UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS VALDECIR DE LIMA SANTOS COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS? SALVADOR 2014 VALDECIR DE LIMA SANTOS COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS? Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens, no âmbito da Linha de Pesquisa I Leituras, Literatura e Identidade, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens. Orientador: Professor Drº Sílvio Roberto dos Santos Oliveira SALVADOR 2014 FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592 Santos, Valdecir de Lima Com que cor se pinta o negro nas Histórias em Quadrinhos? Salvador, 2013. 123f. / Valdecir de Lima Santos. - Orientador: Sílvio Roberto dos Santos Oliveira Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens. Campus I. 2013. Contém referências. 1. Negros na literatura - Brasil. 2. Histórias em Quadrinhos. 3. Negros - Brasil Identidade étnica. 4. Negros - Brasil - Identidade racial. I. Oliveira, Silvio Roberto Santos. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 809.896 dos VALDECIR DE LIMA SANTOS COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS? Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens, no âmbito da Linha de Pesquisa I - Leituras, Literatura e Identidade, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens. Banca Examinadora _____________________________________________________ Prof° Dr° Sílvio Roberto dos Santos Oliveira Universidade do Estado da Bahia Orientador _____________________________________________________ Profª Drª Sayonara Amaral de Oliveira Universidade do Estado da Bahia _____________________________________________________ Profº Dr° Edson Dias Ferreira Universidade Estadual de Feira de Santana Dedico este trabalho a minha avó Biziu e a minha mãe Valdete (in memoriam), primeiro referencial de prática de alteridade em minha vida. Com elas, aprendi e apreendi o valor da partilha, do respeito aos “mais velhos” ao solicitar suas bênçãos, a conviver entre as folhas e a ressignificar as religiões, principalmente a de matriz africana. Cresci cercada de narrativas, que não eram as do “boi da cara preta”, mas as de um “boi multicor”, que almejava intercambiar experiências, quando elas me recontavam as histórias do nosso povo, vindas do além mar. E aos estudantes, que tive o prazer e tenho de trocar experiências, heróis e heroínas negros que, todas as noites, com seus superpoderes (suas resistências ou motivações adquiridas ao longo de suas labutas cotidianas) tem a coragem de sair das suas residências, enfrentando mocinhos e vilões ao longo do caminho, para ocupar o espaço a eles e elas devido, e tantas vezes negado, na sala de Educação de Jovens e Adultos. AGRADECIMENTOS Agradecer é reconhecer, que o sabor da conquista vem emanado com a colaboração de forças visíveis e invisíveis. Por isso, elenco aqui os meus sinceros agradecimentos a todos, desde as forças cósmicas, às forças oriundas das diferentes pessoas que me circunscrevem, que se mobilizaram positivamente para que esta vitória se concretizasse em minha vida. A Deus, meu supremo criador, que durante esta jornada me fez ver que a vida se renova a cada instante, e que é sempre tempo de celebrá-la. Eis-me aqui Senhor. Minha reverência e respeito às religiões de matriz africana que tem preservado nossas raízes trazidas de África. Ao meu “painho” Benedito, meu dengo, meu xodó. Companheiro maravilhoso, que sempre embarcou nos meus sonhos, mesmo sem saber direito aonde eles iriam me levar, apostando que certamente seriam a lugares possíveis cujos caminhos seriam os mais frutíferos. Obrigada! Sua presença em minha vida faz meu coração transbordar de amor. A meu irmão Luis, meus sobrinhos, afilhados e meus familiares, que sempre me encorajaram a seguir em frente, e que expressaram a todo instante que a minha presença nos longos e maravilhosos almoços de domingo estava sendo aguardada. Quero dizer que estou voltando para partilharmos destes e de tantos outros momentos maravilhosos. À Luiza (prima) e Dinalva (tia), minhas parceiras nesta jornada, incansavelmente me ofereciam seus colos para o meu restabelecimento quando sinais de cansaço ou desânimo despontavam em mim ao longo desta jornada. Obrigada pelo apoio que segue pelas vias do fraterno ao materno. Aos meus amigos, irmãos em Cristo, que os livros me tiraram a ausência física, mais que sempre se mantiveram presentes em meu coração. E as minhas amigas, Juçara, Adriana e Jamile, que felizmente não tiveram a paciência dos demais amigos, e sempre furaram as barreiras impostas pela dissertação. Arbitrariamente elas ligavam, apareciam, me tiravam de casa. E ai de mim se não fossem tão persistentes, com seus valiosos conselhos e motivações a me transmitir. Obrigada pela partilha dos risos e do choro. Além deste trio, quero lembrar da minha amiga Anália, parceira de uma longa jornada no processo de construção desta dissertação. Esteve comigo lá onde tudo começou, nos lugares primeiros onde este sonho de ser mestra foi semeado. Incentivadora acadêmica, sempre crente nas minhas potencialidades. Sem você este percurso não teria sido feito com tantas flores e espiritualidade pungente. À Eliana, querida amiga, pelas conversas, partilhas, chamadas à razão, com quem tenho agora o prazer de dividir a dor e a delicia de ser PPGEL. À direção, ao coordenador, aos professores e funcionários da Escola Municipal Marechal Rondon, que torceram e colaboraram efetivamente para que a minha pesquisa tivesse êxito. A todos os Professores que passaram pela minha vida, especialmente aos que compuseram a minha infância, me ensinando as letras primeiras: Valdete (minha mãe, in memoriam), Yolanda, Darcy, Eva, Elisabete, Isabel, Vilma, Clarizio. Com suas formas ímpares de ensinar, cada um ao seu modo, contribuíram para que nascesse em mim o desejo de também ser educadora. A Alan Nunes, que fez reacender em mim a crença de que todos os dias sou agraciada pelas mãos de Deus ao me presentear com anjos humanos das mais diversas etnias para me iluminar, a seu exemplo. Obrigada pelas conversas, pelo apoio, este convívio teve grandes repercussões teóricas na minha vida e consequentemente na escrita da minha dissertação. Com você tudo fez uma grande diferença. A Josenildo, pelo carinho, solicitude, paciência, deslocando-se comigo ou para mim aos lugares mais inusitados que esta pesquisa me conduzia. Ao meu orientador Professor Doutor Sílvio Roberto dos Santos Oliveira por ter me aceitado e acreditado no potencial da minha pesquisa. À Professora Doutora Sayonara Amaral de Oliveira e ao Professor Doutor Edson Dias Ferreira, membros da banca examinadora, obrigada pela delicadeza de ter aceitado participar deste processo, me apontando sugestões enriquecedoras à pesquisa. Agradeço também a todos do Programa, professores e funcionários, Camila, Geisa, e especialmente a Danilo, pela disponibilidade e seriedade com que desenvolvem os seus respectivos cargos. Aos meus colegas da turma, especialmente a uma flor linda do sertão chamada Rosilda, pessoa singular, muito te agradeço pelo incentivo, pelo carinho, pelas conversas intermináveis. Você, Eliseu e Reinaldo, deram a minha travessia no PPGEL a leveza necessária para que esta se tornasse mais fluida. RESUMO O presente trabalho de investigação – intitulado Com que cor se pinta o negro nas Histórias em Quadrinhos – tem como objeto de estudo a representação social do negro nas Histórias em Quadrinhos e como objetivo explorar conteúdos relacionados às lutas políticas e sociais do povo negro, buscando contribuir para que ideologias arraigadas no seio da sociedade sejam repensadas e (des)construídas a partir de novos olhares. Para tanto, procurou-se analisar os conteúdos de sete narrativas quadrinizadas, tendo como referencial teórico-metodológico, para melhor compreensão do objeto aqui esposado, os estudos propostos por Cirne (1982), Chinen (2013), Gonçalo Junior (2004), Hall (2011), Moscovici (1978, 2012), Munanga (1988), Oliveira (2006), Silva (2004, 2001, 2011) e Souza (2005). Incide na hipótese de que as Histórias em Quadrinhos com heróis e heroínas negras podem constituir-se em elemento político-pedagógico de resistência e de libertação e que tais narrativas, ao proporem um discurso estético-ideológico pautado na história e cultura, influenciam na construção de uma identidade positiva do povo negro, elevando sua autoafirmação identitária. Foram trazidos para o cerne da reflexão os quadrinhos como elemento histórico, político e cultural, cuja rede de produção e divulgação contribui para a aquisição de novos e complexos conhecimentos, os quais permitem apreender o real e intervir diretamente sobre ele. Por meio da pesquisa, foi possível detectar que o espaço quadrinizado ainda é um território demarcado ideologicamente para o imaginário branco e suas representações sociais. E, embora essa realidade venha sofrendo profundas modificações – em decorrência das frentes de lutas implementadas pelos Movimentos Sociais Negros –, em termos quantitativos ela ainda é muito baixa. O estudo pretendeu revelar também, por meio da análise dos dados, que essas narrativas, por incorporarem nas suas páginas elementos da história e da cultura do negro brasileiro, cuja matriz é de origem africana, são eficazes no combate à discriminação, ao preconceito e à prática do racismo, sendo igualmente significantes para a construção da identidade étnico-racial da comunidade negra, no que diz respeito à sua autoaceitação e à elevação da sua autoestima. Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Etnia negra; Movimento Negro; Afirmação identitária. ABSTRACT This research work – entitled Which color is painted black on the Comics – has as its object of study the social representation of black in Comics and aimed to explore content related to political and social struggles of black people, in order to contribute so entrenched ideologies in society are reconsidered and (un) built as from new eyes. Therefore, we attempted to analyze the contents seven narratives in comics, with theoretical and methodological framework for better understanding of the object exposed here, the proposed studies by Cirne (1982), Chinen (2013), Gonçalo Junior (2004), Hall (2011), Moscovici (1978, 2012), Munanga (1988), Oliveira (2006) and Silva (2004, 2001, 2011), Souza (2005). The choice of this theme focuses on investigative hypothesis that the Comics with black heroes and heroines may form themselves into a political-pedagogical element of struggle, resistance and emancipation, and that such narratives by proposing an esthetic-ideological discourse grounded in their own history and culture, influence the construction of a positive identity of black people, raising their self-affirmation of identity. Were brought to the center of the reflection, the comics as historical, political and cultural element, whose network of production and distribution contributes to the acquisition of new and complex knowledge which allows to grasp the real and intervene directly on it. Through research, it was possible to detect that the space of comics is still an ideologically demarcated for white people and their social representations. And while this reality come undergone profound changes – due to the fronts of struggle implemented by Black Social Movements – in quantitative terms it is still very low. The study also revealed through the analysis of the data, these narratives, in their pages by incorporating elements of the history and culture of black Brazilian, whose mother is of African origin, are effective in combating discrimination, prejudice and practice of racism, and is also significant for the construction of ethnic and racial identity of the black community, with regard to their self-acceptance and self-esteem elevation. Keywords: Comics; Black Ethnicity; Black Movement; Identity affirmation. LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 - À procura dos negros nos quadrinhos ...................................................... 24 FIGURA 2 - Doze direções em que os quadrinhos podem crescer ............................... 26 FIGURA 3 – As doze direções ...................................................................................... 26 FIGURA 4 - O ilustrador e quadrinista Tiburcio questiona a República ...................... 45 FIGURA 5 - Abdias do Nascimento ............................................................................. 58 FIGURA 6 - Primeira representação gráfica da personagem Jeremias ......................... 61 FIGURA 7- Representação gráfica da personagem Jeremias na contemporaneidade .. 61 FIGURA 8- Jeremias em campanha presidencial .......................................................... 62 FIGURA 9 - Pererê ........................................................................................................ 63 FIGURA 10 – Cabôco Mamadô .................................................................................... 69 FIGURA 11 - O Bode Orelana e a Ave Graúna ............................................................ 70 FIGURA 12 - Rango e sua turma .................................................................................. 71 FIGURA 13 - Jejum em uma pelada de futebol ............................................................ 71 FIGURA 14 - Feijão ...................................................................................................... 72 FIGURA 15 - Ykenga.................................................................................................... 73 FIGURA 16 - Joãozinho Tresitão .................................................................................. 74 FIGURA 17 - Do navio negreiro ao camburão ............................................................. 75 FIGURA 18 - Roberto, sem máscaras nem disfarces .................................................... 76 FIGURA 19 - Suriá, a garota do circo ........................................................................... 86 FIGURA 20 - Suriá em: fadas, princesas e rainhas ....................................................... 86 FIGURA 21 - Luana em: causos da vovó Josefa ........................................................... 87 FIGURA 22 - Luana ...................................................................................................... 88 FIGURA 23 - Aú, o Capoeirista .................................................................................... 91 FIGURA 24 - Tio Alípio e Kauê ................................................................................... 93 FIGURA 25 - Revista Minas de Quilombos ................................................................ 94 FIGURA 26- Revista Afro HQ ...................................................................................... 94 FIGURA 27- Revista Orixás: do orum ao ayê............................................................... 95 FIGURA 28 - Suriá: o vidro em torno de cada um........................................................ 99 FIGURA 29- Luana a favor da natureza e contra a poluição.......................................100 FIGURA 30 - Aú, o capoeirista em: a diferença está na solidariedade........................103 FIGURA 31 - Tio Alípio na roda do diálogo com Kauê..............................................105 FIGURA 32 - Em quadrinhos: a história do Quilombo do Ausente de Cima e Ausente de Baixo.........................................................................................................................107 FIGURA 33 - O orum e o ayê sem fronteiras...............................................................111 FIGURA 34 - A separação do céu e da terra................................................................111 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13 1 OS DITOS E OS INTER-DITOS: SOBRE QUADRINHOS E REPRESENTAÇÕES.......... ........................................................................................ 21 1.1 ESQUADRINHANDO UMA HISTÓRIA. .............................................................. 22 1.2 TEORIA DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL: NOS BALÕES CRUZADOS DE UM CONCEITO.....................................................................................................................32 2 AVANÇOS E DESAFIOS NA REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS QUADRINHOS............................................................................................................. 40 2.1 CONTEXTOS INICIAIS DE PRODUÇÃO DE HQS NO BRASIL... .................... 42 2.2 EM BUSCA DE UM NOVO SENTIDO PARA AS HQS ....................................... 56 2.3 NOVAS TRILHAS, TIRAS E POSSIBILIDADES.................................................65 3 NOS QUADROS DA NONA ARTE: ESPAÇOS HETEROGÊNEOS DE CIRCULAÇÃO... .......................................................................................................... 78 3.1 RASURAS NAS FRONTEIRAS DOS REQUADRADOS ..................................... 80 3.2 HQS: PONTES DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E AUTOESTIMA NEGRO-BRASILEIRA... .............................................................................................. 97 CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO..................................................................113 REFERÊNCIAS...........................................................................................................116 INTRODUÇÃO Esta pesquisa investigativa buscou identificar as transformações sociais na representação das personagens negras nas Histórias em Quadrinhos, ocorridas a partir da segunda metade do século XIX até o ano de 2012, assim como evidenciar, através de um recorte temporal historiográfico-cultural, os elementos que oportunizaram tais mudanças. Para tanto, foram levantados dados empíricos e imagéticos, bem como os oriundos de fontes bibliográficas, necessários a essa compreensão. O interesse por essa temática de investigação começou a ser fomentado no ano de 2000, quando ingressei, como docente, na rede Municipal de Ensino do Município de Salvador, na área de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Na condição de mulher, negra, moradora da periferia, constatei que, ao lado dos problemas de aprendizagem relacionados à educação formal, como a aquisição da escrita e da leitura, um número significativo de alunos, embora negros, não se autoidentificavam como tal e que as suas identidades e autoestima encontravam-se bastante abaladas. Ao longo dos anos, desde então, passei a buscar estratégias educacionais, tão necessárias ao fazer pedagógico, que contribuíssem para que esse cenário sofresse modificações. Encaminhei a práxis para o viés educacional pautado na respeito às diferenças, aos diferentes e à diversidade. Entre os caminhos trilhados, um aporte metodológico recorrente durante as aulas era o uso de Histórias em Quadrinhos, com personagens negros no papel de heróis e heroínas. Estava ciente de que as Histórias em Quadrinhos, ou HQs, ocupam um espaço privilegiado na arte de comunicar, sobretudo por agregar na sua composição a linguagem sob duas perspectivas: a verbal e a nãoverbal e, assim, contribuiriam para problematizar a realidade e fazer ecoar a matriz africana que possuímos e que possuía a maioria dos alunos da EJA. A cada narrativa desenvolvida em aula era possível observar que estas coadjuvavam para difundir concepções, que ajudavam os educandos a se descobrir, se expressar e a desenvolver as suas habilidades, inclusive críticas sobre si e sobre o mundo. Dois aspectos restritivos, entretanto, foram constatados: o número de publicações muito limitado e o fato de que, normalmente, as personagens negras representadas nas páginas das Histórias em Quadrinhos estavam grafadas de forma estereotipadas, caricaturais e estigmatizadas. A comunidade negra aparecia sempre nas narrativas como personagens secundárias e desumanizadas. 13 Isso acontecia em função do modelo sociorracial que circulou e circula no País, historicamente estruturado sobre as bases do poder e da dominação total, em que o grupo dominante mantém o monopólio dos recursos econômicos e o grupo em situação de subalternidade, o povo negro e outros povos não-brancos, embora sua base sustentadora conserve-se em situação de desprestígio. A utilização dessa dinâmica propiciou a construção de estruturas intelectuais normativas ideológicas destinadas a manter sentimentos de inferioridade no grupo subalterno e produzir uma impenetrável imagem de superioridade do setor dominante (MOORE, 2012). De forma insistente, continuei a garimpar, buscando publicações que nos contassem outras histórias sobre a comunidade negra, mais proativas e propositivas, que elevassem a autoestima e construção do autoconhecimento e da identidade negra dos educandos. Nesse sentido, valeu a pena, sim, continuar a pensar o quadrinho dentro dessa esfera de arte/política, problematizando-o. Porque, assim, jovens e adultos puderam assimilar essas histórias, com base na leitura de imagens e do diálogo, e gradativamente se apropriar da aquisição da leitura e da escrita formal, visto que as narrativas apresentadas possuíam textos com funcionalidade social, o que resultou em processos significativos de letramento. Por intermédio do trabalho desenvolvido em sala de aula senti a necessidade de um maior aprofundamento teórico sobre a temática aqui enfocada. Afinal, inquietava-me o fato de que o povo negro brasileiro, que sempre se manteve em luta pela afirmação da sua identidade, pela valorização da sua formação étnica e cultural, considerando a possibilidade de coexistência e convivência entre tantos outros atores sociais, repudiando sempre todas as formas de intolerância, desrespeito e desigualdade que recaíam sobre si, se mantivesse, mesmo assim, ocupando um espaço de pouca ou nenhuma relevância no cenário quadrinístico, embora as HQs sejam uma arte muito propagada e popular de representação social. Dessa forma, por força das inquietações acima aludidas, busquei compreender acerca de quais caminhos estão sendo percorridos para que se construam espaços de representação voltados de fato para as “novas” exigências − tão antigas − do povo negro, pois, embora maioria no País, encontra-se ainda em número minoritário na política, nos esportes, na mídia e, especificamente, nas HQs. Igualmente procurei compreender as mudanças que se operacionalizaram, durante o período supracitado, na representação dos negros nos quadrinhos, levando em consideração cada um dos elementos que incidiram diretamente para a ocorrência desse fenômeno social, vez que, 14 durante muito tempo, a arte quadrinista excluiu ou minimizou os direitos de participação social desses grupos. E foi com tal propósito que este trabalho de pesquisa se constituiu, elegendo como objeto de estudo a representação social do negro nas Histórias em Quadrinhos, que objetiva explorar os conteúdos relacionados às lutas políticas e sociais do povo negro, contribuindo para que ideologias arraigadas no seio da sociedade sejam repensadas e (des)construídas a partir de novos olhares. Olhares que lhe possibilitem a falar sobre si, sobre suas raízes africanas, sua cultura, seus valores, religiosidade, enfim sobre o mundo, tornando-se uma alternativa viável para legitimar vozes negras até então “não autorizadas” (DALCASTAGNÈ, 2012). Para tanto, foram levantadas algumas questões- problemas as quais nortearam a presente investigação, a saber: - Até que ponto as Histórias em Quadrinhos com personagens negras no papel de protagonistas da narrativa podem se constituir elemento