ARTIGOS TEMÁTICOS 254 Futebol e Psicanálise em Jogo Francisco Martins∗ Resumo Futebol é o assunto maior no Brasil e no mundo. A Psicanálise pouco se ocupou do tema futebol. O artigo visa estudar a temática de maneira exemplar, apresentando quatro temas que relacionam a Psicanálise com o futebol: a linguagem, a bola como objeto de desejo, o pé e o ato falho no momento decisivo. As quatro linhas direcionam um projeto maior de articulação entre os dois domínios e que se perfazerá em um futuro livro, “Footanálise - Por que o Futebol nos é tão Vital?”. A qualificação da linguagem, do desejo, do corpo e das formações do Inconsciente se faz presente na articulação pretendida e que no presente artigo é introduzida. Palavras-chave: Futebol, Psicanálise, Inconsciente, Ato Falho, Linguagem. Abstract Football is a main issue in Brazil and all over the world. Psychoanalysis did not work this subject a lot yet. This article aims to study the matter presenting four themes which relate football and psychoanalysis. They are: language, the ball as desire object, the foot and Freudian slip in a decision moment. These four lings head to a bigger project linking football and psychoanalysis that will be performed in a future book: Footanalyse - Why Football is so Vital for us? Language, desire, body and Unconscious formations are presented through the article. Keywords: Football, Psychoanalysis, Unconscious, Freudian Slip, Language. ∗ Psicólogo Clínico, Psiquiatra, Psicanalista, Professor Titular da Universidade de Brasília (UnB). [email protected] http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf ARTIGOS TEMÁTICOS 255 Futebol é uma linguagem? Gol: Homenagem a Garrincha Newton Rezende No nosso amor pelo futebol, transcrevemos o código do jogo em codificação lingüística portuguesa e encontramos mais poesia do que prosa. É o que acontece com quem ama: a realidade psíquica acaba dominada pelo desejo e fascinação por transformar a realidade efetiva concreta. Assim flagramo-nos em devaneio pulsional: O futebol é mais que um folguedo. O futebol é a sublimação do brasileiro. Nosso regozijo é o passe. Nossa delicadeza é o drible. Nosso orgasmo é o gol. Nossa beatitude é o time em uníssono. Nossa felicidade é a partida. Dizer o futebol é sermos nossa utopia. Ao associar emergiu de imediato uma prosa que é uma poesia que realmente apreciamos – recitamo-la: “O futebol não é um jogo. O futebol é a poesia do brasileiro. Nossa prosa é o passe. Nosso verso é o drible. Nossa estrofe é o time. Nosso estribilho é o gol. Nossa metáfora é a vida. Falar de futebol é falar de nós mesmos.” (KATZ, 2005/2006, p.20). Quem sonhou alguma vez com futebol, especialmente se for brasileiro, assinará embaixo essa prosa-poesia de Leonel Katz. Há 50 anos, o futebol seria mais ainda nossa poesia, dado o analfabetismo que grassava. A impulsão para a criação teria que tomar outros rumos que não o literário. A dança, a música, o futebol. Os humildes e trabalhadores poderiam ser ouvidos aí e ter vez, pelo menos nestas atividades altamente sublimatórias. A criação se faz, então, no dia-a-dia do povo, seja nas metáforas banalizadas ou no drible diabólico. Desconfiemos de que futebol seja somente linguagem. A linguagem não é tudo, ela depende também do corpo pulsional e dos outros códigos semióticos. Novo devaneio emerge em reação positiva a erudição de um outro texto, ainda que não em uma das teses defendidas (Franco Júnior, 2007): futebol = linguagem. Permitimo-nos, então, um devaneio outro: música = futebol. http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf ARTIGOS TEMÁTICOS 256 Ah! O universo da solfa. O futebol é a música do torcedor. Cada craque é um músico. Cada armação é um solfejo. A tática, a partitura. O pianista é o meia-armador. O primeiro violino, o ponta. O goleador, o virtuose. O técnico, o maestro. A melodia, o passe. Nossa filarmônica é o time campeoníssimo. Nossa harmonia é a jogada em conjunto. Nossas notas são os toques de bola. Nosso canto é o gol. Nosso treino é a afinação. Nosso time não joga, faz composições. Nossa vitória é uma sinfonia. Nossa existência é nada sem “musicabol”. Será que nossas impulsões de desejo fazem com que o futebol seja transmutado em nossas mentes como música ou poesia? Acreditamos que é uma comparação