XIII JORNADA DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO – JEPEX 2013 – UFRPE: Recife, 09 a 13 de dezembro.
REFLEXÕES SOBRE A REALIDADE DE VIDA E DE TRABALHO DE
UMA CAMPONESA DO ASSENTAMENTO CHICO MENDES III - PE
Sebastião André Barbosa Júnior 1; Jorge Luiz Schirmer de Mattos2.
Introdução
Desde o início das atividades como bolsista de extensão do Núcleo de Agroecologia e Campesinato (NAC), eu sabia
que teria um estágio de vivência. Ficava pensando, imaginando como seria esta vivência, como seria dormir, tomar
banho, ficar sem energia elétrica, entre várias outras coisas que não fazem parte da minha realidade. Só sabia que ia
ser bastante difícil passar uma semana imerso na realidade dos camponeses e camponesas do Assentamento Chico
Mendes III.
Os Estágios de Vivências em Comunidades Rurais são práticas que vem se realizando desde o final da década de 80,
a partir de experiências do Movimento Estudantil, principalmente via as Executivas de curso, como Federação dos
Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB), Executiva Nacional dos Estudantes de Veterinária (ENEV) e a
Associação Brasileira de Estudantes de Engenharia Florestal (ABEEF) (Silva, 2011). Essa preocupação do Movimento
Estudantil se deu principalmente devido as reformas curriculares sofridas pelos cursos das Ciências Agrárias a partir
da década de 1960, em que se privilegiou uma formação para atender as demandas da modernização conservadora da
agricultura, baseada no tecnicismo e difusionismo (Mengel et al., 2007).
O Estágio de Vivência soma aspectos importantes ao estudante, que vivência a realidade concreta do(a)
agricultor(a), dialogando com sua família, possibilitando a troca, a construção e a consolidação de novos
conhecimentos, aspectos esses que raramente são vistos na literatura ou na sala de aula (Souza et al., 2009). E de
acordo com Casagrande (2000), esses estágios podem contribuir para a formação de uma militância para o coletivo,
não apenas no sentido, político, mas profissional, humano e social.
A compreensão do trabalho da mulher está diretamente relacionada à questão da “identidade feminina”, ou seja, às
funções de reprodução. Culturalmente, o trabalho feminino tem sido considerado uma extensão do lar sendo a
atividade econômica das mulheres descontínua, em razão dos momentos cruciais de seu ciclo vital, em que o mais
relevante é a maternidade. Além disso, a presença ou ausência de um companheiro e filhos na unidade doméstica, e a
residência urbana ou rural são fatores que exercem um efeito marcante sobre as possibilidades de inserção das
mulheres no mundo do trabalho (Yannoulas, 2002, apud Fortunato et al., 2004). De acordo com Fortunato et al.
(2004) o trabalho feminino fora de casa, sobretudo, na agricultura, é sempre visto, como uma “ajuda”,
descaracterizando qualquer compreensão do valor social deste trabalho, a exemplo do que também acontece com o
trabalho doméstico, visto como inerente a “condição feminina”, tendo os homens ainda enfatizado que o trabalho da
agricultura era para eles, por ser um “serviço pesado”, portanto, inadequado às condições físicas das mulheres.
A história de mulheres na constituição e trajetória dos assentamentos é marcada por muitos atos de discriminação
naturalizada. As mulheres têm tido ao longo de anos, na história de muitos assentamentos, presença ativa na
intermediação com o poder local, na proposição de iniciativas de diversificação produtiva, no reforço de estratégias
familiares que têm se apresentado nas relações de aproximação e de conflito que permeiam a constituição deste novo
modo de vida. Ao tomar iniciativas de atividades diversificadas, as assentadas têm se contraposto aos modelos
tradicionais, empenhados em naturalizar a divisão do trabalho e da vida cotidiana entre homens e mulheres. O fato de
as mulheres terem papéis centrais nestes embriões de experiências produtivas diferenciadas não implica,
necessariamente, mudanças efetivas no interior das relações familiares, dos códigos tradicionais que ainda interferem,
em muito, na lógica das relações familiares (Ferrante et al., 2013).