político-pedagógico de resistência e de libertação para a comunidade negra brasileira? - Quais aspectos podem ser apontados como influenciadores nas transformações que ocorreram quanto à representação do negro nas Histórias em Quadrinhos? - Até que ponto essas novas representações podem contribuir para a construção de uma autoestima e de uma identidade negras? Na tentativa de responder a esses questionamentos e proporcionar uma reflexão sócio-histórica que possibilitasse uma análise crítica acerca do objeto de estudo aqui esposado, recorri a uma literatura especializada sobre quadrinhos com personagens negros. As primeiras buscas aconteceram no cyber espaço, no qual existe um número considerável de sites de Histórias em Quadrinhos, tais como: UniversoHQ (2011), ImpulsoHQ (2011), Blog dos Quadrinhos (2011), Omelete (2011), entretanto continham pouco material envolvendo a temática. Destes, apenas o HQmaniacs (2011) havia publicado um ensaio, “O negro nas Histórias em Quadrinhos”(2005), de Cláudio Roberto Basílio, dividido em cinco partes, sendo a última delas voltada para os personagens nacionais. Entre os livros, constatei no de Moacy Cirne (1982), Uma introdução política aos quadrinhos, a presença de um único capítulo “O negro nas histórias em quadrinhos”, abordando essa temática. E, na produção de Gonçalo Junior (2004), A Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos 15 quadrinhos, 1933-64, que traça a trajetória dos quadrinhos durante o período destacado no título, deparei-me com informações produtivas para a compreensão da invisibilidade dos personagens negros durante esta incursão. Das teses de doutoramento destaquei a intitulada Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da corte à capital federal (1864 - 1910), de Gilberto Marigoni de Oliveira (2006), que analisa a obra de Angelo Agostini, precursor das Histórias em Quadrinhos no Brasil, e a forma como este representava a comunidade negra nas narrativas quadrinizadas durante o regime escravocrata. Também encontrei a pesquisa O papel do negro e o negro no papel: representação e representatividade dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros, de Nobuyoshi Chinen (2013), que faz um levantamento histórico desses personagens, tanto em termos quantitativos quanto qualitativamente, do século XIX ao XXI, para verificar o quanto existe de preconceito ou de estereótipo em tais representações. Além desses trabalhos, foi imprescindível o estabelecimento de um diálogo com outras áreas de estudo, através das seguintes obras: A Representação Social da Psicanálise (1978) e Representações sociais: investigações em psicologia social (2012), de Serge Moscovici (1978); A discriminação do negro no livro didático (2004), Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático (2001), A representação social do negro no livro didático: o que mudou? Por que mudou? (2011), de Ana Célia da Silva; Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU, de Florentina da Silva Souza (2005); Da Diáspora: identidades e mediações culturais de Stuart Hall (2009); Negritude: usos e sentidos (1988), de Kanbelege Munanga. Os dados levantados por meio dos estudos teóricos indicam que, durante os dois primeiros séculos no Brasil, as personagens negras representadas nas páginas das Histórias em Quadrinhos eram grafadas de forma estereotipada, caricatural e estigmatizada. A comunidade negra aparecia sempre nas narrativas como personagens secundárias, desumanizadas e ocupando posições de subalternidade, em decorrência da lógica escravista que regeu o país durante longo tempo e que, de forma eficaz, foi se disseminando e alimentando o imaginário nacional. No entanto, por força da emergência de novos contextos histórico-sociais, a comunidade negra foi propondo a construção de novos paradigmas de mudanças representacionais, na esperança de instaurá-los nos vários segmentos sociais. Isso foi um desafio, pois os efeitos das desigualdades étnico-raciais, projetados pela ideologia do racismo, dificultaram a construção de posicionamentos 16 mais democráticos, fechando os caminhos para a promoção da igualdade e a possibilidade de se falar sobre as diferenças nas várias instâncias. Assim, a partir da década de 1970, pressionados pelas mudanças do contexto social e também sensíveis às mazelas vivenciadas pelo povo negro, alguns artistas passaram a ilustrar as personagens negras sob novas perspectivas. Inicialmente, essas icnografias apresentaram-se impregnadas de marcas históricas e culturais negativas sobre o corpo negro e delas não conseguiam desvencilhar-se. Mas, paulatinamente, essa realidade foi se transformando e os quadrinhos passaram a assumir uma linha de produção contestatória, tornando-se de trincheira, propensos a denunciar a condição subumana na qual se encontrava grande parte da sociedade brasileira, em função das disparidades socioeconômicas e étnico-raciais vigentes. No entanto, apesar dessas novas condições de produção, as falas e representações expostas nas suas páginas, ao lado da crítica e do humor, da autodefesa e da análise da sociedade, evocavam sentimentos de compaixão e tristeza, pois as personagens eram grafadas na condição de miserabilidade – pobres, nordestinos, famintos, moradores da caatinga ou dos lixões, crianças de rua. No decorrer dessa trajetória, outras narrativas começaram a reverberar, com suas vozes discordantes, tendo os Movimentos Sociais Negros, uma presença imprescindível à promoção de novas possibilidades. Leis e projetos de políticas afirmativas foram criados, dentre os quais podemos citar a Lei 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, a Lei 12.288/2010, do Estatuto de Igualdade Racial, e a Lei 11.634/2007, que trata do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, cujo aparato busca corrigir e/ou amenizar essas disparidades, incidindo também nas páginas dos quadrinhos. Evidenciados esses dispositivos legais, a partir da década de 1990 e da entrada no novo milênio, as personagens negras deixaram de ser representadas apenas como figuras que reafirmavam sua situação de marginalizados, passando a compor as narrativas como heróis e heroínas, assumindo, assim, a centralidade do discurso como sujeitos das histórias. Heróis e heroínas comuns, anônimos do cotidiano, que vêm de muito longe, do murmúrio de outras sociedades, para progredir. Combatentes, tenazes, resistentes, que vêm desembaraçando-se de uma rede de forças e de representações préestabelecidas, para se inserirem em narrativas que enfocam o social, o político, o étnicoracial (CERTEAU, 1998). 17 Todavia, essas produções ainda são segregadas e controladas pela indústria cultural – desde os editores, revendedores e distribuidores , que quantificam, classificam e hierarquizam essas obras em relação a outras cujas personagens principais são brancos. O que faz com que as publicações com personagens negros continuem a ser publicadas em número muito escasso por não fazerem parte da lógica da produtividade e dos modelos tidos como lucrativos. Afinal, [...] o propósito de um Brasil exclusivamente branco continua sobrepujando as mentes que comandam a nação nas diversas instâncias do poder. Os maiores problemas que o país enfrenta hoje foram plantados ontem e seus cultivadores deixaram uma legião de descendentes e seguidores (CUTI, 2010, p. 12). Diante do exposto, e ciente de que as Histórias em Quadrinhos se constituem um espaço por excelência de representação social (MOSCOVICI, 1987), desde os cenários, os enredos, e estes se entrecruzando com as personagens e com a sociedade, procuro centrar nessa arte o objeto do nosso estudo. A escolha dessas narrativas quadrinizadas procedeu-se por amostragem não probabilística. Na observância de algumas dessas publicações no espaço onde leciono, divulgadas através da mídia ou presentes no material teórico-metodológico utilizado, as selecionei-as por considerá-las excelentes fontes de informação, para representarem o “bom julgamento” da população/universo (KAUARK, F.; MANHÃES, F.; MEDEIROS, C. H. 2010. p. 61). Tal amostragem se insere no campo da pesquisa qualitativa, a qual “[...] considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em números” ((KAUARK, F.; MANHÃES, F.; MEDEIROS, C. H. 2010. p. 26). Do ponto de vista dos procedimentos técnicos (GIL, 2007), trata-se de uma pesquisa qualitativa, não somente porque analisa qualitativamente o conteúdo de material produzido, mas também porque se utiliza de pesquisa bibliográfica, tendo como base um acervo relevante de obras publicadas, que auxiliaram na melhor compreensão crítica acerca do objeto de estudo. Nessa perspectiva, a utilização do material bibliográfico enseja a exploração mais densa dos conteúdos relacionados às lutas políticas e sociais do povo negro, o que poderia contribuir para que ideologias arraigadas no seio da sociedade fossem repensadas e (des)construídas a partir de novos olhares. 18 Na esteira dessas delimitações e discussões optei pela seleção de apenas sete publicações para serem analisadas. Isso em função de essas HQs - as representadas a partir da década de 1990 - apresentarem histórias que desconstroem os ditos de inferioridade sobre a comunidade negra, assumindo no seu discurso uma posição de enfrentamento da realidade; também por agregarem-se a outras lógicas que furam as resistências e nutrem uma memória afetiva (CUTI, 2010) de referência positiva sobre a comunidade negra, propiciando a valorização da sua história e, consequentemente, da sua cultura. Sabe-se que essa narrativa icnográfica, pela relação que guarda com os fatos do cotidiano social, constitui um espaço fértil para a crítica, instrumento que pode romper barreiras e promover mudanças no contexto social, haja vista que a maioria dessas narrativas encontra-se ligada aos interesses dos grupos que detêm o poder político, social e econômico do País, e que por isso mesmo excluem ou minimizam os direitos de participação social dos grupos minoritários. Essa realidade precisa ser transformada, pois há espaços para todos serem retratados como sujeitos de direito nessas composições, inclusive para a comunidade negra, que vem lutando para assegurar seu lugar de cidadania no universo dos quadrinhos, tendo em vista difundir sua cultura, sua história, seus saberes e alcançar novos patamares nas suas condições de vida social. A estrutura da pesquisa compõe-se de introdução, três seções e da conclusão. Na primeira seção, OS DITOS E OS INTERDITOS: SOBRE QUADRINHOS E REPRESENTAÇÕES, apresento o conceito de Histórias em Quadrinhos, seus precursores em contexto nacional e internacional e suas dificuldades quanto à produção e divulgação. Abordo, principalmente, as formas diferenciadas como a comunidade negra vem sendo representada nesse contexto e a sua busca por equidade de direitos. Na segunda seção, AVANÇOS E DESAFIOS NA REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS QUADRINHOS, procuro evidenciar como, gradativamente, as representações da comunidade negra nas HQs foram se modificando. De desumanizadas a humanizadas, de estereotipadas e caricaturais a positivas, de invisibilizadas a visibilizadas, constituindo-se mais uma forma de resistência contra o racismo, a discriminação e o preconceito. Quanto à terceira seção, NOS QUADROS DA NONA ARTE: ESPAÇOS HETEROGÊNEOS DE CIRCULAÇÃO, com as personagens negras já 19 corporificando, representacionalmente, traços gráficos, próprios da comunidade negra a que pertencem, analisamos como essas produções podem se constituir em pontes na construção da identidade e autoestima desse grupo étnico-racial, assim como em instrumento e/ou mecanismo de seu empoderamento, por distinguir o potencial comunicativo presente em cada uma dessas narrativas. 20 1 OS DITOS E OS INTER-DITOS: SOBRE QUADRINHOS E REPRESENTAÇÕES A Verdade e a Mentira num conto iorubá Lembro aqui uma lenda africana sobre a criação do mundo. Diz assim: Olofi, o Senhor que tudo criou – o bem e o mal, o bonito e o feio, o claro e o escuro, o grande e o pequeno, o cheio e o vazio, o alto e o baixo - criou também a Verdade e a Mentira. Fez, no entanto, a Verdade forte, marcante, bela, luminosa, e fez a mentira fraca, feia, opaca. Ao ver assim a Mentira, deu a ela uma foice com a qual pudesse se defender. A Mentira sentiu inveja da Verdade e queria eliminá-la. Certa ocasião a Mentira se defrontou com a Verdade e a desacatou. Brigaram. Empunhando sua foice, a Mentira, com um golpe, degolou a Verdade. Esta, vendo-se sem cabeça, começou a procurá-la tateando por volta. Apalpa um crânio que supõe ser seu. Com esforço agarrao e o arrancando da onde estava, coloca-o sobre seu pescoço. Mas aquela era a cabeça da Mentira. Desde então, a Verdade anda por aí enganando toda gente (cf. CRITELLI, 1984). A mobilização em torno de se contar novas e outras histórias sobre a comunidade negra, vem, a cada dia, ganhando maiores espaços. Conforme narra a lenda africana sobre a criação do mundo, muitas foram as histórias contadas; algumas ganharam caráter cientifico, outras foram introjetadas no imaginário popular e, mesmo não sendo verdadeiras, ganharam esse status com base nos confrontos relacionais estabelecidos. E, assim, o povo negro-africano e seus descendentes sofreram e vêm sofrendo as conseqüências dessas construções discursivas, desde que a “Mentira” degolou a “Verdade” e apropriou-se do seu corpo, para sair por ai difundindo suas ideologias. Foram longos os anos de enganos e desenganos, liderados pelos grupos hegemônicos, que criaram e implementaram complexas teias sociais, econômicas e políticas; nocivas não só à comunidade negra, mas à sociedade de um modo geral. Isso porque vivemos em rede, e toda e qualquer ação social reverbera em toda a comunidade global. No limiar desses processos, os modos de resistência implementados foram os mais diversos, fazendo-nos inferir, por saber-se que a cabeça da Verdade é a parte mais 21 significativa do corpo humano, que esta não se conectou ao corpo da Mentira, e seguiu privilegiando caminhos mais lógicos, que buscassem reordenar as relações segregacionistas e totalitárias, nas quais sujeitos fossem tratados como tal, e não como objetos ou mercadorias. Pois é na cabeça, segundo a cultura iorubá, que coexistem [...] o cérebro – a morada da sabedoria e da razão; os olhos – a luz que ilumina os passos dos homens pelos labirintos da vida; o nariz – que serve como uma espécie de ventilação para a alma; os ouvidos – com os quais o homem escuta e reage aos sons, e a boca – com a qual ele come e mantém o corpo e alma juntos (LAWAL, 1983, p. 46). Dissociar-se a cabeça do seu corpo e agregar-se a um corpo que não preserva os cuidados necessários à preservação da vida só ocasionaria maiores desequilíbrios de ordem ambiental, filosófica, religiosa e societária. Nesse sentido, ancorados na cabeça da Verdade, e em todo o conto, que possibilita-nos relativizar às verdades absolutas, é que este capítulo ganha corpo. Não contando novas e outras histórias acerca do povo negro no universo imagético das HQs, mas reconhecendo que é preciso continuar buscando os fios da vida que tecem essas narrativas, para que seja possível alterar as compreensões em torno do mundo e dos diferentes sujeitos que o compõem. 1.1 ESQUADRINHANDO UMA HISTÓRIA As Histórias em Quadrinhos podem ser definidas como narrativas sequenciais que se articulam entre a linguagem verbal e a imagética. São consideradas um locus contextual favorável para comunicar ideias; isso porque, através das HQs, dialogam aspectos históricos, sociais, étnicos, culturais, econômicos e políticos, sendo essas relações responsáveis por possibilitar que essas narrativas, devido à sua grande potencialidade, tornem-se uma arte capaz de expressar conceitos diversos, numa verdadeira tempestade de ideias, ou brainstorming1 ,ampliando os seus caminhos, sua produção, sua divulgação e seu consumo. 1 Em 1953, o norte-americano, Alex Faickney Osborn, criou um conjunto de técnicas com vistas a desenvolver a criatividade. Como empresário e publicitário, observava que as campanhas de propaganda da sua empresa necessitavam revestir-se de formas mais criativas que dialogassem diretamente com o consumidor. Assim, em 1939, ele passou a desenvolver procedimentos que potencializassem o desenvolvimento criativo dos seus funcionários, a fim de atender a demanda. Nas reuniões todos os participantes eram livres para expressar suas idéias, e estas não deveriam passar por julgamento de valor, mas sim serem reorganizadas e combinadas a outras ideias, resultando em criações criativas e inovadoras. A esse jogo de ideias, ele deu o nome de brainstorming; no entanto, essa técnica só veio a ser publicada 22 Revisitando obras, autores, pesquisadores e espaços de significação sobre Quadrinhos, confrontamo-nos com diversas percepções em torno da origem dessa arte. Alguns estudiosos creditam a essas narrativas um sentido evolutivo, estabelecendo, como fonte primeira, os registros encontrados nas cavernas do paleolítico, através das pinturas rupestres, e toda forma de comunicação sequencial que, ao longo da história da humanidade, objetivou transmitir suas ideias através de imagens, até ancorar-se nas páginas digitais na atualidade. Outros especialistas da área apontam para as primeiras publicações gráficonarrativas, que surgiram no cenário mundial no final do XVIII e inicio do século XIX, com os artistas Wilhelm Busch (1885), na Alemanha; Angelo Agostini (1869), no Brasil; Christophe (1889), na França; James Swinnerton (1892); R. F. Outcault (1896) e Rudolph Dirks (1897) nos Estados Unidos (CIRNE, 1982). Estes, cada um em seu contexto cultural e cronológico, de acordo, portanto, com as suas especificidades; viveram os primeiros dilemas que envolveram e envolvem, ainda hoje, esta produção icnográfica e verbal. Dilemas próprios de uma linguagem carregada de bens simbólicos e/ou de elementos gráficos, que por seu turno, já nasceram em função da indústria cultural, pois, diferentemente do cinema, que assumiu para si um veículo próprio para divulgar-se, o quadrinho necessitou vincular-se ao jornal, para difundir o seu discurso artístico (CIRNE, 1982, p. 19). Pois que a proliferação desta arte encontra-se intimamente relacionada aos processos socioculturais hegemônicos que atravessaram a história da humanidade, tanto na sua base individual, quanto na sua coletividade. Podemos dizer que esses quadrinistas, citados anteriormente, (CIRNE, 1982), marcados pelos encantos e desencantos característicos desse percurso de afirmação, balizaram o mundo das narrativas sequenciais ao produzirem uma arte com um caráter diferenciado dos, até então, propostos, apresentando-nos o universo imagético das Histórias em Quadrinhos. Produções estas que podem “[...] ser curtidas apenas ao nível do prazer estético, pura e simples orgia formal diante de sensações gráficas, pictóricas, sonoras, narrativas” (CIRNE, 1982, p. 23), mas que podem de igual modo, ser a resultante de uma arte instigadora, que possibilite aos diferentes nichos sociais rearticularem suas formas representacionais no espaço quadrinístico. no ano de 1953, no livro de sua autoria, intitulado Applied Imagination: Principles and Procedures of Creative Thinking, encontrado no Brasil sob o título O poder criador da mente. 23 Nesse contexto de revisão crítica sobre a gênese das HQs podemos notar a criatividade que marcou o estabelecimento dessa arte ao agregar a si, a icnografia e a escrita pelas vias mais diversas. Contudo, alertamos para uma questão: a invisibilidade, ou mesmo a ausência dos povos de etnia negra nos seus requadrados2 (fig. 1). Figura 1 – À procura dos negros nos quadrinhos Fonte: MOREIRA, Roberto. Tem alguém mentindo no PT. Disponível em: <http://blogs.diariodonordeste.com.br/robertomoreira/tem-alguem-mentindo-no-pt/interrogacao-5/>. Acesso em 21 abr. 2013. Nota-se, no âmbito de produção das HQs, que poucas, ou, às vezes, nenhuma personagem negra circulava neste espaço de construção de saberes e produção de discursos, baseada em uma memória marcada pelo estabelecimento de um estereótipo. Mesmo com as mudanças ao longo do tempo, através das quais a razão e a igualdade entre os povos são conclamadas, a maioria das personagens continuaram e continuam a ser de etnia branca, desenhadas e divulgadas por e para este universo, guardando, nas suas entrelinhas, as forças regulamentadoras das estruturas de poder simbólico que as constituem. Essas dinâmicas relacionais, como sistemas simbólicos, organizaram-se assumindo uma prática de poder estruturante, dimensionada em torno de interesses particulares. Cotidianamente, construíram uma cultura e a nomearam universal, mas, na prática, as bases que a solidificam utilizaram apenas, para sua composição, uma percepção de mundo eurocêntrica, excluindo negros e outros grupos étnicos da sua representação. 2 Diagramação também conhecida como quadro, cercadura, vinheta, utilizada na arte sequencial, para dispor os elementos gráficos da narrativa quadrinizada. “[...] Um elemento visual que também pode revestir-se de uma significação, exercendo uma função metalinguística” (SANTOS, 2002, p. 23). O traçado reto reflete ações no presente, enquanto o contorno sinuoso ou ondulado, representam o passado. 24 A cultura ocidental que estiliza um modelo sócio-político, econômico e cultural, acaba por segregar o outro, tido como diferente, postulando-lhe rótulos de ilegitimidade e inferioridade, assumindo, a partir daí, um duplo discurso: do grupo majoritário sobre o grupo majoritário e deste sobre os grupos minoritários. Nesse sentido, essa invisibilidade dos negros nos quadrinhos realiza a sua funcionalidade política, social e econômica de imposição e de legitimação da dominação através da prática do poder simbólico, o que se constitui, por conseguinte, também, uma violência simbólica (BOURDIER, 2001). Essas violências operam através das formas desiguais com que negros e brancos são tratados nos quadrinhos. Não existe um interesse mercadológico da indústria cultural em torno da criação, difusão e divulgação de histórias em quadrinhos com personagens negros no papel de herói e heroínas. Embora, conforme salienta Scott McCloud (2006), haja espaço suficiente nos requadrados, além de haver uma grande necessidade fora deles, para que se faça uma revolução quadrinística. Para uma melhor compreensão do acima destacado, McCloud propõe nos seus estudos teóricos, expressos através de narrativas quadrinizadas, “[...] doze rotas para escapar à apatia, à inércia e ao status quo” 3, pelas quais as HQs vêm passando, com o objetivo de assegurar o crescimento dessa arte em diversas direções, conforme as figuras 2 e 3. Embora essas rotas se encontrem interligadas, nos apropriaremos com maior profundidade da que trata da representação das minorias, grupo no qual a comunidade étnica negra e seus descendentes, encontram-se inseridos, visto que, ainda de acordo com as ideias do autor, “[...] os quadrinhos podem ser consumidos e produzidos não somente por indivíduos brancos, masculinos, heterossexuais e de classe média” 4. 3 4 MCCLOUD, 2006, p. 23, grifo do autor. MIbidem, p.11, grifo do autor. 25 Figura 2 – Doze direções em que os quadrinhos podem crescer Fonte: MCCLOUD, Scott. Reinventando os Quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda, 2006, p.23. Figura 3 – As doze direções Fonte: MCCLOUD, Scott. Reinventando os Quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda, 2006, p.22. 