FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS BIBLIOTECA PARQUE DA ROCINHA: COTIDIANO, CULTURA E CIDADANIA NUM EQUIPAMENTO CULTURAL CARIOCA JULIA DE BRITO PONCE MARANHÃO Rio de Janeiro, abril de 2015. FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO PROFISSIONAL EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO JULIA O' DONNELL JULIA DE BRITO PONCE MARANHÃO BIBLIOTECA PARQUE DA ROCINHA: COTIDIANO, CULTURA E CIDADANIA NUM EQUIPAMENTO CULTURAL CARIOCA Dissertação de Mestrado Profissional apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais, . Rio de Janeiro, abril de 2015. Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV Maranhão, Julia de Brito Ponce Biblioteca Parque da Rocinha: cotidiano, cultura e cidadania num equipamento cultural carioca / Julia de Brito Ponce Maranhão. - 2015. 137 f. Dissertação (mestrado) - Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Orientadora: Julia O’Donnell. Inclui bibliografia. 1. Biblioteca Parque da Rocinha. 2. Rocinha (Rio de Janeiro, RJ). 3. Política cultural. 4. Políticas públicas. 5. Cidadania. 6. Favelas. I. O’Donnell, Julia. II. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. III.Título. CDD – 306 À minha avó, Hilma. (in memoriam) Agradecimentos À Julia O' Donnell, pela orientação cuidadosa e paciente. Aos professores do Mestrado Profissional, pelos textos, explicações e incentivo. Aos colegas de mestrado, pelos conselhos, dicas e a companhia agradável. Aos funcionários da Biblioteca Parque da Rocinha, pelo acolhimento e informações. Aos usuários do equipamento cultural, pela paciência e disponibilidade. Ao Mauro Guaranys e ao Aurélio Mesquita, pela atenção e histórias. Ao meu pai Eduardo, pelo apoio logístico e generosidade. À minha mãe Verônica, pelo suporte técnico e afetivo. Ao meu companheiro Luis Felipe, pelo incentivo e carinho. À minha tia Márcia, pela tradução e interesse. À minha ex-chefe Inês, pelo apoio. Aos meus amigos, que me estimularam a seguir em frente. Resumo Esta dissertação propõe analisar o programa das Bibliotecas Parque do Governo do Estado do Rio de Janeiro por meio do estudo de caso da biblioteca da Rocinha, terceiro equipamento cultural deste gênero inaugurado no segundo mandato da gestão do governador Sérgio Cabral (2011-2014) e o primeiro a ser instalado dentro de uma favela carioca. Entre os objetivos específicos deste trabalho estão entender como se deu o processo de negociação do poder público com lideranças da comunidade para a implementação da biblioteca na Rocinha; identificar as práticas dos usuários do equipamento público e as percepções destes usuários em relação ao espaço cultural bem como compreender a dinâmica de funcionamento da unidade, levando em consideração aspectos como planejamento versus demanda, usos não programados, conflitos e as alternativas criadas a partir do entendimento da realidade dos usuários e de suas necessidades, já que a biblioteca é essencialmente um equipamento cultural em construção permanente. Abstract This dissertation proposes to analyse the network of libraries programme implemented by the Government of the State of Rio de Janeiro by presenting a case study focusing on the library Biblioteca Parque da Rocinha, the third cultural equipment of this kind inaugurated during the second mandate of the governorship of the State of Rio de Janeiro of Governor Sérgio Cabral (2011-2014) and the first to be installed inside one of Rio’s shanty towns. Among the specific objectives of this work are understanding the negotiation process of the State’s public entities with the community’s leaderships for the implementation of the library Biblioteca Parque da Rocinha; identifying the practices of the users regarding the public equipment installed and the perceptions of that public as to how the cultural space is perceived, as well as understanding the work dynamic of this unit, taking into consideration aspects such as planning versus demand, non-programmed uses, conflict resolution and the alternatives created generated by the understanding of the users’ reality and their needs, since the library is essentially a cultural equipment in a permanent state of construction. Lista de figuras Figura 1 - Construção de edifício na Rocinha p.18* Figura 2 - A Rocinha está localizada entre a Gávea e São Conrado p.18* Figura 3 - Túnel Zuzu Angel p.19* Figura 4 - Jogo de futebol em laje da Rocinha p.19* Figura 5 - Via Ápia p.20* Figura 6 - Esgoto a céu aberto p.21* Figura 7 - Fachada Biblioteca Parque Manguinhos p.27* Figura 8 - Biblioteca Parque Niterói p.28* Figura 9 - Fachada da Biblioteca Parque da Rocinha p.29* Figura 10 - Biblioteca Parque do Centro p.29* Figura 11 - Biblioteca Parque España p.33* Figura 12 - Entrada da Biblioteca Parque España p.33* Figura 13 - Projeto Espaço Semente (planta) p.47 Figura 14 -Terreno da garagem de ônibus p.49 Figura 15 - Espaço Semente p.50 Figura 16 - Perspectiva interna do Espaço Semente p.51 Figura 17 - Complexo Esportivo da Rocinha p.61* Figura 18 - Apartamentos do PAC p.63* Figura 19 - DVDteca localizada no térreo p.70** Figura 20 - Estantes com DVDs p.70** Figura 21 - Disposição dos livros na DVDteca p.70** Figura 22 - Atendimento no setor de internet p.71 *** Figura 23 - Usuária na biblioteca adulto p. 71** Figura 24 - Biblioteca adulto p. 72** Figura 25 - Livros mais recentes ficam dispostos na entrada do setor p.72** Figura 26 - Máquina para leitura em braile p.72** Figura 27 - Varanda: atividade realizada com crianças de uma creche p.73** Figura 28 - Apresentação no auditório p.74*** Figura 29 - Biblioteca infantil/Ludoteca p.75** Figura 30 - Caixa de devolução de livros infantis p.75** Figuras 31– Ioga p. 101** Figuras 32– Ioga p. 101 ** Figura 33 - Crianças em visita à mini horta p.112** Figura 34 -Verduras plantadas p.112** * Fotos retiradas de sites da internet. (sem localização dos créditos). ** Fotos tiradas pela pesquisadora. *** Fotos Biblioteca Parque da Rocinha (divulgação). Sumário Introdução ....................................................................................................................... 11 1. Rocinha: um breve resumo sobre o contexto social e econômico da favela .............. 17 1.1 O programa de bibliotecas parque do Rio de Janeiro: contexto político .................. 22 1.2 A rede de bibliotecas parque e o modelo colombiano .............................................. 25 1.3 Bibliotecas públicas contemporâneas ........................................................................ 34 2. Mobilização popular e políticas públicas: um breve histórico ................................... 40 2.1 O começo de tudo ..................................................................................................... 45 2.2 O C4 .......................................................................................................................... 51 2.3 O concurso de ideias ................................................................................................. 56 2.4 "Nada se cria, tudo se transforma": mudanças e percepções .................................... 58 2.5 O C4 e a atual Biblioteca Parque da Rocinha ............................................................ 63 3. A biblioteca inaugurada ..............................................................................................68 3.1 Crianças ....................................................................................................................76 3.1.1 A ausência dos pais.................................................................................................80 3.1.2 Como se estivesse num shopping...........................................................................84 3.1.3Flexibilização das normas de uso............................................................................86 3.2 Adolescentes..............................................................................................................88 3.2.1 Socialização e coletividade ....................................................................................90 3.2.2 Biblioteca: influência benéfica para as crianças.....................................................93 3.2.3 Pontos positivos e negativos...................................................................................96 3.3 Adultos ............................................................................................................ .......100 3.3.1 Usuários mais exigentes ....................................................................................... 104 3.4 Funcionários............................................................................................................109 3.4.1.Usos não programados......................................................................................110 3.4.2 Interferências no cotidiano do equipamento cultural............................................115 3.4.3 Mas, afinal, qual é a nossa missão?......................................................................118 Considerações finais ..................................................................................................... 125 Bibliografia ................................................................................................................... 128 11 Introdução O menino de oito anos quer brincar. Correr, rir e desafiar os adultos. Mas ele está na Biblioteca Parque da Rocinha. Chegou desacompanhado; seus pais trabalham o dia todo. Após usar a internet, procurou o que fazer: ver filmes na DVDteca, folhear um livro, ouvir histórias na biblioteca infantil. Mesmo com a variedade de atividades, decidiu descer até a varanda. Lá, avistou um grupo de crianças. Havia uma ação sendo realizada com o público de uma creche localizada nas proximidades. Mexeu no material usado na oficina, quis correr entre as mesas. O funcionário pediu com educação para que ele não tumultuasse a atividade. O pedido foi feito sucessivas vezes. Ele não gostou da advertência. Gritou e xingou o rapaz. Os limites para o menino não estavam muito claros. A situação ficou sem controle. Correndo pelos andares do espaço cultural, o garoto acabou sendo contido pelos seguranças. A cena contada nesta introdução foi presenciada por mim na terceira semana em que visitei a Biblioteca Parque da Rocinha, em março de 2014. Estava no setor de livros entrevistando um dos integrantes da equipe da biblioteca, quando vi o menino percorrer o andar. A entrevista foi interrompida e observei discretamente os seguranças tentarem, sem muito sucesso e um pouco constrangidos, conter o menino que parecia brincar de pique esconde. Após alguns minutos, o garoto foi embora. Pouco tempo depois, ao descer do setor de livros, percebi que o episódio do menino havia mudado o semblante dos funcionários, e que no setor administrativo a equipe da biblioteca conversava sobre o caso. A reunião informal não contava com a presença dos representantes da diretoria. As opiniões em relação ao menino variavam bastante. Um dos funcionários, consternado, disse que se recusava a tratar o menino como 'coitadinho' só porque ele morava na favela. Outro argumentou que a equipe precisava estar mais preparada para agir em situações como aquela. Um terceiro acrescentou que os próprios funcionários não sabiam o que fazer porque na verdade a missão da biblioteca não estava clara. Após algumas horas, saí da biblioteca com a imagem do menino na minha mente. Havia presenciado, nas primeiras semanas do meu trabalho de campo1, uma 1 Neto (2001:51) ressalta que o trabalho de campo em uma pesquisa qualitativa "se apresenta como uma possibilidade de conseguir não só uma aproximação com aquilo que desejamos conhecer e estudar, mas 12 situação que fugia ao que era esperado e que alterava, de certa forma, a 'rota' concebida para aquele projeto. Comecei, então, a pensar sobre o caso do menino e me fiz alguns questionamentos. De que modo o discurso oficial se atualizava nos usos cotidianos da Biblioteca Parque da Rocinha? De que forma o equipamento cultural se construía a partir das tensões existentes entre usuários, funcionários e direção? Que 'trama' de negociações e conflitos se encontravam naquela biblioteca? O contexto Rocinha transformava o uso daquele espaço? E assim, interessada em compreender a dinâmica de funcionamento da unidade, entendi que aquela cena reunia aspectos reveladores de um projeto que pela primeira vez estava sendo colocado em prática dentro de uma favela carioca. Foi, portanto, a partir desta perspectiva analítica, que retornei a campo. Com a proposta de serem "espaços culturais e de convivência que oferecem à população ampla acessibilidade à informação, com qualidade física, humana e de serviços"2, as bibliotecas parque inauguradas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro foram instaladas no entorno do Complexo de Manguinhos, no ano de 2010; no centro da cidade de Niterói, em 2011, na favela da Rocinha, em 2012, e, mais recentemente, na avenida Presidente Vargas, no Centro, no primeiro semestre de 2014. Todas as quatro unidades receberam recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)3, do Governo Federal. Estes equipamentos culturais, coordenados pela Secretaria de Estado de Cultura, reúnem os serviços tradicionais de uma biblioteca, que conta com acervo literário para adultos, adolescentes e crianças, e atividades diversas como oficinas e contação de histórias. Seu objetivo é oferecer aos usuários uma "leitura em diferentes suportes, com grande oferta documental eletrônica, em espaços apropriados para atividades culturais e serviços diversos"4. De acordo com o Governo do Estado, o programa das bibliotecas parque teve como principal referência o modelo de equipamentos culturais do gênero adotado na cidade de Medellín, na Colômbia. Tive meu primeiro contato com o programa de Bibliotecas Parque do Governo do Estado do Rio de Janeiro logo que a primeira unidade do gênero foi inaugurada em também de criar um conhecimento, partindo da realidade presente no campo. Já Minayo (2001:14-15) destaca que na investigação social, "a relação entre pesquisador e campo de estudo se estabelece definitivamente. A visão de mundo de ambos está implicada em todo o processo de conhecimento desde a concepção do objeto, aos resultados do trabalho e à sua aplicação". 2 Trecho extraído de material de divulgação do programa do Governo do Estado do Rio de Janeiro. 3 Conjunto de intervenções públicas realizadas a partir de 2007, pelo Governo Federal. 4 Trecho extraído de material de divulgação do programa do Governo do Estado do Rio de Janeiro. 13 Manguinhos, em abril de 2010. Por trabalhar no setor de Comunicação Social do Governo do Rio, visitei o equipamento cultural para divulgar o espaço no site oficial para o qual escrevo. Tempos depois, voltei à Biblioteca Parque da Rocinha e redigi nova matéria. Foi então que, ao me inscrever para o mestrado, decidi estudar o caso do equipamento cultural, instigada pelo fato de se tratar da única unidade instalada dentro de uma favela. O trabalho etnográfico me pareceu logo de início a melhor alternativa metodológica para que eu realizasse o estudo, tanto pela própria característica da investigação que me propunha a realizar como pela necessidade de me despir de um olhar institucional em relação ao objeto estudado. José Guilherme Magnani (1993), em artigo sobre a reconstrução de Paris no século XIX, destaca a necessidade de contrastar a perspectiva técnica das propostas urbanísticas em questão e a dimensão antropológica da construção das cidades, que valoriza a prática social no contexto urbano. Neste sentido, defende que o antropólogo deve deslocar o olhar de uma perspectiva 'macro', apreciando os pequenos detalhes que a 'rua' oferece. Para ele, para além da transformação física das cidades, o 'olhar' antropológico precisa estar atento aos atores sociais, as contradições, a estes espaços que não são apenas locais de mobilidade, de fluxo de pessoas, mas que são apropriados por seus moradores de diversas maneiras. A rua, portanto, é ressignificada, reconstruída, pelos usos que as pessoas dão à ela. Se fizermos uma transposição das ideias apresentadas por Magnani para o estudo de caso da Biblioteca Parque da Rocinha, é possível constatar que o mesmo acontece. Este espaço só se constitui como equipamento cultural à medida que é ocupado e usado pela população que reside na favela. E é neste contexto que o que deveria ser deixa de ser, que o que nunca existiu passa a existir, ou seja, que um grande "quebra-cabeça" se configura a partir das variadas visões, valores, e maneiras diversas de ocupação do espaço. Como afirma o autor: (...) Tudo depende de que rua se está falando. Certamente não é a rua definida de forma unívoca a partir do eixo classificatório unidimensional (vias expressas, coletoras, locais, binárias, etc.) dado pela função de circular. A rua que interessa e é identificada pelo olhar antropológico é recortada desde outros e variados pontos de vista, oferecidos pela 14 multiplicidade de seus usuários, suas tarefas, suas referências culturais, seus horários de uso e formas de ocupação. A rua, rígida na função tradicional e dominante - espaço destinado ao fluxo - às vezes se transforma em outras coisas: vira casa (SANTOS e VOGEL, 1985), vira trajeto devoto em dia de procissão, local de protesto (...), de fruição em dia de festa, etc. Às vezes é vitrine, outras é palco, outras ainda lugar de trabalho ou ponto de encontro. (1993:3) É a partir desta perspectiva que esta dissertação propõe analisar o programa das Bibliotecas Parque do Governo do Estado do Rio de Janeiro por meio do estudo de caso da biblioteca da Rocinha, terceiro equipamento cultural deste gênero inaugurado no segundo mandato da gestão do governador Sérgio Cabral (2011-2014). Para tal, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos: entender como se deu o processo de negociação do poder público com lideranças da comunidade para a implementação da biblioteca na Rocinha; identificar as práticas dos usuários do equipamento cultural e as percepções destes em relação ao equipamento público bem como compreender a dinâmica de funcionamento da unidade, levando em consideração aspectos como planejamento versus demanda, usos não programados, conflitos e soluções ou alternativas criadas a partir do entendimento da realidade dos usuários e de suas necessidades, entre outros fatores, já que a biblioteca é essencialmente um equipamento cultural em construção permanente. A postura etnográfica adotada para a realização deste trabalho se concretizou a partir de duas práticas: a observação participante5 e a realização de entrevistas semiestruturadas6. Outras fontes também foram utilizadas como documentos da Secretaria de Cultura referentes à implementação do programa das Bibliotecas Parque, além de matérias de jornais impressos e da internet bem como material de divulgação da 5 A observação participante foi adotada por considerá-la a melhor forma de "captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que, (os atores sociais) observados diretamente na própria realidade, transmitem o que há de mais imponderável e evasivo na vida real." (Cruz Neto, 2001:59-60). 6 Optei pela entrevista semiestruturada, pois apesar de considerar importante 'dirigir' minimamente os pontos que precisam ser abordados nas entrevistas para não perder o foco da pesquisa, acredito que o entrevistado deve desenvolver com certa liberdade o tema proposto, pois isso amplia as dimensões do objeto estudado, enriquecendo a pesquisa. 15 Biblioteca Parque da Rocinha com o objetivo de ampliar as reflexões nesta dissertação. Todo o material coletado para a conclusão desta dissertação ocorreu entre os anos de 2013 e 2014. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com usuários e funcionários moradores da favela e não moradores, de maneira individual ou coletiva. No caso dos usuários da Biblioteca Parque da Rocinha optei por coletar os depoimentos de crianças, jovens e adultos7 - no intuito de compreender a percepção dos frequentadores sobre o equipamento cultural. A escolha dos entrevistados se deu a partir da análise de relatório sobre os grupos/perfis apresentado pela direção da biblioteca bem como por meio de observações em campo. Nas entrevistas semiestruturadas, por exemplo, foram abordados os seguintes aspectos: local de residência (se perto ou longe da biblioteca), se os usuários já haviam entrado numa biblioteca, a percepção sobre a biblioteca parque (conceito/o que é), principais atividades realizadas no equipamento cultural, frequência, horários, opinião sobre a estrutura, o que mais chama atenção no equipamento cultural, o que a biblioteca parque representa para cada usuário, além dos pontos positivos do equipamento cultural e negativos e/ou que necessitam de aperfeiçoamento. Já as entrevistas com funcionários tiveram por base os seguintes critérios de escolha: a função exercida e a disponibilidade para conversar com o pesquisador. Seus objetivos foram compreender quem trabalha na unidade e qual a percepção destes profissionais sobre o equipamento cultural. Entre as perguntas estiveram a função do profissional, se é morador ou não da favela, qual a percepção sobre a biblioteca (conceito/ o que é), como percebe o público frequentador, pontos positivos do equipamento cultural e pontos negativos e/ou que necessitam de aperfeiçoamento. No total, foram entrevistadas aproximadamente 25 pessoas, entre crianças, jovens, adultos e funcionários da biblioteca. O trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro faz a contextualização do universo onde a biblioteca parque está inserido que é a favela da Rocinha. Um breve resumo dos aspectos sociais e econômicos do lugar são abordados, principalmente em relação a serviços básicos como saneamento, saúde, educação, cultura, entre outros. O mesmo capítulo também situa o leitor em relação à rede de Bibliotecas Parque e ao 7 Divisão etária estabelecida nesta pesquisa: crianças (entre 6 e 12 anos), adolescentes (13 a 18 anos) e adultos (acima de 18 anos). 16 contexto político à época do lançamento e desenvolvimento do programa coordenado pela Secretaria de Cultura estadual. Por fim, estabelece uma ponte entre as bibliotecas inauguradas, as unidades colombianas do gênero e a perspectiva destes espaços, com base nas discussões acadêmicas sobre as funções de uma biblioteca pública na contemporaneidade. Sendo a instalação da Biblioteca Parque da Rocinha, o resultado da mobilização de moradores da favela ligados ao meio cultural e de pessoas preocupadas com melhorias para a cidade do Rio de Janeiro, o segundo capítulo desta dissertação aborda o contexto de mobilização popular nas favelas cariocas bem como algumas ações de mobilização por serviços básicos registradas na Rocinha para, em seguida, apresentar ao leitor a história de mobilização popular na favela de São Conrado iniciada em 2004 e que culminou com a inserção do programa de Bibliotecas Parque no planejamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal. Este mesmo capítulo também apresenta alguns dos atores sociais8 que se envolveram diretamente e indiretamente no processo de negociação com o poder público com o objetivo de promover a instalação efetiva de um centro cultural na favela carioca. Finalmente, no terceiro capítulo, exponho as análises que tiveram como base a observação participante e as entrevistas com os usuários bem como com os funcionários moradores e não moradores da favela, tendo como foco as práticas realizadas neste equipamento cultural, as formas não programadas de utilização da biblioteca bem como as alterações produzidas no dia a dia deste espaço, resultantes de acontecimentos internos e externos. A divisão deste capítulo priorizou as pessoas, os usuários e funcionários que alteram e atualizam cotidianamente este lugar praticado chamado biblioteca. 8 As percepções e tensões neste contexto de negociação foram reveladas a partir de depoimentos de moradores da favela e não moradores que estiveram disponíveis para conversar comigo ao longo do trabalho de campo realizado entre 2013 e 2014, em períodos intervalados entre os primeiros e segundos semestres desses anos. 17 1. Rocinha: um breve resumo sobre o contexto social e econômico da favela Inspirada nas leituras de textos sobre o fazer etnográfico fui a campo para buscar subsídios que pudessem me auxiliar no trabalho que tinha a finalidade de identificar as práticas e as percepções dos usuários da Biblioteca Parque da Rocinha. Para tal, entendi que não era possível realizar o trabalho que me propunha de forma isolada como se o espaço cultural estivesse 'desconectado' do todo, ou seja, da favela da Rocinha e da cidade do Rio de Janeiro. É, portanto, a partir deste ponto de vista de análise mais abrangente que iniciarei esta dissertação para, em seguida, esmiuçar a dinâmica das práticas verificadas na biblioteca. Como bem sinalizou José Guilherme Magnani, duas perspectivas se complementam no estudo antropológico: a de um olhar distanciado, necessário para ampliar o horizonte de pesquisa e a de uma visão "de perto e de dentro", que permite observar os pormenores das dinâmicas sociais que "passariam desapercebidos, se enquadrados exclusivamente pelo enfoque das visões macro e dos grandes números."(2002:16) Formada por um grande contingente de nordestinos migrantes, com um comércio 'pulsante' e um trânsito 'aparentemente' caótico, a favela da Rocinha mais parece uma cidade dentro da cidade. Situada ao lado de São Conrado, bairro de classe média alta do Rio de Janeiro, possui aproximadamente 69.191 habitantes, distribuídos em 25.352 domicílios (média de quase três moradores por residência), segundo o censo mais recente, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010. Publicado em 2012, outro censo, este realizado pelo Governo do Estado, quantificou o número de moradores da comunidade em quase 100 mil habitantes (98.319), distribuídos em 34.570 moradias, sendo a média de residentes por domicílio de 2,9 habitantes9. Membros das associações de moradores da favela reivindicam um número ainda maior: cerca de 200 mil habitantes10. 9 Censo Domiciliar. Complexo da Rocinha. Rio de Janeiro. Março de 2012. 10 Ver p.ex. MAIOR FAVELA do país, Rocinha discorda de dados da população do IBGE. O Globo, Rio de Janeiro, dez. 2011. 18 Localizada entre os bairros da Gávea e São Conrado, a favela da Rocinha - uma das maiores do Rio de Janeiro - chama atenção por seu contingente de residentes que vivem em casas e prédios, muitas vezes, construídos em becos e vielas onde há pouca circulação de ar. Ocupando uma área territorial de aproximadamente 143,72 ha, a comunidade cresceu na vertente sul do Maciço da Tijuca. Acessada pela Gávea ou por São Conrado através do túnel Zuzu Angel, está localizada entre as zonas Sul e Oeste, sendo um dos caminhos para se chegar à Barra da Tijuca, pela Estrada Lagoa-Barra. Figura 1 - Construção de edifício na Rocinha Figura 2 - A Rocinha está localizada entre a Gávea e São Conrado 19 Figura 3 - Túnel Zuzu Angel A Rocinha é composta por cerca de 24 localidades ou subbairros. Entre os mais conhecidos estão Barcelos, Vila Verde, Cidade Nova, Laboriaux, Cachopa, Roupa Suja e Vila União. No que se refere às moradias, 36,6% dos habitantes da favela moram em apartamentos, 36% em casas, partilhando lajes com outras moradias, 19,7% em casas isoladas e 0,9% em um cômodo. O material predominante na construção das residências é a alvenaria (89,8%), sendo que 1,8% moram em barracos de madeira, 2,4% em moradias construídas de material misto e 0,1% em moradias erguidas com restos de materiais diversos. Cerca de 33,3% das casas possuem quatro cômodos, 24,2% têm três cômodos, 11,8% dois cômodos, e 3,8%, apenas um. Sobre a situação dos imóveis: 61,6% moram em casa própria, 34,4% em moradias alugadas, 1,1% em residência cedida11. Figura 4 - jogo de futebol em laje da Rocinha 11 Todos os dados a seguir referem-se ao Censo Domiciliar de março de 2012. 20 As mulheres são maioria na favela, e representam 51,5% do total de habitantes da área, sendo que 37,5% são chefes de família. As crianças e os adolescentes (0 a 18 anos) somam 32% da população residente na favela. Nas faixas etárias de 25 e 34 anos, os homens são maioria. Já em relação à renda dos moradores, 37,80% têm rendimento até R$ 830 e 57,10% não apresentam rendimento substancial. Do total de entrevistados, 25,3% informaram ter trabalhado na zona Sul nos últimos 30 dias e 9,6% na própria comunidade. O comércio na localidade está dividido, basicamente, da seguinte forma: 81% dos estabelecimentos estão no setor de Serviços (beleza, higiene, internet, mecânica, etc.), 17% no Comércio (alimentos, bebidas, roupa, materiais de construção, medicamentos) e 3%, Indústria (confecções, móveis, entre outros). Figura 5 - Via Ápia Mesmo sendo reconhecida como bairro desde 199312 e tendo conquistado intervenções urbanísticas pontuais ao longo dos últimos anos, a favela da Rocinha ainda apresenta uma série de problemas relacionados a questões como saneamento básico, iluminação, coleta de lixo e moradias em áreas de risco. Dados sobre o esgotamento sanitário, por exemplo, indicam que cerca de 86,1% dos domicílios apresentam ligação com a rede geral, sendo que 9,8% das casas despejam seus esgotos diretamente em rios, em valas a céu aberto ou em fossas rudimentares. Já a coleta direta de lixo na comunidade atinge apenas 12,2%. Além disso, no caso da distribuição de água, apenas 12 Informação do Instituto Pereira Passos (IPP). 21 21% das residências têm rede geral com ligação interna, ou seja, canalização para pelo menos um cômodo do domicílio. Figura 6 - Esgoto a céu aberto No âmbito da Educação, a pesquisa identificou taxa de analfabetismo simples entre os moradores de 4,4%. O analfabetismo aumenta de acordo com a faixa-etária: 0,8% entre 15 e 29 anos; 4,8% entre 30 e 59; e 21,8% na população acima de 60 anos. Além disso, cerca de 60,7% das crianças e jovens da Rocinha são atendidos por estabelecimentos públicos de ensino e 10,2% pela rede particular. Somente 36% das crianças frequentam creches. Em relação ao acesso a equipamentos culturais, os jovens da Rocinha usam, na maioria dos casos, espaços fora da favela. A participação em eventos culturais dentro da comunidade se dá, normalmente, quando são promovidos por moradores, em sua maioria vinculados à área de produção cultural. A escassez de equipamentos culturais na Rocinha assemelha-se à situação verificada nas demais favelas cariocas. Apesar da cidade do Rio de Janeiro apresentar inúmeras opções de cultura, a distribuição dos equipamentos públicos culturais se concentra basicamente em áreas centrais da cidade e nos bairros da zona Sul. Infelizmente, nas grandes favelas cariocas, o aporte financeiro na área cultural ainda é pequeno para reduzir a desigualdade distributiva destes equipamentos culturais. Conforme defendem Jorge Luiz Barbosa e Caio Gonçalves Dias: 22 A produção e a recepção de cultura das favelas precisam ser estimuladas e promovidas como expressão legítima da cidade do Rio de Janeiro. O poder público deverá se empenhar para garantir as condições de produção artística e de sua difusão cultural. Trata-se, portanto, da formulação e execução de políticas públicas capazes de (re)conhecer territórios de múltiplas identidades e representações socioculturais na metrópole. Isto é, valorizar a diversidade como princípio de nossa formação identitária, promover encontros entre distantes/diferentes como possibilidade do respeito à alteridade e promover a tessitura de acontecimentos e intervenções artístico-culturais como mediações necessárias à construção das narrativas inovadoras para sociabilidades transformadoras". (2013:25) 1.1 O Programa de Bibliotecas Parque do Rio de Janeiro: contexto político Desenvolvido na gestão do Governador Sérgio Cabral (2007- 2014), o programa de Bibliotecas Parque do Estado do Rio de Janeiro, coordenado pela Secretaria de Cultura, teve início com a inauguração da Biblioteca Parque de Manguinhos, na zona Norte, em abril de 2010. Logo em seguida, foram instaladas as bibliotecas parque da cidade de Niterói, cuja inauguração ocorreu em julho de 2011, e da favela da Rocinha, em junho de 2012. Em 2014, o Governo do Estado do Rio de Janeiro também reformou e reinaugurou a antiga Biblioteca do Estado, localizada na Avenida Presidente Vargas, no Centro, incluindo-a na rede de Bibliotecas Parque. O conjunto de equipamentos culturais é reconhecido pela própria Secretaria de Cultura como sendo o mais significativo da pasta nos últimos anos por sua dimensão e aporte de recursos. Todas as bibliotecas inauguradas até o momento receberam investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)13, do Governo Federal. Em alguns casos, os 13 O PAC foi anunciado no ano de 2007. Com previsão de investimento de R$ 503 bilhões para o período 2007-2010 nas áreas de transporte, energia, saneamento, habitação e recursos hídricos, chegou a 2008 23 investimentos realizados pela União somaram-se a recursos do Estado. No estado do Rio de Janeiro, a parceria contemplou áreas pobres da cidade como Manguinhos14 e o Complexo do Alemão15, ambas na zona Norte, além da favela da Rocinha. Entre as obras16 realizadas na primeira comunidade estão investimentos em educação, cultura, esporte e lazer. Já no Alemão, uma das grandes realizações do programa federal, divulgadas pela mídia nacional e internacional, foi a construção do teleférico inaugurado em julho de 201117. Além desta obra, foram entregues habitações e intervenções de infraestrutura e de urbanização em alguns pontos da localidade. No caso da favela da Rocinha, o PAC desenvolveu ações nas áreas de Educação Infantil, Saúde, Cultura, Habitação e Urbanização. Entre as obras entregues na favela estão a Biblioteca Parque, apartamentos, uma creche-referência, e uma Unidade de Pronto Atendimento UPA 24 horas18. No mesmo período em que o PAC estava sendo desenvolvido, outra iniciativa, que também contou com o apoio do Governo Federal, se estabeleceu em algumas comunidades cariocas. Chamada de pacificação, a política de Segurança Pública do Governo do Estado do Rio de Janeiro tinha a proposta de desarticular a organização dos traficantes de drogas no sentido de 'devolver' estes territórios conflagrados ao Estado. com um acréscimo de recursos que totalizaram R$ 656,5 bilhões. Ver www.cidades.gov.br. PAC: Programa de Aceleração do Crescimento 2007-2010 – Brasília, 2007. Acessado em 2 de novembro de 2014. 