metaforizada, mas muitas vezes a metáfora se efetiva quase como se o que se passasse na mente musicalizada, poetizada fosse o que se vê no espetáculo futebolístico. Poderíamos dizer que o futebol é similar ao teatro ou a outras atividades laborativas humanas, tal como o profissionalismo o fará. O futebol merece reconhecimento particular e apreciação semiótica específica, tal como recebe a linguagem, o teatro, a música, o gesto, o brincar, o trabalhar. E, por evidência, precisamos de uma semiótica geral que reúna todas essas atividades humanas de codificação, diferenciadas e interarticuladas, ainda que permeáveis entre elas. O futebol elicia a produção metafórica e de outras figuras de linguagem na fala ordinária e na cultura erudita. Em 1964, dirigindo a Portuguesa, Gentil Cardoso prometeu, antes de um jogo contra o Vasco (de uniforme preto e branco e largamente favorito), uma vitória. “Vai dar zebra”. E deu. Só que ao contrário do favorito. Para deleite dos adversários, a Portuguesa venceu por 2 a l, e a frase entrou para o próprio cotidiano da vida brasileira por via da ironia. A plasticidade do futebol fascina e leva alguém a designar com movimento termos da vida cotidiana: a “folha seca” de Didi, a “bicicleta” de Leônidas, o drible “rabo-de-vaca”, a “pedalada” do Robinho, o “boa noite” da cabeçada de cima para baixo, que não sabemos a origem, pois está perdida na fundura da tradição oral. Compartilhamos com Risério que o movimento inverso, neologismos e palavras do jargão futebolístico – o futebolês –, invadem a linguagem ordinária e erudita. É assim que, quando vejo que alguém finalizou alguma coisa (cena de filme, peça publicitária, poema, passagem de romance, conquista amorosa ou sexual) com alta categoria, posso comentar: ‘gol de letra’. Do mesmo modo, vendo que tem de fazer tudo numa equipe de trabalho, o sujeito reclama: porra, além de bater o escanteio, ainda tenho que correr pra cabecear?’. Muitos signos verbais originários do mundo do futebol passaram a fazer parte de nossa fala diária. Alguns exemplos: bola pra frente, marcar homem-ahomem, ir pro chuveiro, bola dividida, jogar na retranca, dono da bola, driblar, bater na trave, (...), ganhar no tapetão, deixar na cara do gol, correr para o abraço. (RISÉRIO, 2007, p. 305) Como vemos, Risério “botou pra quebrar”, “entrou rasgando”, “deu um olé”, “deu um banho de bola”, “entrou de sola” na demonstração. O processo semiótico envolvendo linguagem e futebol é uma via de, no mínimo, duas mãos. Temos uma futebolização da vida por intermédio das expressões com origem na denominação dos movimentos plásticos, da cenestesia do corpo, dos acontecimentos, e temos a poetização do futebol, a massa da tradição oral, dos códigos da linguagem ordinária, dos jargões e também de outras linguagens ancoradas em códigos e culturas milenares permeando toda esta atividade esportiva. Denunciamos: os grandes esquecidos nos estudos eruditos antes do século XX foram a linguagem e o corpo. O futebol ajuda a reforçar esta denúncia e solicita que seus mais diversos fenômenos agora não sejam tratados somente como signos verbais. É certo que a linguagem recobre como um tapete invisível tudo que existe de real, concreto, imaginário, o mais além da imaginação, o impossível mesmo. A linguagem recobre a própria http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf ARTIGOS TEMÁTICOS 257 linguagem: tanto a fala quanto a língua. Ela se diz e se denomina. Na obscuridade, ela acende uma vela, que é a consciência, mas sempre perseguida por algo não linguístico, porém, animal, orgânico: o pulsional. Tão obscuro quanto aquilo que habita o indizível, mas que existe. Temos indicadores, imagens, marcas que a linguagem pode e deve tentar ir lá, estender seus domínios no seu esforço totalitário holístico sem fim, mas falibilista. Sempre faltante, a palavra é essencial para tirar-nos da nossa orfandade bastarda deixada por quem a criou. Quem a criou é assunto não resolvido. Quem não apela para a ideia de que Deus a criou pode adotar algo darwiniano, tal como ela seja produto de interação entre pelo menos 20 e poucos macacos famintos e com impulsão sexual. Ela se organiza como diferenciação da capacidade de comunicar. A linguagem não só recobre como se infiltra em tudo. No conceito, na coisa, no fonema, tudo