26 Nesse sentido, vale destacar que, como bem sabemos, “há silêncios que são revelações” (BASTIDE, 1973, p.115); isso porque se constituem eficazes em não divulgar, promover e difundir conhecimentos contraproducentes às suas ideias e a aos seus discursos. O que nos leva a aferir que os espaços lacunares, pelos quais os negros transitam nas Histórias em Quadrinhos, se configuram como uma possibilidade de se negar a sua existência e assim, também, ocultar a sua presença (SILVA, 2004). Tornamse, assim, os quadrinhos um instrumento de dominação e um espaço desfavorável à comunicabilidade, o que, em grande medida, acaba por gerar uma bipolarização representacional dos grupos – brancos e não-brancos. A mídia jornalística exerceu um papel preponderante neste contexto; afinal, seus instrumentos foram os grandes difusores dessa arte literária, contribuindo, decisivamente, para veicular uma estética branca aos requadrados, conforme nos alerta Souza: É a autoridade da estética branca quem define o belo e sua contraparte, o feio, nesta nossa sociedade classista, onde os lugares de poder e tomada de decisões são ocupados hegemonicamente por brancos. Ela é quem afirma: “o negro é o outro belo”. É esta mesma autoridade quem conquista, de negros e brancos, o consenso legitimados dos padrões ideológicos que discriminam uns em detrimento de outros (SOUZA, N., 1983, p.29). Afinal, as histórias em quadrinhos funcionavam de acordo com a cultura de cada época, com os modismos, as experiências de vida dos sujeitos que as produziam; em consonância com as dos sujeitos que as consumiam, viabilizando a lógica simbólica de dominação que estabelece as normas, os valores, as regras, os habitus. Ao produzir um modelo que dialoga com o seu público-leitor, as HQs para além do entretenimento, tornaram-se um bem de consumo cuja finalidade atrelava-se à produção em grande escala das narrativas e sua divulgação gerava, consequentemente, um aumento nas vendas e nos lucros. Dentro dessa lógica simbólica, universalizaram-se através de uma hierarquia que assegura a representação do grupo majoritário, mantendo os demais grupos, minoritários, à margem da sua produção. Nos requadrados, os procedimentos de exclusão tornam-se visíveis e, em consonância a estes, os mecanismos coercitivos de desejo e de poder estabelecem-se, rapidamente, nas linhas discursivas. Fixa-se o que pode ser dito ou o que pode ser publicado; como pode ser dito ou como pode ser publicado e em quais circunstâncias, evidenciando o princípio da interdição ou da palavra proibida (FOUCAULT, 2011). 27 Dessa forma, ao se moldarem as HQs ao princípio da interdição ou da palavra proibida, a sociedade de consumo nos aponta uma direção: o silenciamento, através do apagamento da comunidade negra das Histórias em Quadrinhos. Teoricamente, no campo jurídico, essa realidade é negada, pois foram criadas leis que reafirmam as condições de igualdade entre os povos, entre a comunidade negra e a comunidade branca. No entanto, na prática, esses discursos se distanciam, pois as realidades são, cada vez mais, excludentes e desiguais, evidenciando a existência do racismo, do preconceito e da discriminação, que possuem raízes históricas. Os problemas que temos hoje, especificamente no Brasil, representam o agravamento das dificuldades resultantes das relações de força e dominação, estabelecidas pelos povos brancos europeus sobre os povos negros africanos, anteriormente ao processo de colonização pelo qual passou o continente americano. As ações de dominação se constituíram em graves violações aos direitos humanos. O controle político-econômico exercido pelas classes dominantes não levava em consideração o outro nem a biodiversidade encontrada. “Incomodados” (MOORE, 2008, grifo nosso) em África, os povos negros passaram a “incomodar” lutando pela sua independência territorial e pela liberdade emocional e psicológica em relação ao que havia sido imposto. Estabeleceram-se, por parte dos povos negros em relação às ações implementadas pelos povos brancos, desfavoráveis à sua existência, movimentos de resistência. Estes atravessaram o Atlântico e ocuparam a América. No Brasil, os caminhos trilhados se encontram em conformidade com essas lutas, pois, desde o período colonial, passando pelo abolicionismo e Independência Nacional, até adentrar a República, o povo negro e seus descendentes almejaram o estabelecimento de políticas públicas afirmativas, posto que, nos diferentes contextos, suas oportunidades sociais mantiveram-se em situação de inferioridade. A incorporação histórica, revelada na forma de se gerir o país, encontra-se carregada de um anacronismo que se evidencia na improbabilidade de tornar possível “a solidariedade genuína” (BAUMAN, 2001, p. 202). O que acontece é “[...] uma tentativa desesperada de separar “nós” e “eles”; então os traços cuidadosamente espiados “neles” são tomados como prova e fonte de uma estranheza que não admite conciliação.” (BAUMAN, 2001, p. 203). Assim, conforme Levi-Strauss (1955), os povos de etnia branca organizaramse através da imposição sobre o outro, aqui, especificamente sobre a comunidade negra, através de uma lógica de dominação, disseminando sua ideologia, para fins de que o 28 outro construísse uma imagem assemelhando-se à sua; o que faria deles negros de “alma branca”. Nessa dinâmica, o poder “encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana” (FOUCAULT, 1979, p. 131). E o outro, o diferente, com sua visão de mundo pautado nas forças cosmogônicas, foi deixado à margem e expulso das redes de poder, através da imposição da etnia branca, pelo uso de estratégias discursivas (FOUCAULT, 1979, p. 131) eficazes em promover sujeição à sua cultura, enclausuramentos em guetos e a invisibilidade do povo negro. Esses pressupostos hierárquicos inferiorizantes em torno das minorias culturais, raciais e religiosas, serviram para estigmatizar as relações sociais e desencadear toda forma de intolerância e desrespeito ao povo negro, imputando-lhe “um sistema de dominação de classes de etnocontroles excludentes” (CUNHA JUNIOR, 1998). Como resultado, podemos observar a legitimação negativa da comunidade negra, através da sujeição cultural, subalternidade pelo silenciamento, negação de direitos e de uma impossibilidade de autovalorização, haja vista que tais movimentos imputam ao povo de etnia negra uma baixa autoestima. Face ao exposto, nota-se que, progressivamente, os núcleos cêntricos estigmatizaram, rejeitaram e colocaram esse grupo étnico-racial sob suspeita (SILVA, 2004). Vitimizados, esses sujeitos acabam por internalizar tais ações a que foram submetidos e iniciam, desde a mais tenra infância, um processo de autorrejeição, desprezando, consequentemente, tudo em torno de si, desde os seus fenótipos até a tradição cultural que os caracteriza, fragmentando, assim, os seus sentimentos de pertencimento e de ancestralidade, encontrados em África e tão necessários à sua etnogênese. Com essa perspectiva, podemos perceber que, no contexto emergente, e também durante um longo período, a comunidade negra apareceu representada societariamente e em locus, na arte sequencial, dentro de um continnum conceitual estruturado dentro de uma lógica de dominação narcísica, grafado com base no reflexo de um espelho imaginário branco, ou seja, caricaturado ou marcado pela presença de estereótipos inferiorizantes. Estereótipos, aqui compreendidos, segundo Roger Bastide (1973) como uma ação que envolve um julgamento de valor que bipolariza o negro em bom ou ruim, em feio ou belo, submisso ou insurgente. E assim, 29 [...] o povo negro só aparecia nas histórias como coadjuvantes temporários nas aventuras dos heróis brancos, ou caricaturados, mantendo o estereótipo de que o negro é inferior, feio, mal, primitivo, menos inteligente, falante de uma língua não culta. [...] É fácil identificar o racismo nos comics ou nas bandes dessinées, sobretudo pela lacuna (CIRNE, 1982, p. 54). Nessas vias, em trânsito, a comunidade negra sempre explicitou sua posição contrária em partilhar desses discursos. E as relações entre negros e brancos sempre coexistiram de forma tensionada neste universo fronteiriço, sociocultural, refletindo-se nas páginas das HQs através de uma visibilidade estereotipada ou de uma invisibilidade, ocasionando choques de temporalidades. Pois, sob o “manto” da subordinação, ao se verem retratados de forma inferiorizante, na historiografia nacional e nas Histórias em Quadrinhos ou ao não se verem representados, esses sujeitos adquiriram e constituíram mecanismos de resistência, adaptando-se ao meio, por vezes se fundindo e se recriando, em consonância com a cultura dominante, a fim de resgatar e preservar suas memórias e tradições (SILVA, 2004). Esses imbricamentos foram imprescindíveis para que as possibilidades de compreensão acerca dessa problemática ganhassem forma e estabelecessem uma tomada de consciência acerca dos papéis que os diferentes sujeitos vêm exercendo nas diferentes esferas sociais, dimensionando o ser negro e o tornar-se negro. Mas, como se aprende a ser negro? Como se aprende a tornar-se negro? Vanda Machado (2010, p.9), de maneira transgressora, nos diz que só se aprende sendo e tornando-se. E para tanto sugere a descristalização “[...] do modelo cultural instituído, fechado no assujeitamento de pensamentos lineares”5. Isso requer um processo de aprendizagem que “[...] inclui atos celebrativos que estimulam e agregam tudo que dá vida à vida comunitária [...]”6 , possibilitando “[...] compreender o mundo como algo que se move dentro e fora de nós mesmos [...]” 7 , possível de ser transformado, desde que seja assegurada, na pulsão das culturas e, consequentemente, na formação do indivíduo, uma posição contrária às ações anticivilizatórias instauradas e que, hierarquicamente, discriminam continentes, etnias, pessoas e religiões. E segue a autora a dizer que, entre tantos caminhos, o mais humano para que essas aprendizagens se deem, está na superação das intolerâncias e afastamentos, na abertura a descobertas espirituais e filosóficas milenares dentre as tantas epifanias de 5 6 7 MACHADO, 2010, p.9. Ibidem, p.9. Ibidem, p.9. 30 Deus no meio de homens e mulheres em todos os tempos. Então, conhecer, promover, agir, são possibilidades “[...] da cura do mal da nossa própria ignorância [...]” (MACHADO, 2010, p.9). Assim, transversalmente, o povo negro, nesse processo de ser e tornar-se negro, passou, cada vez com maior vigor reivindicatório, a buscar uma condição de igualdade perante a sociedade. Para tanto, estabeleceu novas lógicas, em detrimento das impostas, sendo estas pautadas na sua historicidade, na sua ancestralidade e nos seus registros memorialísticos. Como afirma Cunha Junior: A marca africana é indiscutível na cultura brasileira. Mas estes povos africanos e afro-descendentes, nas suas epopéias de busca de liberdade e de igualdade social, realizaram eixos marcantes da história social do povo brasileiro. Empreenderam milhares de quilombos, de rebeliões, de instituições no combate ao escravismo criminoso. Tiveram intensa participação em todos os movimentos da história nacional. No pós-abolição, a história de africanos e afro-descendentes se transcreve na organização de novos movimentos sociais, religiosos e culturais, entre os quais se destaca um atuante Movimento Negro (CUNHA JUNIOR, 2005, p. 251). Essas rearticulações, dentro do sistema conjuntural, para fins de reelaboração dessas realidades, em torno da comunidade negra, tornam possível afirmar que a incorporação de personagens de etnia negra no papel de heróis e heroínas no espaço quadrinizado ocorreu anteriormente às suas primeiras manifestações gráficas, transpostas para as folhas de papel. Elas ecoaram a partir deste sentimento de pertencimento e deslocamento, constituído nos encontros e nos desencontros: encontros entre povos diferentes, com culturas próprias e falares diverso; desencontros, por estarem forçosamente atuando em espaços territoriais, nos quais lhes eram negadas condições mínimas de existência e sobrevivência. Neste processo interacional, tornou-se imprescindível a construção de uma comunidade cultural, no período colonial, pós-colonial, republicano e na contemporaneidade, que primasse pela manutenção dos seus costumes, das suas tradições, da sua memória e da sua identidade étnico-racial. Algo que só pode ser pensado a partir do estabelecimento de uma rede de solidariedade e alteridade, construída entre os diferentes sujeitos e necessária para a manutenção dos processos de lutas e resistências. A diferença legitimou, de forma positiva, a reconstrução desta autoidentidade negra e, conforme Zygmunt Bauman (2001, p. 202), esta semelhança foi decididamente mais significativa que os traços que indicavam uma separação; 31 “significativo bastante para superar o impacto das diferenças quando se trata de tomar posição”. E é esta posição histórica que nos impele a transferir aos quadrinhos um potencial de expansão dos objetivos almejados pelas lutas e resistências do povo negro. Acreditamos ser este um espaço possível para uma pauta discursiva de temáticas que coloquem o povo negro no mesmo plano de valorização estético-moral afetiva dos povos brancos (MOORE, 2012). No entanto, é necessário que o compromisso com a democracia e a democratização dos saberes se concretize e que os postulados e ideários de dominação sejam identificados, apresentados, examinados e erradicados, dando espaço para a construção de novas lógicas sociais, em detrimento das historicamente impostas. 1.2 TEORIA DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL: NOS BALÕES CRUZADOS DE UM CONCEITO O conceito de representação social, cunhado pelo estudioso romeno, naturalizado francês, Serge Moscovici, foi apresentado à sociedade através da obra A representação social da psicanálise, no ano de 1961. O objetivo do pesquisador era redefinir as estruturas que alicerçavam os saberes da Psicologia Social, através do fenômeno das representações sociais, ressaltando sua função simbólica e seu poder de construção do real (MOSCOVICI, 1978), pois a forma como esta se encontrava organizada não privilegiava, nos seus embasamentos teóricos, discussões que abarcassem as contradições sociais. Moscovici acreditava que a Psicologia social deveria buscar contribuições em grandes pensadores, como Marx, Freud, Piaget e Durkheim para desenvolver-se. Nestes, entre outros, seria possível estudar os indivíduos e seus grupos, com base numa abordagem epistemológica mais do movimento, da mudança, situando-os no mundo, do que da ordem social, das reações e dos ambientes fixos. Dessa forma, a compreensão de questões relacionadas às desigualdades étnico-raciais, aos “[...] fenômenos da linguagem, à força das ideias na construção da sociedade, a realidade social” (GUARESHI, 2007, p. 26) tornar-se-iam possíveis de ser compreendidas através da necessidade de se estabelecerem aproximações e distanciamentos dos objetos. 32 Neste contexto, para ir além e assegurar os procedimentos de renovação a uma ciência que, aos seus olhos, necessitava de uma grande revisão crítica, o pesquisador debruçou-se sobre o conceito de representação coletiva, desenvolvido por Émile Durkheim (2007)8. Neste, compreendeu “[...] que a vida social é a condição de todo pensamento organizado – e, de preferência, que a recíproca também é verdadeira [...]” (MOSCOVICI, 1978, p. 42). Entretanto, para que essa compreensão se concretizasse, seria necessário o estabelecimento de uma abordagem explanatória que desse conta da pluralidade desses modos de organização, pois Durkheim apresentava de forma muito genérica este locus contextual que é a sociedade. As ideias daquele autor, embora inovadoras para a época em que foram debatidas, abarcavam uma cadeia de formas intelectuais - ideologia, mito, opinião, atitudes, imagens, modalidades de tempo, espaço, ciência, entre outros - muito ampla, necessitando passar por uma profunda análise na sua estrutura e/ou na sua dinâmica interna. Mas, como isso não ocorria, acresciam-se os problemas em torno da sua análise, porque, quanto mais se incluíam essas formas intelectuais, esses conhecimentos e crenças reguladoras das sociedades, mais lacunares tornavam-se os mecanismos para que se estabelecessem a sua compreensão (MOSCOVICI, 2012). Durkheim não levava em consideração que toda representação - no campo da ciência, da técnica, da filosofia, das artes – foi constituída sob forte influência dos referenciais conceituais internos e externos; que cada sujeito traz consigo em interação com o grupo a que pertence; tampouco que cada uma dessas representações foi definida de forma muito específica por esses mesmos sujeitos e grupos que a compuseram (MOSCOVICI, 1978). Procurando afastar-se das concepções de sentido estático inadequados aos processos psicossociais, que estabeleciam divisões do tipo indivíduo/subjetivo/objetivo, o Moscovici (1978) permitiu-se diferenciar representação social de modalidades conceituais, como os mitos, a ciência, a ideologia etc, embora ciente de que cada uma 8 Segundo o sociólogo Émile Durkheim (2007) as representações coletivas nascem das interações sociais, fruto das crenças e sentimentos de cada indivíduo, que, agregados, lhe dão vida própria. Sem essas crenças e sentimentos a sociedade não existiria. No seu processo de difusão, essas representações acabam por sobrepujar a esfera individual, formando propriedade e condições de existência próprios, que, devido a sua força, se estabelecem, se solidificam e jamais passam, diferentemente dos indivíduos, embora tenham se originado deles. E, assim, o social, em função do seu poder coercitivo, impõe-se através das regras e normas, cabendo ao indivíduo viver de acordo com cada uma dessas, ou seja, agir em determinação, não em função de um sistema de pensamento individual e particular, mas em função de um sistema maior que é a consciência ou a representação coletiva. 33 destas encontrava-se mediada por representações cognitivas e sociais. E assim as sistematizou: As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam, cruzam-se e se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um encontro, em nosso universo cotidiano. A maioria das relações sociais estabelecidas, os objetos produzidos ou consumidos, as comunicações trocadas, delas estão impregnados. Sabemos que as representações correspondem, por um lado, à substância simbólica que entra na elaboração e, por outro, à prática que produz a dita substância, tal como a ciência, ou os mitos correspondem a uma prática científica e mítica (MOSCOVICI, 1978, p. 41).” Nessa encruzilhada “mista”, marcada por uma série de conceitos sociológicos e de uma série de conceitos psicológicos, Moscovici (1978) segue afirmando que a representação social se constitui através de um conjunto de proposições, reações e avaliações, estruturando-se de modos diversificados entre as classes sociais, entre as diferentes culturas e os grupos, normalmente em acordo aos coros coletivos de opinião pública que os compõem. E, nessa composição, esses universos representacionais acabam por englobar três dimensões de natureza social: a informação, o campo de representação e a atitude. A informação refere-se aos níveis diferenciados de conhecimento que um sujeito ou grupo possui acerca de um determinado saber ou objeto social. Tais conhecimentos são elaborados por meio das estruturas intelectuais de cada sujeito - seus sentidos, suas percepções, seu raciocínio, sua linguagem etc. – e por meio das relações de interação que ele estabelece com outros sujeitos sociais. De maneira geral, podemos dizer que, nessas trocas, novas e diferentes, visões do mundo despontam, algumas numa dimensão mais elaborada e outras menos, de acordo com o número de informação que o sujeito possui sobre o assunto em questão. O campo de representação compreende a ideia de imagem, de modelo social, englobando também o conteúdo concreto e limitado das proposições que se referem a um aspecto preciso do objeto representado. Esta dimensão pressupõe que existe uma unidade hierarquizada de elementos dentro da sociedade, uma imagem representada em uma tela seletiva, que varia e abrange juízos formulados e afirmações sobre uma dada realidade. A atitude, por sua vez, remete-nos à avaliação. Há uma tendência incomum nos diferentes sujeitos, voltada para os objetos, para as pessoas ou para as atividades, de impor escalas valorativas, classificatórias e somativas para determinar o grau de 34 importância de um problema. Tal feito, em contexto social, tende a apresentar sobre o objeto representado uma orientação global, que pode ser positiva ou negativa, favorável ou desfavorável, resultante da maneira como uma dada informação chegou e foi apreendida e incorporada às práticas de vida do sujeito. A atitude gravita sobre pontos de vista muito específicos, tendendo a ser instável, com uma propensão à formação de estereótipos. Normalmente, quando assume essa forma, a dimensão da atitude tende a olhar o objeto investigado sempre de fora, sem levar em consideração seus atores sociais, suas intenções e propensões, ou seja, sem levar em consideração o ser humano com seus questionamentos e busca por respostas. (MOSCOVICI, 1978). Observando as três dimensões acima aludidas, concluímos que o sujeito só representa e informa alguma coisa à medida que se posiciona, assumindo uma atitude acerca de e em função do objeto, embora nem sempre essas localizações se estruturem de forma coerente (MOSCOVICI, 1978). De certo, os contextos histórico, político e social permitem que o sujeito, em sua atividade representativa, articule-se com o objeto concreto, não de forma passiva, mas ativa, no imbricamento entre o universo social e material, tornando visíveis as relações entre o universo simbólico e a realidade social. Nesse sentido, a representação social torna-se [...] uma “preparação para a ação”, ela não o é somente na medida em que guia o comportamento, mas, sobretudo, na medida em que remodela e reconstitui os elementos do meio ambiente em que o comportamento deve ter lugar (MOSCOVICI, 1978, p. 49). Assim, o fenômeno da representação social constitui formas de conhecimentos concretos que se realizam em si mesmas, dentro de um contexto dinâmico, ativo, em que o indivíduo e grupo, devido ao seu poder criador, os reelaboram através de atividades representativas combinatórias. Ao mesmo tempo em que seguem em direção a si mesmos, seguem em direção aos diferentes outros, o que torna possível definir as relações estabelecidas, que podem ser ou não socialmente valorizadas e representadas através das ausências ou das presenças. Na sua prática, na sua diversidade de conteúdos e na sua estruturação, a representação social sempre leva em consideração os conhecimentos populares, a cultura, os valores e as crenças, esse senso comum que circula na nossa sociedade. 