Olhares paulistanos, sensações nordestinas
Alessandra Felix de Almeida
[email protected] / [email protected]
Resumo: O presente artigo trata do olhar dos paulistanos quanto aos migrantes
nordestinos, as respectivas sensações destes últimos e como o preconceito é percebido
por ambos. A maioria dos migrantes nordestinos, presentes neste artigo, migraram para
a cidade de São Paulo entre anos 1960 e 2000, nesta delimitação temporal, será
observada a relevância entre o papel do preconceito e dos objetivos da migração, qual
deles seria mais importante para este migrante que teria ou não perdido suas raízes,
estaria ou não integrado na cidade onde não nasceu.
Palavras-chave: nordestino, paulistano, preconceito, migração.
***
1. Introdução
O maior fluxo da migração nordestina para a cidade de São Paulo em razão do
aumento das ofertas de emprego ocorreu entre as décadas de 60 e 80 (WIKIPÉDIA,
2010), no ano 2000 os nordestinos representavam 19,62% de toda a população da
cidade (TERRA, 2010), uma faixa significativa no que diz respeito ao consumo, seja ele
de assistência, bens ou cultura, esta significação contradiz os últimos episódios relativos
ao preconceito manifestado pelas redes sociais que ganharam notoriedade nos mais
importantes veículos de comunicação, podem ser ações isoladas e que não representem
o pensamento total dos paulistanos, porém uma vez que são iluminadas tomam corpo,
pedem atenção e despertam curiosidade. Afinal, quem são, como estão, o que fazem e
quais são as sensações do migrante quanto a esses olhares da população paulistana?
Delimitando o campo de observação na migração do período de 1960 a 2000,
sem grandes dificuldades foram encontrados alguns personagens desta história.
Apesar do formato estrutural de artigo, o texto a seguir tem estilo ensaístico, pois
a base dele está em conversas – sem anotações ou gravações –, descompromissadas
com alguns atores de parte da história da migração nordestina para São Paulo, que de
maneira muito atenciosa, leve e gentil contaram suas vidas. Foi efetuado um
levantamento bibliográfico a fim de fundamentar a questão do preconceito no Brasil.
2. Cabras Valentes
Seu Ferreira é um ascensorista que está em São Paulo há 40 anos, mora em
casa própria e tem mais duas que aluga, seus dois filhos têm curso superior, sendo que
um deles está fazendo mestrado, “é um brancão alto, muito namorador”, vai de avião à
Pernambuco todos os anos e alguns meses antes da viagem, compra tecidos de seda
principalmente os estampados com bolinhas, “sou doido por uma bolinha”, com eles sua
esposa confecciona camisas, disse ainda que não abre mão de uma calça branca com o
vinco bem marcado.
Da. Maria trabalha como faxineira desde que chegou a São Paulo, há 42 anos,
mora em casa própria, obtida através de mutirão, contou que a casa está muito bonita,
colocou cerâmica em todos os cômodos de um sobradinho muito “ajeitado”, sua última
conquista foi o telhado da garagem, foram 20 anos de luta, que valeu a pena e está
muito orgulhosa, recentemente comprou um carro usado com o qual a filha a leva ao
trabalho todos os dias, pois já está muito cansada para pegar condução, essa mesma
filha, a caçula de cinco irmãos, está no terceiro ano do curso universitário de estética.
Zé Maria quando chegou à cidade trabalhou como cobrador de ônibus e nos
Correios, até que se encontrou na profissão de cozinheiro, sua carreira em São Paulo
acabou de completar 35 anos, mora em casa própria, tem carro, é proprietário de uma
pequena fábrica de salgados que são fornecidos aos bares e lanchonetes do bairro onde
mora, para que a logística da produção e entrega sejam eficientes, acorda todos os dias
às três horas da manhã e todos os integrantes da família participam do processo, seus
três filhos têm curso superior e ainda assim continuam ajudando o pai.
