Decrescer feliz
Diante da crise,
movimento prega
“novo” comportamento
Café líder
Presidente revela
os projetos da
Fundação Ernesto Illy
Sacco e Vanzetti
O que a história desses
dois italianos ensina
ao mundo de hoje
www.comunitaitaliana.com
Rio de Janeiro, agosto de 2015
Ano XXI – Nº 205
ISSN 1676-3220
R 9,00 R$ 14,90
1994 - 2015
Ele quer
a Fifa
Zico fala sobre
os escândalos
de corrupção
envolvendo a CBF,
critica os atuais
critérios de eleição
na entidade máxima
do futebol mundial
e lembra do carinho
da torcida italiana
quando jogava
na Udinese
Empresário italiano traz a primeira wi-fi social ao país
melhor
O movimento italiano Decrescita Felice defende que a qualidade
de vida não depende do PIB e estimula os cidadãos a substituírem
produtos por bens autoproduzidos ou trocados com outras pessoas
Stefania Pelusi
P
ara entender o Movimento Decrescita Felice
(MDF), é preciso primeiro esclarecer o que
significa crescimento econômico. Em geral,
acredita-se que o crescimento econômico consiste no aumento da capacidade produtiva da economia,
portanto, da produção de bens e serviços de determinado país, definido pelo índice de crescimento anual do
Produto Interno Bruto (PIB).
— O PIB mede a quantidade dos produtos comprados e vendidos sem considerar se são úteis ou danosos.
No caso da gasolina consumida no tráfego quando você está preso num engarrafamento, o PIB cresce, mas
o seu bem-estar diminui. Por outro lado, há também o
efeito contrário: na minha família, temos uma horta há
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15 anos, na qual cultivamos frutas
e verduras que satisfazem as nossas
necessidades alimentares. Mas isso
não faz crescer o PIB, ou melhor, até
diminui, pois a demanda da mercadoria de frutas e verduras se reduz
— relata à Comunità o fundador do
MDF, Maurizio Pallante. Ele usa esses exemplos para explicar que não
se trata de um indicador de bem-estar, porque mede como positivos os
fatores negativos, os desperdícios, e
não considera como positivos a autoprodução e a economia baseada
no dom e na reciprocidade.
— A causa da crise que estamos vivendo é o crescimento. E se
A autoprodução de
bens como princípio
O movimento visa promover a
maior substituição possível de
bens industrializados e adquiridos
em circuitos comerciais de grande escala, com bens oriundos de
autoprodução de mercadorias ou
produzidos localmente ou trocados
sob a forma de doação. Tal escolha
implica uma redução do PIB a favor de melhor qualidade de vida.
O fundador do MDF salienta que o
decrescimento não é sinônimo de
recessão e utiliza um exemplo para explicá-lo: uma pessoa que não
come porque não tem nada para comer não faz uma escolha, enquanto
outra pessoa que não come para
fazer uma dieta faz uma escolha
para ficar melhor. Pallante usa esse
simples exemplo para explicar a diferença entre a mudança forçada de
um estilo de vida devido ao esgotamento de recursos necessários para
alimentar-se e a decisão consciente
de quem escolhe um caminho diferente, sustentável e justo.
O movimento é organizado em
centros espalhados por todo o país
e oferece uma abordagem diferente
para a política, tecnologia e estilo
de vida. Um dos fundamentos é a
autoprodução.
— Eu considero a autoprodução
um conceito extremamente subversivo de alguma forma, pois permite
substituir produtos que deveriam
ser comprados porque precisamos
e repensá-los de forma natural —
afirma à Comunità Lucia Cuffaro,
vice-presidente do MDF e presidente do núcleo romano do movimento.
Cuffaro conta que sua vida
mudou completamente em 2010,
quando começou a participar da
associação. Antes, ela era assistente de produção dos programas
da Rai, mas teve um problema de
saúde que se complicou devido
ao estresse. Foi quando ela pediu
demissão do emprego. Depois, passou a trabalhar para a organização
Città dell’utopia e se aproximou do
movimento. Cuffaro se envolveu
na divulgação de reflexões sobre
o tema do decrescimento e se tornou especialista em autoprodução,
trabalho pelo qual foi reconhecida
até mesmo pela sua antiga empregadora, a Rai, que lhe fez uma nova
proposta de trabalho: apresentar
o quadro Chi fa da sé, dentro do
programa Una mattina in famiglia.
Cuffaro ensina receitas e dicas de
autoprodução doméstica de baixo
custo com poucos ingredientes, todos saudáveis e naturais.