denominando e moldando a consciência de quem se introduz na realidade por meio dela. Apontar os limites destes signos é uma empreitada não feita. Perigosa por se utilizar da própria dívida da linguagem para entender o mais além e aquém da linguagem. Por si o futebol não é uma linguagem nem idioma universal. Trata-se, sim, de um trabalho que pode vir a ser uma arte, entendida arte como sendo um trabalho refinado e que passa pelo reconhecimento do outro. Em cada língua moderna, desenvolve-se todo um vocabulário específico, um jargão, às vezes, gíria metaforizada para as atividades que envolvem o mundo da bola. Existem termos “especializados” presentes no noticiário e crônicas. Podemos apontar alguns banalizados: gol de placa = gol fabuloso, por contiguidade ao gol que Pelé fez no Maracanã e mereceu uma placa; fazer cera = operação por similaridade à abelha, fazendo o tempo passar; lenha = partida difícil, por contiguidade à dureza do lenho; frango = por similaridade escorregadia a de uma bola fácil que o goleiro aceita, tomando gol; tijolo quente = por similaridade ao calor e fricção entre o tijolo quente e a bola quando chutada com violência para quem vai pegar; por debaixo da saia = drible sofrido por debaixo das pernas, e assim por diante. Este jargão se faz sobre a atividade futebolística. Nem assim, o futebol é uma linguagem no sentido de produzir significados e significantes per se, ou de comunicar como fazem as línguas naturais. É um jargão dentro da língua portuguesa. No caso acima, estamos falando português acerca do futebol. Menos ainda, a atividade futebolística, seus lances, movimentos são uma língua. Não se fala futebol como se fala japonês, inglês ou tupiguarany. Joga-se futebol. Por mais que apreciemos o estruturalismo linguístico e também a obra cinematográfica de Pasolini (PASOLINI, 1970) isso não nos convence acerca da atividade futebolística como sendo baseada em podemas ou unidades mínimas de movimento com o pé: De fato as ‘palavras’ da linguagem do futebol são formadas exatamente como as palavras da linguagem escrita - falada. Ora, como se formam estas últimas? Formam-se por meio da chamada ‘dupla articulação’, vale dizer, por infinitas combinações dos ‘fonemas’ - que, em italiano, são as 21 letras do alfabeto. Os ‘fonemas’ são, pois, as ‘unidades mínimas’ da língua escrita - falada. Se quisermos nos divertir definindo a unidade mínima da língua do futebol, podemos dizer: ‘Um homem que usa os pés para chutar uma bola’. Aí está a unidade mínima, o ‘podema’ (se quisermos continuar a brincadeira). Eis que Pasolini usa os signos, a morfologia, a fonologia, a gramática, a sintaxe e o mundo em enunciação da língua italiana para falar de futebol, e não os podemas. Por mais que o podema possa vir a ser uma unidade significante de uma nova língua viva, ele não preenche a chamada função metalinguística da linguagem, i.e. a capacidade no exemplo do italiano falar da própria língua italiana. Nunca ninguém usou podemas para falar de futebol e menos ainda para jogar futebol. Ninguém falou futebolês para falar do próprio futebolês. Ninguém falou futebolês até hoje, só no jargão futebolístico, como circunscrição particular dentro do grande sistema semiótico http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf ARTIGOS TEMÁTICOS 258 integrado com o sistema da língua. Nem fazemos tentos com as palavras. Só o fazemos metaforicamente, integrando os diversos códigos. Divertimo-nos, porém com a comparação criativa do cineasta italiano. Aceitamos que um fonema reflete o império da forma que é linguagem, e que esta é uma seriação sígnica. Já o futebol não tem uma gramática, nem o gesto adquire o estatuto de unidade mínima de uma linguagem falada. Não traduzimos o futebol para outro tipo de futebol e atividade. Caso comparemos com a dança, que implica comunicação e atividade específica, demandando também uma semiótica especifica, poderíamos dizer que tanto o futebol quanto a dança são articulados com as línguas diversas e com a atividade de fala, constituindo uma vasta atividade semiótica interarticulada, agora inclusive entre futebol e dança, e também com a linguagem falada e a escrita. E no caso do trabalho? O trabalho não é traduzível como a linguagem o é. Ele lida com meios para atingir fins. É uma atividade