35 Nesse sentido, a vida cotidiana e a ciência servem de ancoragem para que os modos de compreensão sobre o mundo se concretizem, visto que são indissociáveis. Esses permitem que as representações sejam agarradas ao vivo, compreendendo como elas são geradas, comunicadas e colocadas em ação no dia a dia. Na perspectiva acima, “[...] os conceitos ganham cor ou se concretizam (ou, como é costume dizer, objetivam-se), enriquecendo a tessitura do que é, para cada um de nós, a realidade” (MOSCOVICI, 1978, p. 51). Toda esta estrutura torna-se possível, porque as representações sociais são ao mesmo tempo teorias, ciências coletivas, designando a compreensão e elaboração do real. Numa perspectiva dialógica, a representação social torna o que não é familiar em algo familiar. O não familiar, nesse processo psicossocial, acaba por encarregar-se de compor o universo familiar. Sob tal prisma, a teoria da representação social tornou-se fundamental para o desenvolvimento desta temática de investigação, por permitir que fossem visualizados, por meio dos processos simbólicos formulados em seu entorno, os fios que lhe tecem e lhe servem de sustentação. Através da manipulação do simbólico, poderemos observar as mudanças e permanências que se operacionalizaram na representação social do negro nas Histórias em Quadrinhos. Nas palavras de Sá e Arruda (2000, p.16), a pesquisa poderá escapar da rigidez proposta por outras teorias e absorver a diversidade de fenômenos que contribuam para explicar os problemas na tentativa de resolvê-los, vez que o campo das representações sociais é um espaço de indagações, reflexões, embates, de produção científica, de encontros, trocas e solidariedade. Assim, a cada elaboração e reelaboração das produções quadrinistas, poderemos constatar que somos, a todo instante, interpelados por palavras, imagens e ideias, que nos penetram através dos nossos olhos, nossos ouvidos e nossa mente, sem que, muitas vezes, nos apercebamos, e acabam por orientar as nossas condutas. Neste sentido, é oportuno poder integrar as HQs a esse quadro do real, imbuindo-lhe a tarefa de compreender as construções e reconstruções das ideias que a permeiam. Assim, será possível “preencher lacunas, suprir a distância entre o que se sabe, por um lado, e o que se observa, por outro, completar as „divisórias vazias‟ de um saber pelas „divisórias cheias‟ de um outro saber [...]” (MOSCOVICI, 1978, p.5), uma vez que se busca superar um invisível, que nos fora transposto através de canais de comunicação considerados legitimados, como a educação, os meios de comunicação e as instituições. 36 Durante esse processo de interlocução, cada um desses fenômenos, difundidos em ambientes naturais e/ou sociais, assume, na sua composição, a função de convencionalizar e prescrever o mundo (MOSCOVICI, 2011). Tudo isso, com uma certa dose de autonomia e de condicionamento, que pode ou não interferir nas atividades cognitivas de cada indivíduo. As representações convencionalizam os objetos, as pessoas ou os acontecimentos, na medida em que estabelecem modelos para serem compartilhados entre os grupos. Ao mesmo tempo, tornam-se prescritivas, porque conseguem se impor a cada um desses sujeitos de forma e com uma força considerada irresistível. No processo de condicionamento, as representações buscam reconhecer os objetos, as direções que estes assumiram, o rumo que tomaram ou se mudaram. Ajudam a identificar as mensagens significativas daquelas não significativas, que interligam as partes de um todo, colocando cada sujeito em uma categoria distinta. Ninguém se encontra imune aos condicionamentos, visto que estes são determinados e se configuram através da linguagem e da cultura. Isso não implica dizer que não podemos escapar deles, principalmente daqueles forjados por determinados grupos hegemônicos, que veem no outro uma não familiaridade porque dele diferem. Esse não tornar o outro familiar, porque seus traços físicos, suas tradições e experiências são diferentes, pode ocasionar medos, incertezas, incongruências. Quanto às representações prescritivas, estas nos são transmitidas ao longo do tempo, sendo a resultante de sucessivas elaborações e transformações que aconteceram em diferentes gerações. Através da tradição, nos ditam o que deve ser pensado, e esses pensamentos são compartilhados por cada indivíduo, por cada grupo, numa relação interpessoal, não como construções novas do pensamento, mas como construções repensadas, re-citadas e re-presentadas. E assim, “essas criaturas do pensamento” que são as representações sociais, as ideias, acabam por se constituir em um ambiente real, concreto, nos confrontando a todo instante (MOSCOVICI, 2011). Portanto, é necessário que a nossa percepção não se encontre obscurecida, para que percebamos os mecanismos de controle sociopolíticos existentes, que, com suas lógicas, limitam e alienam as relações sociais. Compreendendo-as, por mais intricadas que elas estejam, será possível extrapolar muros e construir uma nova realidade material com modelos sociais mais participativos, criativos e solidários, quebrando as amarras das informações presentes. 37 Em relação à representação social do negro nas Histórias em Quadrinhos, no papel de herói e heroína, podemos, de acordo com a investigação que realizamos, observar a presença do convencionalismo e da prescrição nas suas construções imagéticas. As narrativas quadrinizadas, embora tenham sofrido transformações, ao longo da sua trajetória, na sua consistência e estabilidade, resultando em novas formas de representação, mais elaboradas em acordo aos avanços tecnológicos e sociais, ainda experimentam as influências comunicativas impostas em decorrência dos sistemas de investigações evidenciados através da ausência do negro nas narrativas ou de uma presença cuja centralidade discursiva abordava conteúdos que envolviam recalques, situação de violência, conflitos políticos, doença, fome, miséria. Poucas são as revistas que representam a comunidade negra a partir de uma correlação positiva. Como a comunidade brasileira é “[...] muito sensível às aparências [...]” (D‟ADESKY, 2009 p. 88), essa proliferação de ideias dicotomizadas em relação ao negro nas publicações, por sua carga persuasiva em acordo a sua linguagem, pode contribuir para a manutenção desses pensamentos e crenças. Isso não implica dizer que essas representações constituam um componente determinante e próprio desse grupo étnico, mas necessitam ser analisadas como produto mercantilizado, que, ao ser vendido, apresenta componentes que rotulam o outro por meio de uma forte carga de inferiorização. Nesse processo dialético, o construído acaba por assumir um significado maior na situação, em particular, negativa, motivada por um discurso que vem sendo difundido, sem que seja colocado na centralidade de fala o sujeito que o ocupa. Assim sendo, nesse mundo de representações, o que a sociedade necessita é de informações, de palavras, de comunicação e de noções para entender o outro e, assim, revelar o que fora encoberto, escondido. Nas palavras de Moscovici, tornar o estranho familiar, transformando o mundo sem deixar que ele seja o mundo de e para todos (1978). No entanto, no mundo em construção, seja por medo ou por acomodação, sempre o que prepondera é a busca por segurança; o novo causa-nos um efeito de estranhamento, por isso o indivíduo tende a excluir o que lhe é desconhecido. Sobre isso observam os autores a seguir: Procuramos sempre nos unir a algo com que nos identificamos, a algo que seja familiar para nós, mas quando não há essa identificação na relação entre “iguais”, ou seja, quando o “outro” não é uma cópia de mim, quando ele não se encaixa nos meus padrões, quando ele foge das minhas convicções, então há uma redução do outro ao mesmo, constituindo-se em práticas de exclusão 38 e supressão de toda forma de diferença/alteridade e, ao mesmo tempo, assemelhando-se às estratégias políticas nacionalistas, xenófobas, chauvinistas e racistas (ABRAMOWICZ, OLIVEIRA, 2006, p. 58). “[...] O racismo é o caso extremo em que cada pessoa é julgada, percebida, vivida, como representante de uma sequencia de outras pessoas ou de uma coletividade” (MOSCOVICI, p. 1978, p. 64). Sendo assim, é imprescindível que, sobre essas práticas de inferiorização, estereótipos, estigmas e exclusão, novos discursos sejam incorporados quanto à representação dos negros na HQs. É necessário que a comunidade negra mantenha-se em constante processo de inscrição nos espaços públicos, reclamando igualdade de direitos e de razão, afirmando sua identidade negra de forma positiva e um tratamento legislativo e judiciário regulamentados. Uma das estratégias de enfrentamento que pode ser assumida pela comunidade negra é manter em pauta, discursiva e reflexiva, essas “invisibilidades”. No caso específico da temática em estudo, é imprescindível saber: Quem produziu essas HQs? Em quais condições? Por quê? Compreendendo também: O que mudou? O que não mudou? Por que mudou? E porque não mudou? Assim, poderemos nos interpelar a todo instante, sobre como esse passado foi construído, como ele se reflete sobre o presente, almejando avanços quanto ao futuro. Através do ato de representar, poderemos trazer para a realidade os fatos conhecidos e/ou desconhecidos, para analisarmos como estes últimos, no imaginário dos diferentes sujeitos, é enunciado. Nessa busca, o que parecia tão ausente, distante, pensado como inatingível, tão não familiar, tornar-se-á mais tangível, mais familiar, nesta relação euoutro-sociedade, ou diríamos, quadrinho e sociedade. Vale ressaltar, que é transitando neste mapa das relações e dos interesses sociais através da imagem, da informação e da linguagem que objetivaremos este estudo. Entre avanços e recuos, tentaremos compreender como a comunidade negra vem, gradativamente, influenciando e mudando sua forma de ser representada nas Histórias em Quadrinhos. 39 2 AVANÇOS E DESAFIOS NA REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS QUADRINHOS “No meio do caminho tinha uma pedra”, mas a ousada esperança de quem marcha cordilheiras triturando todas as pedras da primeira à derradeira de quem banha a vida toda no unguento da coragem e da luta cotidiana faz do sumo beberragem topa a pedra-pesadelo é ali que faz parada para o salto e não o recuo não estanca os seus sonhos lá no fundo da memória, pedra, pau, espinho e grade são da vida um desafio e se cai, nunca se perdem os seus sonhos esparramados adubam a vida, multiplicam são motivos de viagem (EVARISTO, 1992, p. 21). Conceição Evaristo, ou Maria da Conceição Evaristo Brito, autora dos versos da epígrafe que abre este capítulo, nasceu na cidade de Belo Horizonte, no ano de 1946. Conforme nos relata em seu blogspot “Nossa escrevivência”, a sua vida, desde a mais tenra infância, foi marcada por palavras, pela presença da oralidade, da prosa e da poesia. Ao crescer, ela apropriou-se dessas suas vivencias, religou-as a outras e adentrou o universo literário brasileiro para fins de subverter os conceitos criados acerca do povo negro. Assim, através da sua produção literária se dizia mulher-negra, produtora de uma literatura-negra, que almejava alcançar um número elevado de leitores negros para reafirmar que o lugar do negro na sociedade são todos os lugares e estes só precisam ser assegurados. O poema “Pedra, pau, espinho e grade” inspirado no verso “no meio do caminho tinha uma pedra”, de Carlos Drummond de Andrade, amplia e difere os obstáculos ao longo do caminho, nos oferecendo um estilo e uma estética poética de possibilidades de superação. O sentido de negação e repúdio aos conceitos discriminatórios contra a raça negra e a conclamação à adoção de novos valores de respeito aos direitos desse povo contido na poesia de Evaristo espelha o momento de intensificação dos sentidos discursivos criados em torno das diferenças e desigualdades que vem marcando as últimas décadas. No contexto interno da sociedade global, os diversos atores sociais, 40 através de movimentos protagonizados por negros e também por não-negros, vêm promovendo ações de reapropriação dos recursos materiais e simbólicos, através do estabelecimento de relações de poder entre si. Tais relações comunicam, informando sobre novas e complexas possibilidades, de “utopias de globalização” (SCHWAREZ, 1998, p. 67), da construção de uma sociedade que se beneficia com a convivência entre os diferentes. No bojo dessas transformações, podemos afirmar que passamos a assistir e também a participar, de um novo panorama social, composto por diversos “mundos”, mobilizados, por sua vez, dentro de um só mundo, que, marcados pela sua subjetividade, anseiam por rasurar as fronteiras e reafirmar os sentimentos de pertença, resultantes de uma autoidentificação fixada por meio da integração com os grupos sociais constituintes. Esse caráter aglutinador, a serviço da diversidade, evidencia um conjunto de possibilidades e modalidades promotoras da igualdade. No entanto, em sentido inverso, ainda nos deparamos com pedras, paus, espinhos e grades, ao longo do caminho (EVARISTO, 2008), nos apontando outras realidades, nas quais se pode notar a manutenção de forças centrífugas, violando o que fora legalmente conquistado, num processo contínuo de rejeição das diferenças. O modo como podemos averiguar essas resultantes é através das demandas existentes. De maneira geral, podemos afirmar que os povos de etnia negra continuam a ser os menos escolarizados; os que menos ocupam cargos políticos considerados de prestígio; os que recebem os mais baixos salários e não habitam as áreas tidas como nobres da cidade. No entanto, os esforços para a inserção da população negra brasileira nesses espaços mantêm-se articulados, embora instáveis, pois são muitas as pedraspesadelos encontradas nas suas labutas diárias (EVARISTO, 2008). As lutas da comunidade negra para transpor essas pedras, que se chamam racismo, discriminação e preconceito, são muitas. Por melhores condições de vida os negros seguem em luta, tentando triturá-las, construindo, divulgando e reivindicando ações antirracistas e antidiscriminatórias, tais como a produção de Histórias em Quadrinhos, com personagens negros, no papel de heróis e heroínas, em suas narrativas. Acreditamos que criações como essas possam contribuir, junto a tantas outras, a exemplo do cinema, da literatura, da televisão, que também são canais poderosos de comunicação, para transformar ideias em dispositivos estruturais de formação e informação, e, para tanto, há que se considerar a tríade que as compõe: história, sociedade e quadrinho. É neste sentido que nos lançamos a salto (EVARISTO, 2008) 41 com o propósito de revelar e discutir essa presença do negro nos quadrinhos no Brasil, desde as suas produções iniciais, com Angelo Agostini, à atualidade. Através de caminhos teóricos, considerados coerentes e produtivos, nos estruturamos elencando alguns períodos históricos, em que podemos perceber, gradativamente, que, de vítima do racismo, do preconceito, da discriminação e da situação de escravizadas, mero coadjuvante social, a comunidade negra passou, no espaço quadrinizado, a uma posição contestatória e de reivindicação da correção desses valores e premissas. Uma longa caminhada, principalmente se considerarmos que, nos requadrados, essa mudança começou na segunda metade do século XIX e seguiu banhando a vida no unguento da coragem (EVARISTO, 2008), incentivada por uma irrevogável necessidade de se desconstruírem as complexas organizações sociais, que promoveram, ao longo do tempo, sistemas de opressão consubstanciados na exploração do outro e no seu apagamento. Embora o Brasil, junto a outros países, possa ser considerado um país de vanguarda na publicação de Histórias em Quadrinhos, essa produção permanece sendo pouco divulgada entre as classes populares, principalmente quando se trata de ilustrar a realidade, o lugar e a vida do negro. Tendo isso em vista e cientes do quanto o “[...] discurso canônico „naturaliza‟ os desenhos dos afro-brasileiros e reforça as imagens que os descrevem como seres passivos, submissos, incapazes de atuar fora do estereotípico” (SOUZA, 2005, p. 120), buscaremos discutir caminhos alternativos, que apostam na possibilidade de resistir e superar estas barreiras, transformando-as “[...] em estímulo para o enfrentamento vitorioso dos desafios e dificuldades (SOUZA, 2005, p. 120). 2.1 CONTEXTOS INICIAIS DE PRODUÇÃO DE HQS NO BRASIL Na segunda metade do século XVIII, o Brasil passava por um processo de reordenação social. A estrutura organizativa colonial entrava pari passu em declínio pressionada pelas mobilizações político-econômicas externas e internas, que almejavam incorporar ao país um novo regime, o republicano. Esse processo de transitoriedade continha em si suas contradições, motivada por ideais e anseios peculiares a cada grupo social, que se dividia, por um lado, entre as camadas da população em situação de 42 marginalização social e, por outro, entre a elite responsável por gerir administrativamente o país. A sociedade em vigor era díspar, não reconhecendo como cidadãos de iguais direitos uma parte de seus membros. Interessa-nos aqui, especificamente, abordar os negros-africanos e seus descendentes, que, tampouco, garantiam seu espaço de contribuição nos processos de mudanças instaurados, validados como relevantes, por não serem considerados parte integrante do meio nem responsáveis diretos pela dinâmica econômica instaurada no país, assim como pelo seu desenvolvimento ao longo dos séculos. Assim, as medidas aplicadas pelo governo convergiam para as elites dominantes as riquezas materiais, excluindo a comunidade negra dos seus benefícios. No entanto, ainda que tais riquezas tenham sido aí concentradas, através dos jogos de poder, estes foram ineficazes na debilitação das riquezas imateriais do povo negro. Pois, mesmos submetidos a rígido controle, este manteve vivos seus saberes e conhecimentos. É durante esse pêndulo estrutural e ideológico que, em 1859, chegou ao Brasil o imigrante italiano Angelo Agostini, que vivera muito pouco em seu país de origem, e que muito jovem fora morar em Paris, onde permaneceu cerca de 10 anos alicerçando as bases para sua formação artística. Jornalista, intelectual, político e precursor das Histórias em Quadrinhos no Brasil, consagrou a sua vida à carreira de caricaturista. O viés político, crítico, satírico é marca circundante nas suas obras, certamente florescido em consequência dos múltiplos contatos culturais vividos pelo artista nos seus processos de deslocamento. Tendo esse autor produzido significativas ilustrações contrárias às práticas escravistas, seus trabalhos assumiam um caráter de crítica político-social, contrária às crenças e valores monárquicos, almejando colocar o país em um plano de horizontalidade junto às nações europeias, consideradas civilizadas. No entanto, conforme nos aponta Gilberto Marigoni Oliveira (2006a), na sua tese intitulada Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da corte à capital federal (1864 - 1910), e em entrevista ao Blog dos Quadrinhos, o artista, durante sua carreira, manifestou ideias paradoxais. No período da monarquia, seus discursos, de cunho pedagógico e civilizacional, eram proferidos defendendo o fim da escravidão. No entanto, após a instauração da República, mudou radicalmente de posição, sucumbindo às complexas teias sociais, políticas e econômicas da época. Seus trabalhos passaram a assumir o discurso elitista de inconformismo com as consequências que essas mudanças 43 ocasionaram à sociedade, tais como: aumento da violência, acumulo de lixo nas ruas da cidade, número excessivo de vendedores ambulantes (negros libertos), formação do movimento jacobino, e, principalmente, a falta de cultura do povo, entre outros aspectos. E assim, Agostini, [...] embora seja um dos mais destacados ativistas pelo abolicionismo, acompanhou o projeto que a minoria branca - na feliz expressão cunhada pelo governador Cláudio Lembo - tinha para o país: uma sociedade baseada no liberalismo, no trabalho assalariado, que relegou os negros à própria sorte (OLIVEIRA, 2006b). Havia uma confluência de pensamento da sociedade da época monárquica no sentido de dar aos negros a condição de libertos; mas garantir-lhes, por outro lado, situações de igualdade fragmentaria o poder simbólico das superestruturas, risco que os governantes e a elite não gostariam de correr. As concepções em torno da liberdade sempre se constituíram em ações perigosas; assim, deram-lhes a liberdade, mas novas práticas de controle foram sendo delineadas. Livres, sim, mas permanentemente vigiados, punidos e ocupando cargos que dialogassem com a sua situação de exescravizados, ou de descendentes destes, e cujas vidas atestavam ausência de melhorias nas condições materiais de sobrevivência. Do escravismo às sociedades de classes, a mentalidade do povo branco refletia-se no cenário urbano instaurado: os negros continuavam a compor o quadro de empregados domésticos, viviam do comércio informal, na clandestinidade, nas fábricas exerciam somente trabalhos braçais e, normalmente, quando se encontravam em algum ponto fixo comercial, este pertencia a um individuo de etnia branca. Esse cenário levou o povo negro a manter-se em situação de marginalização. Embora fosse produtivo preconizar uma fala em torno de mudanças, denunciando os sofrimentos do povo negro, havia um distanciamento social entre o discurso e colocar-se inteiramente a dispor dessa causa, como podemos observar na figura 4, que embora seja uma tira produzida no ano de 2012, sobre a República, ilustra que, apesar de assegurada a liberdade na forma da lei, caracterizada pelo fim da escravidão, em 1888, e pela Proclamação da República, em 1889, aos negros não lhes foram, de fato, assegurados seus direitos. E assim, em mão única e numa mesma direção, assumindo um tom paternalista, os discursos da comunidade branca eram difundidos. Como um pai centralizador, tendo uma visão monolítica sobre o outro, essa comunidade impunha suas 44 leis, suas ideias e seus preceitos. Esperava, por outro lado, da comunidade negra uma posição de tutelada, de filho obediente e complacente, submisso e respeitoso, sem poder opinar quanto às decisões políticas e sociais que afetavam diretamente sua vida. Figura 4 – O ilustrador e quadrinista Tiburcio questiona a República Fonte: TIBÚRCIO. Meu monarca favorito. Disponível em: <http://meumonarcafavorito.blogspot.com.br/search?updated-min=2010-0101T00:00:00-02:00&updated-max=2011-01-01T00:00:00-02:00&max-results=50>. Acesso em 10 jan. 2012. Há que se considerar que Agostini tem um papel relevante “[...] na implantação de uma imprensa ilustrada e de agitação em nosso país. Além disso, seus painéis sobre a escravidão são o melhor retrato visual da barbárie social dos anos 1880 [...]” (OLIVEIRA, 2006b). Assim, vale a pena destacar que suas primeiras ilustrações nos chegam através dos cartuns, publicados nas páginas do periódico Diabo Coxo, em 1864, em São Paulo, onde desenvolveu sua arte ao lado de Luis Gonzaga Pinto da Gama 9. Comungando, ideologicamente, dos mesmos ideais, mesmo em face do que já fora explanado, artista e poeta difundiam, através da imprensa, manifestações estratégicas de 9 Luis Gonzaga Pinto da Gama, conhecido comumente como Luis Gama, foi uma figura de grande representatividade para a comunidade negra durante naquele período. Era mestiço, filho de Luísa Mahin, ativista negra sempre envolvida nos movimentos de insurreições e suscetível a sua prática, e pai branco, logo, biologicamente e / ou etnicamente pertencente a dois grupos sociais. Após a última fuga da sua mãe fora vendido por seu pai como escravo. A condição de escravizado lhe retirou, nos planos social, político e ideológico, a ambivalência do ser ou não ser negro. Diante desta realidade decidiu assumir um posicionamento de conflito, adotando para si uma identidade negra (MUNANGA, 2002 apud REIS, 2002, p. 19) Assim, tornou-se negro, ex-escravo, poeta, abolicionista, jornalista, advogado e responsável pela redação da revista. 