Hoje em dia Seu Toninho acumula as funções de ascensorista e faxineiro, mas
quando chegou a São Paulo, há 45 anos, tinha três empregos. Mora em casa própria, vai
de avião à Pernambuco todos os anos visitar seu pai que agora está muito doente, “meu
paizinho está tão velhinho”. Foi integrante da bateria da Escola de Samba Nenê de Vila
Matilde por muitos anos, mas já não toca mais, contou orgulhoso que agora é convidado
e participa da ala “Velha Guarda”, seus dois filhos têm curso superior e moravam
sozinhos, porém como ficou viúvo recentemente os filhos voltaram a morar com ele, mas
disse que já está “com o saco cheio”, porque ficam perguntando a todo momento se ele
está bem e ele não gosta de “paparicos”.
Edmilson é porteiro e garçom, está em São Paulo há 15 anos, tem casa própria,
vai de avião à Paraíba todos os anos, sua filha de dois anos está em creche particular,
ele adora forró, cantou uns trechinhos durante a conversa que tivemos e perguntava
entre um trecho e outro “Conhece esta? E está, conhece?” Porém, depois que casou
deixou de ir aos bailes, “minha mulher é uma fera”.
Mauro trabalha como ascensorista e garçom, há 20 anos está em São Paulo,
mora em casa própria, tem carro e moto, vai de avião à Paraíba todos os anos,
recentemente comprou uma casa para sua mãe em sua terra natal, disse que gosta
muito de namorar e por conta disso recentemente foi surpreendido com uma filha, agora
com 11 anos, disse que ficou confuso, mas não fugirá da sua responsabilidade de pai,
conversou com a menina apenas uma vez e notou que “a bixinha precisa dele”.
Ronaldo é mestre de obras, mas começou como ajudante há 15 anos em São
Paulo, mora em casa própria construída por ele mesmo, tem carro e moto, manda
dinheiro todos os meses para a mãe que está na Bahia, gostava de uma cervejinha com
os amigos, mas depois que casou “deu uma diminuída” porque se ele beber, contou
sorrindo, sua esposa o deixa de castigo.
Da. Jô mora em São Paulo há 48 anos, trabalhou como costureira durante muito
tempo, tanto que nem se lembra, lembra apenas que “dormia e acordava em cima da
máquina de costura”, agora é dona de casa e seu marido, embora não precisasse, era
guarda noturno até o ano passado, agora parou de trabalhar porque está com Mal de
Parkinson e isso “está acabando com ela”. Teve quatro filhos, dois têm curso superior e
os outros têm lojas de roupas em bairro nobre, foram eles que compraram, mobiliaram e
pintam sua casa todos os anos na época do Natal.
Carlos é um empresário bem sucedido, chegou a São Paulo na década de 70,
mora em casa própria, tem chácara que já foi utilizada como locação de novela da Rede
Globo, tem fazenda, é proprietário de uma tecelagem, possui carro importado ano
2010/2011, três lojas de tecidos e uma de roupas, seus dois filhos têm curso superior e
trabalham com ele, está muito satisfeito e fica espantado com a atual tecnologia,
mostrou seu celular de última geração e contou que com ele administra de longe
praticamente todas as atividades de sua produção, faz planilhas, envia e-mails, faz
pedidos “é uma maravilha”.
Seu Joaquim é ascensorista há 30 anos, mas quando chegou a São Paulo, há 52
anos, acumulava diversas funções, durante muito tempo dormia apenas três horas por
noite, mas valeu a pena, conseguiu comprar sua casa na cidade e acabou de construir
uma na Praia Grande, colocou seus dois filhos na universidade e só não está mais feliz
porque o reumatismo e o diabetes estão “judiando” muito dele.
***
3. Quem tem fé não morre pagão
O transcrito acima trata-se de sondagens obtidas por meio de conversas cujo
objetivo era identificar como definiam a si mesmos os próprios nordestinos migrados a
partir da década de 60 e a presença do preconceito sentido por eles. Confesso meu
constrangimento quando do questionamento quanto ao preconceito. Explico: eles
apresentavam bem estar, demonstravam estarem satisfeitos com a vida que têm e com
os objetivos alcançados. Mas perguntei assim mesmo, a resposta de todos eles foi
precedida por um silêncio, um levantar de sobrancelhas, uma torcida de boca e
finalmente a verbalização “tem sim, eu nunca sofri, mas sei de quem já sofreu”.