14 "A região de Manguinhos, localizada no subúrbio carioca, constitui-se por um conjunto de 11 comunidades que juntas, somam uma população em torno de 53 mil habitantes. Em 1988, Manguinhos tornou-se um bairro oficial da cidade. Sua área é delimitada pela Rua Leopoldo Bulhões, Avenida dos Democráticos, Linha Amarela,pelo rio Faria Timbó e o rio Jacaré, pelo Canal do Cunha e pelo campus da FundaçãoOswaldo Cruz (FIOCRUZ)". (Bianco, 2011:5) 15 O Complexo do Alemão está localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro e é composto por 12 comunidades: Morro do Alemão; Grota; Nova Brasília; Alvorada; Alto Florestal; Itararé; Morro da Baiana; Morro do Mineiro; Morro da Esperança (Pedra do Sapo); Joaquim de Queiroz; Fazenda das Palmeiras e Morro do Adeus. Ver http://www.cufa.org.br/. Acessado em 6 de dezembro de 2014. 16 Foram construídos os seguintes equipamentos públicos: um colégio, a Biblioteca Parque de Manguinhos, o Centro de Referência da Juventude (Cras), o Centro Cívico, a Casa da Mulher, um Centro Esportivo e praças como áreas de lazer. Dossiê-Manifesto sobre o PAC Manguinhos, do Fórum Social de Manguinhos, disponível em http://www.conhecendomanguinhos.fiocruz.br. Acessado em 1º de dezembro de 2014. 17 Ver p.ex. TELEFÉRICO do Alemão será inaugurado nesta quinta-feira. O Globo, Rio de Janeiro, 20 nov. 2007. 18 Estruturas de complexidade intermediária entre as Unidades Básicas de Saúde e as portas de urgência hospitalares (http://portalsaude.saude.gov.br/). Acessado em 13 de dezembro de 2014. 24 Com a meta de instalar Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs19) em diversas localidades do Rio de Janeiro e o objetivo de modificar, no longo prazo, a prática de policiamento nas comunidades, reconhecida historicamente como violenta e letal, a pacificação foi sendo realizada via ocupação militar. A primeira Unidade de Polícia Pacificadora a ser instalada, em dezembro de 2008, foi a da favela Santa Marta, em Botafogo, na zona Sul. Dois meses depois duas outras UPPs foram inauguradas na zona Oeste - uma no Batan e outra na Cidade de Deus, respectivamente em 16 e 18 de fevereiro de 2009. Em novembro de 2010, outros dois grandes complexos de favelas foram ocupados no Rio de Janeiro: Penha e Alemão, na zona Norte. A ocupação, neste caso, contou com uma força-tarefa envolvendo vários setores da segurança pública. Com o apoio do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, a Polícia Militar do Rio ocupou estes dois territórios. A ação, que contou com aproximadamente 2 mil homens, além de tanques e helicópteros, foi amplamente midiatizada. Com a operação nos complexos da Penha e Alemão, outras UPPs foram sendo inauguradas na cidade. No ano de 2011, por exemplo, houve a ocupação das comunidades da Mangueira, São João (situado no bairro do Engenho Novo) e de favelas da zona Sul como a Rocinha e o Vidigal (Burgos et al, 2011:52). Atualmente, a política de pacificação abrange 33 áreas. Incluída no processo de pacificação bem como no PAC, a Rocinha foi ocupada pelas Forças de segurança em novembro de 2011, recebendo a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) em setembro de 2012. A inauguração da biblioteca parque ocorreu três meses antes da instalação da UPP, em junho do mesmo ano. O episódio-marco do início do processo de pacificação foi a prisão do chefe do tráfico Nem20, dias antes da ocupação da comunidade. A presença das Forças de Segurança no processo de pacificação da favela se deveu ao fato da Rocinha representar um ponto crítico na cidade do Rio de Janeiro, não só pela proximidade com o bairro 19 "Criação de um batalhão especial para a ocupação policial ostensiva em territórios populares, em geral favelas, e consequente consolidação do combate à presença de gangues de traficante fortemente armadas, situação que na cena local vinha sendo percebida como a principal responsável pela produção de violência urbana" (Burgos et al, 2011:51). 20 Ver p.ex. TRAFICANTE Nem da Rocinha é preso nesta madrugada. Revista Veja, São Paulo, 10 nov. 2011. 25 nobre de São Conrado, mas também pela força do tráfico de drogas na região.21 A proposta da Segurança Pública do Rio de Janeiro de pacificar as favelas cariocas esteve sempre amparada na ideia de que a ocupação da polícia era condição sine qua non para que os serviços básicos chegassem a estas comunidades. Vale ressaltar que tanto o PAC como a pacificação nas favelas estão inseridos num projeto mais amplo de cidade22, vinculado também à realização de grandes eventos como a Copa do Mundo, ocorrida em junho/julho de 2014, e os Jogos Olímpicos de 2016. É neste contexto sociopolítico de urbanização via PAC e de pacificação que a Biblioteca Parque da Rocinha iniciou seu funcionamento. A rede de bibliotecas do Rio de Janeiro e a proposta colombiana que, segundo o governo, serviu de referência para o programa estadual serão os temas desenvolvidos a seguir. 1.2 A rede de bibliotecas parque do Rio e o modelo colombiano De acordo com o site da Secretaria de Cultura, as bibliotecas parque do Rio de Janeiro são "unidades multifuncionais, espaços culturais e de convivência que oferecem à população ampla acessibilidade à informação, com qualidade física, humana e de serviços"23. O mesmo endereço eletrônico também informa que os equipamentos culturais do gênero "são espaços dinâmicos que visam à construção de uma sociedade mais igualitária, aberta a todo tipo de conhecimento". Já nos materiais impressos as 21 O tráfico de drogas na Rocinha tem sido nas últimas décadas manchete de jornais nacionais e internacionais e mesmo com a instalação de uma UPP na favela ainda é recorrente o embate entre a polícia e traficantes na comunidade. No ano de 2014, vários tiroteios ocorreram na favela. A morte de inocentes bem como de policiais em diversas comunidades inseridas no processo de pacificação tem demonstrado que a política implementada pela Segurança Pública estadual ainda passa por desafios. Recentemente, por conta da reação do tráfico de drogas à política de pacificação em diversas comunidades, o secretário de Segurança Pública do estado, José Mariano Beltrame anunciou mudanças no comando da Polícia Militar e afirmou ainda a possibilidade de que em 2015 seja realizada uma reestruturação da 'logística' da pacificação na cidade do Rio de Janeiro. O processo de pacificação nas comunidades cariocas é encarado pela população residente nas favelas de maneiras distintas. Muitos acreditam que a pacificação é benéfica, reforçando o discurso do governo de que o Estado resgatou o direito de ir e vir da população. Entretanto, há um incômodo de muitos moradores, que dizem que houve uma substituição de um poder por outro. A presença da polícia nas favelas é assunto complexo na medida em que a PM se faz presente com armamentos pesados nas comunidades como os 'fuzis' usados pelos traficantes de drogas. Cf. artigo O Efeito UPP na Percepção de Moradores da Favela (Burgos et al, 2011). 22 Cf. artigo Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Vol. 4, 2011 - p. 371-401. 23 Trecho extraído de material de divulgação do Governo do Estado do Rio de Janeiro. 26 bibliotecas parques são definidas como locais "que não devem ser somente espaços silenciosos, mas lugares que se aproximem de centros culturais com ampla acessibilidade". Segundo a Minuta24 do Programa de Leitura, Livros e Bibliotecas Públicas do estado do Rio de Janeiro25, a promoção da leitura é o cerne do trabalho das bibliotecas parque do Rio. O documento aponta a leitura como a base para a "a plena realização da condição humana e da capacidade de entender o mundo" e acrescenta que "(...) o domínio da memória escrita, as coleções de livros, o acesso ao conhecimento e à poesia têm forte influência na formação cidadã". As bibliotecas parque também estão inseridas no programa Favela Criativa26, cujo slogan propõe "fortalecer, fomentar e dar visibilidade às favelas do Rio de Janeiro"27. Dividido em três linhas de atuação (Economia Criativa, Formação Artística e Fomento), o programa busca proporcionar "oportunidades para o aperfeiçoamento artístico, em linguagens diversas, como música, teatro, audiovisual, dança, editoração e narrativas digitais". Todas as unidades contam com oficinas28 com foco nas diversas formas de produção textual, que reúnem atividades como a de técnicas de edição durante a produção de uma revista impressa, história do Rio de Janeiro por meio de debates, leituras, filmes e exercícios de escrita (Laboratório Turista Aprendiz), de estímulo à "criação de narrativas em mídias digitais, usando ferramentas e linguagens audiovisuais" (Laboratório de Audiovisual), de música (violão, cavaquinho, pandeiro/percussão, flauta, clarinete, saxofone, bandolim, apreciação e teoria musical e prática de conjunto e culinária. As atividades, que têm duração variável, são realizadas 24 Documento que define as diretrizes do programa de Bibliotecas Parque no estado fluminense. (Minuta recebida por email em 2013). 25 O Programa de Leitura e Conhecimento do Estado do Rio de Janeiro tem por objetivo desenvolver alguns eixos preconizados pelo Plano Nacional de Livro e Leitura (PNLL). São eles: Eixo 1 Democratização do acesso ao conhecimento e a literatura – difusão da literatura, da arte, do conhecimento e do processo criativo; Eixo2 - Fomento à leitura e à formação de leitor – reconhecimento da necessidade de fomentadores que ajudem a criar novos leitores com o fortalecimento de um programa de mediadores; Eixo 3 - Valorização da leitura, da arte e da comunicação – trabalhar o livro como valor social e cultural e como bem público a se preservar como direito de cidadania; Eixo 4 – Desenvolvimento da economia do livro – o livro em vários suportes e formação de diferentes leitores; Eixo 5 – Bibliotecas como local de Encontro e Trocas. 26 O Favela Criativa foi iniciado a partir da instalação da Biblioteca Parque de Manguinhos, entretanto o Governo do Estado lançou oficialmente o programa em 2014. 27 Retirado de cartilha sobre o programa. Disponível em http://favelacriativa.rj.gov.br. Acesso em 20 de dez. 2014. 28 Nem todas as oficinas são realizadas em todas as bibliotecas parque e a duração dos cursos varia de 6 a 16 meses. 27 por Organizações Não Governamentais (ONGs) que participam de seleção via edital. De acordo com o Governo do Estado, estes equipamentos culturais oferecem, de modo geral, além do empréstimo de livros (Biblioteca para adultos e infantil), uma série de serviços como acesso gratuito à internet, audição individual de música, sessão individual e coletiva de filmes (DVDteca), atividades diversificadas para crianças e jovens, que incluem a promoção da leitura e oficinas de escrita e criação literária, bem como teatro/ auditório e sala Multiuso, usada para finalidades diversas, inclusive como sala de reuniões. Inaugurada em abril de 2010, a Biblioteca Parque de Manguinhos foi a primeira do país e a primeira a ser instalada no estado do Rio de Janeiro. O equipamento cultural ocupa uma área de 2,3 mil metros quadrados do antigo Depósito de Suprimento do Exército (Av. Dom Elder Câmara, nº 1184). O espaço conta com um salão principal, um amplo salão de leitura, salas para cursos e estudos, espaço multimídia, ludoteca (biblioteca infantil), além de café literário e um cineteatro/auditório com 200 lugares. Seu acervo conta com cerca de 25 mil livros, 800 filmes e três milhões de músicas para audição, dentre outros itens. Figura 7 - Fachada Biblioteca Parque Manguinhos O equipamento cultural recebeu investimento total de R$ 8,6 milhões, dos quais R$ 7,4 milhões do Governo Federal e R$ 1,2 milhão de contrapartida do Governo do Estado. Já a Biblioteca Pública de Niterói está localizada na Praça da República onde se localiza também uma delegacia de Polícia Civil, além do Fórum, do Liceu Nilo Peçanha e da Câmara Municipal. Ocupando uma área de 1.812 m², sendo 926 m² no térreo e 28 886m² no 2º andar, a Biblioteca Parque de Niterói, única situada fora da cidade do Rio de Janeiro, foi completamente restaurada. O equipamento cultural conta com um acervo de cerca de 60 mil itens, incluindo livros, jornais, revistas, enciclopédias, biografias, DVDs, músicas digitalizadas, livros e equipamentos em Braile. Além disso, recebeu novo mobiliário, espaço infantil e salas apropriadas para exposições, exibições individuais de filmes, saraus de poesia, peças teatrais, shows e leituras dramatizadas. O investimento total foi de R$ 7 milhões. Figura 8 - Biblioteca Parque Niterói Já a Biblioteca Parque da Rocinha, objeto deste estudo, foi instalada dentro da favela, tendo sido inaugurada em junho de 2012. O espaço oferece aos usuários acervo de DVDs e livros, um teatro/auditório, além de uma sala para reuniões comunitárias, uma sala para atividades físicas (Sala Corpo), um espaço para uso de internet gratuita, um estúdio de gravação e de edição audiovisual, além de uma biblioteca para adultos e outra para crianças. O equipamento cultural também conta com cozinha industrial para cursos e workshops. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) investiu inicialmente na comunidade cerca de R$ 272 milhões. O recurso utilizado na obra da biblioteca parque não foi divulgado isoladamente. A instalação da Biblioteca Parque da Rocinha apresenta peculiaridades se comparada aos outros equipamentos do gênero inaugurados até o momento. Além de ter sido a única a ser instalada no centro de uma favela, a unidade é resultado da reivindicação de moradores e de uma grande negociação estabelecida com o poder público. A biblioteca também foi a única a ser inaugurada com dois nomes, ou, mais precisamente, com um nome e uma sigla, 'C4', que corresponde a "Centro de Convivência, Comunicação e Cultura". Este diferencial 29 da unidade inaugurada será um dos temas desenvolvidos no próximo capítulo desta dissertação. Figura 9 - Fachada da Biblioteca Parque da Rocinha A última biblioteca parque instalada foi a do Centro, em março de 2014. Chamada de Biblioteca Parque Estadual (BPE), o equipamento cultural, que ocupa 15 mil metros quadrados, oferece acervo literário com mais de 250 mil itens, livros de arte, quadrinhos, 20 mil filmes, três milhões de músicas digitalizadas, biblioteca infantil, teatro com 240 lugares, auditório com 90 lugares, estúdios de som e de vídeo, salas multiusos, cafeteria, restaurante (ainda não está em funcionamento), jardim suspenso, pátio e bicicletário. As obras custaram R$ 71 milhões.29 Figura 10 - Biblioteca Parque do Centro 29 Todas as informações das bibliotecas parque que estão no trecho acima foram retiradas do site da Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Rio de Janeiro. 30 Segundo o Governo do Estado, as bibliotecas parque do Rio de Janeiro tiveram como 'inspiração' os equipamentos culturais do gênero instalados, sobretudo,30em Medellín,31 na Colômbia. Inseridas num amplo plano de desenvolvimento concebido para a cidade em 2004,32as bibliotecas parque colombianas foram criadas com a proposta de integrar os bairros pobres à cidade na tentativa de reconstruir o tecido social, ampliando as perspectivas de jovens e adultos moradores destas áreas. A maioria das bibliotecas do gênero foi instalada em áreas historicamente dominadas pelo tráfico de drogas, o que, segundo o governo da cidade, dificultava o acesso do poder público local e, consequentemente, a introdução de ações governamentais e serviços básicos como Saúde e Educação, entre outros. Entre as premissas do amplo programa de governo estavam ações voltadas às áreas mais abandonadas como regiões com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e Índice de Qualidade de Vida (ICV), de maneira que a estrutura institucional chegasse àquelas áreas onde o Estado havia colapsado. (Oliveira, 2011:7). Nota-se que há uma série de semelhanças entre as iniciativas do estado do Rio de Janeiro e da cidade de Medellín. Com características muito parecidas, ambas enfrentaram e ainda enfrentam problemas estruturais de difícil resolução envolvendo questões como a violência urbana e a falta de políticas públicas de longo prazo que possam incluir áreas conflagradas pelo tráfico de drogas em um processo de melhorias urbanas e de serviços, sobretudo no âmbito da Educação, da Saúde e do Trabalho e Renda, com a formação de jovens para o mercado de trabalho. O próprio processo de Pacificação, com a instalação de UPPs, iniciado pelo Governo do Rio em 2008, também foi 'inspirado' em ações de segurança pública desenvolvidas na Colômbia33. De acordo com o governo de Medellín, as bibliotecas parque foram criadas com o objetivo de oferecer uma série de atividades ao público-usuário, não se limitando a prestar os serviços de uma biblioteca tradicional. O Plano de Desenvolvimento Cultural 30 Bogotá, capital da Colômbia também possui uma biblioteca parque. Capital do estado de Antioquia, localizada no Vale do Aburra, na Cordilheira dos Andes, Medellín é a segunda maior cidade da Colômbia e tem sua história marcada pela violência gerada pelo narcotráfico. 32 O Plano Municipal Bibliotecas Parque faz parte de uma estratégia de educação incluída no Plano de Desenvolvimento Municipal conhecido como "Medellín, la más educada”. Integra uma política de desenvolvimento social com o objetivo de gerar oportunidades de melhoramento e bem estar coletivo e individual, a partir da perspectiva de que a educação é motor da transformação social. (Jaramillo, 2010: 293) 31 33 Cf. Revista Internacional de Direitos Humanos, volume 9, 2012:212. 31 de Medellín 2011-202034, que apresenta as diretrizes da política cultural na cidade, define as bibliotecas parque como "centros de gestão do conhecimento e de encontro cidadão". De acordo com o documento (2011:56), estes espaços são "ferramentas de comunicação e geração de conhecimento a serviço do público contribuindo para o acesso à informação e para a formação de opinião". As bibliotecas parque de Medellín também seguem as diretrizes do Plano Municipal de Leitura, que está alinhado ao Plano Nacional de Leitura e Bibliotecas da Colômbia, cujo objetivo geral consiste em "promover la lectura y la escritura en Medellín, como prácticas para la educación y la cultura; de manera que la comunidad pueda acceder al ejercicio de una ciudadanía solidaria, crítica y participativa, que mejore su calidad de vida". (Plan Municipal de Lectura de Medellín, 2009: 12). Além do aspecto informativo destes equipamentos, as bibliotecas parque colombianas têm a finalidade de ocupar o papel de espaços de convivência e áreas de lazer, por isso a denominação 'parque'35. No endereço eletrônico da rede de bibliotecas de Medellín a página de divulgação sobre as bibliotecas públicas ressalta ainda aspectos como a conectividade oferecida (internet gratuita), o acesso à informação em diversos suportes, atividades de promoção da criatividade coletiva, a possibilidade de convivência e acolhimento e o desenvolvimento da cidadania. O slogan exibido na página diz o seguinte: "Se podemos ler a cidade como se pode ler um livro, para Medellín as bibliotecas são parte fundamental do capítulo do encontro cidadão". E acrescenta: "as bibliotecas, estes espaços da cidade que são lidos dia a dia por cada um de seus visitantes e usuários, são portas sempre abertas para o encontro e o descobrimento, para conectar-se ao mundo, gerar perguntas, e releituras dos entornos, territórios e realidades". A página eletrônica enumera ainda as possibilidades oferecidas pela rede de bibliotecas como a promoção da leitura, o empréstimo dos espaços, além de atividades como a "hora do conto", visitas guiadas e exposições artísticas. Três 34 35 Plan de Desarrollo Cultural de Medellín - 2011-2010, documento síntese. 2011. Em nenhum momento, nem nos impressos nem no endereço eletrônico que traz informações sobre as bibliotecas parque do Rio de Janeiro foi encontrada menção sobre o significado da palavra "parque" que, no caso das bibliotecas colombianas, foi e é amplamente divulgado como tendo relação com o aspecto da convivência e do lazer. De acordo com alguns funcionários da Biblioteca Parque da Rocinha, por exemplo, a noção de "parque" não foi objeto de divulgação porque nem todas as bibliotecas tem espaço ao ar livre. O espaço da Rocinha tem apenas uma grande varanda. As bibliotecas colombianas apresentam, em sua grande maioria, espaços ao ar livre como jardins. 32 informações também são destacadas no endereço eletrônico: a gratuidade destes equipamentos culturais, o acesso a todas as idades e classes sociais, e o funcionamento diário destes espaços. Atualmente a cidade de Medellín possui nove bibliotecas parque.36A primeira, inaugurada em 2006, foi a Presbítero José Luis Arroyave de San Javier, que está localizada na zona central da cidade e atende a 15 bairros.37Entre as bibliotecas parque de Medellín que receberam destaque na mídia nacional e estrangeira está a Biblioteca Parque España. O equipamento cultural está localizado no bairro Santo Domingo, área densamente povoada, formada por quatro comunidades e 51 bairros que aglutinam 582.442 pessoas.38 Jamarillo, professora da Escola Interamericana de Biblioteconomia da Universidade de Antioquia, em artigo que analisou o caso deste equipamento cultural, destacou entre os aspectos marcantes desta região, a situação de estigma do complexo de comunidades marcada por altos índices de violência e pela falta de serviços públicos: El principal aspecto que marca la diferencia del PBE con los otros Parques constituye la complejidad de la zona donde está ubicado: ninguna en Medellín presentaba condiciones socioculturales y económicas tan difíciles como la Nororiental (…) Considerada de alto riesgo y vulnerabilidad por las condiciones sociales y económicas, era la zona más estigmatizada de la ciudad, nadie quería ir y nadie iba, pues desde allí se movía buena parte del conflicto social de Medellín.39 36 Parque Biblioteca Belén, Parque Biblioteca España - Santo Domingo, Parque Biblioteca León de Greiff - La Ladera, Parque Biblioteca Presbítero José Luis Arroyave - San Javier, Parque Biblioteca Tomás Carrasquilla - La Quintana, Parque Biblioteca Fernando Botero - San Cristóbal, Parque Biblioteca Manuel Mejía Vallejo - Guayabal, Parque Biblioteca Doce de Octubre. 37 Bairros: San Javier 1 y 2, 20 de Julio, El Danubio, Campo Alegre, Santa Mónica, Barrio Cristóbal, La América, La Floresta, Santa Lucía, Los Alcázares, La Pradera, El Socorro, Belencito y Las Independencias. 38 (Medellín. Alcaldía, 2006 apud Jaramillo, 2010: 293). 39 (Palomino, 2010 apud Jaramillo, 2010: 294). 33 Além da proposta pedagógica ampliada destes espaços culturais, as bibliotecas parque colombianas também foram concebidas para serem referências de estrutura urbanística nas suas comunidades (Oliveira, 2011:14). O projeto arquitetônico desta biblioteca parque, por exemplo, se destaca na paisagem da comunidade ao imitar três grandes rochas. Figuras 11e 12 - Biblioteca Parque España 34 1.3 Bibliotecas públicas contemporâneas A discussão sobre as funções democráticas e de acesso à informação das bibliotecas públicas nos centros urbanos acontece no meio acadêmico sobretudo a partir dos anos 90. Entendendo o acesso à cultura como uma alavanca fundamental para o desenvolvimento individual e coletivo, a literatura mais recente40 tem apontado para a necessidade premente de adaptação destes equipamentos culturais às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs)41 bem como para a ampliação da atuação destes espaços, que devem integrar diferentes públicos a fim de se estabelecerem como locais de acesso à informação, produção criativa e cidadania. O objetivo, nesta perspectiva, seria, portanto, o de transformar a biblioteca pública - que historicamente esteve atrelada a um sistema de signos que abarcou uma minoria e esteve estritamente baseado no suporte livro - num espaço que atenda às necessidades específicas de um país, de uma cidade, de um bairro, de uma comunidade, além de atrair o público potencial que nunca "ousou" entrar numa biblioteca e oferecer subsídios para que ele perceba nesta instituição sentido e função. Como defendeu Luiz Tadeu Feitosa (1998:30) "não se pode superar a defasagem de serviços destinados às classes populares se (a biblioteca) não levar em conta seus anseios e necessidades prementes" (1998:30). "Ampliar o raio de atuação das bibliotecas é reestruturar seu acervo para um público cada vez maior e mais eclético e cujas necessidades informacionais extrapolam as informações contidas no acervo das bibliotecas". (1998:60) Autores como Luiz Milanesi (1997) e Teixeira Coelho (1997) também defenderam a perspectiva de transformação ao sugerir que a biblioteca tradicional se tornasse um centro cultural cuja missão se ampliaria do mero acesso à informação à liberdade de discussão e produção criativa. Neste contexto, os autores argumentaram que as bibliotecas tradicionais deveriam se transformar em espaços polivalentes. A separação conceitual entre as duas entidades - biblioteca e centro cultural - é negada pelos dois autores, que afirmaram que independentemente do nome atribuído a estes espaços, ambos devem cumprir a mesma função. 40 Coelho (1986, 1989), Feitosa (1998), Medeiros (2012,) Milanesi (1997). Segundo Cruz (1998) “pode ser todo e qualquer dispositivo que tenha a capacidade para tratar dados e ou informações, tanto de forma sistêmica como esporádica, quer esteja aplicada ao produto, quer esteja aplicado ao processo.” 41 35 A ideia de bibliotecas tradicionais adaptadas a uma nova configuração está, de acordo com autores como Newton Cunha (2010), Milanesi (1997) e Coelho (1989), vinculada à noção de ação cultural. Segundo Cunha, este conceito apresenta historicamente relação com a educação formal e informal e também com a qualidade do social, entendendo-a, de acordo com Georg Simmel (1977), como "o conjunto das interações humanas" bem como a "melhoria das condições de vida (materiais e simbólicas) das classes (...) tendo-se em vista alcançar uma situação de maior equilíbrio no acesso ou na distribuição das riquezas, dos conhecimentos, das oportunidades e experiências de vida" (Simmel apud Cunha 2010:29). A noção de ação cultural teria surgido no século XX em decorrência de projetos sociopolíticos concebidos na transição entre os séculos XVIII e XIX diretamente vinculados a valores e organizações que tinham em consonância apenas o fato de se oporem aos privilégios da aristocracia, baseados na riqueza fundiária. (2010:30). Cunha identificou entre os fatores que teriam influenciado a concepção moderna de ação cultural o ideal iluminista, as perspectivas revolucionárias americana e francesa, o liberalismo ascendente e a valorização da cultura popular alemã (Romantismo). É na transição para o século XIX que as relações sociais de produção cultural modificam-se substancialmente passando a comportar novos aspectos a partir da crescente industrialização e urbanização; da criação de uma sociedade mercantil, da perspectiva de mundialização das relações produtivas, sociais e culturais; e de uma sociedade de massa "formada pelo novo proletariado, concentrado nos principais centros produtivos da Europa e dos Estados Unidos (...)" (2010:36). Foi neste contexto que intelectuais, artistas, professores, jornalistas, militantes políticos e sindicalistas começaram a estruturar ações em prol do proletariado, que tinham como objetivos a alfabetização dos trabalhadores como manancial profissional e político, a divulgação de manifestações populares e expressões artísticas deste grupo e a difusão de elementos da alta cultura (2010:37). Ainda de acordo com Cunha, a ação cultural, neste contexto, assumia, portanto, "(...) o encargo de educação popular, também relacionada ao ideal iluminista segundo o qual o povo deveria ser estimulado a romper com o torpor intelectual e apropriar-se das ferramentas do pensamento crítico" (2010:37-38). A esta concepção atribuía-se ainda a ideia ampliada de educação permanente, não formal, objetivo ligado ao significado moderno de ação cultural. Algumas reflexões sobre o 36 conceito de ação cultural podem nos dar a dimensão de sua amplitude e das ideias e valores que consubstanciam o conceito na atualidade. Para Cunha, uma definição possível para a concepção de ação cultural seria: a intervenção simultaneamente técnica, política, social e econômica, levada a efeito do poder público ou organismos particulares da sociedade civil que concebe, coordena, gere e participa de programas, projetos e atividades relativas à 1) formação ou aprendizado de técnica se/ ou de conhecimentos artesanais, artísticos e científicos, 2) difusão de obras simbólicas e de experiências estéticas por meio de espetáculos, festivais, exposições, debates, seminários, 3) formação e desenvolvimento de grupos sociais, com seus objetivos específicos e os gerais de melhoria de vida, em defesa de direitos civis ou de cidadania (...) 4) educação popular, vinculada a temas delimitados, mas de tratamento informal e adesão voluntária (...) 