O objetivo do presente trabalho é a realização de uma análise de caráter descritiva, como também reflexiva a
respeito da minha vivência realizada no Assentamento Chico Mendes III, ressaltando a aproximação com a realidade
da vida e do trabalho na unidade de produção da assentada que me acolheu.
Material e métodos
O estágio de vivência faz parte do Programa de Extensão sobre Transição Agroecológica desenvolvido pelo Núcleo
de Agroecologia e Campesinato (NAC) junto ao Assentamento Chico Mendes III. O assentamento faz parte do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e está localizado nos munícipios de São Lourenço da Mata e
Paudalho em Pernambuco. Todos os bolsistas que fazem parte do Programa de Extensão participaram da imersão na
realidade do assentamento, via estágio de vivência.
Essa vivência foi realizada durante o período de 13 a 17 de maio de 2013. A chegada ao assentamento ocorreu as
1
Primeiro autor é Veterinário, graduando do curso de Licenciatura em Ciências Agrícolas e bolsista de extensão (financiado pela Secretaria de Ensino
Superior do Ministério de Educação - SESu/MEC - PROEXT) do Núcleo de Agroecologia e Campesinato (NAC) da Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE). Rua Dom Manoel de Medeiros, S/N – Dois Irmãos, Recife, PE, CEP 51171-030. E-mail: [email protected]
2
Segundo Autor é Professor Adjunto do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Rua Dom Manoel de
Medeiros, S/N – Dois Irmãos, Recife, PE, CEP 51171-030. E-mail: [email protected]
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7:00 h da manhã da segunda-feira e a saída na sexta-feira pela manhã. Nesse período cada estagiário, do total de sete,
foi recebido por uma das 55 famílias assentadas, que nos proporcionaram vivenciar as suas rotinas domésticas, de
trabalho e de vida.
Resultados e discussão
A. A história de vida
Fui acolhido pela família de uma camponesa, Dona Maria Aparecida Germano, carinhosamente chamada de Cida
pelos demais assentados(as), que tem quarenta e sete anos e vive com uma filha, seu genro e duas netas. Ela mora
próximo a escola e a Associação dos agricultores(as) do assentamento. Dona Cida também é feirante e vende seus
produtos na Feira Agroecológica Chico Mendes, localizada na praça do Canhão em São Lourenço da Mata – PE.
Durante o convívio pude conversar sobre vários assuntos com a camponesa. A sua história de vida pareceu bastante
difícil e sofrida. Dona Cida contou que teve um casamento bastante complicado, chegando até a ser agredida
fisicamente pelo ex-marido. Também contou que trabalhou como doméstica e se sentia muito humilhada: “Me lascava
de trabalhar. Lavava pratos, roupas e banheiro e a patroa passava o dia sentada reclamando dos meus serviços”.
Chegou um momento que não aguentou os problemas do casamento e se separou. Foi então que resolveu compor o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na luta pelas terras do engenho São João (atual assentamento
Chico Mendes III) desde a primeira ocupação em 2004.
Quando se ligou ao MST ainda estava trabalhando como diarista, mas chegou um momento que pensou: “Não vou
mais me submeter à humilhação!”. E assim deixou de ser diarista e foi viver só da agricultura.
Em seus relatos Dona Cida demonstra claramente que seu contato com a agricultura é bem antigo: “Sebastião eu
pego na enxada desde os oito anos!”. Mas sua relação com o ambiente ainda era da agricultura tradicional: “Para
mim, minha plantação tinha que tá sempre limpinha, com a terra nua. Se nascesse um pezinho de mato eu
arrancava!”. Seu modo de trabalhar com a agricultura foi mudando, principalmente depois das intervenções
realizadas pelo NAC no assentamento: “Desde que o professor começou os projetos aqui eu participo!”.“Hoje eu
gosto de trabalhar na terra com esses matos secos (cobertura morta) e podre (em decomposição)”. “A gente vê que a
terra é melhor quando está assim!”.
É interessante perceber a sensibilidade que a camponesa tem com os animais, sempre muito atenciosa e cuidadosa
com seus bois, vacas, ovelhas, gato e cachorros. Pude perceber que todos os dias ela alisava, tirava carrapatos e até
conversava com seus bichos.
