de repetir aquilo que foi satisfação deleitosa. Essa é a concepção
psicanalítica do desejo (WUNSCH).
Examinemos isso no mundo legendário do futebol. Conta a lenda acerca do filósofo de praia
e do futebol brasileiro, Neném Prancha, que ele buscava um meio-campista para o seu time de
adolescentes. Sentou-se na praia com uma banquinha para venda de laranjas. Qualquer moleque que
aparecia ele levantava uma laranja na direção do possível craque. Cada um reagia de um jeito.
Alguns agarravam a laranja e se dispunham a descascá-la. Outros nem olhavam para a laranjinha e a
deixavam cair na areia. Estes estavam eliminados da peneira. Nada entendiam da coisa efetiva do
interesse do filósofo de praia. Surgiu um que, ao ser-lhe lançada a laranja, matou a mesma no peito,
deixou a dita cuja resvalar na perna, levantou-a com o joelho e pôs-se a fazer embaixadinhas e
acrobacias com a mais nova bola do mundo. Conta-se que foi assim a descoberta de Heleno de
Freitas para as legendárias proezas como centroavante do Botafogo e do escrete nacional. Aqui não
é a apresentação de alguém a uma laranja. É um encontro de um pré-disposto dotado para o controle
da bola e que retira prazer desta atividade. Vai além do habilidoso, pode ser uma Prima Donna
futura que tem deleite e pode até ganhar a vida com a sua eficaz virtude.
Na circunstância em que o garoto pega a laranja e a chupa, trata-se de um objeto quase banal,
visando saciar a fome ou tão somente aumentar as reservas de líquido: nada mais comum na vida,
nada mais ordinário e que não constitui nenhuma história nova. Comer é um trabalho do ponto de
vista newtoniano. É uma atividade, mas a laranja não é ainda um utensílio. Não é um trabalho
humano, então, a menos que se trate de um provador de tipos de laranja, como existem provadores
de tipos de café e vinhos. Caso ele seja indiferente à laranja como um utensílio para brincar, um
brinquedo, realmente a laranja vai ser tão somente um objeto esférico que, caindo e se
esborrachando no chão, marca uma indiferença de interesse comestível e também afetiva, como se a
bola e o futebol não existissem. Aquela laranjinha seria só mais uma coisa no mundo. Realmente, o
mundo de objetos só existe logo que aquela coisa lhe “ob-jeta”. A indiferença faz prova da
inexistência psicoafetiva para o sujeito. Neném Prancha não selecionaria para seu time nenhum
destes dois: os indiferentes e os negadores da bola.
No terceiro caso, a do futuro Rodolfo Valentino do futebol brasileiro, aquela em que o garoto
mata a bola, digo a laranja, no peito e sai fazendo embaixada tem-se então o escolhido, o eleito por
Neném Prancha! Trata-se de alguém fadado para a bola. Um amante da bola, do fazer futebol: o
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chamado boleiro originário na gíria do futebolês atual. Em palavras psicanalíticas, eis possivelmente
o sublimado, aquele ungido pelo prazer de trabalhar a bola no seu mais alto valor social idealizado
para e pelas multidões. Emerge o mundo mágico do brincar trabalhando. Transparece então uma
espaçosa liberdade. Eis que o menino com a bola tem a autonomia que o brincar lhe fornece. Esta
liberdade em expansão articula o mundo de objetos com a linguagem e com a sexualidade. Quando a
bola já faz parte do seu sistema de objetos, eis que existe uma relação metonímica, de contiguidade,
entre os mais diversos objetos arredondados, uma bola de meia, um papel amassado, uma laranja...
Isto era tão exagerado nos idos de 1950, que Neném Prancha fazia um chiste, algo grosseiro,
machista, mas reflexo da época, que “os solteiros deveriam dormir com a bola e os casados com as
duas bolas”. Estes podiam ir para casa fora da concentração antes dos jogos. Deveriam dormir com
as duas bolas, metonimicamente, os seios das esposas, que supostamente controlavam mais os
excessos sexuais dos craques do que uma concentração de homens poderia fazer contra o solterismo
querendo acoplamento sexual.