8) conservação e popularização do acesso e do conhecimento (...), 9) criação ou estímulo à formação de centros ou de movimentos de informação e de formação culturais em pequenas e médias comunidades (...) (2010:75-76) Na mesma perspectiva, Milanesi (1997) também discorreu sobre o conceito de ação cultural ao teorizar sobre a função dos centros culturais. Para este autor, os centros de cultura devem ser "casas da invenção" onde três verbos orientariam as ações executadas: informar, discutir e criar. Somente a partir destas três vertentes de trabalho seria possível realizar, de fato, uma ação cultural. Segundo ele, a informação - atividade tradicionalmente atribuída às bibliotecas - seria a peça fundamental deste "quebracabeça", pois sem ela os demais verbos - discutir e criar - não poderiam ser atingidos. Sobre a segunda ação - discutir - o autor defendeu que "no momento em que as ideias expostas e os conflitos surgem, a busca de novas informações passa a ser uma necessidade. Nada é definitivo, nada é dogma (...)" (1997:179). Já o terceiro verbo criar - seria o que dá sentido às outras duas ações na medida em que provoca a produção de novas propostas, projetos e perspectivas de pensamento. Toda a discussão em torno da ideia de ação cultural em bibliotecas e/ou centros culturais está atrelada também à noção da cultura como direito de todos. De acordo com 37 Nathália Fernandes, é no contexto do período do pós-Segunda Guerra Mundial que as discussões sobre cultura se intensificam de uma forma geral, "quer pela regulamentação das questões de cultura, quer pela criação de oportunidades culturais ou ainda por meio da construção de espaços culturais"(2011:4). A autora citou A. J. Silva (2001) ao afirmar que o Estado passa a se debruçar sobre o tema no Ocidente ao longo do século XX quando "as Constituições abriram um título especial para a ordem econômica, social, de educação e cultura – o que se deu primeiro com a Constituição Mexicana de 1917 e depois com a Constituição de Weimar de 1918, e esta com maior influência sobre as Cartas Políticas produzidas entre as duas Grandes Guerras Mundiais" (Silva 2001:39 apud Fernandes 2011:5). Entretanto, somente na segunda metade do século XX nasceu a ideia de direitos culturais como direito fundamental do homem. As Constituições da primeira metade do século XX referiam-se à cultura de modo vago e sintético, na maioria das vezes assegurando, como forma de direito individual, o direito à livre manifestação do pensamento, os direitos autorais e de invenção. Porém, da segunda metade do século em diante, as Constituições alargaram os horizontes da proteção da cultura, surgindo daí a ideia de direitos culturais como direitos fundamentais do homem, cuja matriz está na Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, particularmente no art. 27.: [...] toda pessoa tem direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de gozar das artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que dele resultam, e toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais que lhe correspondem por razão das produções científicas, literárias ou artísticas de que seja autor (Silva, 2001:40 apud Fernandes, 2011:6). 38 No Brasil, somente na Constituição de 1988 a questão dos direitos culturais foi apontada como direito fundamental42. O texto constitucional (Artigo 215) refere-se ao direito à cultura ao afirmar que "o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais". A literatura brasileira referente ao tema da política cultural43, sobretudo a partir da década de 80, fez inúmeras críticas à inexistência da construção de um programa consistente que contemplasse as diversas dimensões da cultura. Cunha (2010), por exemplo, relembrou a fala do ex-diretor da Funarte e ex-subsecretário do Ministério da Cultura, Mário Brockmann Machado, em encontro que discutiu políticas culturais na década de 80, afirmando a falta de uma política de cultura, não considerada como prioridade pelas instâncias políticas. Não me parece adequado falar-se sobre a existência de uma política cultural no país, hoje em dia, da mesma maneira em que, por exemplo, se fala da existência de uma política econômica, com suas características de comando centralizado, metas definidas e aferição de resultados. Melhor seria, na verdade, falar-se sobre a existência de políticas culturais. Essas políticas públicas são implementadas por órgãos os mais variados, que mantêm poucas relações entre si (...)" (2010:9) A filósofa Marilena Chaui também defendeu uma política de democratização da cultura que enfrentasse o que ela chamou de "tendência antidemocrática". A autora criticou a perspectiva doutrinária do Estado de disseminar uma "cultura oficial" bem como a operacionalização estatal da cultura com base nos padrões de mercado. 42 Um pouco antes, em 1985, o Ministério da Cultura ganhou autonomia político-administrativa no Brasil. As áreas de Educação e Cultura eram contempladas por uma única pasta ministerial anteriormente. 43 Uso aqui a definição de Cunha que entende política cultural como o "conjunto de intervenções e decisões dos poderes públicos por meio de programas e de atividades artístico-intelectuais ou genericamente simbólicas de uma sociedade conduzido em nome do interesse geral ou do bem comum de uma coletividade, embora deste âmbito se encontre habitualmente excluída (mas nem sempre) a política de educação ou de ensinos formais" (2010:81). 39 Se o Estado não é produtor de cultura e nem instrumento para o seu consumo que relação pode ele ter com ela? Pode concebê-la como um direito do cidadão e, portanto, assegurar o direito de acesso às obras culturais produzidas, particularmente o direito de fruí-las, o direito de criar as obras, isto é, produzi-las e o direito de participar das decisões sobre políticas culturais (2006:65). Entendendo o direito à cultura como ferramenta fundamental para o desenvolvimento individual e coletivo, a favela, de modo geral, também defendeu, a democratização dos equipamentos culturais e a participação popular na definição de propostas culturais que abarcassem as necessidades de suas populações. A comunidade da Rocinha pode ser considerada um caso emblemático neste sentido, já que nesta favela em particular um grupo de moradores, muito deles, artistas e produtores culturais, têm se articulado, sobretudo desde os anos 2000, para que o poder público contemple investimentos na área cultural. Uma parte desta história de luta será contada no próximo capítulo desta dissertação. 40 2. Mobilização popular e políticas públicas: um breve histórico A criação da Biblioteca Parque da Rocinha insere-se no cenário de mobilização popular que vem pautando a história das favelas cariocas, apesar da difícil e penosa articulação entre os favelados e as autoridades governamentais ao longo das últimas décadas. Segundo Licia Valladares (2005) e Marcelo Burgos (2006) foi no contexto do governo de Getúlio Vargas, na década de 1940, que se abriu "uma nova etapa na concepção de ação pública com respeito às favelas, apesar das intervenções promovidas ainda se proporem à uma conduta pedagógica civilizatória" (Valladares, 2005:61). Os autores afirmaram que esta 'alteração de rota' teve como um de seus marcos a construção de três parques proletários nos bairros da Gávea, Leblon (Praia do Pinto) e no Caju. Ambos ressaltaram que a construção destas áreas suscitou uma maior organização dos moradores porque estes estavam temerosos com a possibilidade de que a transferência provisória para os parques - no intuito de urbanizar as localidades onde moravam originalmente - não fosse concretizada. De fato, "ao contrário do prometido, os moradores acabaram permanecendo muito tempo nesses parques" (Valladares, 1978:23 apud Burgos, 2006:28). É neste contexto de tentativa governamental de deslocar moradores das favelas para regiões distantes do Centro e da zona Sul da cidade do Rio de Janeiro que foram criadas, em 1945, as comissões de moradores dos morros do Pavão-Pavãozinho, Cantagalo e Babilônia. Estes núcleos de articulação foram idealizados a partir do boato sobre planos da prefeitura de remover todos os moradores daquelas favelas para os parques. Burgos também discorreu sobre alguns aspectos que interferiram no processo de organização de moradores de favelas em busca de melhorias como a complexa relação entre favela e política, presente sobretudo a partir da década de 50. De acordo com o autor, houve neste período a formação "de ligações mais consistentes entre favela e a política, inclusive com o surgimento de lideranças que estabelece(ram) vínculos orgânicos com partidos" (2006:29). O autor destacou ainda que entre o final dos anos 40 e o início da década de 50 a presença da Igreja Católica vinculada ao poder público também se tornou proeminente em diversas favelas. Entre 41 1947 e 1954, por exemplo, a Fundação Leão XIII44 atuou em 34 comunidades implantando diversos serviços básicos como "água, esgoto, luz e redes viárias, e mantendo centros sociais em oito (delas), entre as quais Jacarezinho, Rocinha, Telégrafos, Barreira do Vasco, São Carlos, Salgueiro, Praia do Pinto e Cantagalo" (Leeds & Leeds, 1978:199 apud Burgos, 2006:29). Já em 1955, a Igreja Católica iniciou as ações da Cruzada São Sebastião45, que realizou melhorias em 12 favelas cariocas, além de construir o conjunto habitacional46 de mesmo nome, no bairro do Leblon. Burgos também diferenciou a atuação destas iniciativas - Fundação Leão VIII e a Cruzada - ao afirmar que: (...) se a Leão XIII trabalhava na perspectiva de influir nas associações de moradores e na formação de lideranças, a Cruzada atua(va) de forma mais direta, posicionando-se, em alguns momentos, como interlocutora dos moradores das favelas junto ao Estado, tal como ocorreu em 1958 e 1959, quando negociou com a administração pública a não remoção de três favelas então ameaçadas: Borel, Esqueleto e Dona Marta (Valladares, 1978:23 apud Burgos, 2006:30). 44 Criada a partir da associação de setores da Igreja Católica com o Governo Federal. Tinha a finalidade de "dar assistência material e moral aos habitantes dos morros e favelas do Rio de Janeiro". A Fundação Leão XIII propunha manter ''escolas, ambulatórios, creches, maternidades, cozinhas e vilas populares" (Fundação Leão XIII 1955: 516 apud Valla, 1986). 45 Criada em 1955, propunha a urbanização das favelas cariocas. Em longo prazo, objetivava a construção de conjuntos habitacionais e a remoção das favelas. No curto prazo buscava ações pontuais, edificando melhorias nas comunidades. A iniciativa foi liderada pelo arcebispo auxiliar do Rio de Janeiro, dom Hélder Câmara. Tinha a finalidade de "dar solução racional, humana e cristã ao problema das favelas do Rio de Janeiro". (Cruzada São Sebastião: duas experiências de promoção humana, 1965 apud Valla, 1986). Tinha como objetivo desenvolver "uma ação educativa de humanização e cristianização no sentido comunitário, partindo da urbanização como condição mínima de vivência humana e elevação moral, intelectual, social e econômica" (Valla, 1986). 46 Surgido para abrigar a remoção de 171 moradores da favela da Praia do Pinto, o conjunto habitacional segundo Samuel Silva Rodrigues de Oliveira seria "a síntese de um projeto que implicava na incorporação pelosmoradoresde valores constitutivos da família "burguesa" e católica em contraposição à ideia de 'promiscuidade' implícita nas ocupações pobres. A localização do conjunto habitacional no bairro nobre do Leblon, na zona Sul carioca, significaria, portanto, um "salto rumo à integração dos favelados à vida urbana e nacional". O nome do conjunto de moradias também carregava a simbologia da lógica "civilizatória", segundo Oliveira, já que os idealizadores do conjunto habitacional discutiram se o espaço se chamaria “Praia Pinto”, ou ganharia um nome que remetesseao esforço da Igreja Católica. "Venceu a proposta que apagava o vínculo com a favela" (2012:2). 42 Também neste período o governo municipal criou o Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (Serpha). O núcleo governamental tinha a proposta de estabelecer "o controle político das associações pelo Estado, arranjo que deveria criar uma cumplicidade entre as lideranças locais e o poder público, situação favorecida pelo fato de que o Estado optara por iniciar seu trabalho em favelas que ainda não estavam politicamente organizadas" (Burgos, 2006:32-33). Entretanto, apesar da presença da Igreja Católica nas comunidades e o posterior desenvolvimento de uma complexa relação entre favela e política, a organização popular nas favelas foi crescendo em resposta às estratégias estabelecidas. Em 1963 é fundada a Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg). Antes, nos anos de 1954 e 1959, também houve a criação de duas organizações importantes: a União dos Trabalhadores Favelados (UTF) e a Coligação dos Trabalhadores Favelados (CTF). Ambas buscavam certa autonomia de mobilização no contexto dos movimentos nas favelas. A crescente organização popular nas favelas do Rio de Janeiro acabou sendo 'barrada' pelo Regime Militar iniciado em 1964 (2006:25). Nos "anos de chumbo", a política remocionista originada no início do século XX a partir da formação dos cortiços na zona central da cidade carioca voltaria a atemorizar os moradores das favelas. Entre 1964 a 1965, a investida remocionista atingiu cerca de 30 mil pessoas. Pouco tempo depois, o diretor da Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg) foi cassado e preso. Já no final da década de 70, a política de remoção que tinha como um de seus objetivos "desmantelar a organização política dos excluídos" foi aos poucos sendo esvaziada (2006:26). Com o fim do regime autoritário e a abertura política iniciada gradativamente em 1977 o temor das remoções foi, então, substituído no contexto das relações entre favela, Estado, e política. O choque entre as duas linhas de ação - remocionismo e urbanização - se enfraqueceu e a polarização foi substituída pela ideia de integração da favela à cidade. Com a abertura democrática, a articulação popular dos favelados retornou à cena. De acordo com Leeds (2006:253-254), a influência dos movimentos oposicionistas ao Regime Militar fizeram ressurgir organizações nas favelas caracterizadas por um "novo senso de conscientização política" pautado pelo "conceito 43 de cidadania e o direito a exigir do Estado aquilo que os cidadãos faziam jus". Por outro lado, o fortalecimento das organizações populares sofreu um outro revés. Com a entrada dos traficantes de drogas nas favelas, na década de 1980, a mobilização dos moradores destas localidades, que "chegou a merecer o nome de Novo Associativismo Local" (Peppe, 1992 apud Mafra, 2006:286) se viu 'aprisionada' pela instalação de um clientelismo mais forte e mais perverso baseado na "sobreposição do tráfico às associações de moradores nas favelas do Rio de Janeiro" (Zaluar, 1995 apud Mafra, 2006:286) e pelo clima de medo que contribuiu para a diluição de ações coletivas: (...) como dispõe de poder financeiro, além de um formidável arsenal, os traficantes geralmente procuram influenciar a política da autoridade local ou mesmo eleger-se para o cargo, visando assim a 'legitimarem-se' e a tornarem-se respeitáveis pela comunidade (Leeds, 2006:250-251). (...) protestar contra a violência dos grupos de traficantes significa por em risco a própria vida e acaba por dividir e destruir a ação coletiva no âmbito local. (...) essa tensão nas relações intracomunitárias tem graves consequências para a viabilização da participação popular, em nível local, na democratização. Por causa da ação dos grupos de traficantes, as associações locais correm o risco de perder seu papel de mediadoras junto ao Estado (Zaluar, 1995 apud Mafra, 2006:252). No caso específico da Rocinha, objeto deste estudo, mesmo em um campo repleto de disputas e pela contradição de discursos do poder público que ora defendeu a favela como parte da cidade, ora a submeteu a ações discriminatórias, muitos moradores se organizaram para lutar por melhorias em seus espaços de moradia, na intenção de reafirmar a presença da favela de São Conrado na cidade, apesar da história de marginalização sofrida pelos favelados no contexto dos centros urbanos47. Ainda na década de 70, há registros da luta dos moradores desta comunidade, sobretudo do sub- 47 Como afirma Barbosa e Silva, as favelas "são os produtos mais contundentes da urbanização desigual", sendo uma "estratégia de habitação da cidade pelos homens e mulheres mais profundamente marcados pela desigualdade social". (2013:121). 44 bairro Laboriaux48 para ter acesso à água encanada, saneamento básico, entre outros serviços. Entre a década de 70 e o início dos anos 80 houve avanços parciais de movimentos de resistência locais nos casos de remoção forçada de residentes para áreas externas à Rocinha bem como pressão popular para a efetivação de intervenções pontuais de urbanização. Ao longo das últimas décadas, grupos de moradores engajados se formaram para defender serviços pontuais e outros se mantiveram articulados no sentido de levar cada vez mais melhorias para a região (Bautès, Fernandes, Burgos, 2013). Foi a partir da década de 1990, mais especificamente, que o poder público investiu com mais vigor em intervenções de infraestrutura e urbanização nas favelas cariocas. Neste novo cenário de integração à cidade pós Regime Militar (Burgos, 2006) três políticas públicas se destacaram. A primeira delas foi a proposta do programa Favela Bairro49, desenvolvido pela prefeitura carioca, na gestão de César Maia (19932009). A iniciativa, que contou com concurso público para a seleção de propostas urbanísticas, consistia, de maneira geral, na realização de obras de urbanização, prestação de serviços sociais e iniciativas de regularização fundiária. O programa recebeu inicialmente aproximadamente R$192 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), para serem aplicados em cerca de 60 favelas. Infelizmente, muitas obras ficaram incompletas. A segunda fase do Programa Favela Bairro, que tinha sua conclusão prevista para março de 2004, ainda não havia sido concluída em junho de 2006. Já em 2010, outra iniciativa de urbanização municipal se estabeleceu: o Morar Carioca. Desenvolvido pelo prefeito Eduardo Paes (2009-2016), o programa foi criado com o objetivo de reurbanizar, até o ano de 2020, todas as comunidades da cidade. A iniciativa de R$ 8,5 bilhões, que contemplava as áreas de infraestrutura, paisagismo, lazer e moradia foi adiante, mas não como havia sido proposta no projeto inicial. De acordo com a prefeitura um dos motivos seria a falta de recursos. Arquitetos e urbanistas envolvidos no programa afirmaram que o Morar Carioca deixou de ser uma 48 Sub-bairro situado no topo da Rocinha. O Favela-Bairro tinha o objetivo de complementar ou construir a estrutura urbana principal (saneamento e democratização de acessos) e oferecer condições ambientais de leitura dafavela como bairro da cidade, (Júnior, 2006:63) 49 45 prioridade política50. A iniciativa foi anunciada como uma ação incluída no pacote de intervenções do "legado" olímpico. O terceiro programa a ser desenvolvido foi o PAC - Programa de Aceleração do Crescimento, executado pela União em parceria com os Estados em diversas localidades do país. No Rio de Janeiro, o PAC teve forte divulgação tendo sido um programa importante no fortalecimento do discurso de parceria encampado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro com a esfera federal. O programa também integra as iniciativas governamentais com foco nas Olimpíadas de 2016.51 Entre as obras realizadas pelo PAC no Rio de Janeiro está a da Biblioteca Parque da Rocinha. Resultado de um longo processo de negociações entre moradores e não moradores da favela e o poder público, a história da instalação deste equipamento cultural será o tema do subcapítulo a seguir. 2.1 O começo de tudo A luta de moradores e não moradores da Rocinha para realizar a instalação de um equipamento cultural na favela teve início no ano de 2004 com a criação de um fórum de discussão sobre ações de urbanização para a localidade. Foi a partir de uma situação de violência envolvendo traficantes de facções rivais da Rocinha e do Vidigal52 que alguns moradores da comunidade de São Conrado, além de membros das classes média e alta do mesmo bairro da zona Sul carioca e entidades apoiadoras se articularam na tentativa de refletir sobre os problemas da favela e a situação de insegurança que existia na cidade. O conflito entre facções rivais foi o 'estopim' para que os membros da sociedade civil assumissem uma posição mais participativa em relação à problemática de violência vinculada ao tráfico de drogas, e à falta de políticas públicas para os 50 51 52 Ver p.ex. MORAR Carioca em compasso de espera. O Globo, Rio de Janeiro, 18 maio 2014. Cf. Dilemas, Revista de estudos de Conflito e Controle Sociais, p.191-228, 2013. Na ocasião, cerca de 60 bandidos saíram do morro do Vidigal para tomar pontos de venda de drogas na Rocinha. No caminho, mataram a mineira Telma Veloso Pinto, de 38 anos, na Avenida Niemeyer, que ficou fechada por sete horas. Na Rocinha, os invasores assassinaram outras duas pessoas. Com a guerra do tráfico, 1.200 PMs ocuparam a Rocinha e o Vidigal. Nas duas semanas seguintes à invasão, 12 pessoas foram executadas. Ver, p.ex. GUERRA entre Rocinha e Vidigal começou na Semana Santa em 2004. O Globo, Rio de Janeiro, 07 ago. 2006. 46 favelados. Nesta ocasião, o grupo de pessoas - entre elas lideranças da comunidade e representantes de associações de moradores de áreas próximas - se articularam para formar o Fórum Técnico de Urbanização da Rocinha. A primeira reunião do grupo de discussão aconteceu no Hotel Intercontinental, nas proximidades da favela e contou com a participação das seguintes associações e entidades: a União Pró-Melhoramento dos Moradores da Rocinha (UPMMR), a Associação de Moradores e Amigos do Bairro Barcelos (Amabb), que representava o sub-bairro localizado na parte baixa da Rocinha, e a Associação de Moradores do Laboriaux e Vila Cruzado, subbairros situados na parte alta da favela, além da Associação de Mulheres da Rocinha (AMR), a Associação PróMelhoramento Vila Parque da Cidade53 (APMVPC), e a Câmara Comunitária da Barra da Tijuca. A convocação destas associações e entidades foi feita pela Associação de Moradores e Amigos de São Conrado (Amasco). O fórum também recebeu o apoio de instituições como o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), além da Pontifícia Universidade Católica PUC-RJ), a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), a Associação dos Diretores de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi- RJ), entre outros colaboradores54. Com o objetivo de "elaborar soluções para a urbanização da comunidade da Rocinha"55, o fórum recebeu o auxílio de alguns profissionais56 ligados às entidades apoiadoras do grupo de discussão sendo, num primeiro momento, um espaço desvinculado da participação de governos. As discussões do fórum, que aconteciam semanalmente, se deram de forma setorizada, por meio de grupos divididos por áreas de atuação, sendo elas: Urbanização, Transporte e Infraestrutura, Meio Ambiente, Institucional, Educação, Saúde, Cultura e Esportes. Neste contexto de mobilização, a ideia de criação de um centro cultural na Rocinha, aos poucos, foi sendo desenvolvida. Nomeado pelo representante da IAB-RJ57 no fórum de Centro de Convivência, Comunicação e Cultura (C4), o espaço cultural integrava uma proposta maior, vinculada diretamente ao planejamento de urbanização da favela como um todo. 53 Comunidade localizada no alto da Gávea ao lado da unidade de conservação municipal de mesmo nome. Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan-RJ), Clube de Engenharia (CE-RJ), Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ), Sindicato da Construção do Rio de Janeiro (Sinduscon). 55 Informações retiradas de publicação da Amasco, projeto Transformação Progressiva do Espaço Habitado - resultado do Fórum Técnico de Urbanização da Rocinha. 56 Entre eles um arquiteto da IAB, uma arquiteta da PUC-RJ, além de empresários. 57 Arquiteto e professor universitário. 54 47 O C4 foi inicialmente elaborado como parte do Espaço Semente, Semente "ambiente de transformação que abrigaria por cerca de 10 meses os moradores moradores das áreas com condições precárias de habitação" e que seria "composto não só de Moradias com Tempo Determinado eterminado (MTD), mas também por uma área de trabalho (AT)58, Horta59 Orgânica Planejada (HOP)60e pelo Centro de Convivência, Comunicação e Cultura." Cultura 61 Figura 13 -Nesta Nesta Planta é possível verificar a ocupação dos espaços. O projeto “Espaço Semente” incluía moradias por tempo determinado (MTDs), Áreas de Trabalho (ATs), Horta Orgânica (HOP), além do Centro de Convivência, Comunicação e Cultura (C4) em amarelo, amarelo, à esquerda. De acordo com o caderno produzido pela Amasco sobre os resultados do Fórum Técnico de Urbanização,, o projeto de urbanização para a favela foi definido como "um 58 Espaço para atividades comerciais ou não, desempenhadas de pelos moradores. A horta orgânica ocuparia cerca de 1.800 metros quadrados. Segundo a publicação da Amasco, seria um "jardim, com a produção de cestas básicas semanais (com a finalidade de) abastecer as famílias moradoras com o excedente (...).." 60 Projetada pelo Nima, Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente da PUC-RJ. 61 Ver Sarayed-Din, 2009:86. 59 48 plano (...) que, além de moradias de boa qualidade com vias de acesso adequadas, (promoveria) formação cultural e técnica para os moradores e oportunidades de trabalho na própria comunidade, tornando-a, o máximo possível, auto-sustentável”. O projeto defendia ainda a criação "de uma consciência ecológica em relação às matas do entorno, obtendo assim um maior envolvimento das comunidades na sua preservação". A construção do Espaço Semente se justificava também, segundo o documento da Amasco, pela situação fundiária da favela da Rocinha e pelo potencial da área sendo "sua capacidade de geração de riqueza impressionante, através dos inúmeros negócios de comércio e serviços atualmente existentes". O documento também destacava a relevância da Horta Orgânica Planejada (HOP) e do Centro de Convivência, Comunicação e Cultura (C4), dois espaços que conjugados formariam "um importante campo de prática e informações visando (também) ao desenvolvimento da consciência ecológica, cada vez mais necessária à continuidade do planeta e às condições de existência das gerações futuras (...)". As duas ações se justificariam ainda da seguinte forma: "os moradores temporários do Espaço Semente ao (retornarem) para seus terrenos originais, volta(riam) com novos conhecimentos e informações, podendo optar em continuar com uma horta orgânica na área livre dos terrenos e utilizá-las de maneira rentável". O motivo maior do projeto estava centrado na ideia de reverter, por meio de informação e oportunidades, o quadro de insegurança que afetava moradores da favela e dos bairros no entorno. Segundo a publicação da Amasco, era preciso "incrementar a qualidade de vida da Rocinha e de São Conrado, duas comunidades vizinhas que precisam andar de mãos dadas se quiserem garantir a paz, a tranquilidade e um ambiente saudável para seus filhos"62. No plano de urbanização, o Espaço Semente ocuparia um terreno de 5.000 metros quadrados de uma antiga garagem de ônibus localizada onde estão os apartamentos do PAC63. 62 Informações retiradas de publicação da Amasco, projeto Transformação Progressiva do Espaço Habitado -resultado do Fórum Técnico de Urbanização da Rocinha. 63 Os apartamentos do PAC estão localizados na Estrada da Gávea. 49 Figura 14 -Terreno da garagem de ônibus O projeto Transformação Progressiva do Espaço Habitado, Habitado resultado resulta do Fórum Técnico de Urbanização da Rocinha, foi ilustrado também por desenhos que apresentavam a ideia do Espaço Semente em diferentes perspectivas,, como os exemplos abaixo: 50 Figura 15 - Um dos desenhos do Espaço Semente que constam no caderno da Amasco64 64 Todos os desenhos e plantas apresentados são de autoria do representante do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) no fórum. 51 Figura 16 - Perspectiva interna do Espaço Semente 2.2 O C4 De acordo com o representante do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) (IAB no fórum, a ideia inicial do C4 surgiu por meio da percepção do grupo de que não era possível estabelecer apenas projetos urbanísticos para a Rocinha sem que a informação chegasse aos moradores. Era necessário, na concepção dos membros do fórum, urbanizar a favela e as "cabeças", criando um espaço de convivência, discussão, 52 reflexão e conhecimento transdisciplinar. A relevância da instalação de um centro cultural na Rocinha se justificava da seguinte forma: (...) percebeu-se a necessidade básica da criação de um Centro de Convivência, um polo de atração para reunir as múltiplas "cabeças pensantes" da Rocinha, espalhadas em vários nichos da comunidade, muitas vezes sem conexão entre si. Além disso, tornou-se visível o quanto se desperdiça em inteligência e criatividade deixar de produzir condições para fazer fluírem estes atributos junto com a aquisição de conhecimentos contemporâneos de forma transdisciplinar para tantos seres humanos que não tiveram meios nem tempo de conseguir educação formal e sentem-se como represados65. A proposta chamada de "urbanização das cabeças" foi levantada no fórum por um morador66 da favela Rocinha. Era preciso, na visão dele e dos outros envolvidos, tratar não só do espaço físico da favela, mas também reunir os moradores da Rocinha gerando reflexão e conhecimento. Como disse o representante da IAB-RJ, "ao invés de ser só o lado físico do planejamento urbano, alargar rua, tratar de saneamento, (decidimos) que precisávamos cuidar das 'cabeças' pra que elas se entendessem contemporâneas". De acordo com o morador da Rocinha e autor da expressão, "se percebia que tinha um morador do Bairro Barcellos que tinha ideias semelhantes a de um morador de Laboriox e eles, às vezes, nunca se encontravam. Então, precisava de um espaço, um lugar pra convivência das cabeças pensantes da Rocinha".67 No projeto do Espaço Semente, o Centro de Convivência, Comunicação e Cultura (C4) conteria "teatro/cinema/auditório, biblioteca, galeria de arte e exposições variadas. Cursos de 65 Texto escrito pelo representante da IAB-RJ e entregue a mim. 66 Produtor cultural e ator. O morador é citado no documento da Amasco, Rocinha: Uma Nova Realidade - Transformação Progressiva do Espaço Habitado como sendo membro da UPPMR no fórum, entretanto, segundo ele, houve um erro na publicação. Como disse em entrevista por email ocorrida em janeiro de 2015: "Nunca representei as associações e nem nunca fiz parte da diretoria. Eu apenas era um morador interessado e afetado diretamente pela guerra ocorrida em 2004". 67 Trechos retirados de entrevista realizada em 2013. 53 arte, música, leitura de peças, atividades de desenvolvimento de criatividade, informática". Além disso, contaria com "palestras de história atual, geografia moderna, filosofia, psicologia do adolescente, Eco-alfabetização, biologia. Cursos de Astronomia, administração/liderança, línguas (inglês, espanhol), cozinha-escola, história da Rocinha."68O espaço cultural idealizado pelo grupo ocuparia um prédio de cinco andares, com cerca de 2.500 metros quadrados. Com ligação direta com o prédio de moradias (MTD) do Espaço Semente, por meio de rampas, para facilitar o acesso dos moradores aos cursos e atividades oferecidas, o C4 abrigaria em seu primeiro andar um teatro/cinema ou auditório, com um restaurante-varanda, galeria de arte, espaço para exposições, bar e área de convivência. No segundo nível, haveria uma creche. O terceiro piso abrigaria um espaço de convivência com varanda coberta, três salas de aula, duas salas de eco-alfabetização, além de cantina. No quarto piso ficaria localizada a biblioteca, além de salas de aula. No terraço do C4 haveria um restaurante-escola e horta-jardim. Nota-se pela descrição do projeto e pela fala dos entrevistados que havia um grande desejo de reunir em um único local pessoas interessadas em discutir a realidade da favela e ampliar sua visão de mundo, a partir dos cursos e palestras oferecidos, e que esta reunião de moradores, em um ambiente propenso à reflexão, suscitaria um maior empoderamento69 do público-alvo em relação às questões relativas à favela, produzindo assim, consequentemente, o fortalecendo da participação social daqueles que estivessem envolvidos na experiência de morar provisoriamente no espaço criado para, em seguida, 68 69 Trechos retirados de texto escrito pelo representante da IAB-RJ e entregue a mim. "No processo de empoderamento há duas faces, interdependentes, de uma mesma moeda: a dimensão psicológica e a dimensão política. A primeira refere-se ao desenvolvimento de um determinado modelo de autorreconhecimento, através do qual as pessoas adquirem ou fortalecem seu sentimento de poder, de competência, de autovalorização e autoestima. A segunda implica na transformação das estruturas sociais visando à redistribuição de poder, produzindo mudanças das estruturas de oportunidades da sociedade. Nessas dimensões do empoderamento, o desenvolvimento de competências e da capacidade de enfrentar situações difíceis ocorre nos espaços da micropolítica cotidiana e é fortalecido no espaço da política macro, à medida que as pessoas se apropriam de habilidades de participação democrática e do poder político de decisão" (Herriger, 2006b apud Kleba&Wendausen, 2009). "Outros autores (Friedmann, 1996; Stark, 1996; Silva e Martínez, 2004; Stark, 2006; Wallerstein, 2006) consideram, além desses dois, um terceiro nível de análise do processo de empoderamento: o grupal ou das organizações sociais. Para Friedmann (1996, p. 125), o empoderamento está assentado sobre uma tríade interligada, centrada no sujeito e na unidade doméstica, ligada a outras unidades, formando uma rede social de relações empoderadoras que, 'devido ao reforço mútuo, tem um potencial extraordinário para a mudança social'" (Kleba & Wendausen, 2009). 