Um dos grandes sonhos dela é ter a sua parcela demarcada definitivamente e construir a sua casa de tijolos: “Ah
Sebastião tenho fé em Deus de ter minha parcelinha e construir minha casa, mas uma casa de gente!”.
B. O trabalho na unidade de produção
A unidade de produção da assentada é distribuída em duas áreas: uma fica próxima a sua casa, é o roçado coletivo
onde ela produz hortaliças, tubérculos, milho, feijão e algumas fruteiras. A outra parte é a sua parcela que fica um
pouco afastada de sua casa, tendo uma área de 15000 m² (1,5 ha), onde está implantando o roçado experimental,
cultivado com cará, macaxeira, algumas fruteiras e hortaliças. Em outra parte dessa mesma área está sendo cultivada
uma roça de macaxeira.
A situação do solo é melhor na área do roçado coletivo próximo a sua casa, por ser uma área de várzea. A
realização de práticas que contribuam para a sua recuperação ainda é bastante escassa. Pude ver o uso de cobertura
morta em alguns locais, a utilização de adubação orgânica e a não utilização de insumos químicos, mas falta em suas
áreas o manejo integrado com plantas adubadoras.
Na sua área a produção animal também está presente. Ela cria bovinos, ovinos e suínos, além de cachorros e um
gato. Os animais, bovinos e ovinos, são levados para o pasto de manhã cedo e a noite são alojados próximo a sua casa.
Ela se envolve com a lida diária dos bovinos e a sua filha e a neta mais velha com o manejo dos ovinos e suínos.
Durante a vivência presenciei um fato bastante inusitado na sua criação de suínos. A camponesa tentou vender seus
porcos, mas não estava conseguindo acertar um preço que lhe interessasse. Foi, então que resolveu abater, ela mesma,
os animais e destinou a carne ao consumo da própria família. É na criação de animais que Dona Cida tem maior
sensibilidade, tamanha é sua atenção no trato com os mesmos. Contudo, não demonstrou muitos conhecimentos
relativos as doenças que acometem os animais e ao uso das plantas medicinais.
Por fim, ao falar renda mensal, a assentada informou que consegue em média de 1,5 (um meio) a 2 (dois) salários
mínimos. Valor este que aumenta no período da venda da macaxeira chegando a receber até três salários mínimos.
C. Reflexão e aprendizagens
Nesse período pude perceber o quanto minha formação profissional é limitada e muitas vezes improdutiva e por
vezes insignificante no contexto em que vivem os camponeses e as camponesas. Mesmo sendo técnico agrícola e
médico veterinário, não me sinto bem preparado profissionalmente para atuar numa situação tão diversa e complexa
como é o caso de assentamentos e da agricultura dita familiar, que requer antes de tudo embasamento social,
humanista e político. Isso porque essas duas formações se deram numa perspectiva meramente tecnicista com foco no
agronegócio, conforme abordagem de Mengel et al. (2007) que remonta os anos 60.
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Assim os momentos vivenciados no contexto do assentamento, das parcelas dos próprios camponeses(as), não só são
novas e relevantes para mim, mas especialmente porque realizada numa perspectiva de transição agroecológica, em
que novos conhecimentos estão sendo construídos e compartilhados, o que por si só reflete a importância formativa do
estágio (Souza et al., 2009).
Nesses poucos dias de convívio e com base nos relatos foi possível ter uma ideia da difícil história pessoal de Dona
Cida também perceber o quanto culturalmente a situação da mulher é mais complexa que a do homem, em decorrência
de preconceitos e as vezes até de maus tratos (Yannoulas, 2002; Ferrante et al, 2013). Não obstante podemos perceber
que a camponesa exerce um papel principal no tocante ao trabalho realizado em sua unidade produtiva, como também
nas atividades do lar, sendo responsável por sua filha e netas e por tarefas domésticas. Essa realidade evidencia que o
trabalho e a função que Dona Cida cumpre cotidianamente não tem apenas o valor de uma “ajuda” como mencionado
por Fortunato et al. (2004), mas pelo contrário ela ocupa papel central na produção agrícola (Ferrante et al., 2013).