— A autoprodução permite
economizar até 95% em muitas
coisas — declara a enérgica e jovial
vice-presidente do MDF.
E quem pensa que é preciso
tempo para colocar em prática os
seus conselhos, Cuffaro responde
com um exemplo prático.
— Às vezes é mais conveniente
fazer algo caseiro do que ficar na fila do supermercado, como no caso
do pão, que pode ser feito uma vez
por semana. O tempo de atividade
manual que eu calculei, sem o cozimento, é de apenas sete minutos
— exemplifica.
Em 2014, Cuffaro escreveu o
seu primeiro livro, Fatto in casa,
smetto di comprare tutto ciò che so fare (Feito em casa, paro de comprar
tudo o que posso fazer). Apenas
no primeiro dia, foram vendidos
350 mil exemplares. Além disso,
Cuffaro trabalha como técnica na
Câmera italiana dos Deputados, e
se ocupa de redução de resíduos e
questões ambientais.
— Muitas pessoas que participam do Movimento Decrescimento
Feliz entraram na política, embora
não como representantes políticos,
e sim como técnicos, trabalhando
na Câmara e no Senado — relata.
Universidade ensina
disciplinas como reciclagem
e economia de doação
O movimento não consiste apenas em ser uma crítica ao modelo
de crescimento atual, mas também
estuda soluções teóricas e fornece
ferramentas práticas para construir
alternativas sustentáveis. Por isso,
Maurizio Pallante
(abaixo) fundou
o movimento
Decrescita Felice
em 2007. Entre os
seguidores, está
Lucia Cuffaro, que
se tornou vicepresidente do MDF
e especialista em
autoprodução, tema
de seu livro Fatto
in casa
Fabio Quattrini
Menos
é
o crescimento é a causa, não pode
ser a solução — afirma Pallante,
que acredita no decrescimento seletivo do desperdício como única
forma de sair da crise.
O italiano fundou o MDF em
2007, mas a ideia nasceu antes, em
1988, quando conheceu um responsável pelos serviços termotécnicos
do centro de pesquisa Fiat. Ele lhe
explicou que a redução da poluição,
associada ao uso de combustíveis
fósseis, não depende principalmente da adoção de fontes renováveis, e
sim da redução do desperdício.
— O sistema italiano, análogo
a muitos países industrializados,
desperdiça 70% da energia que
produz. Não faz sentido produzir
energia com fontes renováveis e
desperdiçar 70%. Somente se reduzirmos o desperdício faz sentido
desenvolver as fontes de energia renováveis, pois estas custam mais e
rendem menos que os combustíveis
fósseis — comenta Pallante, especialista em economia da energia.
Fabio Quattrini
Comportamento
em 2009, nasceu em Turim a Università del Saper Fare (UNISF), com a
intenção de aproximar as pessoas às
ideias e às práticas do Decrescimento através de workshops práticos.
Figuram entre as disciplinas
autoprodução, reciclagem, reuso
e autoconstrução, mas também
se aprende a se relacionar melhor
com a comunidade através do curso de economia da doação
— A universidade não é um lugar físico: é um projeto itinerante
desenvolvido por todos os centros
do MDF espalhados pelo país —
explica Cuffaro, docente da UNISF.
O projeto dá a possibilidade a
pessoas com competências e habilidades em um determinado tema de
torná-los disponíveis gratuitamente, com uma variedade de cursos que
vão de fabricação de cosméticos a
reparos elétricos, além de aprender
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Comportamento
a fazer desodorante, usando apenas
bicarbonato, maizena e o óleo essencial Tea Tree, entre outras coisas.
As pessoas que participam dos
cursos e do movimento pertencem
a diversas faixas etárias, dos 20 aos
70 anos. O grupo extremamente
pragmático se encontra por afinidades ideológicas e valores.
Tecnologia deve ser
aplicada para evitar o
desperdício e não para
aumentar a produção,
defende o movimento
Outro ponto importante abordado
pelo MDF é o desenvolvimento tecnológico.
— Atualmente, o desenvolvimento tecnológico tem como
finalidade aumentar a produção, enquanto nós gostaríamos que fosse
utilizado para reduzir o desperdício de recursos, ou seja, aumentar
a eficiência com que os recursos são
utilizados — destaca Pallante.
O italiano cita como exemplo a
Nova Somor, uma bomba que extrai
água do subsolo para irrigação sem
por exemplo, valorizando o nosso
pescado, como o camarão rosa”. Ali
dentro foi montada uma cozinha para atender os convidados especiais
e quem é solidário com a causa, como a associação Marevivo. Os nove
africanos, sul-americanos e italianos que vivem no abrigo da Igreja
de San Marco participaram dos preparativos das entradas e dos pratos
principais, à base de peixe e frutos
do mar, típicos da costa Adriática.