54 retornar à moradia de origem. Entretanto, o projeto elaborado de centro cultural integrado à proposta maior do Espaço Semente parece não levar em consideração as dificuldades que a ideia, ao ser viabilizada de fato, enfrentaria como, por exemplo, a resistência dos próprios moradores, pois pelo relato dos entrevistados envolvidos não apenas os "verdadeiramente" interessados passariam pela experiência, mas todos aqueles que tivessem que sair de suas casas temporariamente para que as obras de urbanização pudessem ser realizadas. Sabe-se que nas favelas do Rio de Janeiro, a remoção, mesmo que para áreas na própria comunidade, nunca foi tarefa fácil. Por conta do histórico de remoções já ocorridas nas favelas cariocas e pela forma equivocada com que muitas delas foram praticadas, há uma resistência natural dos favelados a este tipo de iniciativa. Além disso, o vínculo emocional com o lugar de moradia, a história familiar vivenciada em determinado espaço de habitação também se apresentariam como aspectos geradores de tensões no que se refere às remoções, no contexto da favela. Há ainda a dúvida em relação ao interesse dos moradores em participar das atividades desenvolvidas no local70. Além disso, a própria ideia de "urbanização das cabeças" também produz alguns questionamentos. O termo parece suscitar que é preciso levar a cidade (o mundo urbano/civilizado) à favela, como se esta não fizesse parte da urbanidade, como se a expressão cunhada pelo morador da Rocinha reafirmasse e reforçasse a noção de "cidade partida", ou seja, de que a integração da favela à cidade é apenas uma elaboração retórica71. Do ponto de vista espacial e econômico, a favela faz parte do cenário do Rio de Janeiro desde o início do século XX72, entretanto do ponto de vista social, foi, de fato, ao longo de sua história, marginalizada pelo sistema dominante. Por 70 Tanto durante a entrevista com os envolvidos como nos documentos a que tive acesso não houve nenhuma menção em relação à execução do projeto e seus desafios. 71 Como destaca Jailson de Souza e Silva "Não é partida a cidade que construiu e constrói os vínculos históricos, econômicos, políticos, culturais existentes no Rio de Janeiro; onde se manifesta uma rica circularidade dos grupos sociais, em particular os populares. Essa dinâmica histórica gerou uma cidade plural, mas única, decorrente das variadas formas de encontros e distâncias estabelecidas no cotidiano dos cariocas. O fato dos setores que habitam os espaços formais não a perceberem, de forma ampliada, não impede que ela exista. (2003). 72 Leeds &Leeds (1978), Turner (1969) e Mangin (1967), entre muitos outros autores, partilharam a ideia de que as favelas, "vistas como enclaves", eram "bairros populares (...) (que) estavam fortemente integrados à vida urbana através de sua inserção em diversos mercados: o mercado de trabalho, o mercado político, o mercado da cultura (em particular do Carnaval)" (Valladares, 2005:129). 55 outro lado, o reforço do discurso de integração da favela à cidade (poder urbano73) propõe reverter um quadro de desvalorização histórica deste lugar "favela" e de seus moradores. Seu objetivo maior é o de transformar uma "chave" negativa (-) em positiva (+), ou seja, valorizar este espaço/território/ lugar que sempre foi reconhecido como inferior/menor/pior quando analisado de forma dual74em contraposição à ideia de cidade (modelo dominante/padrão civilizatório75). Todavia, esta valorização ou positivação não pode ser pensada, a partir de "códigos culturais hegemônicos"(Feitosa, 1998). Este parece ser o grande obstáculo, o que dificulta a formulação de um olhar menos discriminatório em relação à favela, pois a busca por reverter este "sinal negativo" só tem sentido se baseada em outra lógica, a de valorizar as especificidades da favela, a cultura local, a força criatividade e a identidade cultural de seus moradores. Se retornarmos à ideia de "urbanização das cabeças", expressão que, de certa forma, norteou o projeto do C4 descrito nos capítulos acima, nota-se que membros de diferentes classes sociais, favelados e não favelados compartilham, em muitos casos, os mesmos códigos culturais tal a força simbólica de determinadas construções (signos) que "reprodu(zem) interesses (hegemônicos) como aspirações legítimas da sociedade" (Yazbek apud Feitosa, 1998:114). Neste sentido, a ideia de "urbanizar cabeças" remete a uma intenção pedagógica civilizatória, a uma visão "de cima" para "baixo". Como 73 Segundo Rolnik (1994:98 apud Feitosa, 1998:114), este poder urbano seria "o conjunto de mecanismos econômicos, ideológicos e políticos que funciona no cotidiano da cidade, para reprimir ou transformar tudo o que se diferencia da "ordem" social. Esta ordem é antes de mais nada um modelo que a classe dominante estabelece para si mesma e que pressupõe e propõe uma absoluta homogeneidade social (...) Este poder agirá basicamente de duas formas: por meio de um discurso que estabelece um modelo de cidade e cidadão, e mediante intervenções diretas". 74 De acordo Ivan Bystrina, "a semiótica da cultura mostra a polaridade como um dos elementos que caracterizam os códigos da cultura, também chamados de códigos terciários" (...) "a cultura apresentaria uma estrutura básica, concebida a partir de uma relação dual ou binária. (...) a polaridade é consequência da valoração recebida pelos códigos culturais". A oposição entre os polos "(...) funciona como um meio de demarcar, sinalizar o território humano (...)". (1995 apud Feitosa 1998:22). 75 A temática sobre o conceito de cultura já foi explorada por diversos autores. Da Matta (1981) discorreu sobre o significado de cultura para o senso-comum e seu entendimento no âmbito da Antropologia. Denys Cuche (1999) também problematizou a noção de cultura entendida como padrão de civilidade, conhecimento e erudição e seu sentido antropológico, vinculado em sua origem, segundo o autor, à matriz alemã (Romantismo), que propunha uma visão particularista das culturas em contraposição à visão universalista de cultura, vinculada à proposta iluminista. De acordo com Denys Cuche, o debate francoalemão ocorrido entre os séculos XVIII ao XIX, é arquétipo das duas concepções de cultura. A ideologia universalista teria repercussão em toda a Europa Ocidental. 56 avalia Feitosa, há um "sistema adestrador em jogo" que acaba por ratificar a situação do favelado como uma condição inferior (Feitosa, 1998:129-130). 2.3 O concurso de ideias Após cerca de um ano de discussões, o grupo do Fórum Técnico de Urbanização decidiu apresentar o projeto de urbanização, que continha a proposta do C4, ao poder público. Em 2005, os envolvidos se reuniram com o então vice-governador e secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, o arquiteto Luiz Paulo Conde.76A aproximação com as esferas governamentais se tornava, naquele momento, condição prioritária para que as ideias elaboradas no fórum pudessem ser, de fato, viabilizadas. Na reunião com Luiz Paulo Conde, o grupo do fórum foi informado pelo então secretário de que já havia uma negociação com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) para lançar um "concurso de ideias" de âmbito nacional para a urbanização da Rocinha e que já havia um projeto de urbanização nas mãos do secretário, fruto de discussões com a comunidade. A notícia foi recebida com desânimo pelos integrantes do fórum, que em seguida decidiram negociar com o Governo do Estado a presença de pelo menos um representante da Rocinha no júri do concurso que seria realizado. A secretaria estadual também acatou a proposta do fórum de entregar aos inscritos do Concurso de Ideias o plano já desenvolvido pelo grupo no Fórum de Urbanização, além de aceitar que o grupo fizesse uma apresentação sobre o projeto para os inscritos, antes do início do concurso. Com a articulação dos integrantes do Fórum de Urbanização da Rocinha outro arquiteto77 foi convidado a se reunir com os principais membros do Fórum e fazer um projeto para disputar o concurso. Este novo projeto - que nada mais era do que o já existente, um pouco alterado e ampliado, e que contou com a participação de novos envolvidos78, saiu vitorioso79. A escolha se deveu, segundo a ata do júri, a itens como a abordagem de todas as temáticas previstas no edital, além de incluir novas unidades habitacionais, e a construção de "uma fábrica de peças pré-moldadas, possibilitando a 76 O gestor fazia parte da equipe da governadora Rosinha Garotinho (2003-2007). Luis Carlos Toledo, do escritório de Arquitetura e Urbanismo -M&T - Mayerhofer e Toledo Arquitetura. 78 Entre eles, um artista plástico, que não era morador da comunidade. 79 Ver Sarayed-Din, 2009. 77 57 utilização de mão de obra local e a agilização da construção de novas moradias."80 Desenvolvido por uma equipe interdisciplinar formada por 22 profissionais, oito estagiários e duas lideranças locais, o projeto vencedor do Concurso Público Nacional de Ideias para Urbanização do Complexo da Rocinha, apresentava, de forma geral, as seguintes propostas: completar a infraestrutura de saneamento (água, esgoto e águas pluviais) e da coleta e remoção de resíduos sólidos (lixo); garantir condições de acessibilidade melhorando as condições de circulação na Estrada da Gávea, prolongando e alargando, sempre que possível as demais ruas que servem à comunidade, criando áreas de estacionamento e derrubando as barreiras físicas que hoje dificultam a circulação de pedestres; estabelecer limites ao crescimento horizontal e vertical da Rocinha através de eco-limites e de um legislação urbanística adequada às características locais; adotar um Plano Diretor de Habitação que possibilitasse a realocação na própria comunidade das famílias que tivessem que deixar suas casas em função das obras de urbanização ou por se localizarem em áreas de risco; implantar na Rocinha uma fábrica de elementos pré-fabricados em argamassa armada para a fabricação das lajes das novas edificações, de escadas drenantes e de placas de contenção de encosta; valorizar a cultura e a forte identidade da Rocinha criando um "corredor cultural" e preservando a memória do bairro através do tombamento de edificações e espaços considerados notáveis; implantar uma forte infraestrutura cultural através de salas de cinema e teatro, centros culturais, pequenas bibliotecas e espaços para o desenvolvimento das artes, plásticas, música, dança. Também faziam parte das propostas: dar um tratamento especial às áreas de contato da Rocinha com os bairros vizinhos da Gávea e, em especial de São Conrado, onde a Rocinha ocupa importância tanto pelo comércio como pelos serviços do bairro; localizar nestas áreas de transição entre a cidade e a favela equipamentos de interesse comum que pudessem atrair as populações da Rocinha e dos bairros vizinhos, além de implantar na Rocinha equipamentos urbanos entre os quais duas creches referência, mercado público, unidade pré-hospitalar e escola técnica. A participação popular na elaboração do projeto vitorioso também influenciou a escolha do júri. Segundo trecho do item "Características do Projeto" a "participação 80 Ata do júri do Concurso Nacional de Ideias para Urbanização do Complexo da Rocinha do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), janeiro, 2006 apud Sarayed-Din 2009: 113. 58 (dos moradores) foi a linha mestra" adotada para a elaboração do projeto. O documento81 informa ainda que foram feitos dois seminários na Rocinha durante o concurso e que em um deles crianças da comunidade representaram por meio de textos e desenhos o que queriam na favela e o que não gostavam na localidade. Outro encontro, realizado com os adultos, serviu para "discutir propostas, aprofundando-as e ajustandoas às expectativas da comunidade para que (fossem recebidas) novas ideias". Algumas delas "revelaram-se fundamentais, como por exemplo o desejo dos moradores em ter, como na cidade formal, uma legislação urbana capaz de estabelecer parâmetros para a ocupação da Rocinha e para o controle de seu crescimento e a necessidade de estacionamentos". Apesar do projeto ter sido selecionado no Concurso de Ideias, o processo de negociação com o poder público ainda não havia terminado. Uma nova etapa estava por vir. 2.4 "Nada se cria, tudo se transforma": mudanças e percepções Os trabalhos para viabilizar o projeto vencedor do Concurso de ideias ficaram parados por conta das eleições de 200682. Entretanto, a frustração de desperdiçar a proposta desenvolvida acabou motivando o grupo do fórum a procurar um novo caminho para executar o projeto vitorioso e que era resultado da mobilização de um grupo de pessoas. Os membros do fórum decidiram, então, apresentar a proposta de urbanização ao candidato ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral83. Após vitória nas eleições, é assinada medida provisória84 com a determinação de repasse de R$ 60 milhões (governo federal)85 e R$ 12 milhões (contrapartida do Estado) para a execução do projeto vencedor do Concurso de Ideias. No dia 22 de março de 2007, o mesmo arquiteto86 que coordenou a equipe vencedora do concurso nacional 81 Resultado do Concurso de Ideias, incluindo ata. Disponível em http://www.vitruvius.com.br. Acessado em 12 de jun.2014. 82 Eleição nacional para os cargos de presidente, governador, senador, deputado estadual e federal. Eleito governador do Rio de Janeiro no final de 2006. Tomou posse no dia 1º de janeiro de 2007. 84 Medida Provisória nº336, de 7 de dezembro de 2006 apud Sarayed-Din, 2009 85 Gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2006 -2010). 86 Luiz Carlos Toledo. 83 59 assinou contrato com a Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop) com o objetivo de executar o Plano de Desenvolvimento Sócio Espacial da Rocinha a partir das ideias apresentadas no concurso87. Entretanto, após a assinatura do contrato, o projeto de urbanização da Rocinha foi incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal. O projeto vitorioso no Concurso de ideias foi, então, modificado para se adequar a novas bases88. A sensação de frustração de não concretizar o que havia sido planejado anteriormente é revelada nos depoimentos de alguns dos envolvidos direta ou indiretamente no processo de discussões e negociações. Verificou-se que há um desconforto em relação às ações desenvolvidas pelo PAC e à maneira como as intervenções foram encaminhadas. Entre os depoimentos coletados foi possível identificar opiniões similares em relação ao trabalho executado que, segundo o morador da favela da Rocinha89 que compôs o júri do Concurso de Ideias e participou diretamente do Fórum de Urbanização de 2004 abandonava, por exemplo, ações importantes previstas no projeto vencedor como a de inserir a mão de obra local, a partir da criação de uma fábrica de pré-moldados, além de realizar a capacitação de moradores da favela para atuação nas intervenções urbanísticas realizadas. Ele contou: "(...) O pessoal da Rocinha não ganhou nem um curso de capacitação, nem um curso de alfabetização. E a nossa grande preocupação era colocar essa 'galera' para adquirir conhecimento porque só assim vai mudar a situação". E disse ainda: Aconteceu o seguinte. Contrataram o arquiteto. Aí, você está escrevendo sobre pipoca... Eu te contratei: 'Ó, meu filho, vamos mudar essa história e vamos escrever sobre feijão, pipoca não'. É assim que funciona. (...) Então, depois que ele foi contratado pelo Estado, o Governo começou a dizer: 'Olha, nós não queremos isso, queremos aquilo. 87 Ver Sarayed-Din, 2009. Outros recursos somaram-se aos já determinados pela Medida Provisória. Dos 72 milhões (R$ 60 milhões da União e R$ 12 milhões do Estado) foram acrescidos mais R$ 82,5 milhões pelo governo federal e R$27,5 milhões pelo governo estadual, totalizando um investimento de R$182 milhões. 89 Produtor cultural e ator. 88 60 Entre as principais críticas em relação às modificações feitas no projeto vitorioso do Concurso de Ideias estava o fato do modelo de hospital inicialmente proposto ter sido substituído por uma UPA 24 horas90. Entre os moradores entrevistados envolvidos com as discussões ocorridas à época, todos lamentaram a mudança, alegando que pela densidade populacional da grande favela seria necessário um hospital de médio porte. "Você tinha um hospital dentro da Rocinha, e ele infelizmente se transformou numa UPA"91. Outro disse: "Entope o Miguel (Couto), entope os outros hospitais. Então a gente queria um hospital, tinha espaço para um hospital. (...) Aí veio a UPA com esses containers de ferro, botaram a UPA no lugar."92 Em matéria publicada pelo site Rocinha.org, em referência à reportagem do jornal O GLOBO93, o próprio arquiteto contratado pelo Estado também lamentou a substituição do hospital por uma estrutura menor. Ele afirmou que "a planta que fez para a unidade hospitalar da comunidade foi extremamente modificada, com a área reduzida à metade da que foi traçada originalmente no papel". O texto diz também: "O desenho prevê uma edificação de seis mil metros quadrados, e de acordo com informações do arquiteto, uma nova proposta indica uma construção pré-fabricada de apenas três mil metros quadrados na área conhecida como Curva do Esse, onde funcionava uma das garagens da empresa de ônibus TAU (Transportes Amigos Unidos)". De acordo com publicação do Governo do Estado,94o PAC na Rocinha apresentava os seguintes projetos: o Complexo Esportivo da Rocinha, um Centro Integrado de Atenção à Saúde - formado por uma UPA 24 horas, uma Clínica da Família95 e um Caps96, o Centro de Convivência, Comunicação e Cultura (C4), além de uma creche referência e unidades habitacionais. 90 Unidades de Pronto Atendimento criadas pelo Governo do Estado. Morador, produtor cultural e funcionário da Biblioteca Parque. 92 O morador da favela, produtor cultural e ator, membro do júri do Concurso de Ideias, envolvido diretamente com o Fórum de Urbanização iniciado em 2004. 91 93 Ver p.ex. OBRAS do PAC: projeto de hospital é reduzido a metade. Rocinha.Org-O Portal Oficial da Rocinha, Rio de Janeiro, [s. d.]. 94 Plano de Desenvolvimento Sustentável - Rocinha, publicação institucional, ?:47 O modelo municipal tem o objetivo de trabalhar a prevenção e a promoção da saúde. 96 Unidades municipais especializadas em saúde mental. 95 61 Figura 17 - Complexo Esportivo Rocinha O planejamento do PAC reuniu ainda obras como a da passarela para dar acesso direto da Rocinha ao Complexo Esportivo da favela (projeto doado pelo arquiteto Oscar Niemeyer); o alargamento e urbanização da Rua Quatro (acesso importante dos subbairros Cidade Nova, Rua Quatro e adjacências)97; o recapeamento das ruas Servidão Leste, Caminho dos Boiadeiros, Rua Dois, com reparos nas redes de esgotamento e abastecimento de água e rede elétrica; a transformação do Largo dos Boiadeiros numa grande praça e um Mercado Público para abrigar o comércio já existente no local; e um teleférico na localidade Roupa Suja, dando acesso à parte alta deste sub-bairro a partir da saída do Túnel Zuzu Angel98. De todo o planejamento do PAC apenas o Complexo Esportivo, os apartamentos, o centro cultural, a UPA-24 horas, a creche-modelo, a passarela, além de obras de urbanização (recapeamento, alargamento de vias, reparos na rede de esgoto, água e elétrica) foram entregues. Uma das intervenções mais polêmicas, que recebeu grande resistência dos moradores da favela e não foi efetuada pelo PAC até o momento da entrega desta dissertação, foi a da construção de um teleférico, nos moldes do que foi colocado no Complexo do Alemão, na zona Norte. A obra foi questionada por muitos moradores da Rocinha como sendo de pouca serventia para a população residente, sendo considerada uma proposta com foco somente no turismo99. 97 Os antigos 1,20 metros de largura foram transformados em 4,5 metros, possibilitando o acesso de veículos, serviços públicos, pessoas, luz e circulação de ar. 98 Retirado do Plano de Desenvolvimento Sustentável Rocinha, publicação institucional, Governo do Estado, ?: 48. 99 Ver p.ex. ROCINHA quer saneamento e não teleférico. Canal Ibase, Rio de Janeiro, 21 maio 2014. 62 Críticas também foram feitas por envolvidos no processo de negociação em relação à proposta do Espaço Semente, que entre outras funções funcionaria como uma alternativa para a questão das remoções de moradias, já que a ideia inicial era a de que os moradores se hospedassem no local para, em seguida, após cerca de 10 meses, retornarem para as áreas de suas residências, depois de concretizada a urbanização destas localidades. O representante do IAB-RJ também lamentou a mudança, além de outros entrevistados que sonhavam com a execução do projeto. Teve outra situação que era estes prédios que eram construídos para habitação temporária. Isso foi abandonado. Todos aqueles prédios passaram a ser moradia definitiva. Na realidade nós fomos taxados de ingênuos porque quando veio o presidente (Lula), o projeto que ganhou o concurso e o Estado carimbou, isso foi jogado fora100. As moradias do PAC, conhecidas popularmente como os apartamentos coloridos, também suscitaram opiniões negativas tanto pela substituição das unidades provisórias por definitivas como pelos poucos apartamentos construídos e o número de quartos disponibilizados. Em entrevista do arquiteto contratado pelo Governo do Estado ao site Brasil247, por exemplo, o desconforto com a situação é explicitado pelo profissional."(...) a oferta tem que se adaptar a necessidade familiar e não as famílias à oferta. (...) Os prédios que projetamos para a Rocinha não foram aceitos. Eles queriam que eu me ajustasse às normas da Caixa (Econômica Federal), que dava apartamentos apenas de dois quartos."101 100 O morador da favela, produtor cultural e ator, também integrante do Fórum de Urbanização de 2004 e membro do Júri do Concurso de ideias. 101 Ver p.ex. PLANO DIRETOR da Rocinha é ignorado pelo PAC. BRASIL 247, Rio de Janeiro, 10 fev. 2014. 63 Figura 18 - Apartamentos do PAC 2.5 O C4 e a Biblioteca Parque da Rocinha Outra mudança foi a incorporação do projeto do C4 ao programa de Bibliotecas Parque, descaracterizando o projeto original. Muitos moradores envolvidos com a proposta de construir um centro cultural chamado de Centro de Convivência, Comunicação, e Cultura (C4) argumentaram que a ideia foi divulgada somente como uma iniciativa inspirada nos equipamentos culturais em funcionamento na Colômbia. Um deles disse o seguinte102: "houve essa estranha situação de um grande grupo de pessoas do Governo do Estado visitar a Colômbia. Parece até que a Colômbia é um país para a gente ter alguma referência. A gente é que devia estar propondo isso para a Colômbia". Verificou-se também, entre os depoimentos de alguns moradores envolvidos no processo de negociação para a instalação do centro cultural, uma preocupação com o 'não' registro da história de participação popular que resultou na instalação do equipamento cultural na favela da Rocinha, como se o fato do Governo do Estado ter divulgado o espaço cultural instalado na comunidade como parte integrante de um programa inspirado no modelo colombiano 'apagasse', de certa forma, a história de mobilização para a viabilização da construção na comunidade. Como disse um deles: 102 Morador da favela, produtor cultural e ator, integrante do júri do Concurso de Ideias. 64 O que vai entrar para a história vai ser a Biblioteca Parque. E aí essa história vai ser apagada. (...). Ah, o C4! O pessoal do C4! Mas isso não é oficial, isso não vai para os anais. Daqui a 100 anos uma nota marginal vai dizer: 'Ah, houve um grupo que pensou isso'. Mas a nota oficial vai ser: 'O governo criou a Biblioteca Parque da Rocinha'103. Outro104 falou: As pessoas não sabem o histórico de luta desse prédio. Quantos rachas em reuniões, quantas brigas tivemos, entre nós mesmos porque: 'Eu não concordo que o prédio seja assim, eu não concordo'. Porque a Rocinha é muito questionadora. Ela questiona tudo, ela contesta tudo. Nós queremos o melhor porque nós somos a Rocinha. 'Eu quero o melhor para a minha comunidade porque a minha comunidade é isso, a minha comunidade é aquilo, é a primeira nisso, é a primeira naquilo e aqui tudo tem que ser bom'. Aí, claro, que há os embates de ideias. A Rocinha lutou para ter esse espaço. Os agitadores culturais daqui, os agentes culturais daqui lutaram para ter esse espaço105. É também interessante notar que algumas pessoas envolvidas direta e indiretamente em todo o processo de negociações com o poder público e que atualmente usam a biblioteca parque só se referem ao equipamento cultural como C4, suscitando uma ideia de resistência em relação à questão da 'paternidade' do equipamento cultural instalado ou mesmo em relação à participação popular 'apagada' relatada por alguns dos envolvidos. Houve entrevistados que consideraram também que o fato da sigla C4 ser 103 104 105 Morador, produtor cultural e funcionário da Biblioteca Parque. Morador, produtor cultural e escritor. Nota-se, com base nos depoimentos acima, que o protagonismo dos favelados na luta por melhorias por sua comunidade tem sido silenciado na medida em que são os registros oficiais governamentais que prevalecem como uma das únicas fontes de informação no contexto de mobilização popular das favelas cariocas. 65 mantida na fachada da Biblioteca Parque da Rocinha demonstrou uma tentativa do Governo do Estado de abrandar as insatisfações por conta das alterações sofridas no projeto. Outros, por sua vez, consideraram a manutenção do nome C4 um resultado do processo de negociação com os moradores. A proposta inicial de gestão compartilhada do C4, desenvolvida inicialmente no Fórum de Urbanização da Rocinha, e que acabou não sendo efetivada, também foi destacada durante as entrevistas realizadas para esta dissertação. O tema foi discutido exaustivamente no Fórum de Cultura da Rocinha (FCR), seminário que buscou reunir moradores, artistas e produtores culturais da favela no intuito de desenvolver discussões relativas aos interesses culturais da favela da Rocinha. Foi neste fórum de cultura, criado em julho de 2007, que os participantes elaboraram um regimento interno de um conselho deliberativo que "fiscalizaria o funcionamento" do espaço. O texto publicado no blog do Fórum de Cultura dizia o seguinte: "(...) o FCR entende que é necessária, entre outras coisas, a criação de um conselho de moradores que vai fiscalizar o funcionamento do espaço. Mas para que a relação entre o poder público realmente gere bons frutos é importante estabelecer quais são as regras do jogo".106 A proposta discutida no Fórum de Cultura não foi adiante107. De acordo com a Superintendente de Leitura e Conhecimento da Secretaria Estadual de Cultura108 à época, as negociações com membros da comunidade levaram em consideração alguns aspectos do antigo projeto, entretanto algumas ideias foram inviabilizadas, por uma série de motivos: "A comunidade já tinha um projeto antes de ter biblioteca parque que era o de ter um centro comunitário de cultura, o C4. Eles já tinham inclusive o projeto arquitetônico para um outro terreno que não era aquele que nos foi dado durante o governo." Ela acrescentou: "Propusemos colocar uma biblioteca parque, atendendo ao projeto desenvolvido por eles para um centro cultural, mas tornando este equipamento parte de uma rede, isso como uma estratégia de fortalecer o espaço como política pública. Havia um limite de recurso, o que deixou a comunidade bastante chateada. Então, tivemos que cortar coisas 106 Texto do regimento proposto pelo FCR sobre a gestão compartilhada. Ver FÓRUM de Cultura da Rocinha cria proposta de regimento interno para o C4. Fórum de Cultura da Rocinha, Rio de Janeiro, 13 abr. 2011. 107 108 Ver mais em Sarayed-Din, 2009: 139-142 A Superintendente foi nomeada pela Secretária de Cultura Adriana Rattes (2007-2014). 66 e incluir outras que eram possíveis naquele espaço"109. Apesar dos moradores da Rocinha envolvidos no processo de negociação revelarem certa frustração em relação às mudanças ocorridas no projeto de centro cultural na favela, todos são usuários do equipamento cultural e ao serem perguntados se encaravam o resultado como uma vitória afirmaram que a biblioteca parque não deixava de ser uma conquista da comunidade e para a comunidade. É um avanço sim, sem dúvida. Agora, esse avanço não é o fim da linha, entendeu? Não é o fim da linha, não é nem 1% daquilo que as pessoas têm direito. (...). É uma luz no fim do túnel. Aquela biblioteca é uma possibilidade. Aquela biblioteca é a possibilidade de salvar o sujeito que ainda trata o bandido como herói110. Outro entrevistado disse o seguinte: Essa experiência, não da biblioteca, mas do prédio do C4 é uma experiência vitoriosa. (...) A Rocinha propôs a criação de um espaço de cultura, de comunicação e de convivência, virou uma biblioteca por obra do acaso. Então, eu vejo até a própria biblioteca como fruto da reivindicação da Rocinha, um efeito colateral do que foi reivindicado.111 Este outro definiu a instalação da Biblioteca Parque como um "começo": "Foi um começo, entende? E nos deu forças pra continuarmos, porque nós não vamos desistir. E eu tenho certeza que eu e os meus amigos temos essa mesma percepção". E completou: "Não vamos parar, não vamos nos entregar, não vamos nos dispersar, porque também tem uma coisa, o governo faz o papel dele, mas nós temos que fazer o nosso." Em outro trecho disse novamente: "A gente tem que dizer: 'precisamos de 109 Entrevista gravada no ano de 2013, na sede da Secretaria de Cultura, no Centro. O morador, ator e produtor cultural, integrante do Júri do Concurso de ideias e envolvido diretamente com o Fórum de 2004. 111 Morador, Produtor Cultural e funcionário da Biblioteca Parque. 110 67 escola, precisamos de hospitais, precisamos de creche, precisamos de esgoto tratado. O governo não vai saber dos nossos anseios se nós não botarmos a boca no alto falante e não dissermos aquilo que realmente a gente precisa112". Embora existam diversas percepções sobre o desenrolar de todo o processo de negociação até a efetiva inauguração da Biblioteca Parque da Rocinha, não há como negar que o início de tudo se deveu à mobilização de pessoas preocupadas com melhorias para a favela. Foi por conta da formação do Fórum de Urbanização, motivado inicialmente pela violência ocasionada pelo episódio de disputa por pontos de tráfico de drogas ocorrido no ano de 2004 - que afetou moradores da favela e de São Conrado mais diretamente -, que a Rocinha recebeu um equipamento cultural como uma biblioteca parque, entre outras obras. Neste sentido, todo o esforço de alguns membros da sociedade civil nas discussões, negociações, avanços e retrocessos, ou seja, no diálogo com o poder público para levar melhorias à favela da Rocinha, somado ao interesse governamental113 de investir naquela área, transformaram uma proposta de urbanização que poderia nunca ter saído do papel em ações para a comunidade. Neste capítulo busquei compreender as diferentes concepções de centro cultural elaboradas para a Rocinha bem como entender o complexo emaranhado de percepções, tensões e convergências que resultaram na instalação da Biblioteca Parque na comunidade. No capítulo a seguir buscarei apresentar a dinâmica de uso da Biblioteca Parque e como se dá a prática cotidiana neste equipamento cultural no contexto específico da favela de São Conrado. 