Também nos revela ainda o quanto a camponesa está envolvida com as responsabilidades do trabalho doméstico, como
uma condição da natureza feminina (Fortunato et al., 2004).
Conclusão
Considero essa experiência bastante relevante para minha vida pessoal, pois contribuiu tanto para minha formação
profissional, quanto para a minha compreensão das relações humanas, políticas e sociais. Foi muito interessante
conviver esse período inserido na realidade nua e crua de um assentamento, onde aprendi muitas coisas com a
realidade da camponesa que me acolheu. Quando se vive numa realidade que não tem energia elétrica, não tem água
encanada, não tem saneamento básico, as casas são de barro (pau a pique) e as estradas estão em péssimos estado, ou
seja, não tem várias coisas essenciais. Isso me fez refletir e dar mais valor as pequenas coisas, não num sentido
negativo, mas na essência dessas coisas.
Por fim vale salientar que apesar de culturalmente a sociedade ser ainda extremamente machista e patriarcal, a
camponesa mostrou que quem tem o papel central na vida de sua família e na agricultura é ela. Essa capacidade de
lutar pela sua vida e dos seus esta aliada a sua religiosidade: “Jesus me colocou nesse deserto, mas Ele vai me tirar!”.
Essas palavras da camponesa denotam seu sentimento em relação a grande dificuldade de se viver dignamente na atual
realidade do assentamento Chico Mendes III, mas também a sua convicção de que um dia as coisas mudem para
melhor.
Agradecimentos
Quero agradecer a camponesa Maria Aparecida Germano, que me acolheu tão bem no período da vivência, que me
ofereceu o que tinha de melhor em sua moradia com muito amor e respeito. Agradeço a todos(as) camponeses(as) que
fazem parte do Assentamento Chico Mendes III. Também agradeço ao NAC pela oportunidade de participar dessa
experiência e a Secretaria de Ensino Superior do Ministério de Educação - SESu/MEC, pelo financiamento do projeto.
Referências
Casagrande, N. O papel do Estágio de Vivência para a formação universitária: discutindo a partir da experiência
concreta. Bahia: Faculdade de Educação da Universidade da Bahia, 2000. Disponível em:
<www.faced.ufba.br/racunho_digital/textos/466;htm>. Acesso em Setembro de 2013.
Ferrante, V. L. S. B.; Duval, H. C.; Bergamasco, S. M. P; Bolfe, A. P. F. Na trajetória dos assentamentos rurais:
mulheres, organização e diversificação. In: Neves, D. P.; Medeiros, L. S. de (Orgs). Mulheres camponesas: trabalho
produtivo e engajamentos políticos. Niterói: Alternativa, 2013. p. 195 – 216.
Fortunato, M. L.; Neto, M. M.; Oliveira, R. J.; Ana Elizabete Moreira de Farias, A. E. M. de. Relações de Gênero em
Assentamentos Rurais - Vivências e Convivências Cotidianas de Homens e Mulheres. In: 2º Congresso Brasileiro de
Extensão Universitária. 2004. Belo Horizonte. Anais... Disponível em: < https://www.ufmg.br/congrext/Direitos/Direitos64.pdf >.
Acesso em setembro de 2013.
Mengel, A. A.; Ribeiro, L. P.; Bearzi, I. de.; Dalbianco, V.; Brito, A. N. S.; Froehlich, J. M. Estágios
Interdisciplinares de Vivência (EIVs): contribuição a mudança de paradigma na agricultura. Revista Brasileira de
Agroecologia, v. 2, n. 2, p. 232 – 236, outubro de 2007.
Silva, J. N. da. Aprendizado em Extensão Rural para além da sala de aula: A experiência dos Estágios de Vivência em
comunidades rurais. In: Lima, J. R. T. de (Org.). Agroecologia e Movimentos Sociais. Recife – PE. Bagaço, 2011. p.
208 – 223.
Souza, G.; Lima, F.; Mattos, J. L. S. de.; Lima, J. R. T. de. A importância do Estágio de Vivência em Agricultura
Familiar na formação do licenciando em Ciências Agrícolas. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 4, n.2, p. 1338 –
1341, novembro de 2009.
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