Momentos de
convívio no
núcleo romano
do Movimento
Decrescita
Felice, onde se
aprendem dicas
de autoprodução
doméstica e
reciclagem
Os dez princípios do
Decrescimento Feliz
1
Diminuir a distância entre produção e consumo, tanto em
termos físicos quanto humanos.
Fazer compras diretamente do produtor e estabelecer relações de
amizade e confiança com quem produz.
2
3
Redescobrir o ciclo das estações e a relação com a terra.
Reaprender o gosto de esperar pela estação certa para comer as
frutas, quando são mais saborosas e nutritivas.
Redefinir a própria relação com os produtos e as mercadorias.
Substituir o máximo possível as mercadorias com os bens autoproduzidos: alimentos como iogurte, pão, sobremesas, licores e
enlatados, e outros bens como roupas e móveis.
4
5
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7
Reconstruir interações sociais através da lógica da doação.
Doe sua experiência, seu conhecimento e seu tempo para os outros.
Fazer comunidades.
Criar ocasiões regulares para tornar as relações humanas estáveis ao longo do tempo.
Prolongar a vida das coisas, recusando a lógica do “último modelo”.
Adotar um estilo de vida baseado nos quatro R (reduzir, reutilizar,
recuperar, reciclar) e comprometer-se a espalhá-lo ao máximo.
Repensar a inovação tecnológica.
Adotar tecnologias que reduzam o consumo de recursos naturais,
preferindo a inovação direcionada à economia, em vez daquela destinada ao aumento do consumo.
8
Existir, pesando o mínimo possível sobre o meio ambiente, como
uma forma de máximo respeito para consigo e as gerações futuras.
Minimizar a sua pegada ecológica, reduzir o uso dos meios de locomoção próprios e substituí-los por transporte público ou veículos
menos poluentes.
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10
Redefinir a própria relação com o trabalho.
Redefinir o trabalho assalariado como meio para satisfazer parte
de suas necessidades e não como o fim da existência.
Divulgar os princípios do Movimento na área da política.
Organizar reuniões públicas, envolver os cidadãos em batalhas específicas e evitar qualquer tentativa de exploração das ideias
e propostas do Movimento.
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Alimento para todos
Das palavras aos pratos,
uma luta compartilhada por
Abruzzo e pelo Papa Francisco
a utilização de eletricidade e que já
passou da fase do protótipo e está
começando a ser comercializada.
Pallante explica que o decrescimento não deriva só da autoprodução
ou das melhorias das tecnologias:
se trata de uma filosofia de vida
que abraça muitos aspectos.
— Nós estamos convencidos de
que chegamos ao fim de uma época histórica, iniciada muitos anos
atrás com a revolução industrial. Se
não formos capazes de optar pelo
decrescimento, haverá um colapso,
como aconteceu no fim do Império Romano, só que desta vez será
muito mais dramático — afirma o
fundador do movimento. Da mesma
opinião, Cuffaro acredita que a ideia
de uma economia que produz de
forma ilimitada para criar sempre
novas necessidades chega sempre
a um ponto de não retorno e provavelmente “uma crise que já dura há
tantos anos não é uma crise, talvez
seja um status quo, o que significa
que chegamos à saturação”.
O fundador do movimento cita
como fato importante a recente encíclica Laudato si do papa Francisco,
em que aparecem muitos elementos comuns ao Decrescimento.
— O Decrescimento não é
mais visto como uma loucura de
alguns sonhadores, mas é visto
através das questões, como o uso
diferente das tecnologias e uma diferente impostação dos modelos de
“Se não formos
capazes de optar pelo
decrescimento, haverá
um colapso, como
aconteceu no fim do
Império Romano, só que
desta vez será muito
mais dramático”
Maurizio Pallante, fundador do MDF
comportamento e de valores entre
as pessoas — salienta o ex-presidente do MDF, que atualmente se
ocupa do Comitê científico do movimento.
De acordo com Cuffaro, atualmente, existem diferentes centros
também fora da Itália, como na Espanha, França e Inglaterra, mas somente
na Itália existem associações e grupos
operando no território de forma concreta. O fundador está convencido de
que é possível exportar o movimento
a outros países, como o Brasil. Pallante já foi convidado pela ONG italiana
ParaTi para dar palestras no Rio de
Janeiro, mas infelizmente tiveram
que adiar para o próximo verão, pois
ele está terminando o seu livro, cujo
tema será a política e as dinâmicas da
direita e da esquerda a partir da ótica
do decrescimento.