112 Morador, Produtor Cultural, Escritor. Os motivos do interesse governamental pela região podem ser justificados de diversas maneiras, entre eles, pelo potencial turístico da favela da Rocinha, e, sobretudo, pelo projeto de cidade, vinculado aos grandes eventos como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Não desenvolverei nesta dissertação este tema, não por não considerá-lo relevante, mas por entender que o presente trabalho se propôs a tomar outra direção. 113 68 3. A Biblioteca inaugurada Com um total de cinco pavimentos, a Biblioteca Parque da Rocinha ocupa um espaço de 1,6 mil metros quadrados, na Estrada da Gávea, número 454. O equipamento cultural inserido no "coração" da favela de São Conrado recebeu do ano de sua inauguração até o final de 2014 167.769 visitantes de diferentes faixas-etárias. No mesmo período foram feitas 17.162 carteirinhas114. A biblioteca possui um acervo total de 15.348 itens, entre DVDs e livros. Além dos filmes que podem ser assistidos na DVDteca, que fica no primeiro andar, o setor disponibiliza 7 telas de led e 28 fones de ouvido. É no quarto andar que o espaço cultural reúne o acervo de publicações com foco nos públicos adulto e infanto-juvenil. As obras podem ser consultadas por meio de um sistema informatizado que integra toda a rede de bibliotecas parque do estado. A estrutura com cinco andares também oferece aos usuários a oportunidade de acessar a internet gratuitamente. Localizado no terceiro pavimento, este setor conta com 40 computadores e 12 notebooks115. No mesmo nível encontram-se ainda o estúdio de gravação, de edição audiovisual, e as salas Corpo e Multiuso, além de uma varanda, dois sanitários e o setor administrativo. É no segundo nível do espaço cultural que fica localizado o teatro/auditório, onde são realizados ensaios e apresentações. O local, único setor deste andar, tem capacidade para 200 pessoas sentadas. O último andar do equipamento cultural conta com varanda, sanitários, e uma cozinha industrial. O espaço cultural possui ainda elevador e escadas. Todos os andares são climatizados. O sociólogo Willian Foote White evidenciou em sua obra Sociedade de Esquina a relevância da observação participante como método necessário para entender a complexidade do tecido social de uma comunidade. No estudo que procurou compreender a dinâmica de funcionamento do bairro pobre de Cornerville, povoado basicamente por imigrantes italianos e seus filhos, o pesquisador defendeu o 114 115 Dados fornecidos pela Secretaria de Cultura, por email no dia 29 de fevereiro de 2015. Ver p. ex. RIO DE JANEIRO (Estado). Secretaria de Estado de Cultura (SEC). Biblioteca Parque da Rocinha comemora seu primeiro ano de funcionamento. Rio de Janeiro, 5 jun. 2013. 69 conhecimento aprofundado do local como a melhor maneira de investigação dos grupos sociais em contraposição à uma descrição fria, quantitativa e distanciada em relação àquela população que tornava aquele espaço praticado, habitado. Como descreveu o autor em sua obra, Cornerville não poderia ser estudado levando em consideração apenas números e estatísticas: Há algo de errado nesse quadro: nele não há seres humanos. Por meio de 1evantamentos gerais, as pessoas preocupadas com Cornerville buscam responder a perguntas cujas respostas exigem o mais íntimo e detalhado conhecimento sobre a vida local. A única maneira de obter esse tipo de conhecimento é viver em Cornerville e participar das atividades de sua gente. Para quem faz isso, a área se revela sob uma luz totalmente diferente. Prédios, ruas e becos que antes representavam destruição e aglomerado físico passam a formar um panorama familiar para os atores da cena cornervilliana. (1993:20) Entendendo que a descrição física e quantitativa da biblioteca parque não daria conta de sua multiplicidade social, buscarei, neste capítulo, analisar os usos deste espaço, sempre tendo como foco a perspectiva de que este equipamento público é resultado de ações recíprocas de seus usuários e funcionários, e que este espaço está inserido em um cenário maior que é o da favela da Rocinha. Minha primeira aproximação com o espaço cultural se deu numa terça-feira. Cheguei à Biblioteca Parque por volta das onze horas. Logo na entrada do equipamento público, observei um pouco de longe o espaço colorido que continha sofás, telas de TV e estantes com DVDs, além de mesas com livros e revistas. Havia apenas um menino no setor e um funcionário no balcão. O garoto usava um fone de ouvido e assistia a um desenho animado. O menino ria bastante, mas ao ser chamado pelo amigo abandonou o filme e subiu as escadas. Resolvi então observá-lo mais um pouco e o segui pela biblioteca. 70 Figura 19 - DVDteca localizada no térreo Figura 20 - Estantes com DVDs Figura 21 - Disposição dos livros da DVDteca O garoto, que aparentava ter no máximo oito anos de idade, havia ido para o terceiro andar com o colega. Os dois conversavam na varanda, mas rapidamente se levantaram e procuraram o que fazer no setor de Internet. Havia alguns lugares vazios e 71 os dois pediram à funcionária, chamada por eles de 'tia', para usar as máquinas. Sentei numa cadeira e continuei observando. Estava achando a biblioteca vazia. Pensei: "Tanta gente na favela da Rocinha, que é um 'mundo' e tão pouca gente aqui". Figura 22 - Atendimento no setor de internet Como o movimento estava pequeno resolvi subir para o quarto andar onde estão a biblioteca adulta e a infantil. A primeira estava fechada e a segunda relativamente vazia. Sentado numa mesa, um rapaz estudava com seu laptop, uma senhora folheava um livro e um jovem perguntava à bibliotecária como fazia para obter a 'carteirinha' da biblioteca. O espaço, também colorido, com poltronas confortáveis das mais variadas cores, era convidativo. Havia, bem na entrada do setor, livros dispostos como se o lugar fosse uma livraria. Uma pequena estante me chamou a atenção: o acervo de poucos livros era de autores da Rocinha e de pessoas que escreveram sobre a favela. Do outro lado, nos fundos, havia também um pequeno acervo para deficientes visuais e uma máquina para leitura em braile. Figura 23 - Usuária na biblioteca adulto 72 Figura 24 - Biblioteca adulto Figura 25 - Livros mais recentes ficam dispostos na entrada do setor Figura 26 - Máquina para leitura em braile Por volta das 14h15 retornei do almoço e, para a minha surpresa, a biblioteca parecia outra. Várias crianças assistiam a filmes no primeiro andar, dois meninos 73 desciam as escadas afoitos, uma menina subia. Na varanda, localizada ao lado do setor de internet, havia uma grande movimentação de crianças e alguns adolescentes. Observei atenta e logo me chamou atenção o fato de o local reunir um grande número de crianças com idade entre 6 e 12 anos. Perguntei então à funcionária sobre o motivo de tantos meninos e meninas na biblioteca e ela me disse que o espaço começava a ficar cheio por volta das 14 horas, horário em que as crianças saíam da escola. O panorama, portanto, havia mudado. A "garotada" batia papo na varanda e a internet estava cheia a ponto de estarem distribuindo senhas para uso. Figura 27 - Varanda: Atividade realizada com crianças de uma creche No dia seguinte retornei à biblioteca por volta de meio-dia e fui avisada de que havia uma atividade no auditório. O grande espaço estava ocupado por cadeiras de plástico e havia um palco de madeira. Crianças sentadas assistiam a um filme projetado na parede sobre o rio Carioca116. Após o término da projeção soube que a atividade tinha a finalidade de estimular a reflexão, o conhecimento sobre a cidade do Rio de Janeiro e o desenvolvimento da escrita criativa e que a oficina também realizava passeios com os adolescentes. A iniciativa chamada "Jovens Turistas" estava sendo realizada por uma Organização Não-Governamental. Também fui informada de que outras oficinas gratuitas podiam ser feitas na biblioteca e que a programação mensal era colocada na entrada do equipamento cultural. O auditório, também chamado de Cine- 116 Nasce na Floresta da Tijuca, percorre os bairros de Cosme Velho, Laranjeiras, Catete e Flamengo e deságua na Baía de Guanabara, na altura da Praia do Flamengo. A maior parte de seu curso é, atualmente, subterrâneo. Em apenas três trechos, suas águas correm a céu aberto. O rio Carioca está intimamente vinculado ao desenvolvimento urbano da cidade, tendo sido usado como fonte de água docedesde os inícios da época colonial. Infelizmente se transformou ao longo de décadas num grande canal de esgoto. 74 Teatro era usado também, segundo os funcionários, para ensaios de grupos de teatro e dança da localidade, para apresentações de peças teatrais e para um sarau de poesia realizado por um morador da favela, entre outras ações. Figura 28 - Apresentação no auditório Após algumas horas ali, saí do auditório e fui ao setor de livros. Algumas adolescentes uniformizadas faziam anotações em um caderno. Uma menina lia um gibi sentada num sofá laranja. Olhei para o lado e pela parede de vidro vi que havia muitas crianças na biblioteca infantil/Ludoteca. Nela, um funcionário com um livro na mão contava uma história, outro sugeria uma leitura, uns saíam, outros chegavam; a porta estava sempre aberta. Havia estantes em tamanho menor nas paredes localizadas no entorno da sala. Uma caixa de papel continha os livros devolvidos pelas crianças. Dois computadores eram utilizados para a realização de jogos educativos, um deles chamado Devoradores de Livros117, site com foco no público infantil de 6 a 11 anos. 117 O site de incentivo ao hábito da leitura disponibiliza um jogo de perguntas e respostas sobre livros de literatura infantil e premia virtualmente as crianças de acordo com seu desempenho. 75 Figura 29 - Biblioteca infantil/Ludoteca Figura 30 - Caixa de devolução de livros infantis Retornei ao andar da grande varanda para conhecer as demais salas. Na chamada Sala Corpo um grupo de dança ensaiava uma coreografia. E na Cabine de Som e no Estúdio de Edição Audiovisual não havia ninguém. Reparei ainda que as duas salas não continham os respectivos equipamentos de som e edição. Um funcionário, então, logo me avisou: "Estas salas estão sem uso, não nos deram os equipamentos. Usamos, às vezes, como sala de reunião ou de estudo". Talvez percebendo a minha surpresa, o rapaz também contou que o quinto pavimento ainda não havia sido aberto ao público. Olhei o panfleto que tinha em mãos e que me guiava pelos andares. Nele, o quinto nível era apresentado como sendo composto por uma varanda, uma cozinha industrial118 e um 118 A cozinha industrial começou a ser usada somente em meados de 2014, período em que encerrei o trabalho de campo. Mulheres de diversas idades e jovens dos sexos feminino e masculino participavam das aulas ministradas por ecos-chefe. Presenciei uma aula que continha aproximadamente 15 integrantes no último dia em que estive na biblioteca. 76 restaurante, mas, por motivos não muito bem explicitados pela direção da biblioteca, o andar não estava sendo usado. As minhas primeiras impressões sobre o lugar pareciam abrir perspectivas interessantes de pesquisa. Salas sem uso ou com seu uso alterado, muitas crianças, poucos adultos, funcionários sendo chamados de 'tia' e 'tio' como se a biblioteca fosse uma escola. Tudo ali me fazia refletir sobre as muitas peculiaridades daquele equipamento cultural. 3.1 As Crianças Entrevistar crianças não foi uma tarefa fácil. Por conta da idade, os encontros, em muitos casos, duraram minutos, já que para eles os atrativos do espaço cultural eram mais interessantes do que o meu trabalho de campo. Considerei relevante coletar os relatos do público infantil quando pela observação participante constatei que o equipamento público era frequentado majoritariamente por crianças. Apesar das dificuldades encontradas, ora pela dispersão infantil, ora pela pouca desenvoltura ao falar, características da faixa-etária, considero que os depoimentos apresentados neste capítulo têm relevância para o estudo que me propus a realizar. O público infantil é maioria na Biblioteca Parque da Rocinha. Meninos e meninas com idades entre 6 e 12 anos circulam pelos andares do equipamento cultural, sobretudo após a hora do almoço, quando chegam da escola. Em pequenos grupos ou sozinhos, estes garotos e garotas buscam se entreter no espaço que oferece atividades, além de internet gratuita. Alguns ficam assistindo desenhos ou filmes no primeiro andar, onde há a DVDteca. Outros conversam na varanda e usam a Internet. Há aqueles que vão também ouvir histórias lidas pelos funcionários na Biblioteca Infantil ou Ludoteca. A circulação das crianças pelos setores acontece a todo momento. Aquele que não quer mais ouvir histórias pode sair da Biblioteca infantil e visitar outro setor a hora que quiser. Não há, portanto, a obrigatoriedade de ficar na atividade até o seu término e a própria direção da biblioteca destaca como sendo um diferencial do equipamento cultural está liberdade de ir e vir. A frequência de uso da Biblioteca Parque da Rocinha é significativa. Estes meninos e meninas passam, no mínimo, de duas a três horas por dia no equipamento 77 público. Algumas frequentam a biblioteca parque todos os dias de funcionamento119, outras vão duas, três vezes por semana ao espaço120. Poucos meninos e meninas entrevistados disseram frequentar a biblioteca parque aos sábados e domingos. Alguns justificaram o não uso nos fins de semana por conta de algum tipo de atividade esportiva ou de estudo: "No fim de semana não venho não, porque tenho natação" (Garoto, de 9 anos); "Venho todo os dias, menos segunda porque está fechada. Fico sempre até umas 17h. Só não venho final de semana." (Menino de 10 anos). Segundo alguns funcionários, a frequência de uso da biblioteca parque nos finais de semana também é menor, em alguns casos, porque os pais estão em casa e a programação fica a cargo dos adultos. Todas as crianças entrevistadas responderam morar nas proximidades da biblioteca parque121 e irem ao equipamento a pé. De acordo com alguns depoimentos, a biblioteca passou a dividir espaço com outras opções de lazer e diversão usualmente realizadas na favela. Ao serem perguntados sobre o que faziam antes do equipamento cultural ser instalado, muitos garotos e garotas disseram que brincavam em casa, nas ruas e praças, como contaram dois meninos entrevistados: "Eu brincava com os meus amigos ou ia para a casa do meu pai, que é separado da minha mãe e mora aqui ou na minha casa mesmo. Gosto muito de jogar videogame, bola no campo e de brincar com os meus amigos na rua (Garoto de 10 anos); "Eu brincava de pique esconde com os meus amigos perto de casa, na rua, numa praça que tem perto de casa" (Menino de 10 anos). Tanto por meio da observação participante como pelas entrevistas semiestruturadas pude constatar que a internet tem um papel significativo no cotidiano deste público. É interessante notar, por exemplo, que mesmo entre as crianças menores, com idades entre 6 e 7 anos, faixa-etária que pelas regras da biblioteca não tem acesso aos computadores, a tecnologia também é citada como sendo um dos principais atrativos do lugar. Como as normas estabelecidas permitem o uso da ferramenta apenas para crianças com idade acima de 8 anos, os menores acabam tendo que procurar outros atrativos. O fascínio deste público pela ferramenta chegou até a dificultar uma das entrevistas realizadas. Ao tentar conversar com um menino que estava no setor tive que 119 A Biblioteca Parque da Rocinha não funciona às segundas-feiras. Todas as informações sobre frequência têm como base os depoimentos dos entrevistados e a observação participante. 121 Locais de moradia citados: Cachopa, Vila Verde, Rua 1, Rua 2, entre outros. 120 78 pedir com muito jeito que o garoto olhasse para mim durante a execução das perguntas. O menino, de 10 anos, só se rendeu à solicitação quando disse que ele precisava me ajudar porque estava sendo muito difícil entrevistar as crianças. Só então, o garoto me contou que a internet era o que mais gostava na biblioteca e que, em seguida, vinham os filmes. As crianças com idade acima de oito anos usam o Facebook e gostam de jogar games. Por conta da dispersão dos meninos e meninas que utilizavam o computador por menos de uma hora122 e logo em seguida desejavam retornar para complementar o tempo máximo, foi estabelecida a regra de que todos os usuários que deixarem as máquinas após 20 minutos de uso não podem retornar a utilizá-las no mesmo dia. Segundo uma das funcionárias, a norma foi definida para organizar o uso da internet, tal a movimentação no setor. Apesar das regras estipuladas, se a área estiver vazia, o uso tende a ser um pouco mais flexível. De qualquer forma, não são abertas exceções para os casos em que as crianças não trouxerem as "carteirinhas."123 Foi possível identificar ainda que as crianças também optam por assistir a filmes e participar das atividades da Biblioteca Infantil e que a varanda também é considerada por elas um local importante de uso. Um dos meninos, de 10 anos, contou, por exemplo: "O que eu mais faço é ver filme, também gosto desta sala (biblioteca infantil) e da varanda porque lá a gente fica conversando". Outro garoto, com a mesma idade, citou ainda uma das atividades realizadas por um dos funcionários, que leva animais para mostrar às crianças. A ação de cunho ambiental propõe aproximar as crianças do universo dos "bichos" e das plantas. "Gosto dos animais que o tio trás. Ele trouxe um biólogo, que tinha uma jiboia e outro dia trouxe um coelho. Ele lê uma história e depois mostra o animal". Os relatos deste público também permitiram um entendimento maior sobre a relevância da biblioteca no contexto da favela. Os garotos e garotas disseram achar o equipamento cultural importante porque este reúne "muitas crianças", é "bonito", "grande" e "divertido". O fato da biblioteca parque congregar outras pessoas da mesma idade foi mencionado pela maioria dos entrevistados como um aspecto positivo, o que 122 Segundo um dos funcionários, a definição de uma hora de uso busca estimular o uso dos demais setores da biblioteca. 123 As carteirinhas são feitas no setor de livros. 79 indicou que o equipamento cultural é reconhecido por estas crianças como sendo um ambiente de trocas e de convivência importante. Já a menção ao aspecto físico associado à amplitude de área e à característica estética do lugar revelou ainda que a biblioteca parque é entendida por alguns como um local diferenciado no cenário da favela, talvez pelo fato do espaço cultural se distanciar, em certos casos, da estética da comunidade, associada (pelo menos em suas fachadas)124 à uma carência material. Digo isso porque durante as entrevistas semiestruturadas um dos meninos mencionou, inclusive, que quando ficava na biblioteca parecia que "nem estava na favela". O único setor da Biblioteca Parque da Rocinha que apresenta uma programação de atividades específicas para crianças é a Biblioteca Infantil ou Ludoteca. Nela, meninos e meninas de até 10 anos são estimulados a ler e a se aproximar do universo da leitura por meio de oficinas de contação de histórias, entre outras ações. Dois funcionários da biblioteca que ocupam o cargo de Mediadores de Leitura125 se alternam nas atividades para dar conta do número de crianças, que dependendo do horário, sobretudo à tarde, cresce consideravelmente. Como já dito em capítulos anteriores, o estímulo à leitura é uma prioridade da rede de Bibliotecas Parque do Estado do Rio de Janeiro. A escolha intencional de dar ao equipamento público o nome de biblioteca e não de centro cultural também aponta para esta perspectiva de atuação126. Ao longo do trabalho de campo presenciei algumas dinâmicas desenvolvidas pelos funcionários do setor. Em uma delas foi realizada uma conversa com leitura sobre o livro "A Biblioteca do Mundo". Com muitas imagens e um texto curto, a publicação que dá exemplos variados de bibliotecas existentes no planeta tinha o objetivo de atrair o interesse daquelas crianças para o tema "livro". Os meninos e meninas foram estimulados a falar sobre a publicação após o término da leitura e a dizer o que mais gostaram sobre o que aprenderam. Em certos momentos, algumas crianças leram alguns trechos da publicação em voz alta. 124 Cabe ressaltar que a concepção do favelado carente materialmente tem mudado, por isso entendo que é preciso relativizar o tema no ambiente da favela, sobretudo na Rocinha, onde a estratificação social é considerável. Verifica-se, por exemplo, que muitas moradias, apesar de não contarem com nenhum revestimento externo chamam a atenção pela "riqueza" interna, que reúne objetos de consumo como TVs, computadores, aparelhos de som e ares-refrigerados. 125 Os Mediadores de Leitura da biblioteca são, em sua maioria, formados em Teatro, História da Arte e Pedagogia. 126 Como avalia Feitosa, a mítica em relação ao livro que remete ao "conhecimento", à "sabedoria," à "erudição" ainda se mantém viva. "O livro, como símbolo maior da biblioteca, traz consigo as marcas profundas da representação que sempre desencadeou no processo civilizatório" (1998:76). 80 Durante o tempo que passei observando o uso da Biblioteca Infantil pude verificar que a porta do espaço fica sempre aberta, e que as crianças podem entrar e sair a todo o momento. Apesar da liberdade de ir e vir, os Mediadores de Leitura tentam a todo instante entreter os meninos e meninas que se dispersam naturalmente pela própria característica da idade. Durante a leitura do livro sobre a história das bibliotecas, por exemplo, alguns meninos e meninas saíram da sala, outros decidiram brincar com alguns objetos de madeira e alguns preferiram desenhar. Enquanto isso, apenas três crianças continuaram a prestar atenção no funcionário que era chamado repetidamente de 'tio'. Além das atividades que ocorrem espontaneamente nos momentos em que a Biblioteca Infantil recebe crianças, os Mediadores de Leitura definem dias e horários específicos para realizar determinadas ações. Algumas programações não ocorrem por falta de quorum, já que as crianças não têm o costume de verificar os horários das atividades e acabam participando aleatoriamente do que acontece na biblioteca127. Por outro lado, há situações em que estes funcionários vão aos demais setores, sobretudo ao da internet e ao de filmes, para convocar os meninos e meninas a participar das ações previstas. O público infantil também é convidado a se envolver nas oficinas programadas para os alunos das creches128 que funcionam no entorno do espaço cultural. Se uma contação de história acontece no auditório para crianças de uma instituição de ensino, por exemplo, os garotos e garotas que estão na biblioteca também são chamados a assistir a apresentação. 3.1.1 A ausência dos pais São poucos os meninos e meninas levados ao espaço cultural pelos pais. Nota-se que mesmo crianças com idade entre 7 e 8 anos chegam ao equipamento público sem os responsáveis, trazidas por irmãos mais velhos, mais que também são pequenos, com idade entre 8 e 12 anos. A ausência materna ou paterna ou mesmo de outros responsáveis é justificada pelas crianças pelo fato dos pais trabalharem. Além disso, segundo alguns relatos, os pais deixam seus filhos frequentarem a biblioteca sozinhos 127 128 Este tema também será abordado com mais detalhes nos trechos a seguir. O tema da visita das creches à biblioteca será explorado mais adiante. 81 porque acreditam que o local é mais seguro do que "ficar na rua". A biblioteca também é entendida como um ambiente adequado para que os filhos ocupem o tempo, se divirtam e realizem atividades diversas no período da tarde. A segurança parece ser um dos fatores que balizam a decisão de alguns pais e parentes de permitirem que as crianças fiquem sozinhas na Biblioteca Parque da Rocinha, como demonstra este depoimento de uma menina, de 9 anos: Antes dela começar a funcionar eu ia para o reforço escolar, mas agora eu venho para cá. Minha mãe me tirou do reforço porque aconteceu um negócio chato, aquela menina, a Rebeca, ela foi estuprada. Aí, minha mãe ficou com medo e me tirou. Agora tenho vindo para cá, é mais perto de casa, posso vir sozinha porque meus pais ficam trabalhando. (Menina, de 9 anos). O fato da criança dizer que a mãe se sente mais segura quando ela fica na biblioteca e não na rua sugere interpretações. Pode-se suspeitar que a "rua" no contexto da cidade esteja sendo entendida como lugar "perigoso129", já que o ambiente urbano em contraposição à ideia de casa (lugar familiar e acolhedor) é percebido pelo sensocomum como espaço "sombrio" e "duvidoso". Como destacou Da Matta, "se a casa distingue esse espaço de calma, repouso, recuperação e hospitalidade, enfim, de tudo aquilo que define a nossa ideia de "amor", "carinho" e "calor humano", a rua é um espaço definido precisamente ao inverso. Terra que pertence ao "governo" ou ao "povo" e que está sempre repleta de fluidez e movimento. Lugar perigoso" (1997:40). É interessante notar ainda que a questão da segurança na favela foi mencionada espontaneamente pelos meninos e meninas em referência também à preocupação familiar relativa ao horário de retorno das crianças para casa. Neste caso, os depoimentos parecem revelar o receio que alguns moradores da favela têm em relação a possíveis confrontos entre traficantes e policiais e/ ou outros tipos de perigo já que "enquanto uma incursão policial na favela pode produzir certa sensação de segurança entre os moradores dos bairros de classe média localizados em seu entorno, essa mesma 129 Cf. POE, Edgar Allan. O Homem na multidão. 1840. 11 p. 82 operação costuma produzir momentos de profunda apreensão entre os moradores da favela" (Burgos et al, 2011:59). Como contou um garoto de 10 anos, não chegar em casa na hora é motivo de repreensão: "Chego aqui umas 15h e fico até às 18h. Minha avó fica preocupada. Tenho que voltar nesse horário se não fico de castigo e não posso brincar o resto do dia". Outro garoto, de 9 anos, também comentou: "Venho para cá sozinho e passo a tarde aqui. Aí, depois eu volto para casa. Quem cuida de mim é a minha tia e não posso ficar até muito tarde porque é perigoso". O aspecto da segurança também esteve associado ao fato da biblioteca ser reconhecida como um local acolhedor do ponto de vista afetivo, seja na perspectiva individual destes meninos e meninas seja por meio do relato destas crianças sobre a visão de seus pais. Neste sentido, a ideia de "casa" retorna à cena sendo uma das representações da biblioteca. É interessante perceber, por exemplo, que muitos funcionários chamam estes meninos e meninas pelos nomes e apelidos e que, em muitos casos, o público infantil considera a equipe de profissionais da biblioteca o "melhor" que o espaço cultural oferece. Entre os depoimentos destaco aqui o de dois meninos. "Gosto muito do tio X e do Y e eles conhecem a minha mãe e meu pai, eles são muito legais, cuidam da gente." (Garoto de 10 anos). Outro disse: "Os funcionários daqui são muito bons, tratam a gente muito bem. Vim na biblioteca porque um deles que mora aqui na Rocinha me chamou."130(Garoto de 11 anos). Além dos fatores relacionados à questão da segurança, um dos relatos chamou a atenção por associar também o uso do equipamento cultural à economia doméstica. Uma das usuárias contou que por conta da instalação da biblioteca a mãe havia deixado de pagar uma moça para cuidar dela enquanto trabalhava. Neste caso, tanto a questão financeira como a de segurança influenciaram na decisão materna. A menina, de 10 anos, foi orientada a não sair do espaço cultural até o retorno da mãe à Rocinha. Ela contou: Eu fico aqui e gosto bastante. Minha mãe prefere a eu ficar em casa 130 A divulgação da biblioteca tem sido feita basicamente por meio de "boca a boca". Tanto internamente como nos arredores do equipamento cultural crianças, jovens e adultos são incentivadas pelos funcionários a usar o espaço em suas variadas possibilidades. Segundo os funcionários, como o público infantil procurou espontaneamente a biblioteca, a faixa-etária é entendida como uma ferramenta de prospecção de novos usuários seja no ambiente familiar, seja entre amigos. 83 sozinha, eu também não posso ficar na rua. Ela pagava uma pessoa para ficar comigo, mas com a biblioteca deixou de pagar e me deixa aqui. Eu gosto porque tem muita criança. Depois de passar o dia minha mãe me busca e a gente vai para casa. Nota-se pelos exemplos citados que a Biblioteca Parque da Rocinha parece cumprir um papel importante na rotina não só das crianças que frequentam o equipamento público, mas no cotidiano dos pais na medida em que o espaço é considerado, com base nos depoimentos destes meninos e meninas, um local mais seguro e apropriado para deixar os filhos, além de ser uma alternativa para aqueles que precisam se ausentar para trabalhar. Deste modo, pode-se concluir que as funções planejadas a priori para a biblioteca, de atender ao público-usuário por meio de atividades diversificadas, se amplificaram, sendo transformadas, ressignificadas no contexto sociocultural da favela. Tal configuração pode ser compreendida a partir da reflexão de Michel de Certeau, para quem as maneiras de fazer "constituemas mil práticas pelas quais os usuários se (re)apropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural” (1998:14). Nesta perspectiva, portanto, a Biblioteca Parque da Rocinha se afirma para seus usuários (diretos e indiretos)131 de inúmeras formas, ora como espaço de entretenimento e lazer, pela própria função da unidade; ora como ambiente afetivo e de vigilância, já que a questão da segurança também está relacionada ao fato do equipamento cultural representar um ambiente familiar e acolhedor; ora como lugar "neutro" do ponto de vista da violência, ora como alternativa econômica, ocupando significados variados, nas distintas situações vivenciadas por seus usuários. Como ressalta de Certeau, ao consumir, usar ou utilizar, o homem, também fabrica, sendo esta "maneira de fazer" um ato de manipulação, apropriação ou (re)apropriação criativa dos usos, "segundo seus interesses próprios, suas próprias regras" (1998:40). É interessante perceber ainda que a questão da ausência dos pais, além de influir no uso do equipamento público é também fator gerador de tensões e discordâncias no ambiente da biblioteca sendo entendido por muitos pais acompanhantes como uma situação de "descaso" e de "falta de responsabilidade" em relação às crianças. As poucas 131 Considero nesta análise que as crianças são usuárias diretas do equipamento e os pais são usuários indiretos já que a Biblioteca Parque da Rocinha também cumpre uma função no cotidiano destes familiares. 84 mães encontradas no equipamento cultural e que estiveram disponíveis para participar das entrevistas questionaram a ausência dos familiares. Uma mãe, ao ser perguntada sobre o que achava, disse: Trago ela de vez em quando, mas nem sempre. Agora que vou começar a trabalhar só vou poder trazer ela no sábado. Tem muita criança pequena que vem sozinha, mas eu não gosto e meu esposo não deixa. Ela é pequena, achamos perigoso. Tem que vir acompanhado com alguém, não pode ser assim. (Mãe de uma menina de 9 anos). Outra, que estava no equipamento apenas para devolver o livro que a filha havia pego emprestado afirmou: "Muitas mães trabalham, mas tem aquelas que ficam no bar e não querem saber dos filhos". (Mãe de uma menina de 15 anos). A ausência dos pais também foi comentada de forma espontânea por uma das funcionárias do equipamento cultural. Ela chegou a questionar, incomodada, o papel da biblioteca, que segundo sua visão, é confundida pelos pais, que a entendem como uma extensão da "escola".132 Estas mães deixam os filhos aqui e vão trabalhar. Acho isso muito preocupante porque estas crianças passam a tarde inteira aqui, entram, saem, sobem, descem. Nós não temos como cuidar delas a todo o momento, são muitas crianças. Também acho que não é este o nosso papel. (funcionária da biblioteca). 