mediada por instrumentos, e não especificamente por signos. É outra maneira humana de mediar e que não pode ser confundido com a atividade sígnica linguística. Quando o chamado estilo de um futebol é copiado, ele passa a fazer parte de um novo futebol, recombinado. Não é assim que Zagallo admirou e copiou algo da Holanda Laranja Mecânica? Nem por isso deixamos de ser futebol canarinho. Charles Miller, aquele que jogou futebol primeiro no Brasil (em S. Paulo), copiou de alguém e nem por isso perdeu sua originalidade. Entrou no amplo sincretismo de gestos e repertórios do dito nosso futebol. O original, a criação dita primeira, nunca é produto de um só, solipticista, sem compartilhamento. A criação gestual do futebol não pode ser confundida com a criação linguistica, ainda que ambas sejam criações que constituem o humano. Não obstante, o futebol como atividade mediada por regras se entremeia com a linguagem. Dizemos que a linguagem mais que se sobrepõe à realidade dos movimentos. Ela recria o psiquismo tal como temos acesso. Este mundo é regido não somente por leis naturais dadas. Passa a ser regido por leis combinadas. Essas leis combinadas fazem o esporte agonista muito mais um trabalho, em que o instrumento adquire um valor e um uso dentro de certas regras reguladoras da atividade. O instrumento ou utensílio é um objeto que serve para se alcançar fins a partir de um meio. Existe uma sobreposição intra e interpermeada entre trabalho e linguagem. É o caso do craque vendido para um clube estrangeiro. Na “exportação” de jogadores – que talvez cumprisse nominar mais propriamente, caso o trabalho deles não fosse tratado como uma mercadoria desejada e fetichizada, de emigração de profissionais –, sem saber falar uma palavra de árabe ou de japonês, jogadores africanos, latinoamericanos e outros são bem-sucedidos no Oriente Médio, Europa ou Japão. Basta dar-lhes a bola que eles sabem o que fazer. É similar a dar uma chave de roda, um instrumento, que o sujeito saberá usá-lo no mundo de objetos que ele circula e sabe fazer funcionar. Os objetos instrumentos são compartilhados largamente no mundo inteiro, as línguas, não. E a cidadania também não. Quando uma laranja vira bola Lembramos uma historinha ficcional acerca do que é a bola como objeto de mediação. Logo que alguém constata pela primeira vez no sistema de significados e significantes um objeto novo, acontecem efeitos de surpresa não só para o noviço, mas também para quem observa. Por exemplo, uma Senhora da literatura rodrigueana que vai ao Maracanã pela primeira vez, pergunta inocentemente ao seu acompanhante: – Quem é a bola? Foi-lhe apontado o objeto. Minutos depois volta a interpelar: − Por que todos correm atrás da bola e chutam na direção das molduras? Foi-lhe dito que os jogadores visavam fazer gols. Algum tempo depois, a multidão gritou “Gol” e a Senhora ficou patética. Mas, logo que http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf ARTIGOS TEMÁTICOS 259 houve um novo gol, ela gritou mais que todos: “Gooool”. Preferimos aqui dar o exemplo duma mulher que já está inserida no sistema de objetos da sua cultura e conhece certamente algo acerca. Doravante, agora que ela sabe o que é uma bola no sistema de objetos do futebol e das suas mais variadas integrações com os diversos outros códigos semióticos, a coisa redonda feita de couro é uma bola de futebol. Todas as coisas apontadas pela Senhora e denominadas são agora objetos, mesmo as coisas novas, nunca dantes vistas. Outrora eram coisas entre outras, agora é um objeto pelo que o sujeito se interessou dentro de um sistema de objetos que pode ser tratado por códigos semióticos integrados em uma vasta semiosis. O caráter utilitário inicial parece ser fundado em desejos obtidos na cultura originária. Em cada uma, elege-se o(s) objeto(s) de (seus) desejos. Desejar não é um ato voluntário somente. Acontece. O desejo é a repetição de uma relação com um objeto prévio que foi prazeroso. Os objetos devem estar potencialmente disponíveis, seja materialmente, no imaginário ou no desejo inconsciente. Não é assim também no mundo da bola, desde os seus inícios? Nos primórdios da aquisição de habilidades para vir a realizar atividades mediadas, como trabalhar, o brincar foi essencial. Criou uma base segura para