Nos relatos foi identificado um tipo ideal de migrante – há mais de 30 anos na
cidade –, aquele que se deu o direito de sair de sua terra em busca de uma vida melhor,
não perdeu o foco de seus objetivos, independente do que pensassem ou falassem
deles, trabalharam muito e ainda continuam trabalhando, porém não são súditos de seus
ofícios, não teriam o trabalho como um dever da vocação, encontrada por Weber em a
“Ética Protestante”, assim como também não estariam vestidos com a camisa de força
do capitalismo moderno inspirado pelo “espírito do capitalismo” diagnosticado pelo
mesmo autor. Não aspiraram por posições profissionais ou intelectuais de expressão
social, suas necessidades eram outras, aquelas básicas que proporcionam manter a vida
viva, contam suas histórias com orgulho, satisfação e agradecem a Deus. Do ponto de
vista da modernidade urbana, seus objetivos são simples, porque encaram a vida com
simplicidade de maneira tradicionalista, comer e dormir bem lhes bastam e talvez seja
isso que incomode tanto alguns paulistanos.
Bem ou mal, certo ou errado, seja lá o que entendemos por um ou por outro, o
fato é que o preconceito existe - a ser demonstrado no decorrer deste artigo - e para que
entendamos o significado do preconceito, que por ora apresento do ponto de vista dos
dicionários convencionais, preconceito é “conceito ou opinião formados antes de ter os
conhecimentos
adequados;
opinião
ou
sentimento
desfavorável,
concebido
antecipadamente ou independente de experiência ou razão; superstição que obriga a
certos atos ou impede que eles se pratiquem; atitude emocionalmente condicionada,
baseada em crença, opinião ou generalização, determinando simpatia ou antipatia para
com indivíduos ou grupos; atitudes discriminatórias incondicionadas contra pessoas de
outra classe social; manifestação hostil ou desprezo contra indivíduos ou povos de
outras raças; intolerância manifesta contra indivíduos ou grupos que seguem outras
religiões.” (MICHAELIS-UOL, 2010)
***
4. Sem bestagem
A pesquisa publicada por Carlos Alberto Almeida (2007) no livro “A Cabeça do
Brasileiro”1, demonstrou que a região, no que diz respeito ao preconceito, é quase tão
importante quanto a cor, no caso do “parecer nordestino”, quanto mais nos extremos da
escala branco e preto menos aparência nordestina é identificada, assim o nordeste é
mais pardo (ALMEIDA, 2007: 222), uma prova de nossa miscigenação, que segundo
Gobineau (1816 – 1882) “as grandes raças que contribuíram para a formação da
humanidade não eram tão desiguais em valor absoluto, para ele, a tara da
degenerescência se ligava mais ao fenômeno da mestiçagem”. (STRAUSS, 1976: 328,
329). Essa teoria estaria ainda presente em nossos inconscientes? Para Sérgio Buarque
(2008) sim, “a imagem de nosso país que vive como projeto e aspiração na consciência
coletiva dos brasileiros não pôde, até hoje, desligar-se muito do espírito do Brasil
Imperial” (HOLANDA, 2008: 177) e disse mais:
Pode dizer-se, realmente, que pela importância particular que atribuem ao valor
próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação
aos semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses
muito de sua originalidade nacional. Para eles, o índice do valor de um homem
infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise depender dos demais,
em que não necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual é filho de si
mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes - e as virtudes soberanas para
essa mentalidade são tão imperativas, que chegam por vezes a marcar o porte
pessoal e até a fisionomia dos homens. (HOLANDA, 2008: 32)
“As pessoas se classificam a partir do fenótipo, ou seja, a partir da aparência
física” parecemos ricos, pobres, inteligentes ou não, um “preconceito de marca, calcado
no aspecto físico de cada um”. (ALMEIDA, 2007: 215)
1
O objeto desta pesquisa foi a verificação quantitativa das hipóteses do antropólogo Roberto DaMatta que
identificou o Brasil como hierárquico, familista, patrimonialista, encaixando-se em vários outros adjetivos que
significam arcaísmo e atraso, sua chave analítica foi a igualdade versus hierarquia. A introdução do livro A
Cabeça do Brasileiro (Record, 2007: 25) traz como subtítulo “Os dois Brasis: a luta entre o arcaico e o
moderno”, Almeida, através da Pesquisa Social Brasileira, demonstra que o Brasil “não é um bloco monolítico,
mas uma sociedade profundamente dividida. O Brasil, na verdade, são dois países muito distintos em
mentalidade. Dois países separados, num verdadeiro apartheid cultural”.