3.1.2 Como se estivesse num shopping Segundo funcionários da Biblioteca Parque da Rocinha que participaram do início do funcionamento do equipamento cultural, as crianças chegaram ao espaço espontaneamente, mas a equipe de funcionários precisou realizar um trabalho de "adequação" para que muitos meninos e meninas se adaptassem à proposta do local. Como é característico do público infantil brincar ao ar livre, sobretudo na favela, muitos 132 As tensões relativas ao papel da biblioteca serão desenvolvidas nos trechos a seguir. 85 garotos e garotas chegavam à biblioteca descalços e sujos. A falta de familiaridade com o ambiente da biblioteca, já que a Rocinha nunca havia recebido um equipamento cultural do gênero, gerava desconforto em relação a certas condutas como gritar, correr pelos andares, usar roupas sujas. A equipe de funcionários, entre eles moradores da favela, iniciou, então, uma aproximação "cuidadosa" para não afastar o público infantil da biblioteca. A maneira encontrada de fazer com que estas crianças mudassem seus hábitos foi transformar a ida ao equipamento cultural num "evento especial". Para convencer as crianças em relação à nova conduta foi usada a metáfora da "ida ao shopping". Como relatou uma das funcionárias: Quando nós inauguramos, os primeiros a chegar foram as crianças. Só que eles chegavam... como posso dizer...eles não sabiam utilizar o espaço, não tinham noção de como usar o acervo, de várias coisas. Havia crianças que vinham urinadas, que vinham muito mal tratadas, que falavam alto, que corriam, que já entravam aqui correndo. E nós fizemos um trabalho muito bacana de acolher essa criançada, orientando quanto ao uso do espaço e a como se comportar. Tanto que hoje você não vê crianças gritando. Hoje elas chegam aqui arrumadinhas, como se elas fossem ao shopping, ao cinema. Lembro que eu gostava de dizer a elas: 'Olha, isso aqui é o point, é como se você estivesse indo ao shopping. Você vai vir pra cá, vai trazer seus coleguinhas, seus amigos de outro bairro, vai vir arrumado, de banho tomado'. Para formalizar os códigos de conduta que deveriam ser seguidos no equipamento cultural, o Governo do Estado produziu também material informativo. Os folhetos foram distribuídos internamente na biblioteca. Um deles133 dizia o seguinte: Pode se vestir no seu estilo, só não pode entrar sem camisa ou com roupa de banho. Pode conversar! Mas sem falar alto, para não atrapalhar os outros. Pode se conectar à internet, é grátis! Pode entrar com celular, é só colocar no silencioso (...). 133 O material continua sendo distribuído. As normas são divulgadas em todas as bibliotecas parque do estado. 86 Com base nos relatos apresentados, nota-se que a instalação da Biblioteca Parque no contexto social da favela da Rocinha produziu mudanças na rotina destas crianças bem como na forma de utilização do equipamento público. A pouca familiaridade e a não assimilação de regras usualmente seguidas no contexto da cidade em unidades públicas ou privadas como bibliotecas, museus, galerias de arte e centros culturais por parte destas crianças impôs, segundo as expectativas dos funcionários e da biblioteca como instituição, a necessidade de explicitar que aquele espaço possuía códigos de conduta134 que deveriam ser seguidos. O depoimento da funcionária, neste sentido, sobretudo quando a profissional cita a questão da vestimenta e da higiene demonstra que existem dois códigos de conduta conflitantes. Enquanto para os funcionários a biblioteca representa um lugar diferenciado no contexto social da favela da Rocinha, para as crianças 'reverenciar' a instituição biblioteca135 não faz nenhum sentido. Nesta perspectiva, há, portanto, dois ethos136 em conflito, já que o espaço cultural das bibliotecas é composto de símbolos específicos, não assimilados pelas crianças da favela. 3.1.3 Flexibilização das normas de uso Nota-se pela especificidade do público da Biblioteca Parque da Rocinha que houve também uma adequação do equipamento cultural no sentido de atender à demanda infantil. Ao pesquisar sobre as regras de uso de outras bibliotecas, inclusive bibliotecas parque como a de Niterói137 e a localizada no Centro,138 verifica-se que, na maioria dos casos, os equipamentos públicos do gênero só aceitam crianças 134 Segundo Norbert Elias, "O que achamos inteiramente natural, porque fomos adaptados e condicionados a esse padrão social desde a mais tenra infância, teve, no início, que ser lenta e laboriosamente adquirido e desenvolvido pela sociedade como um todo (...)". (1994:82). 135 "Na verdade, a biblioteca ainda é percebida, por grande parcela da sociedade, como símbolo de poder e erudição (...)" (Mueller, 1990:16 apud Feitosa 1998:47). 136 Como afirma Clifford Geertz: "O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético e sua disposição; é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete (...)".(2008:93) 137 Na Biblioteca Parque de Niterói a informação dada pelo funcionário foi a de que o uso só é possível se a criança estiver acompanhada de um responsável. 138 Na Biblioteca Parque Estadual a informação dada pelo funcionário foi a de que o uso só é possível se a criança estiver acompanhada de um responsável. 87 acompanhadas de algum responsável. Ficou evidente, portanto, que no caso da Biblioteca Parque da Rocinha foi necessário flexibilizar a exigência da presença dos pais no espaço, já que a rigidez normativa inviabilizaria o projeto na favela. O fato de, no contexto sociocultural local, a grande maioria dos pais trabalharem fora e estes meninos e meninas já terem o costume de circular sozinhos pela favela nas imediações de suas moradias impôs uma outra maneira de tratamento da questão do acesso ao equipamento cultural. O interessante é que, neste caso, o contexto específico da favela da Rocinha, os hábitos e formas de vida na localidade impuseram a necessidade de uma reformulação do "planejado". Novamente as ideias de Michel de Certeau nos auxiliam na interpretação deste fato. Para o autor há uma produção "qualificada de consumo" que "(...) se insinua ubiquamente silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante" (1998:39). Nesta perspectiva, é possível afirmar que a especificidade da favela da Rocinha tornou imperativa a necessidade de adaptação, não do usuário, neste caso, mas da biblioteca. Como já apontou Feitosa (1998), se a biblioteca pública precisa servir às necessidades de seus usuários, é fundamental que esta busque compreender as especificidades do local onde está inserida para melhor atendê-los. Neste sentido, um novo contrato social precisou ser posto em prática para que a biblioteca pudesse fazer "sentido" naquela cultura local. Como avalia o autor: "A abertura de diálogo entre as partes inicia-se com a biblioteca, oferecendo-se ao público potencial, conhecendo-o em sua complexidade sociocultural e mostrando-se a ele como aliada." (1998:40) Vale ressaltar também que para garantir um maior controle em relação à presença destas crianças na Biblioteca Parque da Rocinha, a equipe de funcionários adotou um sistema de cadastro com nome, endereço e telefone. A listagem criada teve a finalidade de garantir um maior domínio sobre este público com o objetivo de evitar situações de desgaste, caso a criança se machuque ou mesmo quando esta apresentar algum comportamento inadequado recorrente que altere substancialmente a rotina na biblioteca, dificultando o trabalho de funcionários ou mesmo interferindo no bem estar dos demais usuários. É interessante perceber ainda que o mesmo sistema de cadastro adotado na biblioteca se assemelha, de certa forma, ao usado pelas instituições escolares, onde as crianças também permanecem sem os pais e onde os adultos 88 (professores) são nomeados de "tio" e "tia", como ocorre na biblioteca. De fato, relatos de crianças indicaram que o público infantil reconhece a Biblioteca Parque da Rocinha como uma extensão do universo escolar/ educacional139. Num dos depoimentos, por exemplo, um dos meninos trocou a palavra 'funcionário' por 'professor'. No outro, um garoto disse: "Aprendo muitas coisas na biblioteca, a respeitar os outros, a ser sincero, a ler direito porque tenho um pouco de dificuldade". De fato, o equipamento cultural se insere no contexto educativo, já que educação e cultura assumem em determinados contextos o mesmo significado, de conhecimento e/ou informação adquirida por meio do estudo ou da experiência. Por outro lado, nota-se, em certos casos, uma superposição de papéis já que "teoricamente" o aprendizado da leitura deveria ocorrer na escola.140 3.2 Adolescentes O público adolescente vai à Biblioteca Parque da Rocinha assiduamente. Estes jovens com idade entre 13 e 18 anos costumam usar a internet, se reunir na varanda, pegar livros, participar dos cursos oferecidos, não necessariamente nesta ordem de preferência. Durante o trabalho de campo foi possível constatar também que há adolescentes que participam de grupos de dança e teatro141 que usam o espaço cultural para ensaios. A constância de uso da Biblioteca Parque da Rocinha é bem diversificada. Alguns a frequentam de duas a três vezes por semana, outros apenas uma vez porque estudam e trabalham. A média de horas de uso diário relatada foi de aproximadamente três horas142. O uso aos sábados e domingos não é significativo. Do mesmo modo que as crianças, muitos adolescentes ocupam os fins de semana com cursos realizados fora da favela. Há aqueles que citaram ainda que preferem ficar em casa ou sair com os amigos, já que não precisam ir à escola. Outros afirmaram que apenas vão à biblioteca nos fins de semana quando têm ensaios. Pode-se constatar que apesar da maioria dos jovens residirem nas proximidades 139 Este tema será abordado com detalhes adiante. Não explorarei a complexa temática da leitura ou do ensino formal no Brasil, pois considero que este assunto, apesar de sua relevância no contexto nacional, não faz parte do meu foco de análise. 141 Não tive acesso ao número de grupos artísticos que usam a biblioteca. 142 Informações baseadas nos depoimentos. 140 89 da biblioteca, há aqueles que também moram em áreas mais distantes como, por exemplo, o Largo do Boiadeiro e a localidade Roupa Suja.143 Em alguns destes relatos, o uso de mototáxis também foi apontado como forma de chegar de maneira mais rápida à biblioteca parque. Alguns entrevistados relataram ainda que em determinadas localidades da favela há pessoas que não sabem da existência do equipamento cultural. Uma das usuárias, de 16 anos, que reside na parte baixa da comunidade, contou: "A gente que mora lá embaixo não sobe muito para cá. Algumas crianças que moram lá não conhecem aqui. Elas falam: 'Aonde que é?' Eu falo assim: 'Tu não conhece'?" A leitura foi citada diversas vezes por estes jovens como uma prática, contrariando a ideia do senso-comum144 de que adolescentes moradores da favela ou de classe média baixa não têm o costume de ler. A maioria dos entrevistados disse realizar leituras no espaço cultural, mas grande parte dos depoimentos revelou que estes jovens preferem levar os livros para casa. Também foi interessante constatar que em certos casos o interesse pela leitura aconteceu somente após a inauguração do equipamento público. Entre os motivos citados estiveram a diversidade do acervo, que apresenta publicações de ficção em contraposição às leituras oferecidas na biblioteca escolar. Uma das jovens entrevistadas, de 15 anos, contou: No início, quando a biblioteca foi aberta eu não gostava muito de ler, mas eu vinha para mexer com o computador porque na época eu não tinha acesso à internet e eu morava em outro lugar da Rocinha. Via vídeos também e comecei a trazer muitas amigas pra cá, para conhecer. Até hoje a gente vem para fazer dever de grupo e tudo o mais, só que com o tempo eu comecei a gostar de ler e agora eu venho aqui para pegar livro (...) e às vezes para conversar. Também fico na varanda ou lá embaixo, sempre conversando. Aqui de alguma forma é bom, porque existem muitos cursos. Outra moça, de 17 anos, afirmou que sempre teve o hábito da leitura, mas que a Biblioteca Parque da Rocinha facilitou o acesso a livros "mais interessantes": "Gosto de 143 Área fica localizada na parte alta, na lateral do túnel Zuzu Angel. Autores como Machado da Silva (1967), Perlman (1977) e Valladares (2005), entre outros, já discorreram sobre a visão discriminatória e homogeneizante em relação às favelas e ao favelado. 144 90 ler e aqui na biblioteca tem mais variedade, os livros são mais legais do que os da escola". Apesar dos relatos indicarem que os adolescentes usam o acervo físico de títulos da Biblioteca Parque da Rocinha e de que a instalação do equipamento cultural na favela estimulou, para alguns, o desejo pela leitura não foi verificada a existência de atividades para jovens com foco na formação do leitor no período em que realizei o trabalho de campo. O estímulo à leitura e a escrita, no caso deste público, acaba acontecendo por meio dos cursos ofertados que estimulam a "leitura de mundo" em diferentes formatos e suportes e a produção criativa seja em texto, imagem e/ou audiovisual. 3.2.1 Socialização e coletividade As oficinas oferecidas na biblioteca parque também atraem muitos adolescentes. Os cursos, normalmente de curta duração, estão inseridos no programa da Secretaria de Cultura chamado Favela Criativa, no qual Organizações Não-Governamentais (ONGs) se inscrevem145 para executar as oficinas. Durante o trabalho de campo tive acesso as oficinas "Jovens Turistas", "Regiões Narrativas", "Setor X" e a de música. A primeira tem o objetivo de "ampliar a visão de mundo do adolescente e sua habilidade de contar histórias por meio de (atividades) que envolvem viagens, criação de textos e reflexões sobre estas vivências146". Já a segunda oficina acontece em três módulos, cada um com três meses de aula, sendo uma por semana. A atividade inclui os cursos de Animação, Fotografia e Cinema documentário. Não é obrigatória a participação em todos os módulos147. A proposta do Laboratório Editorial Setor X,148 é a de familiarizar os alunos com as técnicas que envolvem a produção de uma revista impressa.149 Na atividade de música150 são oferecidas aulas de instrumentos como violão, cavaquinho, pandeiro, flauta, clarinete/sax e bandolim, além da prática de conjunto e de apreciação musical. 145 Estas ONGs são convocadas por meio de edital. Trecho retirado do folder da biblioteca sobre as atividades do mês de Março de 2013. 147 Retirado do site www.regioesnarrativas.com.br (Acesso em 17 de fevereiro de 2015) 148 Retirado do site http://www.setorx.com/ (Acesso em 17 de fevereiro de 2015) 149 Tudo é feito pela equipe de alunos enquanto aprendem técnicas de edição, além de estilo de texto e desenvolvimento de pautas. 150 Retirado do site www.facebook.com/musicanasbibliotecas (acessado em 17 de fevereiro de 2015). 146 91 Para os adolescentes, os cursos desenvolvidos na biblioteca proporcionam conhecimentos, ocupam o tempo e são uma boa oportunidade para conhecer pessoas. Os depoimentos apontam que a socialização parece ser um dos fatores que fortalecem o desejo destes rapazes e moças de frequentarem a Biblioteca Parque da Rocinha. A maioria dos jovens usou, nos relatos, palavras como "grupo", "colegas", "pessoas legais". Olha, eu amo vir para esse curso, de paixão mesmo, porque as pessoas são muito gentis, e as aulas muito divertidas. Aprendo bastante, está sendo muito bom. Mais tarde quero fazer outros cursos porque acho importante e gosto de conhecer pessoas. (Moça, de 17 anos) Também chama a atenção a quantidade significativa de grupos artísticos que utilizam a biblioteca parque para ensaios. As companhias, formadas por adolescentes e adultos, encontram no equipamento cultural um lugar mais adequado para a realização de suas atividades. Segundo os jovens integrantes de grupos artísticos, o equipamento cultural oferece boa estrutura para os ensaios, já que o ambiente possui ar-condicionado e pode ser usado nos dias de chuva. Antes do equipamento cultural ter sido instalado, muitos grupos artísticos ensaiavam ao ar livre, em galpões, na praia, ruas e lajes151. Mas a função da biblioteca vai muito além de ser apenas um espaço para ensaios. É no equipamento público que estes jovens interagem e têm a possibilidade de se conhecer melhor e trocar ideias. Neste sentido, a biblioteca cumpre um papel importante ao propiciar a reunião de vários jovens com os mesmos interesses artísticos. Além dos cursos e dos grupos de teatro e dança propiciarem a estes jovens aprendizado e socialização no contexto sociocultural da favela, o espaço físico da varanda também favorece a convivência destes adolescentes. O lugar foi citado por eles como "local de encontro", "de troca", "lazer", e de "diversão" propiciada pela interação com o "outro" ou "os outros". Tanto os jovens, de forma geral, como os membros dos grupos artísticos entendem a varanda como um importante espaço de convivência. Muitos adolescentes saem da escola e vão conversar na varanda, após o período escolar, antes mesmo de passar em casa. Além disso, as moças e os rapazes envolvidos com as 151 Este tema será desenvolvido com mais detalhes a seguir. 92 companhias de teatro e dança aguardam o horário dos ensaios na varanda chegando até a ensaiar coreografias no local. Temos aula terça e quinta, mas também fazemos reuniões de grupo para planejamento. Gosto muito do teatro, me faz muito bem. Encontrar com os colegas do grupo também é muito bom para poder bater papo com o pessoal, normalmente a gente faz isso na varanda. (Rapaz, de 16 anos) Com base nos relatos bem como nas práticas observadas, constata-se que a biblioteca se apresenta como lugar de reunião, de convivência, e como um ambiente de "troca" onde se configuram laços de sociabilidade, formas de individuação e de produção da subjetividade, já que é neste ambiente que as relações humanas se desenvolvem, e com elas surgem concepções de mundo bem como valores são descartados e outros reforçados. Vale ressaltar também que, por outro lado, a ideia de "convivência", "reunião," "encontro" estabelece ainda ligação intrínseca com a de "comunidade" e de reforço do sentido de coletividade, elemento que nas sociedades contemporâneas foi enfraquecido pela crescente individualização e fragmentação social (Velho, 2000). Neste sentido, portanto, a ideia de lazer teria uma acepção mais ampla, não sendo apenas entendida como mero meio de tornar a vida mais prazerosa. Como definiu Mascarenhas, o lazer: É um fenômeno tipicamente moderno, resultante das tensões entre capital e trabalho, que se materializa como um tempo e espaço de vivências lúdicas, lugar de organização da cultura (...). Desta forma, dentro de uma perspectiva crítica e de emancipação dos grupos populares, o lazer pode ser entendido também como tempo e espaço para o exercício da cidadania e prática da liberdade (2000:58 apud Silva &Virsiani, 2011). Ou como ressaltou Peres: (...) Ao ser tomado como uma forma de expressão cultural, o lazer, se por um lado pode ser visto como mecanismo de homogeneização ou 93 difusor/reprodutor do status quo, apresenta, ao mesmo tempo, o potencial de suscitar e expressar diversas formas de sociabilidade e de reciprocidade, dado seu caráter relacional, educativo e crítico-reflexivo. (2009:17). A relevância da Biblioteca Parque da Rocinha também parece ser reforçada, ao mesmo tempo, pela situação de escassez de espaços de convivência e de lazer "convidativos" nas favelas e periferias cariocas. (...) faltam áreas de lazer. Os espaços coletivos, quando existem, não são seguros ou são mantidos em condições de uso: mães não dispõem de um local para as crianças tomarem sol ou brincarem; crianças e adolescentes não têm espaços para brincarem ou praticarem esportes. Não dispõem, assim, de locais para desenvolverem regras de competição e de cooperação. O meio ambiente não permite prazer estético, ou seja, os espaços coletivos, além de insuficientes, são tão desagradáveis que agudizam o estresse. Impossibilitam um lazer saudável e também possuem uma carga simbólica: são ambientes desvalorizados, carregados de conotação – simbolizam a desvalorização que se atribui a seus moradores (...) são de aparência árida – sem áreas verdes e vegetação (...) de características pouco atraentes para quem nele mora e trabalha. (Cardia, 1998:136). Neste sentido, pode-se afirmar, portanto, que a Biblioteca Parque da Rocinha preencheu dentro da favela, para os jovens que usam o equipamento cultural, o papel de lugar de encontro, diversão, de área de descanso, pausa e contemplação, de "praça", onde é possível se reunir, conversar, trocar ideias e informações e fortalecer relações sociais com seus pares. 3.2.2 Biblioteca: influência benéfica para as crianças Os relatos sobre a relevância do equipamento cultural no contexto da favela também possibilitaram uma leitura mais rica em relação à percepção destes jovens sobre a biblioteca. É interessante notar que grande parte dos depoimentos mencionaram também a questão da violência na favela. Uma das jovens entrevistadas, por exemplo, 94 ao ser perguntada sobre a representatividade da biblioteca no cenário local disse que o equipamento cultural trazia "esperança" à comunidade: Acho que é esperança. Porque geralmente aqui tem muita violência. Acho que esta biblioteca mudou muito a vida de muita criança aqui. Porque antigamente a gente via muita criança na rua pedindo dinheiro, fazendo baderna, fazendo o que não deve. Agora eu não vejo tanto. As crianças agora só sabem falar da biblioteca. (Moça, de 17 anos) A mesma adolescente, ao ser questionada sobre a representatividade do espaço cultural para os jovens da Rocinha respondeu: "Ah, para educação, né? Para o futuro, quando tiver... Sei lá! Filho, aprender, dizer, educar, saber como fazer isso. Até para os adultos também é importante vir. Ler mais, conhecer outro universo que eles não conhecem". Outros depoimentos também apresentaram o mesmo viés de percepção sobre a relevância do equipamento cultural no contexto da favela de São Conrado. Novamente houve menção à questão da violência. Uma das adolescentes afirmou: Tem (importância) porque de alguma forma influencia as pessoas a lerem porque as pessoas vêm os livros, sabe? Influencia as pessoas a tomarem também outro rumo na vida, porque aqui tem muitos cursos. As pessoas no lugar onde a gente vive são direcionadas. Tem gente que diz que até quem mora na favela é preconceituoso. Não é preconceito. É porque a gente vê as pessoas com armas, bandidos, policiais e tudo mais. E acho que as crianças daqui (da biblioteca) conseguem ver o outro lado da vida que elas podem ter, sabe?" (Moça, de 15 anos) Outra tendência verificada nas respostas foi a de mencionar as crianças mesmo que a pergunta sobre a importância da biblioteca na favela não focasse em nenhum público usuário específico. Um rapaz, por exemplo, contou: "Acho muito importante porque ao invés das crianças estarem na rua fazendo o que não devem, elas estão mexendo na internet, indo ao teatro, pegando livro, esperando serem atendidas aqui". O 95 mesmo justificou a menção ao público infantil da seguinte maneira. "Porque acho que o jovem já tem uma mentalidade a mais que: 'Ah, não posso fazer coisa errada', as crianças também têm, mas é aquele negócio, precisam de uma atenção maior". Com base nos relatos apresentados, fica evidente que a violência na favela da Rocinha, gerada pelo confronto entre traficantes de drogas e a polícia, preocupa os moradores da comunidade, sobretudo quando se pensa nas crianças, indivíduos em formação, que, na visão dos entrevistados, não têm o devido discernimento em relação as categorias "certo" e "errado". Também não é novidade que o tráfico de drogas em diversas favelas do Rio de Janeiro, apesar de suas especificidades, arregimenta menores para suas ações e que no contexto do tráfico de drogas há uma inversão de papéis sociais sendo a posição do traficante, muitas vezes, almejada, já que a participação nesta organização é vista, em muitos casos, como forma de ascensão social e prestígio e como alternativa para remediar a pobreza. Neste sentido, o contexto de violência152 nas favelas "altera as redes de reciprocidade e solidariedade ou ainda o sistema de valores compartilhados entre moradores de tais comunidades." (Zaluar, 1997 apud Peres, 2009:23). Vale lembrar ainda que o trabalho de campo realizado para esta dissertação ocorreu em meio ao "processo de pacificação" na favela de São Conrado e que o discurso governamental de "levar a paz" a territórios conflagrados, no caso da Rocinha, incluiu como consequência da ação de Segurança Pública, a instalação da biblioteca parque como se a "agenda de direitos dos moradores de favelas" se confundisse com o discurso da "pacificação" promovido pela policialização de territórios populares" (Burgos et al 2011:55). Entretanto, em todas as entrevistas realizadas, nenhum jovem mencionou espontaneamente a política de Segurança Pública baseada na instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), o que indica que a ação policial não parece ter mudado a preocupação destas moças e rapazes em relação ao caminho trilhado pelas crianças na favela carioca. Sendo assim, verificou-se que os jovens entrevistados entendem a biblioteca parque como um espaço "neutro" no contexto social da favela, 152 Diversos autores já discorreram sobre o tema da violência, entre eles, Luiz Eduardo Soares que apontou alguns efeitos perversos da violência como "a desorganização da vida associativa e política das comunidades, (...) a disseminação de valores bélicos (...), a destruição das estruturas familiares e da dinâmica da reprodução cultural ao inverterem-se as relações de autoridade intergeracionais (...),(além) da estimulação de reações que tendem a estigmatizar a pobreza e os pobres, promovendo imagens negativas das comunidades (...) que passam a ser vistas como fontes do mal" (Ribeiro, 2004) 96 que serve de "refúgio" e "abrigo"153 para os males que a situação de insegurança ainda pode trazer, talvez porque a proposta governamental posta em prática, cujo objetivo maior seria o de "levar a paz" às favelas cariocas não tenha suprimido o embate constante entre traficantes e policiais, inclusive com mortes de civis, policiais e membros do tráfico de drogas. Já a menção da Biblioteca Parque da Rocinha como iniciativa que pode retirar as crianças do "mau caminho", "dar um rumo", "abrir novas possibilidades" parece conter em sua essência ainda a ideia de que a educação não formal e a existência de opções recreativas e artísticas para meninos e meninas da favela podem contribuir para retirar estas crianças da "ociosidade," reduzindo as chances destas serem atraídas para atividades ilícitas. Desse modo, o equipamento cultural também parece preencher simbolicamente o papel de ambiente gerador de alternativas, de espaço que pode propiciar novas perspectivas de vida para estes garotos e garotas aumentando as chances de mobilidade social no futuro. Dessa maneira, verifica-se também que o padrão de conduta entendido como o garantidor de algum tipo de melhoria financeira e de ascensão sociocultural é o que predomina culturalmente. Como destaca Feitosa (1998:152) os moradores da favela constroem seu cotidiano a fim de atingir uma maior igualdade de condições no contexto mais amplo da vida urbana já que a "percepção de mundo dos indivíduos é mediada pelas relações de poder simbólico" e, neste sentido, os favelados "(...) vivem segundo os códigos dos sistemas simbólicos, construídos segundo os padrões ofertados pela cultura, em cujas bases está o princípio codificador dual (...)." (1998:150). 3.2.3 Pontos positivos e negativos Buscou-se compreender também a percepção dos adolescentes em relação às qualidades do equipamento cultural e aos aspectos relativos à oferta de serviços que necessitam de aprimoramento para melhor atender a população local. No âmbito da categoria "qualidades" foram citados, por exemplo, a beleza da construção, a amplitude do espaço, a diversidade de serviços (internet, filmes, livros) e o atendimento dos funcionários. Os depoimentos abaixo revelam o teor de alguns dos comentários 153 Palavras foram citadas nos depoimentos. 97 coletados: Esperança, educação, futuro. (Moça, 16 anos) As oportunidades para as crianças, o atendimento, o tratamento das pessoas, são ótimas e o lugar que é confortável, bem gostoso de ficar. (Moça, 18 anos) Acho que um ponto positivo é o espaço que é grande e a diversidade que tem, já que tem teatro, informática, tem tudo. Também acho que o atendimento é excelente, nos deixa bem à vontade. (Rapaz, 16 anos) Um dos entrevistados citou também o ar-condicionado e outra jovem, a limpeza do espaço cultural, como qualidades: Acho a biblioteca agradável, tem ar-condicionado. Nos dias de muito calor é bom poder vir aqui, em casa fica muito quente. (Rapaz, de 16 anos) Acho que é a estrutura, porque aqui é um lugar limpo, sabe? Um lugar arrumado, isso faz você vir mais também. (Moça, 15 anos) Nota-se, sobretudo com base nos últimos dois relatos, que as qualidades da biblioteca parecem estar associadas às demandas da própria favela. No caso do arcondicionado, à carência material, e no caso da limpeza, à sujeira nas ruas da comunidade, já que o acesso dos serviços de coleta é, muitas vezes, dificultado pela geografia, entre outros fatores, e a cultura local em relação ao descarte também favorece a concentração de lixo. Como bem descreveu o antropólogo Roberto da Matta em A Casa e a Rua, o brasileiro, de uma forma geral, se relaciona com estes dois ambientes de maneiras distintas: "Limpamos ritualmente a casa e sujamos a rua sem cerimônia ou pejo... Não somos efetivamente capazes de projetar a casa na rua de modo sistemático e coerente, a não ser quando recriamos no espaço público o mesmo ambiente caseiro e familiar" (1997:12). Vale ressaltar novamente que a questão da carência material no contexto das 98 favelas deve ser relativizada, já que o poder de consumo dos favelados tem crescido e que há uma estratificação social interna. Infelizmente ainda é muito comum buscar entender a favela como se esta fosse uma 'massa' única. O universo das favelas, de modo geral, é muito mais complexo do que se pode concluir apressadamente. Como cita Peres, em pesquisa realizada com a juventude de Manguinhos: (...) há meninos negros, descalços e sem camisa brincando, há também meninos e meninas, brancos, negros ou pardos, vestidos com roupas de grife, divertindose com algumas das inovações tecnológicas de nosso tempo. Seguramente, existem palafitas e barracos de madeira nos quais as pessoas vivem em condições desumanas, mas Manguinhos apresenta também casas já “consolidadas” com mais de um andar, com jardim, cozinha, banheiros, muros etc. Se há sinuosas vielas de terra, há, da mesma forma, ruas asfaltadas ou de paralelepípedo com carros estacionados nas calçadas (2009:73). O mesmo acontece na Rocinha onde chama a atenção a diversidade de grupos e/ou classes. A favela de São Conrado reúne moradores que vivem abaixo da linha da pobreza, mas conta com uma heterogeneidade social significativa. Há moradores que são comerciantes, prestadores de serviços, pequenos empresários de diversas áreas, artistas, estudantes universitários, gente que nasceu na favela e não pretende sair dela, apesar de seus problemas. Os jovens entrevistados também opinaram sobre os pontos negativos ou que merecem aperfeiçoamento e deram sugestões. Um dos entrevistados sugeriu, por exemplo, que a biblioteca parque tivesse lanchonete porque a compra de alimentos no interior do espaço cultural reduziria a dispersão das crianças fazendo com que estas se mantivessem por mais tempo no local. A realização de cursos profissionalizantes também foi relatada como sendo uma preocupação do público adolescente. A menção aos cursos técnicos revelou que os jovens moradores da favela desejam se qualificar para o mercado de trabalho sobretudo impulsionados pelo pragmatismo da vida, pela busca do sustento e para contribuir no orçamento da família. 