construir o mundo de cada um. A cada vez que temos satisfação no trabalho, aquele velho e antigo prazer lúdico, agora em regozijo, retorna de forma nova e em algo modificada, mas sempre aumentando a ideia de repetir aquilo que foi satisfação deleitosa. Essa é a concepção psicanalítica do desejo (WUNSCH). Examinemos isso no mundo legendário do futebol. Conta a lenda acerca do filósofo de praia e do futebol brasileiro, Neném Prancha, que ele buscava um meio-campista para o seu time de adolescentes. Sentou-se na praia com uma banquinha para venda de laranjas. Qualquer moleque que aparecia ele levantava uma laranja na direção do possível craque. Cada um reagia de um jeito. Alguns agarravam a laranja e se dispunham a descascá-la. Outros nem olhavam para a laranjinha e a deixavam cair na areia. Estes estavam eliminados da peneira. Nada entendiam da coisa efetiva do interesse do filósofo de praia. Surgiu um que, ao ser-lhe lançada a laranja, matou a mesma no peito, deixou a dita cuja resvalar na perna, levantou-a com o joelho e pôs-se a fazer embaixadinhas e acrobacias com a mais nova bola do mundo. Conta-se que foi assim a descoberta de Heleno de Freitas para as legendárias proezas como centroavante do Botafogo e do escrete nacional. Aqui não é a apresentação de alguém a uma laranja. É um encontro de um pré-disposto dotado para o controle da bola e que retira prazer desta atividade. Vai além do habilidoso, pode ser uma Prima Donna futura que tem deleite e pode até ganhar a vida com a sua eficaz virtude. Na circunstância em que o garoto pega a laranja e a chupa, trata-se de um objeto quase banal, visando saciar a fome ou tão somente aumentar as reservas de líquido: nada mais comum na vida, nada mais ordinário e que não constitui nenhuma história nova. Comer é um trabalho do ponto de vista newtoniano. É uma atividade, mas a laranja não é ainda um utensílio. Não é um trabalho humano, então, a menos que se trate de um provador de tipos de laranja, como existem provadores de tipos de café e vinhos. Caso ele seja indiferente à laranja como um utensílio para brincar, um brinquedo, realmente a laranja vai ser tão somente um objeto esférico que, caindo e se esborrachando no chão, marca uma indiferença de interesse comestível e também afetiva, como se a bola e o futebol não existissem. Aquela laranjinha seria só mais uma coisa no mundo. Realmente, o mundo de objetos só existe logo que aquela coisa lhe “ob-jeta”. A indiferença faz prova da inexistência psicoafetiva para o sujeito. Neném Prancha não selecionaria para seu time nenhum destes dois: os indiferentes e os negadores da bola. No terceiro caso, a do futuro Rodolfo Valentino do futebol brasileiro, aquela em que o garoto mata a bola, digo a laranja, no peito e sai fazendo embaixada tem-se então o escolhido, o eleito por Neném Prancha! Trata-se de alguém fadado para a bola. Um amante da bola, do fazer futebol: o http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf ARTIGOS TEMÁTICOS 260 chamado boleiro originário na gíria do futebolês atual. Em palavras psicanalíticas, eis possivelmente o sublimado, aquele ungido pelo prazer de trabalhar a bola no seu mais alto valor social idealizado para e pelas multidões. Emerge o mundo mágico do brincar trabalhando. Transparece então uma espaçosa liberdade. Eis que o menino com a bola tem a autonomia que o brincar lhe fornece. Esta liberdade em expansão articula o mundo de objetos com a linguagem e com a sexualidade. Quando a bola já faz parte do seu sistema de objetos, eis que existe uma relação metonímica, de contiguidade, entre os mais diversos objetos arredondados, uma bola de meia, um papel amassado, uma laranja... Isto era tão exagerado nos idos de 1950, que Neném Prancha fazia um chiste, algo grosseiro, machista, mas reflexo da época, que “os solteiros deveriam dormir com a bola e os casados com as duas bolas”. Estes podiam ir para casa fora da concentração antes dos jogos. Deveriam dormir com as duas bolas, metonimicamente, os seios das esposas, que supostamente controlavam mais os excessos sexuais dos craques do que uma concentração de homens poderia fazer contra o solterismo querendo acoplamento sexual. O poeta bem expressou a dimensão da sexualidade na bola como utensílio necessário para o desenrolar do esporte maior: ela