O poeta bem expressou a dimensão da sexualidade na bola como utensílio necessário para o
desenrolar do esporte maior: ela não é uma coisa qualquer, é um objeto de desejo. Ela não é objeto
de desejo odioso. Existe afeiçoamento. Quando não, quase sempre, é buscada a conciliação. Ela é
pessoalíssima: vinda da intimidade do lar e da infância. É quase viva: um bichinho, diferenciando os
pés como se mãos fossem:
A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida;
e, embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.
(CABRAL DE MELO NETO, 1988, p. 83-84).
O inconsciente e o pé
Nem todo desejo encontra expressão na consciência. Ele se efetiva em formações psíquicas,
como o sonho. Assim dizendo, reafirmamos que os desejos inconscientes não encontram expressão
somente na linguagem, mas também no trabalho. Por consequência, no futebol e na arte.
Efetivamente, para tudo o que envolve o humano, o Inconsciente se permite realizar formações. As
moções do Inconsciente vão para a fala do cotidiano e para a praxis. Expressam-se tanto no
chamado contexto histórico maior quanto nas alcovas das famílias em que a pequena história de
cada um se performa na sexualidade que não faz só filho e prazer. Pode vir até a fazer amor. Tanto
no signo, quanto no símbolo, no índice, no ícone, quando falamos da atividade semiótica, quanto no
uso de utensílios e instrumentos na atividade laborativa humana, aparecem formações do
Inconsciente.
Tomemos um exemplo maior: aquele do grande pintor que exerce com mestria sua profissão,
Leonardo Da Vinci. Freud (1909) analisa o quadro denominado “Nossa Senhora, Santa Ana e o
Menino Jesus”. Apreende que o pintor, no seu trabalho intencional de pintar os personagens
sagrados citados, também pintou a son insu um enorme pássaro, uns dizem um milhafre, outros, um
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abutre, constituindo-se em uma figura que vai da saia de Nossa Senhora até o menino Jesus. O rabo
do pássaro fica perto da boca do menino. Este enorme pássaro só foi apreendido, como Gestalt,
anos, séculos depois da sua composição. Na interpretação, Freud mostra existir na obra executada
uma fantasia de felação. Esta interpretação fica disponível para os especialistas em Leonardo e a
Psicanálise, com discussões intermináveis. Interessa-nos agora somente mostrar que a manualidade
e habilidade estão exprimindo algo que Leonardo não pôde dizer em alto e bom som. Isso se faz
pelas pinceladas que constituíram a imagem-figura reversível que Freud analisou. Isso estava
também nas fantasias de Da Vinci. Isso foi analisado como sendo expressão de um Inconsciente que
trabalha, dia e noite, inclusive nas pinceladas manuais de um Leonardo. Isso, como se sabe, é o
Inconsciente. Podemos discutir o que a Gestalt significa e se foi coincidência a aparição da mesma
no que Freud buscava. De toda maneira é um ato criativo – o grande pássaro – dentro de outro ato
criativo – a pintura. Isso tudo no campo da imagem, e não só da palavra. Isso no campo do gesto
preciso e da necessidade de alta técnica com o pincel para a obtenção de um objeto-fim.
A Virgem com o Menino e Santa Ana (cerca de 1510)
Todos estamos de acordo quanto ao alto valor de certos quadros, hoje mais reproduzidos do
que pinguins de geladeiras, como a “Mona Lisa”. Amamos mais ainda a arte moderna expressa em
“O Sonho de Garrincha”, de Newton Rezende (1912 – 1994), ainda que reconhecido somente no
circuito mais fechado que gosta da pintura moderna brasileira. Por que desqualificar o futebol do
ponto de vista da beleza e alto valor? Por que a arte tem que ser circunscrita aos especialistas e aos
museus? Por que somente a arte feita com a mão e a alta inteligência pode ter lugar neste mundo já
tão mesquinho e dividido? Por que o pé seria maltratado como móvel de um trabalho que atrai
multidões? Só por sermos seres marcados pela manualidade (Handigkeit), pelo fato de nos
verticalizarmos e termos as mãos liberadas para o trabalho humano? Mesmo aí os pés deveriam ser
valorizados, pois são eles que nos levantam na vida, tal como Édipo responde à Esfinge que estava a
assolar os habitantes de Tebas: saindo da condição de quadrúpede é que a aventura da existência
como bípede toma corpo. Eles nos colocam de pé quando estamos a realizar o efetivo da nossa
existência tanto metafórica quanto literal.