99 Podia também criar alguma atividade que trouxesse mais o adolescente. Porque os adolescentes hoje estão aí no mundo, querem curtir, ir para a balada. Eu acho que teria que ter alguma coisa mais para adolescente aqui, entendeu? (sexo feminino, 18 anos) Cursos técnicos. Muitos são longe. Uns em Copacabana, outros em Botafogo, então é longe pra mim. Se tivesse, por exemplo, aqui perto, ou aqui dentro mesmo da Rocinha, seria mais fácil. (O mesmo entrevistado, sexo feminino, 18 anos) A necessidade de ampliação do horário de funcionamento do equipamento cultural na favela também foi citada por um dos adolescentes. Durante o trabalho de campo, o assunto também foi defendido por alguns funcionários como sendo uma alternativa para que mais moradores possam utilizar o equipamento cultural já, que segundo alguns relatos, "as pessoas dormem tarde e acordam mais tarde na Rocinha". Acho que o horário de fechamento, não sei, é um ponto de vista meu, fecha muito cedo, fecha 20 horas, tinha que fechar às 21h, 21h30. Podia abrir mais tarde e fechar mais tarde, não sei. Porque eu, por exemplo, estudo de manhã, trabalho na parte da tarde, então para mim o melhor horário é à noite. (Rapaz 16 anos) A mesma demanda sobre a ampliação do horário de funcionamento da biblioteca foi citada por um adulto. O entrevistado disse que a própria condição de tráfego na cidade impede, muitas vezes, o uso do equipamento cultural público tanto pelos jovens que trabalham como pelos adultos. Segundo ele, o horário do equipamento não combina com a vida dos usuários: Quem trabalha não tem acesso à biblioteca por causa do horário que chega. A cidade é um caos em termos de trânsito, a biblioteca fecha cedo. Então eu acho que devia estender-se pelo menos até 21 horas para que os trabalhadores pudessem ter acesso. O acesso pode estar esbarrando nesse horário de 100 programação, de abertura do equipamento cultural. A programação tem muita coisa boa, que quando eu tinha 22 anos eu queria ver. Então o jovem que é trabalhador precisa ter mais acesso a isso e ele só vai ter acesso se isso aqui funcionar até um pouquinho mais tarde. Pra mim, o horário não combina com o dia a dia das pessoas. (Morador, produtor cultural, escritor, 48 anos) O mesmo entrevistado mencionou a questão do horário também no caso das crianças: "Até as próprias crianças, que estudam à tarde. Elas retornam para casa às 19 horas, quando a casa está quase fechando, então elas não têm como estar dentro da biblioteca. 3.3 Adultos A frequência de adultos e pessoas idosas na Biblioteca Parque da Rocinha é baixa, se comparada ao uso do equipamento cultural feito pelas crianças e adolescentes. Na maioria dos casos a não utilização do equipamento público é justificada com afirmações como "não tenho tempo", "estou ocupado com outras coisas", "minha vida é muito corrida", "não gosto de ler". Como já exposto neste trabalho, nos dias de semana a presença de adultos é muito pequena porque muitos trabalham fora e quando retornam à favela a biblioteca parque já está fechada. Entretanto, por meio das entrevistas realizadas e pelos depoimentos obtidos nota-se que apesar da rotina diária de trabalho, na maioria das vezes cansativa, e da dupla jornada exercida, principalmente pelas mulheres, há ainda uma resistência dos adultos em conhecer o equipamento cultural inaugurado em 2012. Na tentativa de encontrar respostas para a baixa frequência deste público presenciei situações interessantes como o de uma mãe, cuja filha, de 14 anos, realiza o curso "Turista Aprendiz". A mulher, que estava na biblioteca para devolver um livro que a filha havia pego emprestado, ao conversar comigo disse que não frequentava o espaço cultural porque não gostava de ler e que gostaria que a biblioteca tivesse cursos profissionalizantes. Afirmei que não havia só livros na biblioteca e que ela poderia assistir a um filme ou mesmo usar a internet. Ela balançou a cabeça e sorriu. Dias depois, vi a mesma mãe com o marido assistindo a um filme na DVDteca. Era fim de 101 semana. A situação vivenciada por mim me fez pensar que talvez muitos adultos não tenham buscado conhecer as atividades oferecidas pela biblioteca. A mãe, apesar do filho frequentar o equipamento cultural, não estava muito bem informada sobre os serviços oferecidos ou, então, a forte presença de crianças e adolescentes fazia com que ela não se sentisse a vontade para usar o equipamento. Após o episódio, decidi procurar outros adultos que pudessem me dizer o motivo de não usarem a biblioteca. Busquei, então, conversar com moradores e pessoas que trabalhavam no entorno do espaço cultural. Nos estabelecimentos comerciais como padaria, farmácia, lanchonete, a resposta foi sempre a mesma: "Por conta do trabalho". Alguns, nem sabiam da existência da biblioteca mesmo trabalhando ao lado ou em frente ao equipamento. Outros diziam conhecer, mas nunca terem entrada por "falta de tempo". Durante o período em que realizei o trabalho de campo uma das únicas atividades que contou com a presença majoritária de adultos, entre elas pessoas com mais de 50 anos, foi a Ioga, que acontece na parte da manhã e à noite. Realizada normalmente na varanda, que fica ao lado do setor de internet, a atividade é um sucesso, tal a participação e a procura. A atividade recebe mais mulheres do que homens. Figuras 31 e 32 - Ioga acontece de manhã e à noite 102 Duas usuárias da Ioga contaram que decidiram realizar a aula por considerarem a atividade importante para o bem estar físico e mental. Uma das frequentadoras disse: "Resolvi fazer porque acho que é bom para a minha saúde. A gente se sente melhor depois de fazer exercício físico, e aqui é bom porque é gratuito" (Diarista, 56 anos). Outra usuária compartilhou a mesma opinião da colega de turma: "Aqui a gente alonga, fortalece os músculos, aprende a respirar. Estou gostando muito, busquei por conta da saúde mesmo". (Massagista, 45 anos). Foi interessante notar ainda que apesar da opção pela Ioga, a diarista disse estar participando da atividade porque no momento está desempregada: "Moro aqui perto e soube por umas amigas. Aí vim, mas por enquanto vou poder fazer, depois não sei. Talvez à noite. No momento não estou trabalhando". Além da concentração de adultos na atividade, há aqueles inscritos nos cursos oferecidos pela biblioteca, que usam à internet e assistem a filmes na DVDteca. Durante o trabalho de campo não verifiquei a presença de muitos usuários com idade acima de 18 anos no setor de livros.154 Pelos relatos, os cursos e atividades oferecidos são procurados por este público como forma de conhecimento, lazer e entretenimento. Um dos adultos entrevistados disse, por exemplo, que se inscreveu no curso Regiões Narrativas porque acredita que a atividade trará conhecimento e novas oportunidades de vida. O mototaxista relatou ainda que não deseja se manter na função que exerce "pelo resto da vida" e que está em busca de novas experiências que poderão, quem sabe, fazêlo seguir um outro caminho profissional no futuro: Quanto mais a gente puder estar ocupado é melhor, e a gente vai trabalhando o cérebro e a gente faz esse curso, daqui há pouco faz outro, aí a gente vai expandido conhecimentos e cada vez mais vai gerar novas oportunidades. (Morador, 25 anos) Já outro usuário disse estar participando do curso porque sempre desejou fazer aula de fotografia e agora "tem tempo" por conta da aposentadoria. A nova etapa de vida trouxe a possibilidade de se dedicar a um hobby, entretanto, apesar de estar 154 Solicitei ao Governo do Estado algum tipo de relatório que pudesse ter acesso para verificar quantos adultos realizam empréstimos de publicações no setor, mas infelizmente não obtive a informação. A contabilização feita pelo poder público estadual reúne apenas o número total de usuários e de "carteirinhas". Estas informações foram citadas no início do terceiro capítulo desta dissertação. 103 gostando da atividade, o usuário afirmou considerar a maioria dos cursos oferecidos pela biblioteca "muito classe média". O ex-motorista, de 59 anos, concluiu dizendo que o equipamento cultural deveria oferecer capacitação técnica para jovens e adultos. "É curso para classe média, né? Traz conhecimento, mas acho que a gente precisava oferecer para esta garotada cursos profissionalizantes", disse. O uso da internet também foi citado pelos adultos. Alguns, quando estão na Rocinha e precisam acessar emails ou fazer pesquisas recorrem ao setor da biblioteca. Há aqueles que também consideram o equipamento cultural um local agradável para realizar reuniões profissionais e encontros de negócios. Quando eu estou produzindo o sarau155uso o computador da biblioteca para fazer pesquisa, descobrir nomes, descobrir escritores, descobrir pessoas que estejam interessadas em fazer trabalho. (Escritor e produtor cultural, 48 anos) Uso quando saio de casa e esqueço de passar uma mensagem pra alguém, então dou uma escapada aqui na biblioteca. Sempre uso a internet daqui. (Garçom, 43 anos) Uso para reuniões, quando estou participando de algum projeto e também converso na varanda, muitas vezes. Realmente aqui é um ponto de encontro não só para os jovens, mas para os adultos também. (Artista, 35 anos) Pude também verificar que o setor de filmes atrai este público. Apesar da presença de homens e mulheres ser consideravelmente menor do que a de crianças, presenciei alguns adultos utilizando a DVDteca, entre eles um casal de surdos-mudos que frequentam com assiduidade, segundo os funcionários, o setor do espaço cultural. O casal já assistiu a vários filmes legendados do acervo do equipamento público. Percebe-se ainda que a Biblioteca Parque da Rocinha tem para os adultos 155 O Sarau de Poesia é uma realização de um morador da favela que é escritor e produtor cultural. O evento reúne pessoas interessadas em declamar poesias, ler trechos de publicações, ou se expressar de outras formas. Até cantar vale. 104 envolvidos com companhias artísticas156 uma função relevante. O espaço foi a solução para a dificuldade que muitos grupos da favela tinham de encontrar um local adequado para ensaios. Como explicou o responsável por um dos grupos de teatro cujo ensaio acontece na biblioteca no período noturno: Antes nós ensaiávamos na praia, nas lajes que alguns moradores nos emprestavam, na rua, nas praças, só que agora a gente está num espaço que a gente tem segurança, entendeu? Segurança que eu estou falando não é só sobre bandido trocando tiro com a polícia. Não é esse tipo... É a chuva, barulhos. Então nosso trabalho tende a melhorar com esse investimento. (Morador e fundador de grupo teatral). 3.3.1 Usuários mais exigentes Enquanto as crianças e os jovens são menos exigentes em relação ao equipamento cultural, os adultos, em quase todos os depoimentos coletados, opinaram criticamente sobre a biblioteca e sobre os serviços oferecidos pelo poder público aos favelados, de maneira geral. Um dos usuários, por exemplo, ao ser perguntado sobre o que achava da biblioteca reconheceu avanços, mas afirmou, que por outro lado, as iniciativas são poucas e têm finalidades políticas: Tem melhorado, mas o pessoal que mora em favela ainda recebe muito pouco do Estado e da prefeitura e têm aqueles que fazem para ganhar a eleição. Mas acho importante a biblioteca, principalmente para os jovens e as crianças que estão começando a vida. Na minha época não tive esta oportunidade. Agora estou podendo fazer alguns cursos aqui. Mas acho que tem muita gente que ainda não conhece, falta informação". (Aposentado, 54 anos) 156 O número de companhias de dança e teatro existentes na Rocinha, em grande parte coordenadas por moradores da localidade, é bastante significativo: existem aproximadamente 47 grupos na favela, segundo a publicação "Um Olhar sobre a Produção Cultural na Rocinha" (2013). Não tive acesso ao número de grupos artísticos que ensaiam na biblioteca. 105 Outra usuária, que freqüenta a Ioga, questionou a relevância da instalação da biblioteca ao enumerar outras demandas da favela. Ela disse: Acho que antes de ter a biblioteca tínhamos que resolver outros problemas. Eu estou aqui fazendo a Ioga, mas sentindo cheiro de esgoto. Existem muitas demandas que não foram resolvidas e deveriam ter sido. (...) acho que este espaço só deveria ter sido construído depois de termos outras coisas como saneamento básico, saúde e educação. (Estudante universitária, de 23 anos). Com base nos depoimentos citados acima, sobretudo o do aposentado e da estudante universitária, nota-se que a ideia de hierarquizar necessidades ou demandas reforça-se na medida em que serviços básicos como saneamento, educação e saúde, ou mesmo a questão da qualificação profissional de jovens e a entrada desta juventude no mercado de trabalho não foram ou não são priorizados pelo poder público nas favelas cariocas. Na mesma perspectiva, por outro lado, a rotina diária do trabalhador assalariado e sua luta pela sobrevivência também insere a questão da cultura no âmbito do luxo e do supérfluo. Neste sentido, a ideia de cultura em seu significado mais amplo (acesso a bens culturais, fruição das obras de arte, conhecimento, informação, ampliação da "visão de mundo", reflexão, o pensar sobre si mesmo e sobre a coletividade) parece ser entendido como um direito, digamos, secundário, já que as demandas sociais são inúmeras. A mutação conceitual em relação à ideia de cultura ao longo dos séculos e a prevalência de alguns dos seus sentidos na história também forjou, de certa forma, um entendimento específico sobre a noção. Chaui (2006:12) destaca, por exemplo, que ao final do século XVII, a palavra cultura passa a ter "duas significações (referindo-se a uma delas como) o processo interior dos indivíduos educados intelectual e artisticamente , (...) o campo das "humanidades", apanágio do "homem culto" em contraposição ao "inculto" (...)" e que arte "passa a significar um conjunto particular de atividades e habilidades dependentes da imaginação criadora e da inspiração, destinadas à contemplação e à beleza (...)" e "se transforma na ideia burguesa do culto à beleza (...)" (2006:11). A mesma autora aponta que a divisão simbólica de "culto" e "inculto" e, consequentemente, a polarização entre cultura erudita e popular foi predominante (2006:13). Nesta perspectiva, portanto, o direito à cultura seria uma espécie de 106 privilégio das elites, cujos demais direitos básicos (Educação, Saúde, Moradia), de certa maneira, já se encontrariam atendidos. Considero ainda que este quadro também parece ser reforçado pelo fato de muitos adultos perceberem a questão do lazer157de modo pejorativo. Sabe-se que este direito social é associado em muitos casos à preguiça, à improdutividade, ao desperdício de tempo e que, neste sentido, "a prevalência desta visão cria dificuldades para sua reivindicação e apropriação" (Silva &Versiani, 2011:3) e que, por outro lado, a própria posição social do favelado, enquadrada no universo da pobreza, também o faz ter como um valor fundamental a identidade de "trabalhador" em contraposição à representação estigmatizada da favela e do favelado, ainda muito presente. Como sugere Feitosa, enquanto o sistema social vigente representa a pobreza pelos índices de criminalidade registrados pelos plantões policiais, pelos acessos e privações aos bens materiais e aos serviços prestados, pelas privações de empregos e oportunidades, (...) o pobre representa a si e a sua pobreza por outros meios, ainda que derivados daqueles e cuja significação já assimilara, quer pela imposição do sistema social vigente, quer por experiência própria nas adversidades enfrentadas no dia a dia. (1998:128) Portanto, é nesse universo simbólico que "o signo emprego confere ao favelado a condição de trabalhador, em oposição à vadiagem" (1998:129) e que "o trabalho aparece no imaginário popular como instrumento de igualdade social" e como "minimizador das adversidades enfrentadas" (1998:137). Além disso, nesta perspectiva o direito à cultura e ao lazer só seria permitido às crianças e aos jovens, indivíduos em formação, sendo uma possibilidade remota para os adultos ou pais de família que já ultrapassaram este estágio e que no contexto social urbano e da favela precisam ir à luta e "ganhar o pão de cada dia". As críticas mais ferrenhas em relação à biblioteca foram realizadas por membros dos grupos artísticos. Estes artistas profissionais e amadores, apesar de afirmarem que a 157 "O lazer insere-se na dimensão dos direitos humanos, interagindo com as demais necessidades e garantias para a promoção da melhoria da qualidade de vida da população. Por meio do lazer, o indivíduo pode divertir-se, recrear-se, entreter-se e ao mesmo tempo potencializar a sua participação social e a sua capacidade de criação" (Silva & Versiani, 2011:1). 107 biblioteca parque foi fundamental ao se estabelecer como espaço para ensaios, relataram que o teatro/auditório não apresenta a estrutura ideal, pois não conta com equipamentos do maquinário teatral como iluminação (gambiarra158), bambolina159, coxia160, cortina, forro acústico161, mesa de som, entre outros acessórios. Todos chamaram o teatro de "inacabado", lembrando que o espaço, que possui somente palco e camarim, não pode ser usado, por exemplo, para apresentações à comunidade e visitantes não moradores da favela ou mesmo para peças de teatro de companhias de fora, caso o espetáculo apresente a necessidade de um maquinário mais específico. Abaixo apresento alguns dos depoimentos coletados de teor crítico em relação ao teatro/auditório: Ficamos muito felizes quando recebemos a notícia de que teríamos um teatro. Os grupos artísticos da Rocinha logo procuraram participar. Mas ao mesmo tempo falta estrutura. Parece que foi feito às pressas, mas por uma questão política de querer falar que fez alguma coisa. Em Manguinhos é bem mais estruturado, aqui não. (moradora e integrante de grupo teatral que ensaia na biblioteca) As obras tinham um plano de se concluir e não foi feito. Então entregaram do jeito que está. Não tem assento, não tem aparelho de iluminação, não tem mesa de som, não tem um camarim ideal porque é um buraco com banheiro. A realidade é essa. (Morador e integrante do mesmo grupo) O anfiteatro não ficou pronto. Não tem nada, não tem luz, não tem acústica, não tem cadeira. Por exemplo, você vai dar aula de teatro lá e você cita bambolina para as crianças “E aí, tio? O que é bambolina?” Será que uma criança vai entender eu dizer tecnicamente sem que eu possa mostrar? (Morador, fundador de grupo teatral na Rocinha) 158 Vara de refletores. Faixa de pano normalmente preta seguida de outras que completam o contorno do espaço cênico. 160 Espaço situado nos bastidores. 161 Os forros geralmente devem possuir propriedades acústicas apropriadas para a difusão e reflexão do som. 159 108 A manutenção do teatro/Auditório também foi citada como uma das preocupações dos grupos artísticos que usam o espaço: Você vê que já está com infiltração, não é? E a gente teme. Porque essa estrutura vai ficar pior, então quando vier mesmo a coisa para a acústica e as outras solicitações, tudo direitinho, vai ter que refazer tudo para poder receber essa acústica, então vai ser um outro tempo para esperar. (morador e integrante de grupo teatral) Além da acústica, que considero um ponto negativo, tem também o fato de que a gente nota alguns problemas já surgindo com o passar do tempo, rachaduras, infiltrações. (Morador e produtor cultural) As tensões relativas às ações do poder público na favela da Rocinha novamente apareceram na fala de um morador e ator amador. Ele associou o fato do teatro estar "inacabado" à histórica "falta" no contexto social do favelado relativa à distribuição desigual de investimentos nas diferentes localidades ou zonas do Rio de Janeiro. O Lauro Alvim está em obra, não é? Você acha que eles vão entregar a obra do Lauro Alvim do jeito que entregaram aqui? Em Ipanema? Não vão. Aqui é favela, então 'entrega que o povo não tem nada mesmo, qualquer coisa que vier está bom'. Eu vejo que o Estado tem muito essa coisa, essa barreira ainda para a lidar com a favela, porque a favela quer um espaço com dignidade (...). (morador e integrante do grupo teatral) Nota-se que havia uma enorme expectativa dos integrantes destes grupos em relação ao teatro/auditório construído. A frustração aparente em cada depoimento evidencia que o desejo maior destas companhias era o de ter dentro da comunidade um espaço-referência para os grupos artísticos da favela e companhias de fora. Como explicitaram os entrevistados, o teatro/auditório construído não atendeu a todas as suas potencialidades. No entendimento destes grupos, ele poderia ter se transformado num 109 espaço "catalisador e disseminador de cultura."162 Alguns disseram ainda que o teatro/auditório desejado poderia trazer mais visitantes à comunidade, integrando ainda mais a favela da Rocinha à cidade. Como afirmou um dos entrevistados: "Se num bairro há um teatro, e a Rocinha é, pelo menos "oficialmente", um bairro da cidade deveríamos receber um teatro administrado pelo poder público na favela." 3.4 Funcionários Da mesma forma que os usuários participam da construção da biblioteca por meio de suas práticas cotidianas, a equipe de funcionários também influi na dinâmica deste espaço cultural com suas "maneiras de fazer" - seja no atendimento dado aos usuários ou na criação e execução de propostas com o intuito de preencher as demandas da comunidade. Durante o trabalho de campo tive contato com alguns destes homens e mulheres que, nas suas mais variadas funções, vivenciam o universo da biblioteca no desejo de tornar o equipamento cultural um espaço significativo para a população da Rocinha. A ligação emocional com a biblioteca e suas inúmeras possibilidades subjetivas e pragmáticas, na visão dos usuários e dos próprios funcionários, é o que parece motivar estes profissionais no contexto da favela, mesmo aqueles que não residem na localidade. Como já relatei na introdução desta dissertação, a equipe de profissionais da biblioteca é formada por moradores e não moradores da favela, sendo esta "mistura" fundamental para o desenvolvimento do programa de Bibliotecas Parque na comunidade, já que cada membro da equipe pode, a partir de sua bagagem de conhecimento e experiência, contribuir para a construção desta iniciativa que se "altera e se reproduz na ação" (Sahlins, 1990:8) como veremos com mais detalhes a seguir. O número de funcionários moradores e não moradores da favela é praticamente igual. Todos foram selecionados pelo currículo, segundo a direção da biblioteca. As formações destes profissionais são das mais variadas. Há pessoas apenas com o Ensino Médio, outras com curso superior e algumas em processo de conclusão de graduação. Entre as especializações estão Biblioteconomia, História, Literatura, Teatro, Pedagogia, Assistência Social, Comunicação Social, Administração de Empresas. Alguns possuem 162 Expressão foi usada em um dos depoimentos. 110 pós-graduação e há aqueles que apresentam experiência em produção cultural, adquirida por meio de cursos e da prática tanto na favela como fora dela. A dificuldade de acesso a relatórios e a esquemas (organograma, entre outros documentos) que pudessem me fazer entender com mais facilidade a divisão de funções na biblioteca bem como o número de profissionais em cada uma delas, me fez recorrer às informações prestadas pelos próprios funcionários. Em conversa com alguns deles, consegui chegar a aproximadamente 25 pessoas163, incluindo o núcleo da direção e de estagiários. Pude notar também que a divisão da equipe nos setores é basicamente a seguinte: Produção, Mediação de Leitura, Mediação Social, Administração, Comunicação e os atendimentos na Biblioteca Adulto e demais setores. 3.4.1 Usos não programados Como já relatado brevemente no início deste capítulo, logo que iniciei o trabalho de campo um aspecto da biblioteca me chamou a atenção: o fato de existirem espaços projetados que não estavam sendo usados, mas que tiveram seus usos atualizados para servir aos frequentadores. Tanto o estúdio de gravação como o de audiovisual, localizados no terceiro andar, e mencionados nos panfletos de divulgação do equipamento cultural, estavam inutilizados porque o Governo do Estado não havia entregue os equipamentos. Os locais foram então transformados em espaços para reuniões e estudo. O uso com estas finalidades, de acordo com os funcionários, ocorreu também porque havia uma "tensão" recorrente em relação à falta de silêncio na biblioteca. De acordo com certos relatos, a proposta do local de ser um espaço cultural gerou ruídos de comunicação, principalmente, no início de seu funcionamento. A solução para agradar às distintas necessidades foi oferecer os estúdios de som e audiovisual para aqueles que buscavam o que a biblioteca "tradicional" poderia oferecer: livros e silêncio.164Segundo um dos funcionários, estes moradores buscam a biblioteca porque não encontram em suas residências o sossego necessário para práticas 163 Este número total se divide nos turnos da manhã e tarde. Várias bibliotecas no mundo, inclusive a Biblioteca Parque do Centro, oferecem aos usuários salas de estudo. No caso da Biblioteca Parque da Rocinha, o uso criativo permitiu transformar um espaço inutilizado por falta de equipamentos em um lugar para aqueles que preferem ler e estudar com maior privacidade. 164 111 como a leitura e o estudo. Ele contou: "Como a Rocinha é muito movimentada e barulhenta e nas casas há, em muitos casos, muito familiares, tem gente que busca a biblioteca para poder ler e estudar com mais tranquilidade". Durante o trabalho de campo assisti a uma situação semelhante, também relacionada aos códigos culturais referentes à instituição biblioteca. Presenciei um senhor que buscava ser atendido pelo Sebrae165procurar o acervo de livros. O homem havia sido informado de que deveria ir à biblioteca parque para obter informações sobre a abertura de seu próprio negócio166. Ao chegar no setor de publicações, o morador perguntou à funcionária aonde estava o atendente do Sebrae. A bibliotecária disse, então, que o rapaz ficava no terceiro andar. O senhor respondeu: 'Ué? Mas aqui não é a biblioteca?'. Constatei, então, que o morador tinha em mente o modelo tradicional, representado pelo acervo de livros. O ocorrido demonstrou que o senhor e a funcionária não partilhavam os mesmos códigos. A biblioteca havia sido associada, neste caso, somente ao objeto livro, símbolo maior da instituição. Além da transformação dos estúdios de gravação e audiovisual em salas de leitura e estudo, verifiquei que outro espaço havia sido atualizado a partir da ação criativa de um dos funcionários. No quinto andar, pavimento cujo acesso era controlado por um segurança, descobri uma mini horta que servia tanto ao corpo técnico como aos usuários nas visitas guiadas realizadas pela biblioteca. O uso da varanda do quinto nível havia possibilitado que os funcionários se alimentassem das verduras, legumes e frutas ali cultivadas. A mini horta também tinha se transformado numa ótima atração para os alunos das creches que visitavam a biblioteca parque.167 Neste caso, o espaço sem uso aparente foi transformado em um lugar praticado, a partir da ação inventiva do funcionário. Ele contou: Pensei na hortinha aqui nesta varanda e aí comecei a ir plantando, plantei uma coisa, plantei outra. Venho sempre aqui, rego sempre. A gente usa para os 165 Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. O Sebrae é um dos parceiros da Biblioteca Parque da Rocinha. Toda semana, em dias e horários determinados, um atendente do serviço auxilia moradores interessados em obter informações sobre a abertura de pequenos negócios. 167 As crianças, além de conhecê-la, recebem informações sobre legumes, verduras e frutas. 166 112 funcionários que almoçam aqui e também com as crianças das creches, explico para elas o que tem, ensino algumas coisas, elas adoram. (Funcionário) Figura 33 - Crianças em visita à mini horta Figura 34 -Verduras plantadas Recorro novamente a de Certeau (1998) para pensar a alteração dos usos destes espaços. O primeiro teve criativamente uma utilidade a partir de sua falta de função ocasionada pela ausência de investimento público. O segundo recebeu um novo uso para um local definido inicialmente no projeto arquitetônico como tendo uma finalidade apenas de convivência e que, mesmo assim, não estava sendo ocupado, já que o último andar do prédio estava fechado, sendo o acesso controlado por um segurança. Nos dois casos, o lugar, antes destituído de ação, foi 'taticamente' organizado. Segundo o autor, esta maneira "tática" de fazer pode ser identificada em práticas cotidianas como ler, falar, circular, fazer compras ou mesmo cozinhar. A 'tática' se estabelece, de acordo com 113 de Certeau, nas pequenas "bricolagens168" adotadas pelo homem comum para subverter os sentidos de uma ordem previamente estabelecida. A "tática" de que o autor está falando estaria, então, baseada na improvisação, no "jeitinho", que muitas vezes é condição necessária para a sanidade e a sobrevivência, sendo, neste caso, o oposto da "estratégia", representada pelo sistema vigente. Neste sentido, portanto, pode-se inferir que no contexto da biblioteca parque os funcionários se reapropriaram inventivamente destes espaços transformando locais não habitados em lugares praticados. Como explicou Josgrilberg: Um exemplo mais prosaico, mas que facilite o entendimento da dinâmica descrita por de Certeau, é a relação de um morador com a sua moradia. Esta, planejada em algum escritório de arquitetura, prevê um ambiente, conforme as intenções do arquiteto, com uma sala, dois quartos, uma cozinha e um banheiro. Contudo, o habitar do morador é um fator de ambiguidade. Ali, onde se previu uma sala eventualmente se organiza um outro aposento; o quarto talvez se transforme em um espaço para práticas religiosas, um escritório, uma sala de bagunça das crianças, dentre outras formas possíveis de habitar o lugar (2005:24). A criatividade dos funcionários, vinculada ao desejo de contribuir com ideias para o aperfeiçoamento do projeto concebido para a biblioteca parque também permitiu que outra prática fosse conduzida. Interessados em ampliar as perspectivas do equipamento cultural de formar leitores na favela, parte da equipe decidiu ir às unidades escolares e creches da Rocinha no intuito de divulgar o trabalho de contação de histórias realizado no espaço cultural. A proposta de deslocamento até as escolas e creches também buscava transformar os professores em contadores, no desejo de multiplicar os objetivos da iniciativa focada no estímulo à leitura. Entretanto, apesar de algumas 168 Oriundo do francês, o termo bricolage significa um trabalho manual feito de improviso e que aproveita materiais diferentes. Na apropriação realizada por Lévi-Strauss (1976), o conceito de bricolagem foi definido como um método de expressão através da seleção e síntese de componentes selecionados de uma cultura. Por sua vez, relendo o trabalho do antropólogo, Derrida (1971) ressignificou o termo no âmbito da teoria literária, adotando-o como sinônimo de colagem de textos numa dada obra. Finalmente, de Certeau (1994) utilizou a noção de bricolagem para representar a união de vários elementos culturais que resultam em algo novo. (Lippi & Neira, 2012:610). 