45 luta política, visando a consolidar os processos de respeito e tolerância para com os diferentes outros (negros e índios). Dessa forma, através do teor das ilustrações e dos textos, aventurava-se em criticar os costumes do segundo império e deixar entrever a instauração e a efetividade de um regime contrário aos posicionamentos intramuros estabelecidos pela existência evolucionista etnocêntrica. As publicações eram irregulares e logo no ano subsequente extinguiram-se. O caminho alternativo encontrado por Agostini para a manutenção dos seus ideais, mesmo enfrentando as disposições hierárquicas vigentes, foi criar um novo periódico. Assim, em 1866, com Américo de Campos e Antônio Manuel Reis, lançam O Cabrião, porém a revista vivencia os mesmos problemas da supracitada, tendo uma curta trajetória. Parece seguro dizermos que a extinção dessas publicações foi basilar para o seu nãosilenciamento, dando-lhe impulso de continuidade em defesa da dissolução da escravidão. Além do que, ele almejava manter-se ligado à imprensa ilustrativa. Em busca de espaço na imprensa, Agostini mudou-se para o Rio de Janeiro em 1867, onde passou a integrar o quadro de O Arlequim, periódico que encontrou como estratégia de sobrevivência tornar-se o próprio produto de venda. Nas crises financeiras a revista era vendida e o novo proprietário injetava capital de giro necessário à sua manutenção, trocando-lhe o nome e relançando-a. Ao longo do tempo, várias foram as nomenclaturas adotadas, até que, em 30 de janeiro de 1868, sob o nome de Vida Fluminense, a revista apresentou à sociedade brasileira a primeira História em Quadrinhos nacional, intitulada “Nhô-Quim” ou “Impressões de uma Viagem à Corte”, produzida pelo artista com o mesmo rigor artístico/político, crítico/reflexivo adotado em suas reportagens e nos seus cartuns, agregando à imagem e à palavra escrita. Assim, [...] no âmbito do enquadramento, os fatores semânticos articulam-se numa série de relações entre palavra e imagem: tem-se, assim, o nível minimal e uma complementaridade por deficiência (a palavra exprime uma atitude que o desenho é inábil para representar em todas as suas implicações) (ECO, 2011, p.146). Nessa fusão icônica/verbal, suas narrativas foram desenrolando- se sob forte influência folhetinesca10. As histórias eram apresentadas aos leitores com planos de continuidade e anticlímax; havia sempre uma expectativa em torno do que seria apresentado no dia seguinte, o que assegurava, consequentemente, o aumento nas vendas e a divulgação do produto. Quanto ao conteúdo, embora as histórias tivessem o 10 Gênero literário em ascensão na época, apresentado ao público em capítulos. 46 mesmo objetivo, de estabelecer uma relação de comunicabilidade com o leitor, a linguagem quadrinística, mesmo no seus momentos de gestação, possuía suas próprias especificidades - falas mais curtas, mais próximas da linguagem coloquial. Umberto Eco (2011) faz-nos refletir acerca da efetividade em torno desse tipo de criação sequencial: será que as Histórias em Quadrinhos organizadas nesse formato, tiras diárias ou em páginas semanais, não determinariam, profundamente, a estrutura do enredo? Desenvolver histórias nesse formato não comprometeria a validade, a maturidade estética e ideológica da obra? Apenas o uso das tiras não seria mais eficaz ao comunicar ideias na sua completude? Pensando os quadrinhos com base nos estudos desenvolvidos pelo quadrinista Scoot McCloud (2006), que se considera um “lealista dos quadrinhos”, encontramos respostas a esses questionamentos, ao aferirmos que não existe um único caminho de leitura e de representação nos quadrinhos, porque estes se abrem a universos múltiplos. Imagens e letras se fundem, se amalgamam, produzem experiências e narram as relações sociais, posicionando-se como espaço privilegiado e articulador das narrativas. Parecem, pois, nesse sentido, possíveis e válidos os encaminhamentos dados à narrativa gráfica no formato empreendido pelo quadrinista ítalo-brasileiro. Ler quadrinhos na condição de folhetim não retira deste a maturidade estética, ideológica; e delimitar, qualificar ou quantificar este formato, ou aquele, como melhor ou menor, significaria um campo perigoso e escorregadio de enclausuramento da obra e da liberdade de expressão do artista. No ano de 1876, Ângelo Agostini funda a Revista Ilustrada, mas somente em 1883 cria “As aventuras de Zé Caipora”, título que passa a fazer parte da referida publicação, seguindo a mesma estilística da revista anterior, Vida Fluminense, até o ano de 1906. Dessa forma, o autor vai desenvolvendo a sua obra, colaborando ativamente com a revista O Malho (1904) e participando do processo de fundação e desenvolvimento da revista O Tico-Tico (1905), produção direcionada ao público infantil. No ano de 1910, Angelo Agostini veio a falecer. Conseguira ver a escravidão ser abolida e a república, instaurada. Bem sabia, também, que os caminhos das letras, das ilustrações e dos quadrinhos possuíam o potencial de, se não de transformar o meio, dispor de elementos, que ao menos poderiam abalar as suas estruturas, de modo a fazer seus indivíduos refletirem acerca das suas ações. E assim o fez, embora lhe faltasse uma consciência prática, um discurso identitário biossocial (CUTI, 2010), a exemplo de Luis 47 Gama pois, nas suas narrativas quadrinizadas, a comunidade negra aparecia sempre através da percepção de um outro que a olhava, mais não a enxergava. Agostini era esse outro, um sujeito étnico branco, que quadrinizava “[...] sobre o „preto‟, para um outro branco, formando com este último um nós branco” (CUTI, 2010, p. 20). Tornava, assim, o negro objeto de autocrítica, porque é a respeito dele que se escrevia. No entanto, não é “[...] o negro que dirige a palavra nem é a ele que a palavra é dirigida” (CUTI, 2010, p. 20). E, assim, suas ilustrações criaram uma desidentidade, transformando o negro em um objeto representacional distante, abstrato, impossível de ser representado nas suas particularidades. Isso apesar de que Agostini se reconhecia republicano, contrário as práticas escravistas. Porém identificar o problema, e não apontar e intervir no processo de mudanças, torna-o apenas um ente fantasmagórico de difícil resolução, já que abstrato. As tiras de sua autoria não contemplam as marcas dos lugares de fala da comunidade negra, em que o biológico e o social realizam-se de forma indissociável e, dessa forma, não podemos ver transpostas para suas páginas representacionalmente “[...] a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções que nele se operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se acoplam, os sentidos que nele se incorporam, os silêncios que por ele falam, os vestígios que nele se exibem, a educação de seus gestos... enfim, é um sem limite de possibilidades sempre reinventadas e a serem descobertas (GOELLNER, 2007, p. 29). Afinal, uma História em Quadrinhos (utilizando-me de recursos quadrinísticos mais contemporâneos) não são apenas seus planos – a forma como as personagens encontram-se representadas no espaço; seus formatos – as linhas demarcatórias que configuram o enquadramento no papel; seus ângulos de visão dos planos – ângulo do qual é observada a ação; tampouco apenas os balões – lugares de fala; legendas, letreiros e sons; ou discursos de um outro que fala por nós. Pode ser um espaço onde sejam construídos o discurso do “nós”, atravessados pelos critérios de um autorreconhecimento que desemboca na formação de um sujeito que também é ethos, e cuja organização social respeita o diverso e à natureza, numa visão sagrada de mundo que se recria e se reforça através dos vínculos e alianças comunitárias. Afinal, todas as coisas na visão da cosmogonia africana se regem mutuamente (LUZ, 2002), e isso não se encontra expresso nos quadrinhos de Agostini. 48 É preciso sublinhar que, quando alguém escreve , não escreve apenas para si mesmo; o leitor ideal vai ganhando forma na mente do escritor. Nesse sentido, como neste período de colonialismo e pós-colonialismo o país não dispunha de um número significativo de sujeitos negros letrados, com acesso aos textos e suas ilustrações, inferimos que essa aquisição de saber e poder era voltada aos povos de etnia branca. Mas, mesmo em face dessas circunstâncias históricas, que abrigavam concepções profundamente distorcidas, Agostini deixa-nos um testemunho material desse período, através da sua arte, ao evidenciar as mazelas infligidas ao povo negro e a necessidade irrevogável do estabelecimento de igualdade social. Após Agostini, a partir do século XX, as Histórias em Quadrinhos passaram por um processo estanque na sua produção e divulgação. A imprensa tornou-se, “gradativamente um empreendimento capitalista e de massas” (OLIVEIRA, 2006a, p. 317), mas não houve uma organização empresarial que pudesse manter tal arte quadrinística dentro de uma linha de produtividade em destaque. Nesse momento inicial de gestação do novo regime, as preocupações que vigoravam encontravam-se ancoradas nas novas divisões do trabalho e na implantação de um mercado expansionista internacional, que propiciasse um crescimento econômico, tecnológico e urbano industrial ao país. Só em 1930, agora sob o olhar atento e inovador do jornalista Adolfo Aizen, judeu que ingressou no Brasil em 1910, é que essa arte volta a fervilhar em solo nacional, mas com características similares e diferentes das até então propostas. Com Agostini, o negro aparecia, nos enquadramentos, representados dentro do imaginário escravista, como personagem vítima da violência, atrelados às relações de subordinação e dominação impostas; o que reafirmava sua condição de inferioridade. Agora, a partir das primeiras décadas do século XX, mesmo a realidade sendo outra, a situação dos quadrinhos se torna cada vez mais complexa, pois, ao invés de avançarmos nas reflexões em torno daquela problemática, ao menos nas narrativas quadrinizadas, passamos por um processo de retrocesso, ao “americanizarmos” nossas HQs, mantendo o negro fora dos requadrados. Adolfo Aizen sempre possuiu uma veia empreendedora. Assim, em 1931, criou a Adersen Editoras, em parceria com Oliveira Hersen. Esse era um empreendimento pequeno, e a ideia surgiu com base em cartas enviadas pelos leitores de O Malho, solicitando informações práticas sobre como eles poderiam comprar livros. Pensando ser um negócio rentável, decidiram investir: os leitores comprariam seus 49 livros através do reembolso postal e eles seriam responsáveis pelo seu envio através do correio (GONÇALO JUNIOR, 2004)11. A editora durou até 1932. Em 1933, Aizen começou a trabalhar como repórter colaborador no jornal O Globo, pertencente a Roberto Marinho, mas seus anseios continuavam mais vívidos do que nunca. Ele almejava uma ascensão jornalística e empresarial, queria fundar uma revista de grandes proporções, o que, até 14 de julho de 1934, tornou-se impossível, pois, de acordo com decreto de nº 24.776, implementado pelo governo Vargas, ficara estabelecido que estrangeiros não poderiam ser proprietários, diretores e acionistas de empresas jornalísticas. Assim, diferentemente de Agostini, que conseguira naturalizarse brasileiro, Aizen teve que forjar para si uma identidade nacional e, dessa forma, pôde desfrutar os benefícios daí decorrentes. Agregado a esse desejo de crescimento e impulsionado pelo imaginário representacional que estava sendo propagado em torno dos Estados Unidos 12 , Aizen decidiu descobrir, para si e para o Brasil, esse “novo mundo”, sem, no entanto, abordar as contradições nele existentes, principalmente as relacionadas aos problemas vividos pelos grupos de etnia negra. Ao tomar conhecimento de que uma comitiva estava sendo organizada pelo Touring Club 13 para ir aos Estados Unidos, com todos os custos pagos, decidiu entrar em ação. Assim, contatou um dos membros do grupo responsável pelo evento, Berilo Neves, e conseguiu inserir-se na viagem. Em 17 de agosto de 1933, Aizen embarcou para os Estados Unidos, dividindo-se entre assistente do grupo participante durante o voo e assessor de imprensa. Os diferentes eventos que cobriu eram reportados ao Brasil. Quando o período acabou, o jornalista encontrava-se tão fascinado por esse “novo mundo” que, enquanto os demais retornavam após as seis semanas asseguradas, ele decidiu ficar mais cinco meses, só voltando ao Brasil em janeiro de 1934. Essa viagem foi imprescindível para o encaminhamento dado às Histórias em Quadrinhos no Brasil, pois foi em solo norte-americano que Adolfo Aizen conheceu o mercado editorial estadunidense, com inovadoras tecnologias de impressão, contando com suplementos variados contos policiais, esporte, histórias em quadrinhos. 11 A maior parte das informações fornecidas a partir deste parágrafo envolvendo Adolfo Aizen foram retiradas da obra de Gonçalo Junior ( 2004).. 12 Imaginário representado, por exemplo, nesta citação: “[...] a terra da liberdade e do pensamento, das grandes oportunidades individuais e do desenvolvimento econômico, do progresso tecnológico que nem a recessão conseguiria abalar” (GONÇALO JUNIOR, 2004, p. 21). 13 O Touring Club era um grupo nacional de promoção do turismo, que, junto ao governo Roosevelt, promovia políticas expansionistas de cunho comercial às nações vizinhas para que estas estabelecessem negócios com as empresas norte-americanas e permanecessem vinculadas a longo prazo. 50 De posse desses novos conhecimentos e das HQs de aventura, Aizen retornou ao Brasil. As inovações tecnológicas trazidas dos Estados Unidos permitiram aumentar o número de vendas dos seus jornais e revistas, além de sua editora contar, para sua manutenção, com injeção de dinheiro por parte dos anunciantes. Aizen conseguiu, além disso, delinear o espaço das HQs de aventura para os quadrinhos no Brasil utilizando as páginas do suplemento, pertencente a um diário partidário da poderosa lógica estadista instituída pelo governo e administrado por João Alberto, chamado A Nação (1934). Durante cinco dias da semana, as narrativas eram publicadas com temas diversificados. O diário comprava textos e desenhos americanos das “[...] agências conhecidas nos Estados Unidos, como syndicates, distribuidoras de features (ilustrações, artigos e reportagens)”. Personagens como Buck Rogers, Agente Secreto X-9, Flash Gordon, Jim das Selvas chegavam às mãos dos leitores, além de algumas narrativas quadrinizadas criadas por artistas brasileiros, mas que não tinham a mesma expressividade em vendas das importadas. Após cinco meses de intensa publicação, o jornal passou a receber críticas severas quanto aos suplementos, pois, acreditava-se que um jornal “sério” não deveria enveredar-se pelo universo infantil, dissociando-se do seu cunho político, ainda que não publicasse fatos relacionados aos desmandos do governo, ao movimento negro, às greves e às lutas dos operários por melhores condições de vida. Assim, o jornal decidiu deixar de publicar os suplementos. Nos Estados Unidos essas publicações funcionavam “[...] como ponta-delança ideológica contra o nazismo” (PATATI; BRAGA, 2006, p. 19), e aqui, embora Vargas fosse simpatizante do regime fascista e do regime nazista, elas não constituíam um problema, pois a Imprensa que a divulgava optara por não problematizar e/ou discutir questões que fossem de encontro ao regime. Assim, embora durante o Estado Novo toda e qualquer produção, das mais variadas ordens, sofresse um rigoroso controle e não pudesse expressar livremente os pensamentos do autor, sem antes passar pelo crivo da censura14, quando associadas ao governo circulavam sem muitos entraves. Apesar de as HQs nesse período encontrarem-se totalmente descompromissadas com a representação dos negros, havia uma Imprensa Negra nos dois países, com pautas reivindicatórias de acordo com as suas demandas políticas e econômicas, propagando a necessidade de emancipação do povo negro. No Brasil, 14 Inicialmente foi criado o Departamento Oficial de Publicidade (DOP- 1931), que, posteriormente, tornara-se Departamento Nacional de Propaganda e Difusão cultural (DNPD) e, finalmente, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP - 1939). 51 especificamente, já circulava, desde 1833, o jornal O Homem de Côr, fundado pelo jornalista e tipógrafo negro Francisco de Paula Brito (1809 – 1861). Desse período até a década de 1930, muitos outros foram sendo constituídos. Os discursos proferidos pela Imprensa Negra, que almejavam mais que liberdade, igualdade de direitos e práticas antirracistas, possibilitaram a formação de movimentos negros organizados, a exemplo da Frente Negra Brasileira, fundada em 1931. O objetivo do movimento era superar e desmistificar valores organizacionais até então impostos, o que, algumas vezes, lhes renderam o rótulo de “afrocêntricos”, ou seja, estarem desenvolvendo em seu interior uma formação que levasse a uma prática avessa ao racismo instituído pelos brancos aos negros. Quando o negro se colocava na posição de agente reflexivo, logo era questionado quanto à sua legitimidade. Mas, na maioria das vezes, o movimento era visto com muita credibilidade, devido à sua organização social. Mediante esse fato, de movimento passaram a ser partido político em 1936. Infelizmente, no ano seguinte, 1937, o movimento e o partido, assim como tantos outros no país, foram extintos ao irromper o golpe do Estado Novo através de Getúlio Vargas. A postura reacionária dos dirigentes infligiu ao país uma situação drástica: os excluídos mantiveram-se assim aos lhes serem imposta uma política de base repressiva e punitiva, utilizando-se dos mecanismos de censura, que, em nenhuma instância, poderia ser violada. Quanto às escolhas de Aizen, podemos aferir que os seus encaminhamentos conectam-se aos da maioria do mass media, ou seja, favoráveis ao governo. Se, anteriormente a essas crises, o jornalista nunca se envolvera em manifestações contrárias ao governo, não seria após a implementação do novo governo que mudaria a sua postura. Dessa forma, Aizen manteve-se articulado aos interesses de uma sociedade branca, sem voltar seus interesses nem o seu olhar aos homens negros e as mulheres negras. Nesse entorno, as Histórias em Quadrinhos disseminadas assumiam uma cor e uma tessitura de uma cultura dita homogênea, que não leva em consideração as especificidades dos diferentes grupos étnicos que a compõem (ECO, 2011), como se fosse possível separar as discussões de ordem cultural das de ordem relacionadas ao poder. Essa prática cultural propiciava a manutenção das desigualdades sociais, porque não se preocupava com as particularidades vigentes na sociedade, principalmente no que diz respeito à situação do negro. O mundo em que Aizen 52 transitava era branco e para brancos, logo, as narrativas quadrinizadas não denotavam a existência de outros mundos. O mais preocupante era que esse modelo escolhido e construído veiculava as crenças, os símbolos, os interesses e as necessidades de quem estava no poder, assegurando a funcionalidade da sociedade instituída (SOUZA, 2005, p. 38). Por causa desse hiato, entre sonhos e utopias, advieram pensamentos reflexivos de como teriam sido configurados os quadrinhos, caso fossem produzidos por “homens de cor” e nos chegado por essas mesmas mãos, por essa Imprensa Negra. Quais seriam as suas narrativas? Seus personagens? Seu público-leitor? Com o fim das publicações das Histórias em Quadrinhos no diário A Nação, Aizen assumiu para si a responsabilidade de gerir essas HQs e criou, em 27 de junho de 1934, o Grande Consórcio de Suplemento Nacionais. Durante três anos, o empreendimento desenvolveu-se em larga escala. De Suplemento Infantil tornou-se Suplemento Juvenil, dialogando não só com o público infantil, mas com o jovem. Ele montou a Livraria Juvenil, o Clube Juvenilista e a oficina gráfica foi inovada. Seu sucesso fora estrondoso e despertara nos concorrentes o desejo de alcançá-lo ou suplantá-lo. Os êxitos alcançados fizeram com que Roberto Marinho buscasse experienciar o mesmo boom, visto que ele tinha todas as ferramentas necessárias para entrar nessa linha de produção, e assim o fez ao publicar o suplemento O Globo Juvenil, em 13 de junho de 1937, com Histórias em Quadrinhos de Ferdinando, Brucutu, Zé Malumbo, Robin Hood, Az Smith, Dick Dare, Marquês de Tereré, As aventuras de Patsy, O rei da sorte e O Capitão e os meninos. Em 1938, outro suplemento, A Gazetinha, também entrou no negócio, publicando histórias do Fantasma, todas em formato de tabloides. Nesse ínterim, Aizen publicou, em 1938, um jornal que não contém narrativas icnográficas, intitulado Folha do Brasil. No mesmo ano viajou para os Estados Unidos e tomou conhecimento de que os tabloides foram dobrados ao meio e tornaram-se Comics Books, cujas histórias continham narrativas completas – inicio, meio e fim. Definitivamente, Aizen era um homem de vanguarda, pois, ao voltar para o Brasil, ele não só inovou o maquinário que adquiriu na viagem para a produção das histórias, como também nos apresentou a esse novo formato, deixando para trás o formato antigo dos tabloides. Assim, em 16 de maio de 1939, lançou o primeiro Comics Book brasileiro, buscando suplantar a concorrência; uma revista mais compacta e de dimensão menor que as divulgadas até então, que foi intitulada Mirim. O êxito alcançado o fez lançar, 53 posteriormente, O Lobinho, em formato utilizado pelos jornais diários, o standard, criando pela primeira vez no país um jornal em quadrinhos, e o primeiro livro da série de quadrinhos Grandes Figuras do Brasil, que teria o seu segundo volume lançado no ano subsequente. Mas, publicar no Brasil, desde os seus períodos mais tenros, se constitui um problema, em virtude do alto custo gráfico, da falta de investimento, aliados a um sistema de transporte frágil, condições vivenciadas por Aizen, além da inexistência de um contrato legal entre ele e os representantes que lhe subsidiavam as histórias americanas, deixando-os abertos às leis da oferta e da procura de outros produtores. Isso ocasionou-lhe não só a queda de O Lobinho, em 1940, como também poder experienciar momentos de crise dentro do Consórcio. Além disso, nesse contexto, a Segunda Guerra Mundial, que já despontara, vinha afetando economicamente o país, e, consequentemente, as HQs. A sociedade vivenciava as tensões e os desequilíbrios financeiros visíveis no aumento do custo de vida, refletidos em todos os setores. Mesmo que Aizen estivesse mantendo a sua produção quadrinística, esta não poderia desenvolver-se em maior escala em função de [...] um possível racionamento do papel pelo governo, uma vez que toda a imprensa era abastecida com papel importado e havia o risco de ocorrerem ataques nazistas aos navios que traziam o produto do Canadá (GONÇALO JUNIOR, 2004, p. 95). Além desses problemas, a década de 1940 foi marcada por uma acirrada campanha católica contrária à produção quadrinística. Difundia-se, através do Papa Pio XII, que as narrativas possuíam um discurso subliminar de apologia ao comunismo, contrário aos bons e velhos costumes cristãos. Imerso nessa realidade, descapitalizado financeiramente e incapacitado de resistir às demandas do mercado, no ano de 1942, Aizen decidiu vender o Grande Consórcio ao governo, utilizando, como intermediário nas negociações, o seu sócio e amigo, o coronel João Alberto. Essa foi a jogada de mestre de Adolfo Aizen, pois, além de ter todas as suas dividas quitadas e seus funcionários com os empregos mantidos, foi convidado a participar da direção, assumindo a coordenação das revistas em quadrinhos do jornal A Noite, com uma excelente renumeração. Com o dinheiro dos cofres públicos ele rearticulou-se e, em 1944, para comemorar os dez anos de lançamento do 54 Suplemento Juvenil produziu um álbum que contava, em quadrinhos, a história da fundação do tablóide. Em 1945 decidiu deixar o emprego e fundar uma nova empresa, a Ebal – Editora Brasil-América que passa a publicar quadrinhos e passatempos Disney, entre outras publicações. Em 1947, a Ebal produzia a sua primeira revista em quadrinhos. Em meio a essa trajetória, os heróis negros continuavam não-representados nas páginas das Historias em Quadrinhos importadas por Adolfo Aizen, ou nas produzidas por ele no Brasil. Seu silêncio em relação ao povo negro foi eficaz em vetar qualquer movimento de integração destes às páginas dos quadrinhos, além de alicerçar nossa relação de dependência dos Estados Unidos, no que tange a essa arte. Além do que não existiam revistas internacionais com tal temática para ser importada, e o único étnico negro produzido no mercado, a revista All Negro Comics, em 1947, pelo jornalista Orrin Cromwell Evans, membro negro da Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), entre outros cartunistas, circulou uma única vez. Em lugar de atuar como um espaço representativo para todos, a produção dos quadrinhos no Brasil, funcionou como mais uma forma de colonização, pois o que realmente importava era introduzir as HQs como um bem de consumo, que ostentasse força e poder e vantagem financeira. Assim, alguns empresários nacionais tornaram-se cosmopolitas, desnacionalizaram-se 15 – e saíram em defesa do expansionismo capitalista. Embora existam estudiosos que apontam a necessidade de se levar em consideração a formação ideológica-material do período, tentando justificar os fatos, isso não apaga as escolhas “inapropriadas” ou “insuficientes” de cada um em relação aos demais. Nos quadrinhos poder-se-ia ter criado caminhos alternativos, tácitos, cuja representação também agregasse personagens de etnia negra, mas optou-se por seguir um modelo capitalista, estereotipado, preconceituoso e racista. Essas apropriações de fórmulas prontas para o sucesso têm se mostrado calamitosas para os que se encontram nas áreas periféricas: alcança-se a industrialização, no caso da imprensa e da produção de quadrinhos, mas se continua a reforçar as desigualdades sociais mantendo perenes as relações etno-excludentes. 