Entendemos que o pé também foi libertado para ser um utensílio humano. Aliás, o nosso
corpo inteiro passou a ter funções múltiplas. Ele também demanda extensões do corpo, construindo
instrumentos para aquilo que o corpo tem limitação para realizar. Desde naves espaciais, passando
por manivelas e tornos mecânicos, a caneta de um escritor e até o quarto de dormir – um objeto que
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serve para dormirmos dentro e que tem menos de 400 anos – e a bola, evidentemente. Mas os pés e
o inconsciente e a atividade semiótica global foram igualmente para a patinação, a dança: “o futebol
e os pés não estão tão por baixo assim como alguns querem”, como disse meu amigo Ronaldo
Celestino, fanático pelo Ayrton Senna. Pois é, os pés foram também para o freio, para a embreagem
e o acelerador na utilização que se faz do carro como sendo uma extensão do corpo humano. O carro
é um utensílio típico que multiplica e acelera atividades para que o corpo tem limitações: desloca-se
mais rápido, com maior proteção e assim por diante. Ora, o pé tem sua função magnificamente
presente como elemento do corpo que exprime nossos desejos em atividades como o trabalho e, veja
só, também no futebol! Tanto na alta categoria do drible quanto na articulação ardilosa de táticas,
estratégias e de técnica. Eis o Inconsciente como atividade que constitui a continuidade do processo
psíquico, pulsional, mental e corporal, ao contrário da Consciência, que é marcada pela
descontinuidade, e da Linguagem, que nos abre para o infinito e para a impossibilidade de tudo dizer
e totalizar.
O ato falho no momento decisivo
No futebol, além da habilidade, a inteligência na montagem da jogada coletiva é essencial.
Deve ser executada detalhada e rapidamente, na maior espontaneidade. Porém, ocorrem enganos.
Não podemos atribuir todos os erros ao acaso. Um cognitivista atribuirá alto valor à distração. A
distração é o país da escuridão que estamos visitando e no qual o ato falho inconsciente se realiza o
mais facilmente. As repetições indesejadas, as redundâncias, os esquecimentos, a força do desejo
variando, o conflito extracampo levado para as quatro linhas, o esquecimento de recomendações
estritas e assim por diante foram amplamente relatados e analisados por Freud no campo da
psicopatologia da vida cotidiana. Freud dizia que temos atos falhos de linguagem, e larga parte dos
exemplos são dedicados a estes. Aponta também os Vergreifen: atos equivocados ou equívocos na
ação (FREUD, 1905). Ainda que a restituição para a consciência no tratamento psicanalítico se faça
via palavra, as demais atividades do corpo estão passíveis de expressão e mediação. Com o passar
dos anos, tornar o Inconsciente consciente passou a ser secundário no tratamento analítico. Curar o
sujeito na relação continuada com o analista, na transferência com o analista, na atualização e
perlaboração da neurose com o analista, se tornou o essencial da análise. Ainda assim, os enganos,
os atos falhos no comportamento e nas atitudes e atividades laborativas continuam sendo dimensões
sintomáticas a serem qualificadas. Um ato expressivo que se faz sem a intencioanlidade da
consciência pode ser exemplificado por um exemplo vivido por Lou Andréas-Salomé, uma das
primeiras psicanalistas:
Nos últimos anos, desde que venho colecionando essas observações, tive mais algumas
experiências de despedaçar ou quebrar objetos de algum valor, mas a investigação desses
casos me convenceu de que eles nunca foram fruto do acaso ou de uma desproposital
inabilidade minha. Uma manhã, por exemplo, quando ia passando por um quarto de roupão
e chinelos de palha, cedi a um impulso repentino e, com o pé, atirei um dos chinelos na
parede, derrubando uma linda pequena Vênus de mármore de seu suporte. Enquanto ela se
fazia em pedaços, citei, inteiramente impassível, estes versos de Busch:
‘Ach! di Venus ist perdü — Klickeradoms! — von Medici!’