Guilherme Aquino
A
De Milão
Exposição Universal de Milão tem como
lema “Nutrir o Planeta, Energia para Vida”. Todos os países participantes tentam
mandar a mensagem sobre como alimentar
a humanidade com novas tecnologias e evitando o desperdício. A Itália é o país anfitrião e tem a obrigação de
dar o exemplo. O Pavilhão Zero, ponto de partida da Itália na exposição, alerta sobre os descaminhos da cadeia
alimentar que deixa à margem da mesa milhões de pessoas, seres humanos de todas as cores, idades e sexos,
sem acesso à água potável e a uma dieta sã. É preciso
que todos façam um pequeno esforço para, ao final das
contas, eliminar ou, na melhor das hipóteses, reduzir a
carestia no mundo, principalmente, no terceiro mundo.
Entre as 20 regiões italianas, Abruzzo foi a primeira a
incluir o direito ao alimento na sua Magna Carta.
Não é fácil passar das palavras para a ação, e as boas
intenções, somente, não enchem a barriga de ninguém.
Por isso, o estatuto da região não mede as palavras para impedir quaisquer interpretações equivocadas. O
texto é bem claro e não deixa dúvidas: “A Região promove o direito ao alimento, a uma nutrição adequada,
compreendida como direito a ter um regular, permanente e livre acesso a uma comida de qualidade, suficiente,
sã e culturalmente apropriada, que garanta a satisfação
física e mental, individual e coletiva, necessária para
condução de uma vida digna”. Em resumo, o documento
informa que a região se compromete, em seu território,
a favorecer a alimentação correta para todos e o combate, sem trégua, contra os maus hábitos alimentares,
incluindo o desperdício. Uma espécie de programa Fome
Zero, em versão “abruzzese”. A surpresa chega da região
com o maior território verde da Europa, com forte história de culto às suas tradições e que não contempla
uma vida indigna aos seus residentes e visitantes.
— Nós somos um povo hospitaleiro. Para nós, favorecer alguém
significa compartilhar o alimento. Por isso, esta nossa cultura foi
representada no nosso Estatuto,
introduzindo o artigo do direito ao
alimento, que deve ser dividido com
todos e não ser apenas o privilégio
de poucos — afirmou Cristiana Canosa, a comissária de Abruzzo para
a Expo durante jantar oferecido a
nove imigrantes, sem-teto, no histórico pátio interno da Umanitaria,
no centro de Milão.
Tudo foi realizado pelas mãos
de chefs estrelados das constelações culinárias do céu de
Abruzzo, entre eles Vito Pepe, do
Beccaceci, e Claudio Di Remigio, do
Conchiglia d’oro, que diz: “usamos
de muita criatividade e não desperdiçamos nada na cozinha; assim,
recuperamos toda a matéria-prima
e podemos manter bons preços,
Papa fez um preâmbulo da
encíclica lançada logo depois
A proposta da região vai ao encontro do apelo do papa Francisco. Na
abertura da Expo, o pontífice alertou para o esquecimento de quem
passa fome. Era já um pré-aviso e
um preâmbulo da encíclica que ele
lançaria logo depois, com uma forte
conotação ambiental. O Vaticano,
mesmo sendo um Estado à parte
dentro do território italiano, também está presente na Exposição
Universal, com um pavilhão de 360
metros quadrados, onde cultiva o
incentivo à ajuda ao próximo, como
já fazem diferentes ordens religiosas que matam a fome de quem não
tem o que comer nas cidades, através de restaurantes gratuitos.
Em Milão, o refeitório Ambrosiano, administrado pela Caritas,
normalmente abre as portas para
pessoas em dificuldade. Desta vez,
os portais foram escancarados para
centenas de residentes do quarteirão
de periferia, Grecco, onde se localiza
a estrutura. Vinte chefs, entre eles os
responsáveis pelas cozinhas do Quirinale, da Casa Branca e do palácio de
Buckingham — Fabrizio Boca, Criseta Comerford e Mark Flanagan
— tiveram que criar os pratos com
o que encontravam na geladeira: diversão e alimentação garantidas sob
a égide da solidariedade e da preocupação com o próximo.
No topo, jantar oferecido a imigrantes e sem-teto no histórico pátio interno da Umanitaria, no centro
de Milão. Acima, chefs estrelados cozinham para pessoas em dificuldade no refeitório Ambrosiano
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