XVIII Encontro Latino-Americano: Pensamento de D.W. Winnicott Winnicott contemporâneo Elementos Marisa Bortoletto Resumo: O trabalho apresenta o caso clínico de uma paciente de trinta e poucos anos, a qual durante seu processo psicoterápico seguia atormentada por exigências internas e comportamentos considerados mais masculinos do que femininos. Além de, relacionar o relato clínico com as idéias de D.W. Winnicott sobre os elementos femininos e masculinos e ainda questões de verdadeiro e falso self. Aponta o transcorrer do processo terapêuticos sua evolução e insight da paciente. Ao mesmo tempo mostra o esforço e busca dela de elementos que a ajudassem a compreensão das angústias vividas. Das contribuições teóricas de D. Winnicott, gostaria de destacar o artigo ”Os elementos masculinos e femininos ex-cindidos encontrados em homens e mulheres” (1966). A partir da idéia de bissexualidade, este autor apresenta, através de um exemplo clínico, a dissociação desses elementos numa dada personalidade. Acrescenta ainda as definições do elemento feminino como representante do SER e o elemento masculino como expressão do FAZER. Winnicott (1966) nos convida a refletir contando a história do atendimento clínico de um homem de meia-idade, casado e bem-sucedido profissionalmente. Este sujeito já havia realizado outras análises, mas permanecia na terapia, pois acreditava que algo mais profundo não tinha sido atingido pelos processos anteriores. Winnicott não percebia características homossexuais no paciente. Entretanto, numa certa sessão, o senhor parecia falar como “uma garota”. Era Como se o analista escutasse um relato daquilo que entendemos como “inveja do pênis”. Então, Winnicott interpretou a questão dizendo: “W.” Estou escutando uma garota. Sei perfeitamente bem que você é um homem, mas estou escutando uma garota e falando como uma. Estou lhe dizendo: você está falando sobre a inveja do pênis.” “ P. Se eu fosse falar a alguém a respeito dessa garota, seria chamado de louco.” “W.” Não é que você está contando isto a alguém, sou eu que vejo uma garota e escuto-a falar, quando, na realidade, há um homem em meu divã. O louco sou eu.” Essa maneira de se aproximar do paciente mostrou o cuidado do analista (dos anos 60) para que a comparação com uma “garota” não fosse sentida como um ataque à sua masculinidade. A forma como Winnicott manejou as palavras contribuiu para que o sujeito sentisse a interpretação como referência a uma parte da sua personalidade. Desta forma, a fala do analista teve um impacto profundo. Segundo o psicanalista inglês, havia um dado interessante na história de vida do paciente. A mãe, pelo que constava, não pôde reconhecê-lo como um menino, pois estava tomada pela forte expectativa de que o bebê seria uma menina. Tratava-se da segunda gravidez e desejava intensamente que fosse uma menina em virtude de o primeiro filho ser menino (era uma época onde a tecnologia do ultrassom não havia sido desenvolvida, pois como sabemos a descoberta do sexo antes do nascimento contribui para o desenvolvimento de uma relação pré-natal mãe– bebê). Na verdade, Winnicott, considerou que o elemento feminino estaria cindido na mente do paciente. E a partir da interpretação e da relação com o analista, o sujeito pôde encontrar uma unidade primária perdida e então esta vivência proporcionou-lhe o sentimento de ter começado a viver. Esse exemplo possibilitou ao autor discutir a dissociação dos elementos femininos e masculinos encontrados em homens e mulheres. O elemento feminino, para o autor, antecede ao masculino, pois estaria imbricado na relação com a mãe como primeiro objeto de amor, o qual é determinante para a formação do self. É este elemento feminino que oferece o sentido de ser, ou seja, a experiência de identidade. Em contrapartida o elemento masculino pressupõe uma separação do objeto, o que implica uma ação. Winnicott (1966) argumenta: “O elemento masculino faz, enquanto o feminino é”. Essa distinção entre o ser e o fazer parece especialmente útil quando relacionada com a prática clínica contemporânea no atendimento de homens e meninos, mulheres e meninas. Uma paciente, que tive oportunidade de acompanhar, representava uma dessas mulheres que logo aprendeu a “fazer”, porém ainda buscava o “ser”, ou seja, o significado da própria existência. Por vezes, era tomada por um sentimento de vazio, onde parecia não encontrar lugar para a própria feminilidade. Elena (nome fictício) desenvolveu desde a meninice os comportamentos, como: iniciativa, tomada de decisão, controle das situações, entre outros. Na adolescência auxiliava os pais, no pagamento de contas e na leitura de documentos. A mãe dizia: “nada de choro, minha filha!”, “agüenta firme”. Aprendeu a passar por cima de seus sentimentos ou até a desconsiderá-los. A sensibilidade e o afeto desqualificados, ou seja: “chorar”, ”ter medo”, “angustiar-se” eram coisas “bobas”, “coisas de mulher”. Sentia a mãe como uma mulher frustrada. A identificação com a figura materna mostrava-se um tanto prejudica. Casada e com uma filha de cinco anos, desejava que o marido percebesse sua necessidade de carinho e que também colocasse limites na sua própria ansiedade frente à “compulsão” de deixar tudo perfeito. Nas sessões, nos relatos “massacrava” o marido, que durante muitos anos foi apaixonado e fazedor de suas vontades. Quando insatisfeita com ele, mostrava muita raiva, tinha vontade de se separar ou arrumar outro. Projetava toda sua infelicidade nessa questão, mas era nítido que suas carências eram fruto de exigências internas e anteriores a existência do marido em sua vida. Desde a infância seu modelo de vida visava à eficiência, o que a deixou um tanto “machona”. Entretanto, atrás da “machona” percebia-se uma mulher até submissa, que não podia procurar