A façanha que representou o processo de fusão racial e cultural é negada, desse
modo, no nível aparentemente mais fluido das relações sociais, opondo à
unidade de um denominador cultural comum, com que se identifica um povo, a
dilaceração desse mesmo povo por uma estratificação classista de nítido
colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa conceber.
(RIBEIRO, 1995: 24, 25)
Quanto à ocupação profissional, Almeida (2007) apresentou que as profissões de
prestígio elevado são associadas aos brancos, à medida que o prestígio diminui, pardos,
nordestinos brancos e pretos são mais mencionados (ALMEIDA, 2007: 227). Embora o
preconceito contra pretos seja grande “os pardos são mais malvistos do que os pretos,
são eles que detêm os menores percentuais em todos os atributos positivos”. (ALMEIDA,
2007: 228)
Ainda em Almeida, confirmando as interpretações de DaMatta, foi demonstrado
que o brasileiro médio tem uma visão de mundo hierárquica (ALMEIDA, 2007: 75),
podemos perceber que a expressão “cada macaco no seu galho” que representa que
cada qual deve saber o seu lugar na sociedade e se comportar de acordo com ele,
caminha de mãos dadas com o “você sabe com quem está falando?” que representa que
cada um deve desempenhar o papel determinado por sua condição social. (ALMEIDA,
2007: 75). Toda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios (HOLANDA, 2008:
35), o patrão será tratado como patrão e o empregado como empregado mesmo fora das
relações de trabalho. (ALMEIDA, 2007: 79)
***
6. Olhando no caroço dos olhos
Os pardos, conforme demonstrado pelas pesquisas de Almeida (2007) são
identificados como nordestinos, sendo que estes não têm profissões de prestígio, são
frutos da miscigenação, trazem a marca da desigualdade, do que não deu certo e do que
corromperia a “pureza” das etnias, foi demonstrado ainda que no Brasil possuímos uma
visão hierárquica e com isso não queremos nos misturar, estes mesmos nordestinos,
sejam pardos, pretos, brancos ou rajados, com variados formatos de cabeças e diversas
estaturas, fazem parte do povo brasileiro, com seus direitos, assim como todos os
outros, assegurados pela Constituição da República Federativa do Brasil que em seu
poético artigo 5º garante que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
(PLANALTO, 2010)
É preciso agora apresentar algumas características do nordeste e do nordestino longe de levantar uma bandeira ou gerar um preconceito às avessas – para que
possamos fazer equações com as informações descritas acima.