não é uma coisa qualquer, é um objeto de desejo. Ela não é objeto de desejo odioso. Existe afeiçoamento. Quando não, quase sempre, é buscada a conciliação. Ela é pessoalíssima: vinda da intimidade do lar e da infância. É quase viva: um bichinho, diferenciando os pés como se mãos fossem: A bola não é a inimiga como o touro, numa corrida; e, embora seja um utensílio caseiro e que se usa sem risco, não é o utensílio impessoal, sempre manso, de gesto usual: é um utensílio semivivo, de reações próprias como bicho e que, como bicho, é mister (mais que bicho, como mulher) usar com malícia e atenção dando aos pés astúcias de mão. (CABRAL DE MELO NETO, 1988, p. 83-84). O inconsciente e o pé Nem todo desejo encontra expressão na consciência. Ele se efetiva em formações psíquicas, como o sonho. Assim dizendo, reafirmamos que os desejos inconscientes não encontram expressão somente na linguagem, mas também no trabalho. Por consequência, no futebol e na arte. Efetivamente, para tudo o que envolve o humano, o Inconsciente se permite realizar formações. As moções do Inconsciente vão para a fala do cotidiano e para a praxis. Expressam-se tanto no chamado contexto histórico maior quanto nas alcovas das famílias em que a pequena história de cada um se performa na sexualidade que não faz só filho e prazer. Pode vir até a fazer amor. Tanto no signo, quanto no símbolo, no índice, no ícone, quando falamos da atividade semiótica, quanto no uso de utensílios e instrumentos na atividade laborativa humana, aparecem formações do Inconsciente. Tomemos um exemplo maior: aquele do grande pintor que exerce com mestria sua profissão, Leonardo Da Vinci. Freud (1909) analisa o quadro denominado “Nossa Senhora, Santa Ana e o Menino Jesus”. Apreende que o pintor, no seu trabalho intencional de pintar os personagens sagrados citados, também pintou a son insu um enorme pássaro, uns dizem um milhafre, outros, um http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf ARTIGOS TEMÁTICOS 261 abutre, constituindo-se em uma figura que vai da saia de Nossa Senhora até o menino Jesus. O rabo do pássaro fica perto da boca do menino. Este enorme pássaro só foi apreendido, como Gestalt, anos, séculos depois da sua composição. Na interpretação, Freud mostra existir na obra executada uma fantasia de felação. Esta interpretação fica disponível para os especialistas em Leonardo e a Psicanálise, com discussões intermináveis. Interessa-nos agora somente mostrar que a manualidade e habilidade estão exprimindo algo que Leonardo não pôde dizer em alto e bom som. Isso se faz pelas pinceladas que constituíram a imagem-figura reversível que Freud analisou. Isso estava também nas fantasias de Da Vinci. Isso foi analisado como sendo expressão de um Inconsciente que trabalha, dia e noite, inclusive nas pinceladas manuais de um Leonardo. Isso, como se sabe, é o Inconsciente. Podemos discutir o que a Gestalt significa e se foi coincidência a aparição da mesma no que Freud buscava. De toda maneira é um ato criativo – o grande pássaro – dentro de outro ato criativo – a pintura. Isso tudo no campo da imagem, e não só da palavra. Isso no campo do gesto preciso e da necessidade de alta técnica com o pincel para a obtenção de um objeto-fim. A Virgem com o Menino e Santa Ana (cerca de 1510) Todos estamos de acordo quanto ao alto valor de certos quadros, hoje mais reproduzidos do que pinguins de geladeiras, como a “Mona Lisa”. Amamos mais ainda a arte moderna expressa em “O Sonho de Garrincha”, de Newton Rezende (1912 – 1994), ainda que reconhecido somente no circuito mais fechado que gosta da pintura moderna brasileira. Por que desqualificar o futebol do ponto de vista da beleza e alto valor? Por que a arte tem que ser circunscrita aos especialistas e aos museus? Por que somente a arte feita com a mão e a alta inteligência pode ter lugar neste mundo já tão mesquinho e dividido? Por que o pé seria maltratado como móvel de um trabalho que atrai multidões? Só por sermos seres marcados pela manualidade (Handigkeit), pelo fato de nos verticalizarmos e termos as mãos liberadas para o trabalho humano? Mesmo aí os pés deveriam ser valorizados, pois são eles que nos levantam na vida, tal como Édipo responde à Esfinge que estava a assolar os habitantes de Tebas: saindo da condição de quadrúpede