15 Conforme Cuti (2010), os estrangeiros imigrantes que aqui chegaram mantiveram uma forte ligação com suas origens étnicas. Podemos ver esses traços identitários na comunidade negra, mas tal identidade, no caso dos brancos, “[...] exerce sua força contrária à identificação com os segmentos de povos que eles consideram inferiores” (CUTI, 2010, p. 23). 55 2.2 EM BUSCA DE UM NOVO SENTIDO PARA AS HQS Em constante processo de transitoriedade e atreladas a um mercado que crescia de forma significativa, as HQs pari passu inovaram-se. Com uma elasticidade plástica tão singular e ao mesmo tempo tão dialógica, novos traços gráficos, formas e conteúdos foram sendo adicionados e reorganizados nos requadrados, estabelecendo uma relação simbiótica entre imagem e texto. Neste entrelaçamento verbal e icônico, os quadrinistas não pararam de jogar. Jogaram com seus heróis, códigos e leitores (QUELLA-GUYOT, 1990). Montaram, desmontaram, combinaram e numa transgressão jubilatória construíram narrativas genuinamente nacionais, através de quadrinistas fantásticos, como Jayme Cortez, Miguel Penteado, Reinaldo de Oliveira, Silas Roberg e Álvaro de Moya, entre outros. Com histórias incríveis estes quadrinistas revelavam e transmitiam o clima da época - anos 50, que não era dos mais favoráveis a produção de quadrinhos nacionais devido ao esquema instituído para a distribuição de HQs internacionais. Economicamente, era mais rentável investir em produções internacionais, pois estas chegavam ao país a baixos custos, cabendo às editoras a responsabilidade apenas de traduzi-las, reproduzi-las e distribuí-las. Curiosamente, as revistas ou os suplementos que divulgavam essas histórias eram quem primeiro ficava famosa no Brasil e não as personagens (BIBE-LUYTEN, 1985). Como exemplo, podemos citar a revista Gibi, editada pela Editora Globo, sob a administração de Roberto Marinho, no ano de 1939. Essa revista ficou tão popular entre os seus leitores, entabulando uma identidade visual tão significativa - desde a capa, ao seu interior, apresentando atrativos, como passatempos, anedotas e Histórias em Quadrinhos, estimulando o imaginário daqueles -, que o seu nome e logomarca tornaram-se a forma como as HQs passaram a ser conhecidas durante muito tempo no país. A palavra Gibi, que significa moleque, menino negro, e que possuía um sentido pejorativo ancorada no conceito de inferiorização, construído em torno da comunidade negra, passou a intitular revista de HQs (BIBE-LUYTEN, 1985). Apesar de a experiência ter sido bem sucedida, pela força do uso da imagem e da palavra, tanto na sua produção quanto no consumo, em contexto prático, para os quadrinistas nacionais, assim como para a comunidade negra, não foram disponibilizados espaços nas suas páginas. A revista manteve-se publicando Histórias em Quadrinhos com personagens estrangeiros e jamais personificou o seu mascote - a 56 personagem negra que dava nome a revista e aparecia na capa-, dando-lhe o papel de personagem em uma das suas narrativas ( BASÍLIO, 2005). Isto se deu porque as sociedades, de um modo geral, são autoritárias. E embora busquem ser libertárias estão presas aos seus paradigmas, e não conseguem reconhecer-se na condição do outro, o sujeito ali explicito. Baseando-se na ignorância que é o colonialismo, vê o outro como objeto. É muito complexo desconstruir os princípios de ordem estabelecidos sobre as coisas e sobre os outros, fundados em bases individualistas e centralizadoras, o que nos dificulta implementar formas de conhecimento que funcionem dentro do principio da solidariedade. Essas disparidades inquietavam a comunidade negra e os quadrinistas da época, que, na contramão do processo, buscavam elaborar práticas exitosas que rompessem com os paradigmas préestabelecidos pelo grupo hegemônico. Na busca por esse objetivo nas páginas dos quadrinhos, Jayme Cortez, Miguel Penteado, Reinaldo de Oliveira, Silas Roberg e Álvaro de Moya organizaram a Primeira Exposição Didática Internacional de História em Quadrinhos, em São Paulo, em 1951, com o propósito de dar visibilidade às narrativas, ao mesmo tempo em que propunham essa arte. Não uma arte pensada na esfera da autenticidade, na qual se valoram tradição, originalidade e testemunho histórico, todos dentro de um complexo sistema hierárquico de valores. Essa nouvelle art, o quadrinho, expresso em seus próprios moldes, imagem e texto, seria uma forma de profanar o sagrado e destruir as auréolas construídas em torno deste conceito. Em nenhuma instância destituindo o valor das artes primeiras, mas fragmentando a autoridade e o peso tradicional das coisas, modernizando-as 16 (BENJAMIN, 1985). Um evento de tamanha magnitude acabou por despertar o interesse da imprensa e dos críticos pelas HQs e estimulou os quadrinistas a criarem a Associação de Desenhistas de São Paulo – ADESP (CAGNIN, 1975; GONÇALO JUNIOR, 2004). Na associação, temas como baixos salários, ausência de vinculo trabalhista, profissionalização da categoria e supremacia dos quadrinhos internacionais norteamericanos sobre os nacionais encontravam-se sempre em pauta. Realidade que já 16 Segundo Benjamin, a aura “[...] é uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura. Ela deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas ‟ficarem mais próximas é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade.” (BENJAMIN, 1985, p. 170). 57 ocorria no Rio de Janeiro desde 1949, através da Associação Brasileira do Desenho ABD. Juntas, ADESP e ABD interligaram-se para solicitar do Presidente da República em vigor, Getúlio Vargas, a criação de uma lei que nacionalizasse as HQs e que obrigasse as editoras a disponibilizar um espaço para a produção dos quadrinistas nacionais. Os proprietários das editoras contestaram, afirmando que o preço cobrado pelos profissionais não era condizente com o que poderiam pagar. Porém, antes que as negociações se concretizassem no ano de 1954, Vargas cometeu suicídio (GONÇALO JUNIOR, 2004, p. 176). E como alguns paradigmas fortes tendem a permanecer muito tempo, essas discussões e contestações chegaram ao século XXI. Enquanto os quadrinistas seguem na direção acima destacada, a comunidade negra se manteve envolta na busca de equidade de direitos socioeconômicos, políticos e étnicos. Embora estivesse à margem desse processo político ligado à produção de HQs, suas lutas e as de tantos outros brasileiros, cada vez mais evidenciadas, começaram a se refletir nos requadrados, através dos novos discursos adotados pelos quadrinistas, que as HQs passam a assumir. De um lado quadrinhos libertários, do outro, quadrinhos “enlatados” com editoras que almejavam manter seus formatos, porque estes lhes propiciavam excelentes margens de lucros. Em resumo, enquanto as HQs travavam a “guerra dos gibis” (GONÇALO JUNIOR, 2004, grifos nossos), a comunidade negra travava outras guerras, buscando desenvolver ações que contribuíssem para a afirmação da sua cidadania. Como, por exemplo, a realização do I Congresso do Negro Brasileiro, que ocorreu em 1950, ano anterior ao da exposição, sob a responsabilidade do Teatro Experimental do Negro, liderado pelo ativista negro Abdias do Nascimento (foto na fig. 5) entre outros. Figura 5 – Abdias do Nascimento Fonte: INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS – INESC. Disponível em: <http://www.inesc.org.br/notícias-gerais/2011/m1io/morre-abdias-do-nascimento-militante-domovimento-negro/image>. Acesso em 10 jan. 2013. 58 O Congresso teve como objetivo pensar estratégias de intervenção que melhorassem a situação do povo negro brasileiro elevando sua qualidade de vida, seu nível educacional, sua posição social e seus salários. Essas conquistas, na medida em que fossem se estabelecendo, ocasionariam, gradativamente, a inserção da comunidade negra em outros contextos sociais, inferindo-se também que poderiam ser aplicadas também às HQs. Era o pensamento que vigorava entre sonhos e utopias na década de 1950. Alguns anos depois, mais especificamente na década de 1980, Abdias do Nascimento, lançou-se a fazer uma análise acerca dessa década e do evento em questão. Este, afirmou que nesse período a comunidade negra encontrava-se motivada por uma consciência política crescente, mas, por outro lado, guardava dentro de si um espírito apaziguador. Isso levou-os a esquecer que, durante todo e qualquer processo de negociação e de reconhecimento, fazem-se necessários o estabelecimento de limites e a previsão de normas de contenção, quando ocorram situações que as excedam. Assim, o Congresso fora aberto para pesquisadores brancos “[...] que se autointitulavam „homens da ciência‟[...]” (NASCIMENTO, 1982, p. 59), sem que fossem pensadas as consequências de tal ação. Na verdade, acreditava-se que essa abertura incentivaria o estabelecimento de novas redes de comunicação e modificaria as fronteiras do saber e do poder, redefinindo as formas de funcionamento na organização social. No entanto, nada disso, naquele dado momento, aconteceu, pois foi cometido o equivoco de se homenagear, um cientista - Nina Rodrigues -, que “[...] considerava o negro como fator de inferioridade do povo brasileiro [...]” (NASCIMENTO, 1982, p. 10), além de se ter dado tamanho poder aos pesquisadores, que estes, ao final do evento, tomaram para si a responsabilidade de redigir e assinar o documento final do evento, representando o povo negro. Felizmente, a assembleia, por saber-se apta a se autodirigir e contrária ao paternalismo oferecido, rejeitou a ideia (NASCIMENTO, 1982). Os pesquisadores haviam participado do Congresso atrelados às concepções colonialistas e não conseguiram reconhecer no outro o sujeito ali explicito. Mas, ao lado desse binômio saber e poder, oscilava o binômio acomodação e resistência, e o povo negro continuou a resistir. Na década subsequente, um novo modelo de grilhão instaurado na sociedade brasileira, a ditadura militar, no ano de 1964. E, assim, povo e quadrinho - aqueles que assumiam um contradiscurso -, que já vinham sofrendo as resistências e as dificuldades de sua inserção social, passam a sofrer todo o tipo de repressão: fechamento de 59 organizações políticas, do Congresso Nacional, de instituições voltadas para a educação popular, delimitando-se o que poderia ser estudado nas escolas e nas universidades; censura, discriminação, preconceito; militantes da esquerda presos, torturados, exilados e mortos. Nessa perspectiva, falar de questões étnico-raciais tornou-se tabu. No entanto, parte da sociedade mantinha ativos movimentos de resistência ao militarismo, seja por meio das narrativas quadrinizadas ou da imprensa alternativa, seja através dos bons frutos dado pelo Cinema Novo, com Glauber Rocha, que propunha uma estética da fome. Além disso, através da poesia concreta; da formação dos grupos da esquerda; das organizações políticas ou dos protestos públicos que foram às ruas, solicitando a instauração de um sistema de governo democrático no país (CIRNE, 1983). Todos os participantes desses movimentos desejavam libertar-se do regime, que obstruía ou os impedia de movimentar-se, para poderem sentir-se livres. Convém ressaltar, em meio a todo esse complexo processo social, dois quadrinistas: Maurício de Sousa e Ziraldo. O primeiro ingressou no universo quadrinístico no ano de 1959, com a personagem Bidu, um cachorro que pertencia ao personagem Franjinha, porém sua grande notoriedade aconteceu a partir da década de 1960. Nessa revista, além de Franjinha, havia outras personagens - meninos, todos sem identidade, inclusive um de etnia negra que, supostamente, afirma-se ser o Jeremias, o mesmo que, na atualidade, participa das narrativas quadrinizadas que consagrou o universo da Turma da Mônica (CHINEN, 2013). Nesse período Jeremias “[...] era representado basicamente como uma elipse com duas bolas brancas menores servindo de olhos” (CHINEN, 2013, p. 148) (fig. 6). Ao longo dos anos ele foi gradativamente se tornando marrom, e mantendo nas narrativas o seu posicionamento de personagem coadjuvante (fig. 7). Convém lembrar que Mauricio de Sousa sempre construiu personagens planos, com temas universais, sem qualquer posicionamento político. As revistas mantêm “[...] uma neutralidade política com exceção de uma ou outra crítica [...]” (CHINEN, 2013, p. 149). Segundo Ana Célia da Silva (2001), construções de narrativas e de personagens como esses, em posição de subordinação, contribuem para a fragmentação da identidade e autoestima do povo negro. 60 Figura 6 - Primeira representação gráfica da personagem Jeremias Fonte: SOUSA, Maurício de. Bidu. São Paulo: Editora Continental, 1960. (capa). Figura 7 - Representação gráfica da personagem Jeremias na contemporaneidade Fonte: SOUSA, Maurício de. Bidu 50 anos. São Paulo: Panini, 2009 (capa). 61 Uma das raras exceções cometidas por Maurício de Souza ocorreu muitos anos depois, em 2009, na revista Cebolinha, edição de número 30, quando ele deu uma voz de identidade negra ao personagem Jeremias (fig. 8). Maurício de Souza, a partir dos pronunciamentos do atual presidente da República Barack Obama, que sempre citava o líder negro Martin Luther King durante sua campanha presidencial, se apropriou desta temática para criar uma narrativa icnográfica. E assim, os Estados Unidos da América tornou-se a Vila do Limoeiro, onde funcionava o clube dos meninos, que, no momento atual, encontrava-se sem presidente. As personagens Cebolinha e Jeremias, tomando conhecimento da necessidade de preenchimento dessa vaga, decidem candidatar-se à presidência do clube. Durante os discursos em defesa do cargo, Jeremias cita o discurso de Luther King “eu tenho um sonho!” e vence a eleição. Figura 8 – Jeremias em campanha presidencial Fonte: SOUSA, Mauricio de. Cebolinha. São Paulo: Panini, nº30, jun 2009, p. 59. Quanto a Ziraldo, mesmo imerso entre as tensões sociais e a repressão, produzia um quadrinho adverso à ditadura militar. Sua personagem Pererê (fig. 9), 62 lançada na revista do mesmo nome, pela Empresa Gráfica O Cruzeiro S. A. em 1960, obteve grande sucesso. Figura 9 – Pererê Fonte: ZIRALDO. Pererê. São Paulo: Empresa Gráfica O Cruzeiro S. A., 1960 (Capa). As histórias fizeram realmente tanto sucesso, que, na edição de dois anos, o artista decidiu apresentar ao público-leitor o mito originário da personagem, totalmente configurado nos moldes das ideias nacionalistas difundidas. Ziraldo (1962, p. 34) afirmava que, entre as suas narrativas com seus respectivos personagens que circulavam, Pererê era muito diferente; primeiro porque havia nascido anteriormente ao seu projeto gráfico e segundo porque nele víamos, em termos nacionais, a representação da história do Brasil. surge O Saci Pererê17foi criado pelo imaginário popular, marcado pelos três povos que aqui circularam: negros, índios e brancos. No principio, ele era um índio de uma 17 A figura do Saci Pererê, antes de configurar as páginas das Histórias em Quadrinhos, assumindo uma representatividade nacional, através de Ziraldo, se fez presente no livro de escritor brasileiro Monteiro Lobato, O Saci-Pererê: resultado de um inquérito, publicado em 1918, onde o autor afirma que a criação desta figura folclórica é a resultante bem sucedida da união entre os três grupos étnicos raciais que compunha o país: índios, negros e brancos. Essa produção nasce em oposição ao europeísmo vigente em solo nacional, objetivando resgatar o imaginário popular. No entanto, esta tentativa de resgate da-se de maneira contundente, pois o Saci que circula possui características negativas. Dois anos posteriores, 1920, o autor, lança a obra O Saci. Nesta obra o Saci já aparece como uma figura ambígua, que diverte-se exercendo atos infratores, que vão de encontro às regras e às normas. Aclamado por um lado, contestado em outros, o Saci Pererê ganhou grande repercussão nacional ao fazer parte das narrativas da obra O Sítio 63 perna só, com cabelos da cor do fogo e chamava-se Yaci Yatererê (ZIRALDO, 1962). Quando os negros chegaram do continente africano, escravizados, esse cuidador das florestas foi enegrecendo na medida em que homens e mulheres negros se apropriavam do mito indígena, dando-lhes novos significados (ZIRALDO, 1962). Segundo Vieira (2009), o Saci Pererê refugiava-se nas florestas, nos quilombos para protegê-los. E seus poderes, que eram muitos, possibilitavam-lhe fugir das armadilhas criadas para o seu aprisionamento. Assim, ele nunca foi capturado e levado a cativeiro. Ao povo branco, retomando a narrativa de Ziraldo, coube colocarlhe o gorro vermelho, ou barrete vermelho. E assim, o Yaci Yatererê tornou-se o Saci Pererê e passou a habitar as nossas terras. “O saci é alegre, ágil, inteligente, sonhador, e sagaz, matreiro, simpático, corajoso, sabe dar sempre um jeito para tudo. É o Brasil. O saci está em cada um de nós, da favela aos cafezais [...]” (ZIRALDO, 1962, p. 34). Ziraldo apropriou-se de um mito folclórico brasileiro para criar o Saci Pererê, uma entidade mágica, lendária, despossuída de humanidade. Sendo assim, [...] o mais bem sucedido personagem negro das Histórias em Quadrinhos, não é um ser humano ou animal, mas uma entidade mitológica, pertencente ao folclore brasileiro. Ou seja, o negro mais famoso dos quadrinhos brasileiros é alguém que não existe, que não serve de modelo ou ideal ao leitor negro. (CHINEN, 2013, p. 104). Observamos em Maurício de Souza e Ziraldo que a assimilação e a reprodução do imaginário brasileiro sintonizam-se ainda com o projeto colonial, mesmo quando estes reatualizam suas obras. Decerto isso se dá porque, neste período, pensar quadrinhos no contexto das relações étnico-raciais era algo muito difuso. Sabia-se que a população negra não era inferior a outros grupos sociais, mas não se sabia ainda como mediar tal conhecimento, principalmente porque as visões societais eram homogeneizadas na tentativa de simular uma igualdade inexistente entre os cidadãos que compunham a sociedade. Assim, essas representações acabaram por materializar o discurso hegemônico, mesmo que sem uma intencionalidade, embora Moacy Cirne (1983) conteste essa ideia ao afirmar que não existem quadrinhos inocentes, posto que todos são políticos. do Pica-Pau-Amarelo de autoria de Lobato, lançado em 1920, cuja função ao lado do entretenimento, agregou elementos responsáveis em criar uma identidade nacional da qual bebeu Ziraldo fortalecendo a tradição. 64 Diante do exposto, mais uma vez, as análises de Abdias do Nascimento nos incitam a [...] virar esse conhecimento eurocentrista de cabeça para baixo, sacudí-lo até remover o lixo e construir no vazio uma nova epistemologia. Incorporar-lhe a experiência e o saber dos povos afro-descendentes em suas várias dimensões, vistos da sua ótica e expressos na sua própria voz, possibilitando a reconstrução da civilização e da soberania dos nossos antepassados no Continente e o redimensionamento das culturas e histórias de luta forjadas por nós, seus descendentes, na diáspora. [...] Para isso, não adianta fingir „esquecer‟ o legado racista ou fazer de conta que ele perdeu sua influência. É preciso examiná-lo, identificá-lo nas suas novas sutilezas, e sobretudo desvelá-lo no silêncio que reforça a exclusão discriminatória. (NASCIMENTO, 2000, p.1). Entender esse processo difuso é crucial para a implementação de uma prática quadrinística voltada para o desenvolvimento pessoal, social, com preocupações formativas, além de informativas e econômicas. A década de 1960, mesmo apresentando essas problemáticas, destacou-se das demais porque nela vimos uma fagulha de esperança de ruptura dos conteúdos ideológicos presentes nas narrativas quadrinizadas, resultante das pressões que foram articuladas em torno das reivindicações propostas pela comunidade negra. Havia um mundo cheio de possibilidades impondo seus desafios, e, para superá-los, mais e mais indivíduos precisavam aderir à causa, contrapondo-se às concepções e aos discursos oficiais. É isso que o momento pedia: ação, transformação, comprometimento com as mudanças. 2. 3. NOVAS TRILHAS, TIRAS E POSSIBILIDADES No decorrer das décadas de 1970 e 1980 o Movimento Social Negro se intensificou através de ações políticas, culturais, literárias, artísticas, entre outras. Esses movimentos promoveram frentes de luta, tentando modificar o quadro de injustiças e desigualdades impostas à comunidade negra brasileira. Entre as estratégias, adotaram um discurso estético-étnico de afirmação e valoração positiva dos fenótipos negros, na tentativa de desbancar a ideologia do branqueamento, que, de forma eficaz, vinha alienando os processos identitários negros. Assim, sob forte influência dos movimentos civis que vinham acontecendo nos países que apresentavam uma multiplicidade de povos descendentes de uma África negra, a comunidade negra brasileira começou a delinear novos rumos para si, bem como a pensar em suas condições de existência, com vistas a conquistar a sua 65 emancipação. Para tanto foi imprescindível o estabelecimento de uma rede de cooperação entre a sociedade civil africana e as comunidades diaspóricas em luta por justiça social. Todos esses espaços em movimentos de insurgência reavivaram, no Brasil, não só as lutas sociais da classe operária, que, articulada politicamente, lutava contra a ditadura e a exploração da força do trabalho, através de constantes greves nas áreas industriais, como também contribuíram para o avanço na luta contra o racismo. Fatos como esses, somados a tantos outros, com seus desdobramentos, provocaram uma revisão crítica acerca do papel da comunidade negra na sociedade brasileira, desencadeando a criação do Movimento Negro Unificado – MNU, em 07 de junho de 1978. Esse movimento acreditava ser possível desestabilizar a ideologia do branqueamento, que fora incutida de forma eficaz na comunidade negra através da alienação dos seus processos identitários. Alienação instaurada por meio do discurso Estatal, que preconizava ser o país um espaço de igualdade para todos, onde inexistiam a prática do racismo e da discriminação racial. A comunidade negra, ao ver-se inserida nesse contexto dito de oportunidades igualitárias, sem, no entanto, conseguir ascender socialmente, internalizava que ela própria era responsável pelos fracassos que vivenciava. A construção dessas representações aumentava seu sentimento de inferioridade e diminuía o seu poder argumentativo contestatório. De forma perversa ia associando pertencimento étnico-racial a êxitos financeiros satisfatórios e inferindo que, para ascender socialmente, era necessário assumir para si as normas e padrões comportamentais da cultura branca. No entender de Munanga (2008) esses princípios norteadores, não democráticos, erigidos pelo grupo hegemônico, através de coerções políticas e psicológicas, possuem um cunho assimilacionista. Sendo necessário um contíguo esforço de luta e rejeição assim como intermitentes mobilizações em diferentes setores, para desestabilizá-los; em especial nos setores de base popular, que precisam ser convencidos, através da ação, reflexão, sedução e paixão, acerca da importância da sua efetiva participação política para que essas mudanças se concretizem. Uma proposta de difícil execução, pois, como bem sabemos, não existem respostas prontas para a resolução de tantos problemas, tampouco fórmulas mágicas que venham a satisfazer essas inquietações/reflexões. 