Nosso atual presidente da República, os presidentes da Petrobras e da
Eletrobrás, o responsável pela chegada da televisão no Brasil, diversos escritores,
cineastas, atores, artistas plásticos, músicos, são nordestinos. A maior parte da cultura
nacional consumida pelos brasileiros é de origem nordestina. O nordeste é o segundo
maior colégio eleitoral, é a região brasileira que possui o maior número de estados, foi o
berço da colonização portuguesa no país, abrigou a primeira capital do Brasil, cidades
nordestinas estão recebendo reconhecimento nacional e internacional pelos seus pólos,
centros e institutos tecnológicos, o Porto Digital (desenvolvimento de Softwares), em
Recife, é reconhecido como o maior parque tecnológico do Brasil em faturamento e
número de empresas, o Instituto Internacional de Neurociências de Natal foi idealizado
pelo neurocientista Miguel Nicolelis considerado um dos 20 mais importantes
neurocientistas em atividade no mundo, Salvador possui o Centro de Biotecnologia e
Terapia Celular, tido como o mais moderno e avançado centro de estudos de célulastronco da América Latina, milhões de turistas desembarcam nos aeroportos nordestinos,
patrimônios culturais da humanidade também estão lá, abundância em folclore,
artesanato, literatura, música, e este artigo tem limite de páginas (WIKIPÉDIA, 2010). Há
problemas sociais também, assim como em todas as regiões brasileiras, o Nordeste é a
região mais pobre do Brasil, com os piores indicadores socioeconômicos do país (PNUD,
2010).
Quanto à migração nordestina para São Paulo
a partir do século XIX, os nordestinos foram direcionados para o Sudeste, especialmente
para São Paulo que liderava o processo de industrialização no país. Além das indústrias,
a lavoura do café também precisava de trabalhadores para substituir a imigração
estrangeira, cuja entrada foi restringida por legislação federal. O grande fluxo migratório
para São Paulo provocou um crescimento acelerado da população, aprofundando uma
tendência que vinha-se observando: o da favelização. Os nordestinos são apontados
como culpados pela explosão demográfica da cidade, causadores da “poluição”
paulistana. É um modo de ver o nordestino, de forma intolerante e seletiva, que nega as
condições estruturantes do crescimento: a cidade aumentou em habitantes, mas
aumentou também em riquezas, não estabelecendo vínculos entre os dois crescimentos.
(GALHARDO, 2007: 3, 4, 5)
Ainda hoje é possível perceber a divulgação do preconceito entre os paulistanos,
seja nas redes sociais, nas ruas, nas conversas de botequim. Do ponto de vista dos
preconceituosos: fez bobagem, está mal vestido, jogou lixo no chão? É um baiano, é
uma baianada só. O recente espasmo etnocêntrico publicado na rede social Twitter,
quanto ao resultado da eleição presidencial de 2010, o manifesto virtual “São Paulo para
os Paulistas”, as comunidades xenofóbicas, a representação do nordestino na TV,
principalmente nas telenovelas, como empregados domésticos e pertencentes a classes
sociais economicamente menos favorecidas, as manchetes de jornais que noticiam o
nordeste
principalmente
quanto
aos fenômenos
naturais,
Carnaval e
turismo,
demonstram um produto criado, um estereotipo do nordestino, um ser mitológico
detentor de qualidades negativas e de poderes desorganizadores que de alguma
maneira está presente em nossas mentes.
De qualquer maneira o preconceito, ainda que a passos lentos, não tem passado
desapercebido pelos nossos representantes no legislativo, o caso do Twitter demonstra
esse fato, rapidamente foram tomadas medidas amparadas por leis, para que o episódio
fosse tratado como um crime. Assim, com olhares otimistas, é possível que a longo
prazo passemos do estado de heteronomia para autonomia2.
Aconteceu muita coisa desde aquela “explosão” demográfica, a cidade de São
Paulo, cresceu em todos os sentidos, negativos e positivos, sentidos complementares
talvez, o fato é que a população vinda através de pau-de-arara, é outra, além de
contribuir para o crescimento da cidade, construíram suas vidas, compraram suas casas,
colocaram seus filhos na universidade, aquele retirante não representaria a totalidade
dos nordestinos residentes em São Paulo e aquele Nordeste miserável também já não é
mais o mesmo, porém os veículos de comunicação, o meio no qual obtemos
informações, insistem em propagar isso. Estariam os paulistanos condicionados a esse
preconceito? Por que não perceberiam as transformações ocorridas no período? Quais
são os olhares?