é que a aventura da existência como bípede toma corpo. Eles nos colocam de pé quando estamos a realizar o efetivo da nossa existência tanto metafórica quanto literal. Entendemos que o pé também foi libertado para ser um utensílio humano. Aliás, o nosso corpo inteiro passou a ter funções múltiplas. Ele também demanda extensões do corpo, construindo instrumentos para aquilo que o corpo tem limitação para realizar. Desde naves espaciais, passando por manivelas e tornos mecânicos, a caneta de um escritor e até o quarto de dormir – um objeto que http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf ARTIGOS TEMÁTICOS 262 serve para dormirmos dentro e que tem menos de 400 anos – e a bola, evidentemente. Mas os pés e o inconsciente e a atividade semiótica global foram igualmente para a patinação, a dança: “o futebol e os pés não estão tão por baixo assim como alguns querem”, como disse meu amigo Ronaldo Celestino, fanático pelo Ayrton Senna. Pois é, os pés foram também para o freio, para a embreagem e o acelerador na utilização que se faz do carro como sendo uma extensão do corpo humano. O carro é um utensílio típico que multiplica e acelera atividades para que o corpo tem limitações: desloca-se mais rápido, com maior proteção e assim por diante. Ora, o pé tem sua função magnificamente presente como elemento do corpo que exprime nossos desejos em atividades como o trabalho e, veja só, também no futebol! Tanto na alta categoria do drible quanto na articulação ardilosa de táticas, estratégias e de técnica. Eis o Inconsciente como atividade que constitui a continuidade do processo psíquico, pulsional, mental e corporal, ao contrário da Consciência, que é marcada pela descontinuidade, e da Linguagem, que nos abre para o infinito e para a impossibilidade de tudo dizer e totalizar. O ato falho no momento decisivo No futebol, além da habilidade, a inteligência na montagem da jogada coletiva é essencial. Deve ser executada detalhada e rapidamente, na maior espontaneidade. Porém, ocorrem enganos. Não podemos atribuir todos os erros ao acaso. Um cognitivista atribuirá alto valor à distração. A distração é o país da escuridão que estamos visitando e no qual o ato falho inconsciente se realiza o mais facilmente. As repetições indesejadas, as redundâncias, os esquecimentos, a força do desejo variando, o conflito extracampo levado para as quatro linhas, o esquecimento de recomendações estritas e assim por diante foram amplamente relatados e analisados por Freud no campo da psicopatologia da vida cotidiana. Freud dizia que temos atos falhos de linguagem, e larga parte dos exemplos são dedicados a estes. Aponta também os Vergreifen: atos equivocados ou equívocos na ação (FREUD, 1905). Ainda que a restituição para a consciência no tratamento psicanalítico se faça via palavra, as demais atividades do corpo estão passíveis de expressão e mediação. Com o passar dos anos, tornar o Inconsciente consciente passou a ser secundário no tratamento analítico. Curar o sujeito na relação continuada com o analista, na transferência com o analista, na atualização e perlaboração da neurose com o analista, se tornou o essencial da análise. Ainda assim, os enganos, os atos falhos no comportamento e nas atitudes e atividades laborativas continuam sendo dimensões sintomáticas a serem qualificadas. Um ato expressivo que se faz sem a intencioanlidade da consciência pode ser exemplificado por um exemplo vivido por Lou Andréas-Salomé, uma das primeiras psicanalistas: Nos últimos anos, desde que venho colecionando essas observações, tive mais algumas experiências de despedaçar ou quebrar objetos de algum valor, mas a investigação desses casos me convenceu de que eles nunca foram fruto do acaso ou de uma desproposital inabilidade minha. Uma manhã, por exemplo, quando ia passando por um quarto de roupão e chinelos de palha, cedi a um impulso repentino e, com o pé, atirei um dos chinelos na parede, derrubando uma linda pequena Vênus de mármore de seu suporte. Enquanto ela se fazia em pedaços, citei, inteiramente impassível, estes versos de Busch: ‘Ach! di Venus ist perdü — Klickeradoms! — von Medici!’ [‘Oh! A Vênus de Médici está perdida — Klickeradoms’] Essa conduta selvagem e minha tranquilidade ante o dano podem ser explicadas pela situação da época. Tínhamos na minha família uma doente grave, de cujo restabelecimento eu já perdera secretamente as esperanças. Naquela manhã eu me inteirara de que tinha havido uma grande melhora, e sei que disse a mim mesma: ‘Quer dizer, então, que ela vai http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf ARTIGOS TEMÁTICOS 263 viver!’ Meu acesso de fúria destrutiva serviu, portanto, para expressar um sentimento de gratidão ao destino, e me permitiu realizar um ‘ato sacrifical’, como se tivesse feito uma promessa de sacrificar isto ou aquilo como uma oferenda, caso ela recuperasse a saúde! A escolha da Vênus de Médici para esse sacrifício foi, é claro, apenas uma galante homenagem à convalescente; mas ainda hoje me é incompreensível como foi que me decidi tão depressa, mirei com tanta destreza e consegui não atingir nenhum outro dos objetos que estavam tão próximos. (FREUD, 1905, pp. 208-209). Interessa-nos esse ato falho de comportamento especialmente pelo aspecto sacrifical que se mostra presente. Poderíamos tentar fazer o mesmo em situações similares no futebol em que a impulsão e o erro se apresentam. Como é possível Roberto Baggio, um especialista treinado e retreinado em bater falta e pênalti com alta precisão falhar justo na final da Copa do Mundo? Ou Zico, que colocava a bola no ângulo mais agudo das traves, jogar fora um pênalti na hora decisiva? “Acontece!”, “Todos erram!”, dizem. Descontemos a excelência de alguns goleiros habilíssimos, inspirados ou sortudos. Fixemos na execução falha feita por craques. A característica principal de todo profissional é errar pouquíssimo. O profissional erra pouquíssimo, ainda mais quando o goleiro não chega nem perto da bola. A profissionalização em geral consiste na busca da eficácia e redução do erro humano. Eles estão muito longe de uma pessoa estourada, de pavio curto, de um colérico explosivo. Como um especialista em jogo limpo como Leonardo, um gentleman, perde a cabeça no calor do jogo e desfere uma cotovelada na face do seu adversário justo na hora que mais o time precisava vencer a muralha montada pelos norte-americanos em 94? Exclui-se aqui qualquer premeditação ou intencionalidade. Na impulsão do momento, eis que a agressividade contra a catimba e o continuado impedir de poder jogar faz emergir uma impulsão reptiliana que de longe foge aos bons costumes. Nem parecia haver milhões assistindo à cotovelada na face do adversário. A concentração é essencial, todos dizem. Não só no jogo, mas do que faz consigo mesmo. A desatenção não é o Inconsciente no sentido psicanalítico. A desatenção permite o aparecimento de um funcionamento outro que não o intencional cheio de bons propósitos. A desatenção propicia o ato falho acontecer mais fortemente, principalmente quando se trata de atividades automáticas agressivas. A desatenção se faz muito mais presente logo que o jogador está estenuado, cheio de ácido lático nos músculos e com a consciência rateando mais que nunca. O cansaço ajuda no ato falhado, cria uma base disposicional para funcionar de modo inconsciente. Aqueles atos que não estão dependentes da consciência objetivadora e que aparecem na forma de uma violência desmesurada em um sujeito tido até ali como um exemplo de candura. Pelada de Meninos numa Praia Perdida de Niterói - Newton Rezende http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf ARTIGOS TEMÁTICOS 264 REFERÊNCIAS CABRAL DE MELO NETO, J. (1988) O futebol brasileiro evocado da Europa. In: A Educação pela Pedra e Depois. São Paulo: Nova Fronteira, p. 83-84. FRANCO JÚNIOR, H. A Dança dos Deuses: Futebol, Cultura, Sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. FREUD, S. (1996). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (1909) Leonardo da Vinci e outros trabalhos. (1901) Psicopatologia da vida cotidiana (1905). KATZ, L. Um pé no futebol. In: Brasil: Um Século de Futebol – Arte e Magia, MAXIMO, J. Rio de Janeiro: Aprazível Edições, 2006. PASOLINI, P. P. O Gol Fatal (1970). In: Folha de São Paulo. São Paulo, 06 de março de 2005. Caderno Mais, p.7. RISÉRIO, A. A utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo: Editora 34, 2007. Recebido em: 16 de março de 2010. Aprovado em: 23 de março de 2010. http://www.uva.br/trivium/edicao2/artigos-tematicos/4-futebol-e-psicanalise-em-jogo.pdf