114 visitas terem sido realizadas, a iniciativa foi recebida com frieza pela direção da biblioteca, segundo os funcionários. O real motivo não foi explicitado levando a equipe diretamente envolvida com a ação a especular sobre o tema. Alguns acreditaram que a ideia apesar de ser uma contribuição esbarrava nas diretrizes estabelecidas pela política de bibliotecas parque. Outros argumentaram que acreditavam que ampliar, pelo menos naquele momento, o número de usuários geraria problemas como a necessidade de contratação de mais funcionários, o que aumentaria os custos do Estado com a proposta. Alguns também defenderam que talvez a direção estivesse convencida da falta de condições de administrar um fluxo maior de usuários naquele momento e que a atuação dos funcionários deveria se restringir aos limites da biblioteca. A falta de incentivo em relação à iniciativa fez com que alguns funcionários revelassem um descontentamento que, segundo eles, estaria sendo agravado por outras situações que serão apresentadas nos trechos a seguir. Como avaliou um dos membros da equipe: Não há muita abertura para discutirmos a biblioteca que queremos. Nada é proibido, mas neste caso do trabalho nas escolas ficamos sem saber. Eles dizem: vamos ver, vamos aguardar um pouco, mas ficamos sem saber o porque realmente. (Funcionário) Neste caso, portanto, a "bricolagem" estava sendo barrada pelo sistema que organiza a biblioteca. A invenção dos funcionários de realizar uma nova ação com foco no estímulo à leitura e na divulgação da biblioteca no ambiente escolar produziu uma dissensão entre o poder atuante e a iniciativa de se criar uma nova prática169. Apesar das visitas guiadas170 não fazerem parte do grupo de novas práticas resultantes do movimento criativo de alguns funcionários, considero relevante incluir neste trecho do capítulo as maneiras de fazer destes profissionais, já que toda ação, por mais previsível que seja, comporta improvisações, inventividades advindas das 169 Com a conclusão do trabalho de campo não tive condições de saber qual foi o desenrolar da proposta, se ela foi acatada pela direção ou barrada definitivamente. 170 Presenciei a visita guiada de uma creche logo que iniciei o trabalho de campo. A chegada do grupo de crianças localizada ao lado da biblioteca movimentou a maioria da equipe. Na DVDteca os meninos e meninas foram recebidos por funcionários que falaram um pouco sobre o setor, em seguida as crianças subiram ao quinto andar onde conheceram a mini horta e aprenderam sobre as verduras, os legumes se as frutas. Uma atividade na varanda também foi realizada. Logo após, as crianças ouviram a uma contação de histórias no teatro/auditório. 115 diferentes formas de atuação dos envolvidos. Considero, portanto, importante relatar que as visitações guiadas, incluídas na programação da biblioteca parque, foram resultado do esforço da equipe da biblioteca, principalmente dos funcionários moradores da favela e que só se tornaram um sucesso pela dedicação dos funcionários que divulgaram a proposta no meio escolar. Soube que o trabalho iniciado logo que a biblioteca foi inaugurada contou com a fundamental participação de uma exfuncionária, moradora da comunidade, que pela experiência de trabalho na favela conseguiu desenvolver com as creches e escolas da comunidade a aproximação necessária para que a proposta fosse exitosa, apesar da iniciativa esbarrar na dificuldade de atendimento a creches e escolas de zonas distanciadas da localização onde fica o espaço cultural. Como contou a ex-funcionária, a falta de transporte para levar crianças muito pequenas ao equipamento público sempre foi uma das grandes frustrações de parte da equipe. Calcula-se que na favela da Rocinha haja aproximadamente 45 instituições de educação infantil, entre públicas e particulares.171A ex-funcionária contou: Trabalhava numa creche, então isso me ajudou muito no contato com as escolas públicas. Chego, converso, ofereço, mostro o trabalho e convido para fazer uma visita. Com essa visita a gente faz alguma atividade com eles, contação de histórias e, depois, a gente convida para vir sempre nos visitar. Algumas conseguem, algumas não, porque a gente tem um grande problema que é o transporte. Porque a criança não vai sair, quem mora lá em cima, quem tem uma creche lá em cima não vem pra cá se não tiver transporte. Esse é um dos grandes problemas de visitação de escola aqui172. 3.4.2 Interferências no cotidiano do equipamento cultural Durante o trabalho de campo também foi possível verificar alterações na rotina do equipamento cultural. Por se tratar de um espaço dinâmico, a biblioteca parque 171 Dados fornecidos pela ex-funcionária. Entrevista ocorreu quando a moradora da favela ainda era funcionária da Biblioteca Parque da Rocinha. 172 116 sofreu interferências das mais variadas, tanto no que se refere a aspectos internos como a questões externas, que afetaram a favela como um todo. Duas alterações estruturais me chamaram a atenção logo que comecei a realizar o trabalho de campo. A primeira se deveu ao fato do espaço cultural não contar com um número suficiente de funcionários para atender à frequência de uso. Verifiquei, por exemplo, que um mesmo funcionário acumulava funções tendo que atender ao público, mesmo que sua atribuição fosse de planejamento. A segunda se deveu ao fato de que naquele período algumas pessoas haviam deixado o corpo técnico. As "baixas" acabaram por gerar um acúmulo ainda maior de funções bem como a troca de atribuições. De acordo com os funcionários, as saídas voluntárias e demissões (uma única presenciada no dia em que me encontrava na biblioteca) derivavam de insatisfações em relação ao trabalho realizado na biblioteca, à falta de diálogo com a direção bem como, em alguns casos, à busca por melhores salários. Ao longo do período em que observei as práticas no equipamento cultural houve funcionários que se propuseram a falar sobre o tema de forma espontânea, talvez porque fosse possível verificar um clima de apreensão no ar. A demissão de uma das bibliotecárias da equipe, por exemplo, gerou um 'burburinho' em todos os andares. Não consegui conversar com a moça sobre o motivo da saída, mas a vontade dos membros da equipe de falar sobre este, entre outros temas vinculados à dinâmica interna da biblioteca, foi maior do que o receio de obter algum prejuízo no ambiente de trabalho. Em todos os depoimentos coletados naquele dia, as falas continham desapontamento em relação ao caminho percorrido pela biblioteca. Todos estavam preocupados com o rumo que o projeto tomaria na medida em que cada funcionário não conseguia se desenvolver em suas funções por conta de demandas de atendimento. Durante o trabalho de campo, foram verificados, por exemplo, casos em que as atividades173 previstas no planejamento da biblioteca tiveram que ser canceladas também pela necessidade de deslocar profissionais para recepcionar pessoas174e atender aos usuários. Um dos entrevistados, por exemplo, revelou um certo incômodo em relação às atribuições pouco fixas. O rapaz, que queria pensar programações e se 173 Presenciei uma mudança programática quando um dos funcionários, responsável por desenvolver atividades socioambientais teve que cancelar uma ação, incluída na programação e divulgada pela biblioteca, para atender a usuários no balcão de filmes. 174 Presenciei, por exemplo, a troca de função súbita de um profissional quando um grupo de visitantes de fora da favela, chegou à biblioteca. Um outro, então, o substituiu no atendimento dos usuários. 117 dedicar à função determinada em sua contratação, se sentia desconfortável por ter que interromper esta prática para atender às crianças no salão da DVDteca ou da internet. Entretanto admitia a necessidade momentânea, que só seria resolvida, segundo ele, por "vontade política", com a contratação de novos profissionais. Outro rapaz relatou também o mesmo mal-estar ao ter que deixar de desenvolver uma atividade prevista para atender usuários interessados em assistir a filmes. Na maioria dos relatos, tanto a escassez de tempo para a elaboração estratégica de atividades por parte da equipe como para estudos e conversas que pudessem promover o aprimoramento das ações na biblioteca parque, bem como a pouca abertura para novas propostas indicaram a existência de uma grande tensão entre funcionários e a diretoria. Como contou um deles: A gente está com redução de novo de funcionários, uma redução gigante, a gente deve estar chegando no ponto mais baixo de novo. E isso é ruim porque não conseguimos montar uma identidade com esta rotatividade. Existem as questões internas de contratação que são do tipo, contratam você para trabalhar aqui, você é artista, te chamam pelo teu currículo artístico. 'O que você é, sou isso'. Você vai se dar bem aqui, aqui é ótimo, você vai poder propor' e aí quando você entra te botam uma amarra. 'Mas e aquilo? 'Aquilo acabou, senta aqui e atende'. Aí o cara fica naquela angústia. Aí o cara vai embora, fica desmotivado. Outro disse: Gostaria que os setores estivessem mais envolvidos, porque o grande público da biblioteca são as crianças. Uma faixa etária que vai de 5, 6 até 14, crianças e pré-adolescentes e adolescentes, é o maior público, o maior índice de acessibilidade. Precisa, então, ter um olhar bem especial para isso. Então, essas reuniões de planejamento permitiriam uma comunicação maior entre os funcionários que estão em vários setores. Seria importante para promover melhor essas ações e para que elas realmente atinjam os objetivos, para que elas tenham um alcance muito maior. 118 Já em outra ocasião, foi o contexto da Rocinha que provocou alterações no planejamento da biblioteca. Uma operação policial na favela motivou o cancelamento de duas atividades, uma visitação de creche e uma ação no teatro/auditório com o grupo de alunos175. Logo que cheguei à biblioteca, antes mesmo de passar pela porta de entrada, notei que apesar do horário havia muitos estabelecimentos comerciais fechados na região. A rua onde fica localizado o espaço cultural também estava surpreendentemente vazia para um dia de semana. Descobri minutos depois, que uma operação da Polícia Civil e Militar estava sendo realizada na área. Segundo os funcionários, muitas creches e escolas da favela não haviam funcionado por conta do receio de que algum confronto armado ocorresse, já que "a violência é exercida, sobretudo, sobre as próprias camadas populares que ficam (...) entre dois fogos, em verdadeiras batalhas que são travadas nas favelas e periferia das cidades" (Velho, 2000:24). O episódio no ambiente da favela havia provocado também um grande esvaziamento da biblioteca. A baixa frequência de usuários presenciada naquele dia também me fazia refletir sobre outras situações que reafirmavam, a todo instante, as especificidades daquela biblioteca no contexto da Rocinha - como a entrada de um cão vira-lata no espaço cultural, que chegou a subir até o terceiro pavimento do prédio e o cheiro de esgoto que, em certos momentos, pairava no ar por mais que a biblioteca estivesse com as janelas fechadas. As características e problemas da comunidade se apresentavam, neste sentido, no dia a dia do espaço inaugurado em 2012. 3.4.3 Mas, afinal, qual é a nossa missão? Além das divergências internas verificadas no equipamento cultural e as alterações no cotidiano da biblioteca provocadas pelo contexto social da favela, outra situação também interferiu na dinâmica do espaço, envolvendo quase todos os funcionários, no período em que realizava o trabalho de campo. O episódio presenciado por mim em um dia de semana, além de alterar a rotina da biblioteca produziu uma série 175 Vale lembrar que uma visita guiada requer dos funcionários uma certa dedicação. O trabalho de produção de um dia de visitação e apresentação no teatro/auditório movimenta parte do corpo técnico. O cancelamento de qualquer evento na biblioteca é, portanto, motivo de frustração tanto para funcionários como para usuários. 119 de reflexões entre os funcionários bem como divergências entre os mesmos. A "situação-conflito" envolvendo um dos meninos usuários da biblioteca ocupou a mente da equipe, tal a "crise" instalada pela ação do garoto "rebelde". O episódio crítico vivenciado na biblioteca pode ser pensado a partir da ideia de "drama social" formulada por Victor Turner176 (1957) que o definiu como sendo um acontecimento que "expõe o caráter processual da vida social através das crises, distúrbios e conflitos, que com extensão e intensidades variáveis opõem pessoas ou grupo de uma totalidade" (apud Gomes, 2011:74). Estava entrevistando um dos funcionários no andar do acervo de livros em março de 2014. A entrevista acabou sendo interrompida porque um garoto de oito anos havia xingado um dos funcionários e fugia dos seguranças, correndo pelos setores da biblioteca. A situação de conflito acabou afetando toda a equipe técnica a ponto dos membros do corpo de funcionários se reunirem na sala da Administração para conversar sobre o tema. A reunião informal não contava com a presença dos representantes da diretoria. A situação vivenciada havia provocado nos funcionários uma série de questionamentos em relação ao uso do espaço cultural e, sobretudo, em relação às regras e à "missão" do equipamento cultural na favela. A multiplicidade de pontos de vista indicava que questões importantes precisavam ser discutidas. Num primeiro momento, havia um incômodo em relação à atitude do menino dentro do equipamento público. Como dar limites ao menino? Que tipo de atitude o funcionário e, consequentemente, a biblioteca precisavam ter? Por que a situação daquele garoto chegava àquele ponto? Duas perspectivas de entendimento se apresentaram com mais força no ambiente da biblioteca. Parte da equipe acreditava que os funcionários precisavam ser treinados para saber lidar com as crianças em geral, e com os meninos e meninas "problema". A outra dizia que a "missão" da biblioteca não estava clara e, por isso, as crianças não entendiam os códigos de conduta do equipamento cultural e os funcionários não se sentiam à vontade para impor limites, que deveriam ser legitimados formalmente pela biblioteca. Entretanto, todos concordavam que nos dois casos a 176 A ideia de "drama social" foi elaborada com base nas cenas teatralizadas (Turner,1986). 120 direção do espaço e da rede de equipamentos do gênero deveriam se posicionar em relação à situação177. Entre os relatos que se destacaram em meio ao conflito gerado esteve o de um funcionário que afirmou que o treinamento e a criação de um estatuto seriam fundamentais para que a equipe tivesse uma conduta única em relação a casos de rebeldia na biblioteca, já que a maneira de lidar com a colocação de limites era entendida pelos funcionários de forma diferenciada. Como disse um deles: É uma questão de você não ter o seu próprio estatuto e de não ser treinado para saber lidar com o público. Então se você tem regra, limite, você consegue se relacionar bem com o público. E isso vale para adulto, vale para criança, porque todo mundo testa os limites, o 'jeitinho brasileiro' de conseguir entrar depois do horário ou a criança que vai tentar se impor contra você. E você não sabendo o teu limite termina com o xingamento da criança, termina com estas coisas desnecessárias. (Funcionário) Outro entrevistado também se posicionou a favor de um treinamento. Eu vejo estes meninos como seres muito curiosos, muito inteligentes e muito inquietos, se a gente não souber lidar com eles, eles vão transformar tudo, se não tiver preparo. A gente precisa se reinventar o tempo todo para poder lidar com eles, eles são realmente um desafio, então passa sim por uma formação, pelo nosso preparo. (Funcionário) Um terceiro disse ainda que notava que alguns funcionários pareciam ter dificuldades de colocar limites porque o entendiam de forma pejorativa. O mesmo disse que acreditava que a própria conduta adotada pela direção da biblioteca priorizava a ideia de liberdade no espaço cultural. Ele defendeu uma reavaliação do projeto. 177 Outros casos já haviam ocorrido na biblioteca. Um dos funcionários contou que houve uma situação envolvendo um outro menino, que ao ser repreendido por subir numa cadeira, gritar e correr na biblioteca disse que "iria matar todo mundo". Em outra situação, também contada num dos depoimentos, um menino se colocou como o "patrão" do funcionário dizendo que quem mandava no funcionário era ele, e não o contrário, já que ele estava ali para atender os frequentadores. 121 Acho que isso também bate um pouco no reflexo ainda da ditadura militar que ninguém quer falar em limite, ninguém quer falar em regra, porque senão eu sou remetido a um passado militar, tem a ditadura e todo mundo tem alguma coisa não resolvida com a ditadura militar e aí tudo que tem a ver com limite não é bom, então deixa a coisa acontecer e pronto. Acho que não está dando certo. Então tem que ter uma autocrítica e falar: 'Isso aqui não funcionou, a minha filosofia não está dando certo, é preciso de uma reavaliação.' Isso não está sendo feito. (Funcionário) A "confusão" de visões e valores gerava cada vez mais divergências na equipe. Havia ainda aqueles que achavam que a rebeldia provinha da falta de propostas recreativas que deslocassem a atenção destes meninos e meninas e que respeitassem a maneira livre de ser destas crianças. Porque agora os meninos estão andando por aqui, estão os dois seguranças ali, ninguém sabe o que fazer. O que propor? Eles estão vindo em busca de propostas, propostas que não enquadrem eles, que não formatem eles, que respeitem a inteligência e a maneira livre deles de ser. Não estou dizendo com isso que eles não precisam de limite, que eles não precisam entender que não é hora de fazer isso. Mas precisa ter uma proposta clara de atividades para eles e que seja prazerosa, que desperte o interesse deles. Com esse mundo do jeito que está, com esse mundo de informações, de apelos visuais e sonoros como que eles vão chegar num espaço sentar e ouvir uma história? (Funcionário) Aqui, a discussão entre permissividade e autoritarismo já vista e revista, principalmente por educadores, é levantada como sendo um ponto de tensão no ambiente da biblioteca. Pelo fato do equipamento cultural reunir muitas crianças desacompanhadas, o dia a dia dos funcionários inclui atender aos usuários, planejar atividades e atuar como educadores e/ ou suprir a ausência dos pais. Neste sentido, a ideia de escola se apresenta no universo do equipamento cultural produzindo uma 122 espécie de "conflito de identidades" gerada pela indefinição de papéis no contexto da unidade pública. Além disso, o papel de autoridade, de dar limites às crianças parece ficar ainda mais delicado se tratando do contexto das favelas, já que o Estado, de forma geral, tem atuado de maneira autoritária e discriminatória, sobretudo nas abordagens policiais realizadas nestas localidades, ao violar o direito básico de livre circulação e ao infringir outros direitos. Nos dias posteriores ao ocorrido, as questões produzidas a partir da situação do menino voltaram a fazer parte do repertório de conversas na biblioteca. O incômodo relativo à associação do espaço cultural com o universo escolar foi, desta vez, citado de forma mais direta por alguns dos funcionários. Alguns relataram, por exemplo, que a biblioteca, apesar de não ser nem "escola" nem "creche", estava sendo usada, de maneira pragmática, apenas como local para deixar os filhos, em alguns casos. Como já citado em trecho anterior, uma das funcionárias disse: Estas mães deixam os filhos aqui e vão trabalhar. Acho isso muito preocupante porque estas crianças passam a tarde inteira aqui, entram, saem, sobem, descem. Nós não temos como cuidar delas a todo o momento, são muitas crianças. Também acho que não é este o nosso papel (funcionária da biblioteca). A negação em relação à ideia de "escola" e "creche" foi verificada em quase todos os depoimentos. Um dos funcionários relatou também certo desconforto ao ser chamado de 'tio' pelas crianças. Porque eu não quero que me chamem de 'tio'? Porque eu acho que incentiva um lado que não é meu papel, sabe? Agora eu também não vou refutar esse carinho, esse afeto, mas eu não me coloco nesse lugar. Mas tem um dado interessante. Eles pedem: 'Posso ir no banheiro?' Eu falo: 'Claro que pode, isso aqui não é escola, é aberto'. Agora eu já estou tentando inverter a ordem, quando eles chegam eu já falo: 'Olha, se quiser ir no banheiro, à vontade'. Porque tem ainda uma relação de dependência muito grande, de autoridade. É difícil sair deste papel também, e ao mesmo tempo a gente também precisa dar limites. 123 Nota-se, nas duas entrevistas anteriormente citadas, que os funcionários não reconhecem a biblioteca como uma extensão da escola por motivos distintos. O primeiro porque não considera ser papel da biblioteca cuidar de crianças - o que parece suscitar que ele gostaria que os pais ou responsáveis estivessem presentes e que o espaço cultural funcionasse de acordo com as regras gerais de uma biblioteca pública. O segundo porque defende uma posição ideológica em relação ao papel da biblioteca parque, entendida como lugar de liberdade, seja de circulação, seja artística, seja de escolhas, em contraposição aos códigos da escola, tradicionalmente conservadores. Os relatos coletados também evidenciaram ainda outras duas tendências: a de diferenciar o tratamento dado às crianças da favela e a de negar esta ideia. Uma das entrevistadas, por exemplo, defendeu um tratamento distinto para os meninos e meninas "rebeldes" e "hiperativos" porque acredita que estes fazem parte de famílias desestruturadas e por isso não recebem afeto e compreensão. Acho que estes meninos precisam de afeto, de carinho, precisam ser entendidos, com mais paciência, de repente seria bom conversar com eles. São crianças, muitas vezes, maltratadas em suas famílias e que na verdade só querem um pouco de atenção (Professora voluntária de um grupo de dança infanto-juvenil que estava na biblioteca quando o conflito ocorreu). Outro relato, também foi mais "compreensivo" em relação à questão da falta de limites de algumas crianças, justificada pelo contexto da favela. Não sei de nenhuma outra realidade de, por exemplo, classe média onde as crianças ficam soltas assim, mesmo na cidade do interior, onde seja mais seguro, mas aqui tem realmente isso, crianças muito novas andam sozinhas. Talvez nem seja por uma questão de estar numa família desestruturada, mas estão trabalhando e esta é uma realidade. É igual índio. Com três anos, as crianças que nasceram numa tribo na Amazônia são muito mais livres, eles já têm outra relação com a natureza, com o mundo. Estas crianças têm uma outra relação com a rua, com o trânsito, é diferente (Funcionário). 124 Por outro lado, uma funcionária defendeu que estas crianças não deveriam ser tratadas de forma diferenciada. Ela disse: Eu não vou tratar elas como "coitadinhas" só porque moram na favela". A temática assistencialista ainda é predominante quando se discute a relação do Estado com as favelas. Vistos como territórios onde há, sobretudo, carências das mais variadas, as favelas ainda são reconhecidas tanto pelo senso-comum como pelo próprio Estado como locais onde é preciso agir pedagogicamente a fim de reduzir os danos que a pobreza e a falta de "ordem" geram na vida de seus moradores. Além disso, este tratamento dado às favelas e aos favelados apresenta contradições já que o "conceito de assistência vislumbra uma relação dual e polar, em torno da qual se concretiza uma dinâmica de oferta e procura que opera ambiguamente. Quem tem não recebe e quem recebe continua sem ter" (Feitosa, 1998:146), posto que os serviços oferecidos costumam ser provisórios sendo apenas uma "ajuda" merecedora de "gratidão", ideia que se contrapõe inequivocamente à noção de direitos. Nota-se, portanto, que enquanto os dois primeiros depoimentos defendem um tratamento diferenciado para as crianças da favela, o segundo, da funcionária que se recusou a tratar o menino como "coitadinho", rechaça a perspectiva de se estabelecer um tratamento desigual em relação à criança. Neste sentido, ela defende que haja uma adequação desta criança às normas do equipamento cultural e às regras compartilhadas na vida social, de maneira geral. Percebe-se, portanto, uma polifonia de discursos e valores que ora reforçam codificações hegemônicas, ora buscam reduzir os danos de uma "situação cultural assimétrica"(1998:156). Retomo a ideia de "drama social" para analisar o episódio do garoto e suas consequências. Segundo o modelo de interpretação adotado por Turner, "o drama social" pode gerar uma adaptação da estrutura abalada ou levar à ruptura. O autor, segundo Gomes (2011:75), "propõe um modelo com quatro estágios, que não necessariamente estão presentes nessa disposição na realidade". Entre as fases mencionadas estariam a "de ruptura de alguma relação vista como crucial no grupo em questão" e outra "de rápida ampliação da crise na direção de uma intensificação da clivagem social". Haveria ainda como terceira fase "um período para a aplicação de meios legais ou rituais de reparação ou reconciliação das partes em conflito, no campo da ação, (sendo) o estágio final a expressão pública e simbólica da reconciliação em 125 diferentes padrões ou do rompimento irremediável" (2011:75). No caso do menino, o "drama social" não produziu uma ruptura ou cisão, mas gerou uma reflexão profunda sobre o projeto de biblioteca desenvolvido na Rocinha e que se expandiu para outras questões expostas nos parágrafos anteriores. Até a conclusão deste trabalho, não obtive relatos de que o diálogo com a direção da biblioteca e com a superintendência responsável pela rede de equipamentos do gênero tivesse se desenvolvido no sentido de pensar alternativas que respondessem às questões levantadas.178 Neste sentido, pode-se afirmar que a estrutura vigente não foi alterada, apesar do episódio ter provocado um movimento que parecia levar à uma reavaliação do projeto ou pelo menos à readequação de algumas ações e posturas no ambiente da biblioteca. *No último dia do meu trabalho de campo, ao conversar com alguns dos funcionários soube que a Biblioteca Parque da Rocinha passaria por um processo de transição, pois seria gerenciada por uma Organização Social (OS). Chamada de Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), a OS coordenaria todas as unidades da rede de equipamentos culturais do gênero no estado. A apreensão da equipe em relação às mudanças era relativa. Alguns não sabiam se haveria grandes mudanças ou pequenas. Uns diziam até acreditar que nada se alteraria, outros afirmavam que talvez a parte administrativa do equipamento público recebesse um incremento maior, já que segundo a própria diretora da biblioteca à época havia a necessidade de agilizar certos serviços no espaço cultural como os de manutenção do elevador, do ar-condicionado, entre outros. Considerações finais As situações vivenciadas no trabalho de campo, as conversas com funcionários e as entrevistas com as mais variadas faixas-etárias de usuários foram fundamentais para a compreensão dos usos e significados da Biblioteca Parque da Rocinha. Foi o trabalho etnográfico, de olhar de perto e de dentro, que permitiu o entendimento sobre as maneiras de fazer que transformam a biblioteca cotidianamente. Os usos não 178 Um dos funcionários contou que chegou a falar sobre o tema em um encontro que reuniu funcionários de todas as bibliotecas parque do estado. 126 programados mostraram, por exemplo, que a inventividade e a criatividade podem alterar práticas dando um novo sentido a espaços previamente planejados, como foi o caso dos estúdios de gravação e audiovisual e da mini-horta. O trabalho permitiu identificar ainda que a força do contexto social da favela interfere nas formas de uso do equipamento cultural e na dinâmica de funcionamento da unidade, como nos casos da flexibilização das regras relativas à presença de crianças pequenas sem os pais na biblioteca e do cancelamento de atividades devido às operações policiais na favela. Também foi possível verificar como os usos são realizados de maneira "tática" e vêm sendo apropriados pelos frequentadores de forma a se adequarem a interesses coletivos e individuais, como quando a mãe decide utilizar a biblioteca com o objetivo pragmático de reduzir custos, entre outras situações citadas. A pesquisa também evidenciou que a situação de violência preocupa os moradores da favela da mesma forma que aflige os moradores de outros bairros da cidade, e que a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) não reduziu a apreensão dos residentes que, segundo alguns depoimentos do público infantil, estipulam horários para que suas crianças retornem para casa por recearem algum tipo de confronto entre traficantes e policiais. O estudo mostrou ainda que, neste contexto de preocupação relativa à violência na favela, o espaço cultural passou a ser entendido como lugar seguro, sendo reconhecido pelos usuários como "casa" em contraposição à ideia de "rua", lugar perigoso, entre outras representações. E que, além disso, há também um receio significativo referente ao envolvimento de crianças com o tráfico de drogas, sendo, portanto, a biblioteca, na percepção dos usuários, um espaço que simboliza novas perspectivas de vida para os moradores da Rocinha, além da chance de mobilidade social. Foi interessante perceber também que a maioria dos usuários, principalmente os adultos, reconhecem a biblioteca como um avanço no que se refere às experiências públicas em favelas, mas criticam a maneira desigual pela qual o Estado ainda trata a favela e o favelado, com "projetos inacabados", caso do teatro/auditório. E que, apesar dos quase três anos de funcionamento da biblioteca, há ainda grandes conflitos relativos à assimetria cultural existente entre a favela e a biblioteca - já que "ambos os polos têm uma simbologia própria (e) regem-se por códigos e regras próprios e distintos" (Feitosa, 1998:27). E que, do mesmo modo, há tensões relativas à questão dos limites e à forma 127 como as crianças pequenas devem ser tratadas no espaço cultural sendo, portanto, inevitável inferir que será necessário rediscutir ações do projeto a fim de que o diálogo entre a biblioteca, os funcionários e os usuários seja mais profícuo. Também notou-se que o equipamento cultural tem o grande desafio de conquistar adultos e idosos, já que estes dois grupos, apesar de aprovarem a instalação da biblioteca, têm, na maioria dos casos, uma visão pragmática da vida, verificada tanto pelas sugestões dadas em relação à oferta de cursos profissionalizantes como pelo discurso de "falta de tempo" justificado pelo trabalho que, como salientou Feitosa (1998) é um valor que se contrapõe à histórica representação estigmatizada do favelado. Além disso, foi possível verificar, com base nas sugestões dos usuários, como no caso da recomendação referente à ampliação do horário de funcionamento da unidade, que a biblioteca deverá repensar algumas propostas para melhor atender às necessidades de seu público bem como precisará buscar novos meios de comunicação com os usuários no intuito de aprimorar seus serviços e atrair mais frequentadores. Ademais, acredito que esta dissertação trouxe luz ao tema da participação social dos favelados na luta por direitos, já que a instalação do equipamento cultural foi resultado de um processo de negociação com o poder público. E que, apesar da interlocução muitas vezes conflituosa entre sociedade civil e Estado, o caso da Biblioteca Parque da Rocinha demonstrou que o exercício da cidadania é a via mais legítima de transformação e ampliação das possibilidades de melhorias nos territórios populares, já que somente desta forma as populações se tornam copartícipes das ações do poder público nas localidades onde vivem. Por fim, gostaria de destacar que o estudo proposto revelou que há ainda muitos desafios pela frente, já que o espaço tem um grande potencial de atuação inexplorado na favela, e que as práticas verificadas no ambiente da biblioteca demonstraram inequivocamente que o uso desafia e reinventa o modelo, pois este só se constrói a partir de sua aplicação. 128 Bibliografia ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES E AMIGOS DE SÂO CONRADO (AMASCO). Rocinha uma nova realidade; transformação progressiva do espaço habitado. Rio de Janeiro, Fórum Técnico de Urbanização da Rocinha, [s.d.]. 23 p. BARBOSA, Jorge Luiz; SILVA, Jailson de Souza. As favelas como territórios de reinvenção da cidade. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, Rio de Janeiro, n. 1, p. 115 – 126, fev., 2013. BARBOSA, Jorge Luiz; DIAS, Caio (Org.). Solos Culturais. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2013. 200 p. BAUTÈS, Nicolas; FERNANDES, Lenise; BURGOS, Marcos. Entre confrontos e desafios na construção da legitimidade popular. 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