O preconceito entendido como o uma “atitude emocionalmente condicionada,
baseada em crença, opinião ou generalização, determinando simpatia ou antipatia para
com indivíduos ou grupos” seria o que melhor se encaixaria neste artigo. Teriam alguns
paulistanos entendido que todo nordestino é pardo, que pardo é mistura e isso não daria
certo, talvez sintam saudades do tempo do Brasil Imperial, onde cada “macaco ficava no
seu galho”, que o valor de alguém é condicionado pela medida da necessidade de ajuda
de um outro, que os pardos nordestinos não têm profissões de prestígio, que deve-se se
2
Segundo Bobbio (1998) a autonomia está vinculada à vontade moral, onde o dever não é derivado de um fim
qualquer, mas pelo respeito à lei moral. É considerada como a faculdade de dar leis a si mesmo através de uma
vontade livre, ou uma lei moral que não se deixa determinar por inclinações ou cálculos interessados. Consiste
na submissão do indivíduo à vontade de terceiros ou de uma coletividade. Em contra-partida a heteronomia
realiza-se quando a vontade é determinada por um fim não universal, é determinada por um objeto. A
heteronomia seria a vontade jurídica ou do Direito (legalidade), as leis que recebemos, diferenciando-se da
vontade moral, pois esta vontade seria determinada pelo respeito à lei, que é imposta ao indivíduo, e exterior a
ele. A vontade moral é autônoma, em oposição à vontade jurídica, que seria heterônoma.
respeitar a hierarquia, utilizando o pronome Senhor, mas principalmente a expressão
Sim Senhor. À medida que o preconceito fosse emocional seria aceitável a
desconsideração dos artigos da Constituição do Brasil, dos avanços tecnológicos do
nordeste, sua representatividade cultural, histórica e social, por outro lado, considerando
que o preconceito também pode ser entendido como um “conceito ou opinião formados
antes de ter os conhecimentos adequados”, seria o preconceito partícipe de um
processo destinado ao fim, pois segundo as pesquisas de Almeida (2007), embora a
visão média do brasileiro seja hierárquica, há também as mais igualitárias e à medida
que aumenta a escolaridade média há uma diminuição do conceito de hierarquia
(ALMEIDA, 2007: 75), as pessoas de escolaridade mais alta tendem a ser menos
hierárquicas do que as de escolaridade mais baixa (ALMEIDA, 2007: 91).
***
6. “Paulista é gente boa, mas é de lascar o cano, eu nasci no Pajeú, mas só me chamam
de baiano”3
O processo migratório pode apresentar a perda de raízes e referenciais culturais:
O migrante perde a paisagem natal, a roça, as águas, as matas, a caça, a lenha,
os animais, a casa, os vizinhos, as festas, a sua maneira de vestir, o entoado
nativo de falar, de viver, de louvar a seu Deus. Suas múltiplas raízes se partem.
Na cidade, a sua fala é chamada de "código restrito" pelos linguistas, seu jeito
de viver, "carência cultural", sua religião, crendice ou folclore. Seria mais justo
pensar a cultura de um povo migrante em termos de desenraizamento.(BOSI,
2003: 117)
Porém, as conversas com os nordestinos descritas no início deste artigo, não
expressam integralmente este desenraizamento, as pessoas que estão na cidade há
mais de 30 anos, apresentam uma considerável integração no contexto da cidade além
de visitarem anualmente seus conterrâneos, as que estão há menos tempo, contaram
sorrindo que frequentam forrós, fazem churrascos aos finais de semana ao som de
músicas de sua região, não apresentam a mesma integração, que talvez seja atingida no
decorrer do tempo. Não foi percebida, nas conversas, nenhuma tristeza ou
arrependimento por terem migrado, muito menos o preconceito que sofreriam,
aparentemente essas pessoas nem se dão conta do olhar que alguns paulistanos têm
sobre elas, ou pelo menos não se importam com isso. Parece que o preconceito é muito
mais um problema para o preconceituoso do que para o objeto do preconceito, os
primeiros vão deste a formação de grupos xenofóbicos que chegam a cometer homicídio
3
Trecho da música Meu Pajeú de Luiz Gonzaga.
até os indivíduos que utilizam seu tempo alimentando blogues e sites em nome de uma
causa preconceituosa.