[‘Oh! A Vênus de Médici está perdida — Klickeradoms’]
Essa conduta selvagem e minha tranquilidade ante o dano podem ser explicadas pela
situação da época. Tínhamos na minha família uma doente grave, de cujo restabelecimento
eu já perdera secretamente as esperanças. Naquela manhã eu me inteirara de que tinha
havido uma grande melhora, e sei que disse a mim mesma: ‘Quer dizer, então, que ela vai
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viver!’ Meu acesso de fúria destrutiva serviu, portanto, para expressar um sentimento de
gratidão ao destino, e me permitiu realizar um ‘ato sacrifical’, como se tivesse feito uma
promessa de sacrificar isto ou aquilo como uma oferenda, caso ela recuperasse a saúde! A
escolha da Vênus de Médici para esse sacrifício foi, é claro, apenas uma galante
homenagem à convalescente; mas ainda hoje me é incompreensível como foi que me decidi
tão depressa, mirei com tanta destreza e consegui não atingir nenhum outro dos objetos que
estavam tão próximos. (FREUD, 1905, pp. 208-209).
Interessa-nos esse ato falho de comportamento especialmente pelo aspecto sacrifical que se
mostra presente. Poderíamos tentar fazer o mesmo em situações similares no futebol em que a
impulsão e o erro se apresentam. Como é possível Roberto Baggio, um especialista treinado e retreinado em bater falta e pênalti com alta precisão falhar justo na final da Copa do Mundo? Ou Zico,
que colocava a bola no ângulo mais agudo das traves, jogar fora um pênalti na hora decisiva?
“Acontece!”, “Todos erram!”, dizem. Descontemos a excelência de alguns goleiros habilíssimos,
inspirados ou sortudos. Fixemos na execução falha feita por craques. A característica principal de
todo profissional é errar pouquíssimo. O profissional erra pouquíssimo, ainda mais quando o goleiro
não chega nem perto da bola. A profissionalização em geral consiste na busca da eficácia e redução
do erro humano. Eles estão muito longe de uma pessoa estourada, de pavio curto, de um colérico
explosivo. Como um especialista em jogo limpo como Leonardo, um gentleman, perde a cabeça no
calor do jogo e desfere uma cotovelada na face do seu adversário justo na hora que mais o time
precisava vencer a muralha montada pelos norte-americanos em 94? Exclui-se aqui qualquer
premeditação ou intencionalidade. Na impulsão do momento, eis que a agressividade contra a
catimba e o continuado impedir de poder jogar faz emergir uma impulsão reptiliana que de longe
foge aos bons costumes. Nem parecia haver milhões assistindo à cotovelada na face do adversário.
A concentração é essencial, todos dizem. Não só no jogo, mas do que faz consigo mesmo. A
desatenção não é o Inconsciente no sentido psicanalítico. A desatenção permite o aparecimento de
um funcionamento outro que não o intencional cheio de bons propósitos. A desatenção propicia o
ato falho acontecer mais fortemente, principalmente quando se trata de atividades automáticas
agressivas. A desatenção se faz muito mais presente logo que o jogador está estenuado, cheio de
ácido lático nos músculos e com a consciência rateando mais que nunca. O cansaço ajuda no ato
falhado, cria uma base disposicional para funcionar de modo inconsciente. Aqueles atos que não
estão dependentes da consciência objetivadora e que aparecem na forma de uma violência
desmesurada em um sujeito tido até ali como um exemplo de candura.
Pelada de Meninos numa Praia Perdida de Niterói - Newton Rezende
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REFERÊNCIAS
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pela Pedra e Depois. São Paulo: Nova Fronteira, p. 83-84.
FRANCO JÚNIOR, H. A Dança dos Deuses: Futebol, Cultura, Sociedade. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
FREUD, S. (1996). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago. (1909) Leonardo da Vinci e outros trabalhos. (1901) Psicopatologia
da vida cotidiana (1905).
KATZ, L. Um pé no futebol. In: Brasil: Um Século de Futebol – Arte e Magia, MAXIMO, J. Rio de
Janeiro: Aprazível Edições, 2006.
PASOLINI, P. P. O Gol Fatal (1970). In: Folha de São Paulo. São Paulo, 06 de março de 2005.
Caderno Mais, p.7.
RISÉRIO, A. A utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo: Editora 34, 2007.
Recebido em: 16 de março de 2010.
Aprovado em: 23 de março de 2010.
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