a realização de seus desejos sozinha (precisava da aprovação do marido para ir ao cinema com as amigas, por exemplo). E revelava a existência de uma menina escondida atrás de um falso self bem estruturado, a espera de quem cuidasse desse aspecto da personalidade Os elementos masculinos em Elena – como a sobrecarga de atribuições e fazer além de suas condições – não a prejudicaram no sentido de organizar a vida materialmente nem com a filha. O que parecia ter ficado complicado foi o próprio ataque ao elemento feminino, o qual permanecia distante de sua consciência. Com o marido que a situação se evidenciava, pois seu comportamento tolhia a intimidade do casal. Certa sessão, após ler o livro Código Da Vinci (Dan Brown), relata o quanto ficou impressionada com o poder da Igreja Católica e com a crítica do autor a essa instituição milenar. O elemento masculino, representado no livro pelo clero, escondia um segredo que uma sociedade secreta havia decifrado. Através da criptografia, os personagens descobrem que o segredo era o fato de o “Santo Graal” representar, na verdade, o elemento feminino – na trama, Maria Madalena. Então, a partir dessa associação conversamos o quanto o elemento feminino e masculino se mantinha distante em sua mente. E a falta de integração desses pontos sugeria ser a fonte de conflitos e angústias. Segundo as idéias de Winnicott, o que estava escondido dela mesma era o ser. É interessante como o fazer é parte das vezes, confundido com o sentimento de existir. Todavia, o fazer pode também ser entendido como uma defesa contra essa impossibilidade de ser. Desta forma, é possível compreender os sentimentos de infelicidade de Elena, pois por mais que fizesse isto não garantia a expressão do verdadeiro self. Winnicott (1960) afirma que a função do falso self seria proteger ou ocultar o verdadeiro self, seja lá o que o verdadeiro self possa significar. O desenvolvimento do falso self decorreria da relação mãe-bebê, cuja mãe fosse incapaz de perceber as necessidades do bebê. O gesto espontâneo da criança seria substituído pela imposição da mãe dos próprios comportamentos. Este gesto espontâneo é entendido pelo autor como a ação do verdadeiro self, a qual sendo acolhida pode então oferecer a sensação ao bebê de ser criativo e real. A psicoterapia transcorria e a relação terapêutica se transformou numa nova fonte de identificação, o que beneficiava a conversa e o acompanhamento das oscilações emocionais. O sentimento de desânimo de Helena significava o esforço imenso para parecer bem sucedida e capaz. A conquista de um título universitário tornava-se pouco e não supria emocionalmente as carências interiores. Pelo contrário, ela ainda corria o risco de impor a si mesma novas exigências e com isso afastar-se dos sentimentos mais sinceros. As sessões se desenrolam, no sentido, dela pensar sobre o que fazer. Algo que estivesse mais de acordo com suas condições físicas e emocionais e que possibilitasse ser simplesmente. Vaisberg (2004) assinala: “Uma vida aparentemente normal pode ser mantida a partir do falso self, enquanto o indivíduo segue ausente de si excluído da própria vida. É interessante notar que o falso self é, na verdade, uma defesa dissociativa que protege o verdadeiro self, enquanto este último permanece oculto.” Numa sessão aparece a música Metade “Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio. Que a morte de tudo que acredito não me tape os ouvidos e a boca. Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra é o silêncio. Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que triste. Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante Porque metade de mim é partida e a outra é saudade...” A letra da música “Metade” (Oswaldo Montenegro) sensibilizou Helena. E revelava o próprio caminho no sentido de compreender o movimento de forças internas, por vezes antagônicas, por vezes contraditórias. Era como se começasse uma auto-análise, buscando recursos que pudessem aproximá-la do sentir viva e criativa. A letra da música indicava a consciência dos inevitáveis temores e obstáculos a busca daquilo que se desejava. Todavia, mostrava também a idéia de que os impedimentos eram mais de ordem interna do que externa. Assim a conquista de um profundo insight se fez presente. Um sinal de saúde mental para Winnicott (1970) seria: “a capacidade que um indivíduo tem para penetrar, através da imaginação, e ainda assim de modo preciso, nos pensamentos e nas esperanças de outra pessoa, e também de permitir que outra pessoa faça o mesmo com ele”. A evolução psíquica possibilitou a Helena estar próxima da terapeuta e dos demais, sem que isso implicasse numa reação defensiva como a do falso self. Referências bibliográficas Bortoletto, M. Convênios Psicológicos e Psicoterapia Psicanalítica. Ed. Escuta:SO, 2009 Newman, A. As Idéias de D.W. Winnicott, um guia. Imago: RJ, 2003. Vaisberg, T. Ser e Fazer – enquadres diferenciados na clínica winnicottiana. Idéias e Letras:SP,2004 Winnicott, D. (1960) “Distorções do ego em termos de falso e verdadeiro self” in: Ambiente e os processos de maturação. Artes Médicas: RS, 1982. _________ (1966) “Os elementos masculinos e femininos ex-cindidos encontrados em homens e mulheres” in: Explorações psicanalíticas. Artes Médicas: RS, 1994. _________ (1970) “A cura” in: Tudo começa em casa. Martins Fontes: SP, 2005. Marisa Bortoletto é fundadora e diretora da Verbo Clínica psicológica. Responsável técnica pela orientação e supervisão dos procedimentos técnicos e psicológicos junto ao CRP-SP. Mestre em Psicologia Clínica PUC-SP. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica – USP. Supervisora teórico - clinica. Rua Verbo Divino, 130 Granja Julieta São Paulo – SP Brasil Tel:(11)51829359 Cel.: (11) 76551903 e-mail: [email protected]