Há uma infinidade de estudos que explicam, provam por A + B os porquês do
preconceito no Brasil, nossa herança civilizadora dizem uns, o avanço do capitalismo
dizem outros, até questões de pré-disposição genética poderiam ser utilizadas, mais
tantas quantas teorias possíveis, porém a vida segue e a Terra continua a girar com ou
sem preconceito.
Os nordestinos com os quais conversei, desconsiderando o empresário Carlos,
não têm profissão de prestígio, são pardos e parecem não estarem preocupados em ficar
em galhos que lhe deram ou que pensam que deram, muito menos querem ocupar o
topo de alguma hierarquia, parecem perceber o direito que têm enquanto brasileiros,
migraram e migram mesmo, porque querem que suas vidas sejam melhores, este parece
ser o foco. Eles estão satisfeitos com os filhos na universidade, com a conquista da casa
própria, em dançarem forró, comerem churrasco e saber que há um Deus que vela por
eles, parecem não terem se desencantado com o mundo.
Quais são suas sensações quanto ao olhar dos paulistanos? Teremos que
pesquisar mais profundamente, porém a princípio, embora saibam que existe o
preconceito, não demonstram perder o sono com isso, assim como alguns paulistanos
empenhados em demonstrar e publicar o seu etnocentrismo.
Até este momento é verdade que o preconceito existe, as pesquisas
apresentadas neste artigo apontam esses indícios, é verdade também que ainda temos
uma visão hierarquizada do mundo, que pardos são vistos com menos características
positivas do que brancos ou pretos, mas
o senhor... mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas
vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me
ensinou. Isso que me alegra, montão. (ROSA, 2001: 39)
A continuação deste trabalho procurará observar o quanto e como os nordestinos
migrantes e o paulistanos se adaptam e se percebem entre si. Quero acreditar que
realmente as pessoas não estão sempre iguais e ainda não foram terminadas, pois se já
estivessem essa vida não teria a menor graça. Assim, se a migração fosse vista como
uma música, como seriam afinados os seus instrumentos para que a melodia fosse
harmoniosa, quais seriam os pulsos e repousos de seus compassos?
Referências
Bibliográficas:
ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 11ª ed. Brasília: UNB, 1998.
BOSI, Ecléia. O Tempo Vivo da Memória – Ensaios de Psicologia Social. São Paulo:
Atelie Editorial, 2003.
HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
GALHARDO, Soledad. Os Conterrâneos Nordestinos na Metrópole de São Paulo: Seus
Símbolos, sua Memória e seus Mitos - Trabalho apresentado no III ENECULT – Encontro
de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado entre os dias 23 a 25 de maio de
2007, na Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil pelo Centro de
Estudos Latino-americanos sobre Cultura e Comunicação - CELACC/ECA/USP
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2ª ed. São Paulo:
Companhia da Letras, 1995.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001. p 39
STRAUSS, Claude Lévi. Raça e História in. Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1976. p 328, 329
Eletrônicas:
Dicionário de Português Michaelis UOL
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=preconceito. Acesso em 22 de novembro de 2010.
Wikipédia, a enciclopédia livre - Migração Nordestina
http://pt.wikipedia.org/wiki/Migra%C3%A7%C3%A3o_nordestina. Acesso em 22 de
novembro de 2010.
Terra – SP 450 anos
http://sp450anos.terra.com.br/interna/0,,OI254568-EI2551,00.html. Acesso em 02 de
dezembro de 2010.
Wikipédia, a enciclopédia livre – Região Nordeste do Brasil
http://pt.wikipedia.org/wiki/Regi%C3%A3o_Nordeste_do_Brasil. Acesso em 22 de
novembro de 2010.
Presidência da República – Casa Civil – Subchefia para Assuntos Jurídicos
http://www.pnud.org.br/gerapdf.php?id01=3038. Acesso em 30/11/2010.
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
http://www.pnud.org.br/gerapdf.php?id01=3038. Acesso em 02/12/2010.
Download

Olhares paulistanos, sensações nordestinas Alessandra