66 As inferências básicas decorrentes dessa realidade é que o processo fora deflagrado e necessitava contar com a solidariedade e o apoio de todos os segmentos de comunicação e formação: televisão, cinema, teatro, imprensa, educação etc. Há múltiplos espaços que nos ensinam e/ou contribuem para o reconhecimento da identidade étnico-racial, e as HQs alternativas entram nesse empreendimento através da sua arte gráfica discordante, ao propor, mesmo que em número bastante reduzido de publicações, a engrenagem de uma sociedade em reais condições de democracia, verdadeiramente plurirracial e pluriétnica (MUNANGA, 2008). No entanto, mesmo esses quadrinistas que almejam fazer emergir um discurso não subalterno, segundo Chinen (2013), adotavam o uso de traços desproporcionais e caricaturização ao representar o negro no papel, a exemplo de Henfil, fazendo-nos pensar sobre a legitimidade dessas obras: nelas há ou não há a presença do preconceito, do racismo e da discriminação? Necessita-se de uma estilização, que sugira inferioridade, sob a justificativa de tornar o entendimento mais imediato ao leitor? O autor afirma, ainda, que não há uma intencionalidade, por parte dessas obras, de manutenção desses velhos paradigmas e que, ao longo do processo histórico, esses pensamentos foram desconstruídos, através do conteúdo e narrativas propostas. Para Chinen, não existe uma intencionalidade de ofender os negros, mas sim de denunciar as mazelas e as situações de miserabilidade em que vivem e de condenar essas práticas (CHINEN, 2013). No entanto, os traços nos incitam outras ideias. Em Henfil ainda podemos ver espelhadas as representações sociais das relações étnico-raciais no país, ainda que não fossem pretendidas pelo autor. Tais imagens, neste período e na atualidade, têm sido contestadas em favor de uma representação positiva, na qual a comunidade negra possa se ver e se reconhecer. Com Henfil, Edgar Vasques, Arnaldo Angeli Filho, Luscar, Edmar Viana, entre outros quadrinistas, em meio às dificuldades e à repressão, ascende um discurso dos excluídos. Nas suas tiras, passado e presentes históricos escamoteados pelo mundo branco, são denunciados. Esses autores, mesmo não sendo negros, assumem o discurso do ser cidadão18. 18 Vale a pena reforçar, consoante Bauman (2001, p.45), que o cidadão “é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade”; é aquele que pensa em coletividade, com um nítido objetivo, que é a promoção da igualdade. 67 Para além dos essencialismos, esses quadrinistas apoiaram, concreta ou graficamente, a comunidade negra, ao disporem seus traços diferenciais e sua irreverência a favor da construção de um futuro mais solidário e justo, abordando um tema considerado tabu pelos censores, como condição imposta pela ditadura, e financeiramente desinteressante para o mercado. Nessa sociedade de desigualdades e imposições, surge Henfil, com seus dois Fradins (Frades), o Baixinho e Cumprido, denunciando a hipocrisia e o falso moralismo nacional, este de forma mais comedida, aquele de forma mais revolucionária, utópica e anárquica. Inicialmente, essas personagens foram publicadas na revista Alterosa, em 1964, posteriormente, pelo Pasquim, até que, em 1971, apareceram numa revista própria chamada Fradim. Nessa publicação havia personagens negros memoráveis e polêmicos, como o Preto que Ri, que possuía todos os traços de Baixim, com exceção da sua cor. Ele ria sem controle diante das situações adversas que enfrentava, destoando das normas comportamentais consideradas politicamente corretas, ocasionando situações inusitadas e conflituosas (CHINEM, 2013, p. 159). Mesmo tendo revista própria, Henfil não deixou de publicar no Pasquim, e, em 1972, lançou as tiras do Cabôco Mamadô (fig.10), que era proprietário do Cemitério dos mortos-vivos, local onde enterrava pessoas que, de forma direta ou indireta, contribuíam para alicerçar o regime ditatorial ou se omitiam politicamente dos problemas que assolavam o país (CHINEM, 2005, p.159). 68 Figura 10 – Cabôco Mamadô Fonte: HENFIL. Cabôco Mamadô. O Pasquim. Rio de Janeiro, n. 147, p. 7, 25 mar. 1972. Essa publicação ocasionou inúmeros protestos contra os sepultamentos simbólicos, pois eram considerados, por alguns, como extremamente radicais, do que Henfil discordava, visto que seu alvo eram as atitudes, não as pessoas. Sendo assim, seguia afirmando que cobrava das pessoas apenas atitudes coerentes em favor de uma coletividade, não de uma individualidade. Cantores, como Elis Regina, Roberto Carlos, além do jogador Pelé, fizeram parte desse fúnebre-humorístico-crítico sepultamento. Portanto, era através de personagens como esse e de outros não-negros que o artista dava voz aos problemas sociais que atravessavam o país (MORAES, 1996). Ainda nas controversas tiras de Henfil, podemos ver, através da ave Graúna (fig. 11), “mediante simbolismo de fuga” (MUNANGA, 2008, p. 113), esta zona flutuante na qual se encontra um número significativo de sujeitos negros em busca de ascensão social, seja através do ingresso na universidade, seja de mudança financeira ou do estilo de vida. Dessa forma, o artista denunciava os discursos racistas velados 69 propagados, como, por exemplo, de que os negros só poderiam ser bem sucedidos financeiramente se praticassem algumas mobilidades esportivas ou artísticas. Figura 11 – O Bode Orelana e a Ave Graúna Fonte:HENFIL. O Bode Orelana e a Ave Graúna. Arte, HQ, Interdisciplinaridade. Disponível em: < http://arte-hq-interdisciplinar.blogspot.com.br>. Acesso em: 04 jan. 2012. Essa mesma direção, com um quadrinho de crítica social, segue o artista Edgar Vasques, produzindo a série Rango (fig.12), publicada, inicialmente, na revista Grillus, em 1970, do Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A partir de 1973, a personagem passa a ser publicada no jornal Folha da Manhã. As narrativas quadrinizadas tinham como pano de fundo a situação de miséria em que vivia uma parcela da sociedade brasileira. Parafraseando Glauber Rocha19, as imagens traçadas pelo artista assumem uma estética da fome, mas, “A “Estética da fome” é uma das mais conhecidas referências quando se discute o Cinema Novo brasileiro, bem como o seu autor, Glauber Rocha, que pode ser visto como representante-símbolo desse movimento cinematográfico, que consolida o cinema nacional como manifestação artística nos anos 1960. Trata-se de um manifesto para justificar política e esteticamente os primeiros filmes cinemanovistas, dirigidos originalmente a uma plateia de críticos e cineastas reunidos na Europa para debater o cinema latino-americano” (CARVALHO, 2012, p. 902). É na fome do povo brasileiro em situação de 19 70 em linhas diferenciais, utilizam a linguagem do humor. As personagens Rango, seu filho e um idoso, ambos sem nomes na narrativa, Jejum (fig.13) e Prévio; os dois últimos, uma criança e um adulto negros, entre outros, são magras, sujas, esfomeadas e suas ações giram em torno de um único objetivo, comer. Figura 12– Rango e sua turma Fonte: VASQUES, Edgar. Rango. In CHINEN, Nobuyoshi. O papel do negro e o negro no papel: representação e representatividade dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros. São Paulo. Doutorado (Tese). Escola de Comunicação da USP, 2013, p. 161. Seus nomes aludiam a uma condição humana que a população brasileira relutava em aceitar como verdadeira ou real. Essas personagens, ainda hoje, fazem sentido, pois encontram eco em nossa sociedade, caracterizando uma das faces sociais e econômicas do país. Figura 13 – Jejum em uma pelada de futebol Fonte: VASQUES, Edgar. Rango. Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/_SjBUFj3jDSY/RvkqWyUorPI/AAAAAAAABow/tkEjeHoOgmM/s400/rango _jejum.jpg>. Acesso em: 12 mar. 2013. miserabilidade que o cineasta ancora o seu trabalho. Essa fome quer ser escamoteada pelos governantes, mas, pela impossibilidade de escondê-la, torna-se mola propulsora para o processo de descolonização cultural e cinematográfica. 71 Foi também na década de 1970 que outro quadrinista, Arnaldo Angeli Filho, lançou-se no mercado como colaborador do jornal Folha de São. Paulo. Seu primeiro trabalho nesse jornal, lançado em 1974, no suplemento infantil Folhinha, sob o formato de painéis de página inteira, intitulava-se Feijão (fig. 14), um menino negro que não falava, mas que circulava sozinho pelas ruas da cidade. Os três painéis de páginas inteiras, produzidos pelo artista, só circularam três vezes durante o ano em questão, levando-nos a supor que tal ocorrência deveu-se ao espaço reservado de forma severa, restrita e excludente a temas sobre a comunidade negra. As três narrativas dos painéis deixam transparecer que a personagem possuía um espírito solidário, reflexivo, questionador e revolucionário. A escolha pelo painel de número dois (fig. 14) deu-se em conformidade com a temática em discussão, pois, através dos quadros, a personagem levou-nos a refletir sobre as estratégias contrahegemônicas que vinham sendo adotadas pela comunidade negra em solo nacional e que podiam contribuir para que o negro se colocasse em outros lugares. No primeiro quadro, a personagem encontra-se olhando fixamente para o busto de um homem de fenótipos brancos. A personagem olha, reflete, mas não consegue estabelecer uma relação identitária com a imagem. No segundo quadro ela decide sair de cena. Ao retornar, no terceiro e último quadro, traz consigo as ferramentas necessárias para pintar a estátua na cor preta, e o faz sorrindo, construindo, assim, seu processo de identificação. (CHINEM, 2005, p.159). 72 Figura 14 – Feijão Fonte: ANGELI FILHO, Arnaldo. Feijão. Folha de S. Paulo. Caderno Folhinha. São Paulo, 14 de abril de 1974. Nesse painel, Angeli trata de um tema controverso, a ausência de panteões de heróis negros nacionais homenageados, seja nas Histórias em Quadrinhos ou em outros contextos. Corpos negros perceptíveis nas malhas sociais, que necessitavam ser frequentemente citados, ilustrados, para que, constantemente relidos, pudessem ser transformados em um espaço de significações que permitissem ao povo negro inspirarse em um outro, também negro, dando-lhes as condições necessárias para a construção de uma identidade baseada na igualdade e no reconhecimento positivo. Na década de 1980, surgiram outras histórias em quadrinhos, ainda usando como tema de fundo a situação dos menos favorecidos. Dentre elas, podemos citar: Pivete, de Edmar Viana, em 1980, no jornal Tribuna do Norte; Dr. Baixada, de Luscar, em 1982, publicado no Jornal do Brasil; El Negro, de Lor, em 1988, no jornal Estado de S. Paulo; Zé da Prancha, de Marigonni, em 1988, também no jornal Estado de S. Paulo. Durante esse período, destacamos dois outros trabalhos: o primeiro é Casa Grande sem sala (fig. 16), publicada em 1981, no O Pasquim, criação de Bonifácio 73 Rodrigues de Mattos, também conhecido como Ykenga (fig. 15). Um aspecto inédito, utilizando-nos das palavras de Jaguar, ditas no jornal O Pasquim há trinta e dois anos, é que Ykenga é o primeiro quadrinista e cartunista negro a produzir narrativas icnográficas para e em defesa dos negros. Figura 15 - Ykenga Fonte: YKENGA. Blog do Ykenga. Disponível em: <http://blogdoykenga.blogspot.com.br/2011/12/o-primeiro-cartum-ninguem-esquece.html>. Acesso em: 12 mar. 2012. A narrativa se passa em uma favela carioca, e entre as personagens principais encontram-se Joãozinho Tresitão (fig. 16), uma criança, e o Vovô Oba, ambos negros. Joãozinho, na centralidade da história, contracena com Maria Zinha; os dois são crianças em situação de abandono, convivendo em um ambiente muito próximo à marginalidade. Realidade que fere os princípios propostos na Declaração dos Direitos das Crianças, instituída em 20 de novembro de 1959, durante uma Assembléia Geral nos Estados Unidos, que afirma ter, toda criança, direito a proteção, cidadania, saúde, educação e a viver em um ambiente seguro, longe do preconceito 74 FIGURA 16 - Joãozinho Tresitão Fonte: YKENGA. Joãozinho Tresitão. O Pasquim. In: FUNARTE. Portifólio. Rio de Janeiro: Agência Funarte, s/d. E o segundo trabalho é o de Laerte, outro quadrinista, que lançou, em 1988, na revista Geraldão, em apenas uma edição, a história Ilha Grande & Senzala. Como Ykenga, Laerte satirizava a obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (1933). Na narrativa, o quadrinista abordou a trajetória percorrida pelo povo negro escravizado, desde as condições sub-humanas vivenciadas nos porões dos navios negreiros às vividas nos camburões (fig. 17). Na ação da policia, observamos a prática do preconceito contra o negro, que era sempre visto como um suspeito em potencial. O que nos remete, no contexto atual, à necessidade de implantação de projetos de conscientização da juventude negra, e a sociedade na sua totalidade sobre a iminência do combate ao racismo institucional. Em São Paulo, e em outras partes do país, tem se desenvolvido campanhas neste sentido, entre as quais “Eu pareço suspeito?”, com o objetivo de desconstruir o estereotipo, frente às forças policiais, de que equacionam a etnia negra, e sua situação econômica de pobreza, a marginalização e a criminalidade. A música, Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, composta por Marcelo Yuka, cantada pelo grupo O Rappa, traduz isso muito bem, como podemos observar no fragmento a seguir: É mole de ver Que em qualquer dura O tempo passa mais lento pro negão Quem segurava com força a chibata Agora usa farda Engatilha a macaca Escolhe sempre o primeiro Negro pra passar na revista Todo camburão tem um pouco de navio negreiro[...] (YUKA, Marcelo. In: RAPPA, 1994). 75 Figura 17– Do navio negreiro ao camburão Fonte: LAERTE. Ilha Grande & Senzala. GERALDÃO. São Paulo: Circo, n/ 7, jun. 1988, pp. 27 - 28. Em 1987, Laerte mais uma vez surpreendeu o público, lançando na revista Circo a história A insustentável leveza do ser. O artista adotou em suas tiras uma estética cross-dressing20. A narrativa abordava a história de uma família constituída fora dos moldes que se convencionou chamar de “tradicional”, para dar sustentabilidade à formação e criação do seu filho, a personagem Renato (fig.18). Considerando que a personagem já adentrara uma fase considerada pela família de maturidade, o pai decidiu revelar-lhe a “verdade”. Toda a família nunca havia sido o que deixava transparecer: o pai sempre fora a Tia Zuzú, sua mãe todo o tempo era o leiteiro, e sua irmã Andréia, uma atriz que recebia um cachê para interpretar o papel de sua irmã. Por fim, Renato descobriu-se outro. A família, ao longo dos seus 17 anos, o revestiu com uma “pele” branca; quando retirou-lhe a “pele”, ele soube que era negro. 20 Cross-dressing é uma expressão utilizada para designar pessoas que agregam ao seu universo, masculino ou feminino, elementos do universo oposto. O artista das tiras, além de produzir narrativas que enfocam essa realidade, considera-se um cross-dressing e afirma sentir grande prazer em adotar essa prática, que “[...] se refere menos à atividade sexual e mais à transposição de limites. É uma necessidade imperiosa de perscrutar e vivenciar os códigos femininos. Há ocidentais que se deleitam em investigar o Oriente. Experimentam comidas exóticas, fazem ioga, visitam a China. Da mesma maneira, por que um homem não pode empreender uma viagem radical pelo planeta insondável das mulheres”. Entrevista à revista Bravo. Disponível http://bravonline.abril.com.br/materia/tenho-vergonha-quase-tudo-desenheilaerte. Acesso em: 12 mar. 2013. 76 Segundo Chinen (2013), Laerte montou um jogo de aparências em que nada ou ninguém era o que parecia ser. Nem mesmo o mundo. Figura 18 – Roberto, sem máscaras nem disfarces Fonte: LAERTE. Piratas do Tietê e outras barbaridades. São Paulo: Ensaio, 1994, p. 104. Renato, assim como a comunidade negra, foi convidado a enfrentar a vida, a realidade da época, pois os tempos de fantasias haviam ficado para trás. O momento era de mudanças, fosse com a Abertura Política, em prol das “Diretas Já”, com a instauração de um regime político democrático, ou através do estabelecimento da Lei Caó, de número 7.716/1989, que regulamentava o racismo como um crime inafiançável, punível com prisão de até cinco anos e multa. Renato, como a comunidade negra, sabia das suas potencialidades e que a sua cor não o definia, nem ordenava ou sentenciava a sua capacidade. Ela constituía apenas a sua diferença. Diferença que o possibilitaria, assim como à comunidade negra, questionar a realidade e problematizá-la, com a intenção de eliminar quaisquer formas de discriminação e segregação. 77 3 NOS QUADROS DA NONA ARTE: ESPAÇOS HETEROGÊNEOS DE CIRCULAÇÃO Aqui estou, Zumbi; aqui vim Zumbi, para me desculpar, para te dizer: Chegamos tarde, mas chegamos. Demoramos muito a vir resgatar o chão da nossa história, recuperar o chão da nossa existência livre. Perdão, rei Zumbi, por termos demorado tanto! [...]Viemos tarde, Zumbi, mas viemos definitivamente. Para marchar sempre para frente, levando o teu facho de luta, sonhando o teu sonho de liberdade. Até que esta raça grandiosa, este povo belo, o mais belo do mundo, o meu povo, o povo negro, resgate este país que ele construiu, o chão de Palmares, encharcado pelo teu suor, pelo sangue teu e dos nossos ancestrais. Chão sacralizado pelo sacrifício, pelo holocausto de toda uma raça. Nós aqui estamos Zumbi, para jurar o nosso compromisso de restaurar a tua pátria, retomar o chão da liberdade que tu plantaste nesta terra que é nossa. Este chão não será mais daqueles latifundiários que te apunhalaram pelas costas e pelo peito, aqueles latifundiários que te roubaram a vida a ti e a teu povo; que ainda estão roubando o suor do teu povo, calejado nos porões infames desta civilização industrial e capitalista. Este suor e este sangue – patrimônio africano que tu plantaste, nós os recolhemos, Zumbi. Estamos aqui, de joelhos, unidos de braços erguidos e punhos cerrados para dizer não à opressão. Dizer não ao racismo. Não à discriminação e à exploração (NASCIMENTO, 1984) 21. Luiza Mahin, Francisca Cidade, Luis Gama, Carolina de Jesus, Mestre Bimba, Leila Gonzaléz, Abdias do Nascimento, Mestre Didi, Mãe Stella, Ana Célia da Silva, Cuti, Conceição Evaristo. Homens negros e mulheres negras, remanescentes de Zumbi dos Palmares, que junto a tantos outros, cada um a seu tempo e a seu modo, com suas vozes enraizadas na luta a favor do povo negro, contribuíram para fixar, transmitir e preservar as memórias da tradição deste grupo étnico racial. Esses heróis negros e heroínas negras, anônimos do cotidiano, com seus saberes, reagiram, contestaram e contrapuseram a opressão existente na sociedade brasileira que sobrepunha e ainda hoje sobrepõe-se ao exercício da cidadania plena do povo negro em solo nacional. Eles sabiam, utilizando-me das palavras do poeta Kibuko (1990, p. 71) que não mais poderiam manter-se vestidos em fantasias, a cultuar super-heróis - barman, capitão américa e superman -, com seu superpoderes, para solucionar as mazelas infligidas ao 21 “Trecho do improviso do discurso proferido por Abdias do Nascimento por ocasião das solenidades cívico-religiosas na Serra da Barriga, inaugurando um marco de tributo a Zumbi dos Palmares, comemorativo do dia 20 de novembro – aniversário da sua morte – Dia Nacional da Consciência Negra, programada pelo Memorial Zumbi, em 1983, em União dos Palmares Alagoas, Brasil” (NASCIMENTO, 1984, [informação verbal]). Disponível em: <http://correionago.ning.com/profiles/blogs/morre-abdias-donascimento>. Acesso em: 15 mar. 2012 78 povo negro. E como herdeiros da resistência e da insubmissão do herói negro do século XVII, assumiram a incumbência de dar continuidade aos objetivos do ancestral famoso a que se refere Nascimento na epigrafe acima. Nestes processos de combate emancipatórios, muitas dessas lutas foram vistas pela sociedade civil e os poderes públicos como batalhas perdidas, ou inconciliáveis, mas a tônica da soma de tantas lutas tornou-as possíveis. Isto em função do povo negro está sempre a mostrar a sua sabedoria, nos processos de reconstrução e retomada dos seus espaços. Sabedoria aqui definida “[...] como trampolinagem, palavra que um jogo de palavras associa à acrobacia do saltimbanco e à sua arte de saltar do trampolim, e como trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais (CERTEAU, 1998, 79). Necessárias, neste processo intermitente em que a comunidade negra vive, a jogar e a desfazer-se dos jogos dos outros, desembaraçando-se constantemente das redes de forças e das representações pré-estabelecidas. Neste contexto, às vezes pairam incógnitas: onde este povo negro, “o povo mais lindo do mundo” (NASCIMENTO, 1984) encontrou as forças necessárias para tornar tangível e inteligível as reivindicações e aspirações que o anima, quando imerso nesta política semântica neocolonialista implementada? Como conseguiram alinhar as artes de fazer as artes de viver? E como estas adentraram a tantos espaços, a exemplo do universo quadrinístico? Partindo da afirmativa de Certeau (1998, p. 35), essas reapropriações dos espaços, pelo povo negro, se deram em decorrência das suas táticas de resistências, que, em uso, foram modificando os objetos e os códigos ao seu modo próprio e as suas necessidades. Assim, gradativamente, a comunidade negra foi inscrevendo “[...] seus passos, regulares ou ziguezagueantes, em cima de um terreno habitado há muito tempo” (CERTEAU, 1998, p. 35), e conseguiram em meio à convivência problemática com a cultura dominante traçar novos horizontes emancipatórios. Estes percursos empreendidos foram marcados por “[...] incríveis labirintos de sentimentos inconfessos de repulsa automática contra o segmento de origem africana e de insensibilidade para com seus interesses e anseios” (MOORE, 2012, p. 233). O que talvez possa ser considerado, entre ouros fatores, uma das razões que impossibilitaram o exercício da democracia, constituindo-se em entraves para que se desse o resgate do chão da nossa história e a recuperação do chão da nossa existência livre, conforme 79 Nascimento (1984). Mas o povo negro manteve-se em marcha, com seus medos, inseguranças e utopias a postos. E de forma definitiva chegaram até aqui, contrariando as lógicas instituídas. Neste sentido, embriagando-nos das palavras e feitos de tantos negros e negras que fizeram e fazem a história, apresentamos esta última seção da dissertação, na qual poderemos ver, vivas e atuantes, novas formas representacionais das personagens negros, cujas marcas identitárias ganharam um novo sentido. De certo, as composições destas narrativas sofreram as influências destes homens negros e dessas mulheres negras, e isto pode ser evidenciado na maneira honrosa como a memória histórica do povo negro brasileiro vem sendo grafada nas páginas dos quadrinhos, revivendo os fatos, os heróis e as histórias de luta e de liberdade deste povo. Não existem garantias quanto à pertinência dessas narrativas no estabelecimento de um novo discurso identitário, mas elas são válidas, pois forjam “[...] qualidades e virtudes das quais, o povo, o grupo, ou a nação possam se orgulhar” (SOUZA, 2005, p. 205). Principalmente, porque assumem em sua composição um posicionamento de oposição às formas alienadas como a comunidade negra vinha sendo representada nas suas páginas. O que nos faz pensar que elas estão aí, no espaço quadrinizado, parafraseando Muniz Sodré (2008, p. 14), a “[...] celebrar a radicalidade do éthos [...], dizendo-nos que o povo negro encontra-se representados no seu lugar próprio”. 3.1 RASURAS NAS FRONTEIRAS DOS REQUADRADOS No Brasil, a produção de quadrinhos sempre esteve desvinculada das temáticas relativas às questões étnico-raciais. No entanto, a partir de 1990, esse quadro começou a ganhar novos contornos. Tais transformações não aconteceram por acaso, tampouco por benignidade, mas foram incentivadas por uma irrevogável necessidade da comunidade negra de desconstruir as complexas organizações sociais que promoveram, ao longo do tempo, sistemas de opressão consubstanciados na exploração do outro e no seu apagamento. Essas mudanças nesses modos de representação, mais verossímeis à comunidade negra, só se tornaram possíveis porque o Movimento Negro passou a adotar, cada vez com mais vigor, projetos antirracistas propositivos. A arena política se 80 configurou como espaço de ação imprescindível para que essas lutas fossem travadas. Para tanto, foi necessário o alinhamento deste segmento a outros setores sociais para que pudesse influenciar positivamente nessas mudanças (DOMINGUES, 2007). O Movimento Negro Unificado, junto a outros movimentos que despontaram nessa época - tais como os Agentes de Pastoral Negros - APNs, a União de Negros pela Liberdade - Unegro, o Centro de Estudos de relações de trabalho e desigualdade – CEERT, a Casa do artista Plástico afro-brasileiro - CAPA, o Congresso Nacional AfroBrasileiro - CNAB, o Fórum Nacional de Mulheres Negras, a Coordenação Nacional dos Estudantes Negros Universitários- CECUN, a Coordenação Nacional dos Remanescentes de Quilombos; a Coordenação Nacional de Entidades Negras - CONEN e o Movimento Nacional pelas Reparações, entre outros- organizaram-se com a responsabilidade de pensar concretamente em estratégias que modificassem as leis voltadas para esse grupo. Sistematizando, podemos dizer que o movimento negro, entre outros aspectos, articulou os conceitos de raça e classe, identificando a raça como determinante da classe social no Brasil. [...] Demonstrou, em grande parte, o mito da democracia racial brasileira e a ideologia do branqueamento. [...] Ressignificou o conceito biológico de raça para um conceito social de afirmação política. [...] Desenvolveu uma ação educativa junto a escolas e universidades, com uma pedagogia paralela à oficial, repondo os conteúdos históricos/culturais do povo negro, invisibilizados ou minimizados nos currículos (SILVA, 2011, p. 132 ). Esses procedimentos delinearam um verdadeiro corte epistemológico favorecendo, de forma indiscutível, as ações executadas (D‟ADESKY, 2009), dentre as quais destacamos a que ocorreu em 20 de novembro de 1995, em comemoração ao tricentenário do líder negro Zumbi dos Palmares, considerado ícone de resistência e luta contra todas as formas de opressão e exclusão vividas pela comunidade negra. Irmanadas, as entidades organizaram a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em que cerca de 20 mil pessoas participaram da manifestação em Brasília. A finalidade da marcha foi pressionar o governo a assumir uma posição de intervenção real, mais profunda e, a longo prazo, em face dos problemas enfrentados pela comunidade negra. A marcha, em consonância com todas as outras ações que aconteceram com o mesmo objetivo, obteve um saldo positivo porque conseguiu fazer com que o estado brasileiro reconhecesse que o racismo era uma realidade no país e que necessitava ser combatido. Diante de tal reconhecimento, o governo federal organizou grupos de 81 trabalhos interministeriais para formular propostas que respondessem às demandas apresentadas. O movimento contou com o apoio de alguns parlamentares nos poderes legislativo e executivo, entre os quais podemos destacar: o senador Abdias do Nascimento (1997); o deputado federal Paulo Paim, durante três mandatos consecutivos (1990, 1994, 1998); deputado federal, estadual e senador Luis Alberto (1990, 1994, 1998) e a deputada federal por dois mandatos e depois senadora Benedita da Silva (1986, 1990, 1994). Esses parlamentares propiciaram um alargamento considerável nas discussões relacionadas às questões étnico-raciais no parlamento e, por conseguinte, na agenda política brasileira, criando as bases necessárias para se pensarem novas leis que viriam a ganhar corpo no século posterior (BERTÚLIO; SANTOS, J.; SANTOS, S., 2011). Tais políticos, no que diz respeito às relações raciais, mobilizaram o Brasil. Entre os anos de 1995 a 1998, vinte e cinco projetos de lei contra o racismo circularam, entre a Câmara dos Deputados e o Senado, alguns foram aprovados, outros ficaram em processo de tramitação (CARDOSO, 1998 apud BERTÚLIO; SANTOS, J.; SANTOS, S., 2011, p.11). Ainda que os resultados, em termos qualitativos e quantitativos, não suprissem as necessidades dessa mobilização, precisamos reconhecer que esses políticos, em paralelo a outros militantes, acenderam pequenas chamas de esperança. As medidas, naquele dado momento, necessitavam ser mais universais e especificas, combinadamente, a fim de que outras pontes fossem estabelecidas entre as fissuras constituídas (DOMINGUES, 2007). O que se pode observar, portanto, nesse processo, é que as políticas de ação afirmativa ampliaram-se em outras direções, assegurando a participação do negro em vários setores. Em alguns deles, para que se fizessem valer, foi necessário que se implementasse a Lei das Cotas de nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Ato que contribuiu para que as elites ultraconservadoras perdessem, gradativamente, o seu “[...] papel de referência moral e cultural que tinham ostentado até então para fazer valer a sua hegemonia sobre o conjunto da sociedade” (MOORE, 2005, p. 316). Nesse sentido, as políticas de ações afirmativas constituíram “[...] uma barreira eficaz à progressão do racismo e das desigualdades sociais nele alicerçadas” (MOORE, 2005. p. 316). Mesmo que minoritariamente, podemos ver em maior número do que nas décadas anteriores, os negros representados na televisão, no cinema, na propaganda, 82 nos cargos políticos ou nas revistas de grande circulação. Esses números ainda estão distantes do considerado adequado ou esperado, principalmente quando se leva em conta o fato de a raça negra constituir a metade da população brasileira, segundo o IBGE (2013), somando-se pretos e pardos. Se os índices do Censo, nas últimas pesquisas, apontaram para essa realidade, urge derrubar os projetos conservadores “[...] de sustentação de um status quo sócioracial, baseado na dominação hegemônica de uma raça sobre outra, e da supremacia social de uma classe sobre todas as outras” (MOORE, 2005. p. 318). Ao analisarmos esses dados, podemos inferir que as Histórias em Quadrinhos com personagens negros no papel de herói e heroína, nesta linha de contradiscurso, constituíram-se, e constituem-se em mais um elemento que fortalece as lutas por equidade da comunidade negra, na medida em que suas páginas deixaram de publicar narrativas nas quais os negros ocupavam lugar de inferioridade. Mediante essas considerações, apresentaremos algumas dessas personagens que dialogaram (e dialogam) com a luta contra a discriminação racial e o preconceito. Cada uma ao seu modo, a partir da década de 1997 até 2012, buscaram rasurar as fronteiras do racismo, do preconceito e da discriminação, desvinculando-se de construções estereotipadas e caricaturais – ao menos no que diz respeito a sua representação. Essas personagens, com suas novas formas representacionais, reivindicavam um lugar e um testemunho diferenciados para a comunidade negra, que extrapolassem “[...] os limites de „correção‟ do sistema representacional, pois as suas pretensões são mais amplas que a invenção/produção de contra-imagens” (SOUZA, 2005, p. 254). Seus anseios transitavam na produção de uma arte, cujo discurso assumia um viés político, que almejava agregar para si sempre novos adeptos. No entanto, o contexto de produção de narrativas quadrinizadas apresenta um dilema que pode constituir um obstáculo: o número de artistas negro-brasileiros nessa área é muito pequeno. E os que se lançam na produção de narrativas quadrinizadas com personagens negros no papel de herói e heroína é muito menor. Sobre essa situação Scott McCloud (2006) afirma que é mais vantajoso para um grupo que ele mesmo assuma a responsabilidade sociopolítica de se retratar no espaço quadrinizado, pois saberá falar com maior propriedade sobre os seus ideais, sua condição social ou física, a realidade que experimenta. Caso isso não ocorra, corre-se o perigo de uma produção gráfica extremamente homogênea, em que os seus artistas 83 pertencem a um outro grupo étnico-social e, por isso, assumem vozes mais parecidas entre si. Não que, com isso, um determinado grupo não possa falar sobre outro, até porque “[...] a ficção exige positivamente que nos aventuremos além do mundo de nossas experiências” (MCCLOUD, 2006, p. 106). No entanto, tais ponderações nos fazem conscientes de que necessitamos aumentar o número de “retratos” de quadrinistas negros nas orelhas das produções icnográficas, para que estas deixem de ser “retratos dos outros”. Esse aumento fará com que as narrativas quadrinizadas sejam contempladas com as marcas de subjetividade dos seus autores, assim como também servirá para expressar o lugar sócio-ideológico que as sustenta (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 9). São esses procedimentos legítimos que nos remetem ao campo da Literatura Negra Brasileira, que é uma literatura que agrega no seu discurso literário um euenunciador que se assume como negro. O que implica dizer que os seus escritos não se caracterizam apenas pela cor da pele do escritor ou apenas porque este fez uso de uma temática negra para desenvolver suas histórias. De fato, essa literatura encontra-se associada à [...] existência, no Brasil, de uma articulação entre textos dada por um modo negro de ver e de sentir o mundo, transmitido por um discurso caracterizado, seja no nível da escolha lexical, seja no nível dos símbolos utilizados, pelo desejo de resgatar uma memória negra esquecida. (BERND, 1988, p. 13) A literatura negra brasileira é negra porque, com sua presença, tensiona o fazer literário na sociedade brasileira. É negra porque quer seus escritores como protagonistas do discurso e protagonistas no discurso, produzindo-o com base nos seus lugares de direito. É negra porque libertadora, capaz de ocasionar envolvimento e beleza, por seu caráter político, crítico e legitimador, nas suas incontáveis tentativas de estabelecimento dos diferentes diálogos. (DALCASTAGNÈ, 2012). Nesse processo, podemos ver o entrelaçamento entre o escritor e a matériaprima humana de que se serve; presente e permanente nos textos, nos contos, na poesia, nas crônicas, nos romances, a afirmar: aqui, onde se abriga uma pluralidade de existências, é o meu lugar (DALCASTAGNÈ, 2012). Tais escrituras foram nascidas da tradição oral, do fato de que o povo africano, quando aqui chegou, foi obrigado a desfazer-se da sua identidade original, relacionando-a com uma outra, que se formou fora da África, nascida da sua própria experiência no Brasil, originando, assim, uma Literatura Negra Brasileira (CUTI, 2010). 84 Uma literatura construída pelo lado de dentro, com marcas indeléveis do escritor, que é negro, cuja intenção é dar maior visibilidade às questões que afligem a comunidade negra brasileira. Por isso, sua voz literária, assume um tom de provocação, de conscientização e de denúncia, muito próximo do papel que o espaço quadrinístico quer assumir ao representar a comunidade negra nas suas páginas como protagonistas das histórias. Ambos, Literatura e Quadrinho, assumem através dos seus ditos, uma função social que quer dizer-nos, de forma criativa, que necessitamos integrar-nos às frentes de luta e resistir sempre. Assim, tiras como a de Joel Madrugada & Nega Maluca, de autoria de Newton Foot, lançada em 1995, na qual a personagem feminina é negra, aparece com seus lábios e olhos com proporções exageradas, tornaram-se escassas. E as que passaram a vigorar foram produções nas quais os papeis e as funções do negro estão cada vez mais diversificados, assumindo a centralidade do discurso. E são dessas publicações que nos poremos a falar. A primeira publicação que destacamos, mais uma vez, é a do artista Laerte, que foi lançada em 1997, no suplemento infantil do jornal Folha de S. Paulo, a Folhinha, intitulada Suriá, a menina do circo (fig. 19). Suriá é uma menina negra de oito anos, que atua, na narrativa quadrinizada, como protagonista da história. Trapezista, mora com seu pai, que é negro, sua mãe, que é branca, e seus amigos no circo. Sua relação social com o grupo em que vive é de igualdade, e, como toda criança, tem os seus momentos de traquinices e indagações. Seus traços fisionômicos não possuem características próprias do grupo étnicoracial negro assumido pelo autor para a personagem. Esses se assemelham aos das personagens da narrativa como um todo. Por outro lado, essa pode ser a forma particular que Laerte encontrou para articular e demarcar para si criações tão próprias, que falam dele mesmo, ao mesmo tempo em que sugerem uma equalização e/ ou assimilação da representação social dos negros nesses espaços (SILVA, 2011). Nessas narrativas, Suriá, conforme figura 20, tem o direito de ser rainha, princesa, como seus ancestrais africanos o foram. Nos requadrados não existe uma linha limítrofe, demarcando, como na maioria das histórias, de que a função subalterna, ou má, tenha que ser necessariamente de alguém de etnia negra. As histórias de Suriá também foram publicadas em formato de livros pela editora Devir/Jacaranda. A primeira, Suriá, a menina do circo (2003) e a segunda, Suriá, contra o dono do circo (2003). 85 Figura 19 – Suriá, a garota do circo FONTE: LAERTE. Suriá: a garota do circo. São Paulo, Devir – Jacaranda, 2000. Figura 20 – Suriá em: fadas, princesas e rainhas FONTE: LAERTE. Suriá. In: Folha de São Paulo. 19 jul.2003. Folhinha, p. F8. Outra publicação que teve grande repercussão nacional, no ano de 2000, foi a revista Luana e sua turma (fig.21-22), de autoria de Aroldo Macedo. A ideia de publicar uma revista cuja protagonista era uma criança negra surgiu quando o autor conheceu uma menina que, sob forte influência do arquétipo eurocêntrico, disseminado através dos programas televisivos infantis, cujas apresentadoras eram brancas e louras, queria para si o modelo ideológico de prestígio difundido (fig.21). 86 Figura 21 – Luana em: causos da vovó Josefa FONTE: MACEDO, Aroldo. Luana e sua turma, São Paulo: Toque de Mydas, 2000. Vol. 2, p. 28. Em face desta realidade, o autor resolveu produzir um quadrinho que privilegiasse a história e a cultura negra-brasileira, na tentativa de desconstruir as representações sociais cristalizadas pela mídia televisiva nacional. E, assim, nasceu Luana e sua turma, buscando dar um sentido diferente às coisas e às palavras fixando novos elementos a esse universo simbólico tão perverso. Aos oito anos, a personagem aparece nas narrativas ao lado da sua mãe, Dona Nena; seu pai, Calça Larga; seu irmão, Luisinho; sua avó, Josefa; seus amigos, Zeca, Pipoquinha, Rebeca, Sato, Amanda; seu cachorro, Sultão; os terríveis vilões Fumaça Mortal, Magrelo, Pescoço, Bigode e Oscar Abina, além de outras personagens. Luana vive as aventuras cotidianas de uma heroínacriança em Cafindé, comunidade quilombola remanescente onde vive. Com sua roupa branca da capoeira, que a transporta a outros tempos e lugares, e com seus cabelos trançados e enfeitados com miçangas e contas coloridas , que se agitam ao som dos atabaques e do seu berimbau mágico, Luana deixa-nos transparecer as “[...] marcas externas de preservação de seus vínculos identitários e das afiliações míticas [...]”( SOUZA, 2005, p. 169) com o povo africano. A roupa branca remete-nos a Oxalá e Yemanjá, as contas vermelhas levam-nos a Xangó, as amarelas, a Oxum, as verdes, a Ossain, “[...] fragmentos da religião dos Orixás, trazida juntamente com os africanos e recriada no Brasil [...]” (SOUZA, 2005, p. 169). 87 Figura 22 – Luana MACEDO, Aroldo. Luana e sua turma, São Paulo: Toque de Mydas, 2000, Vol. 2 (capa). Em Luana, podemos ver sonhos e esperanças semeadas, devido à requalificação do negro. No entanto, há alguns elementos, neste trabalho de Macedo, que necessitariam de revisão/aprofundamento. Contudo, interessa-nos, neste momento, observar os avanços em relação às produções anteriores e suas possíveis repercussões na comunidade negra. Essa revista circulou no ano de 2000, com seis edições, do número 1 ao 6, em 2005, do número 7 ao 12 e em 2008, do número 13 ao 18, última jornada da personagem nas páginas das Histórias em Quadrinhos. O autor, ao lado de Oswaldo Faustino, escreveu três livros com a personagem; são eles: Luana, a menina que viu o Brasil neném, 2000; Luana e as sementes de Zumbi, 2007 e Luana, capoeira e liberdade, 2007. Essa personagem surgiu em um momento de grande efervescência no país, no qual se discutia incisivamente a implementação de dois grandes marcos legislativos, a inclusão e obrigatoriedade, no currículo oficial da rede de ensino, da disciplina História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, legitimada em 20 de dezembro de 2000, através da Lei 10.639; e o Estatuto da Igualdade Racial. Este entrou em vigor na data de 20 de julho de 2010, através da Lei de número 12.288, que garantiu à comunidade negra brasileira “[...] a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica” (BRASIL, 2010). 88 Contudo, toda e qualquer lei é um campo movediço, pela existência lacunar entre a práxis e a teoria. Daí a necessidade da criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, que começou a executar suas atividades a partir de 21 de março de 2003, na forma da Lei nº 10.678, visando dar condições de aplicabilidade às leis anteriores em vigor. Outros trabalhos seguindo essa mesma linha de amparo à lei e contrários aos discursos estereotipados continuaram sendo publicados. Os autores dessas obras recorreram “[...] à memória histórica para fixar os elementos que, no passado, constituíram a vida grupal [...]” (SOUZA, 2005, p. 61) e as utilizaram para compor suas narrativas quadrinizadas, Luana e sua turma (2000), O Beabá do Berimbau: histórias de tio Alípio e Kauê, lançado em 2009, de autoria de Márcio Folha, que contou com o apoio do Programa VAI, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo; e Aú, o Capoeirista, de Flávio Luiz (2008), acrescem essa lista. Nessas obras, [...] existe, por parte dos autores, uma forte consciência de missão a cumprir – um desejo “pedagógico” de contribuir para que outros afro-brasileiros despertem a atenção para a necessidade de lutar contra o racismo e a discriminação e de para a necessidade reverter os mecanismos étnicosegregadores utilizados pela sociedade brasileira nas suas práticas e discursos. Essa espécie de “missão” justifica-se pela urgência de desconstruir as imagens seculares, negativas e inferiorizantes dispostas pelos sistemas de representação e que são assimiladas e introjetadas por “brancos” e “negros”. (SOUZA, 2005, p. 64). A realidade de tal “missão” vale não somente para as obras quadrinísticas, mas também para o âmbito da Literatura Negra Brasileira, a exemplo dos Cadernos Negros. Estes documentam os modos pelos quais escritores negros brasileiros organizaram-se para produzir e difundir um discurso identitário negro, que busca intervir nos alicerces e no exercício do poder político-cultural dominante. Um projeto que começou a ganhar forma ao final da década de 1970, objetivando tornar audíveis as vozes críticas e de protestos dos escritores negros, contrários aos modelos de representação e organização das relações raciais no país (SOUZA, 2005). Conforme salienta Florentina da Silva Souza (2005), em seus estudos, esse periódico é indispensável para que entendamos o quadro político brasileiro das três últimas décadas do século XX. E, por que não dizê-lo, do século que o precede; afinal a publicação reverberou em diferentes espaços, de forma direta e/ou indireta, inclusive no quadrinístico, favorecendo e fortalecendo o seu processo de compreensão de abertura de espaços para a representação do negro. 89 No entanto, não podemos esquecer que tanto as obras quadrinísticas quanto as literárias se mantêm sob forte influência do mercado e dele não podem escapar, pois encontram-se envoltas nas relações de consumo. O grande perigo é a possibilidade de se tornarem apenas mais um elemento da indústria do entretenimento, ou apenas [...] produtos da indústria folclórica de exóticos, aparentemente fomentadores de princípios para emancipações materiais, culturais e existenciais, mas na realidade, sem máscaras, significam a continuidade de uma crônica situação de alienação integral do ser negro (CONCEIÇÃO, 2009, p.51). Mesmo com os objetivos emancipatórios que as publicações passaram a ter, é importante ressaltar que a indústria e o comércio do exótico autorizam essas publicações, dão-lhe o selo de “bom para consumo” e estas tornam-se um negócio rentável. Assim, a indústria e o comércio do exótico, podem fazer com que as publicações se constituam, dessa forma, de acordo com Stuart Hall( 2011, p. 320), em trabalhos que falam da diferença, mas que não fazem diferença . Em nenhuma instância essas questões querem dizer que nunca são possíveis modificações e que o sistema, com seus mecanismos de dominação, sempre vença. No entanto, como essas possibilidades são iminentes, há sempre que se considerá-las, para que novas xenofobias não adentrem o espaço quadrinizado e o subjuguem. Principalmente porque, se observarmos o quantitativo desse espaço, vemos que ele é limitado e disperso e que a sua visibilidade é segregada, por ser cuidadosamente policiada e regulada e por existir nesses processos de ocupação/negociação sempre um “valor” a ser negociado, que normalmente beneficia os grupos majoritários (HALL, 2011). Nesse sentido, as HQs necessitam ser desenvolvidas distanciando-se desse exotismo, assumindo um discurso politicamente justo e libertador. Afinal, se a comunidade negra chegou ao espaço político de representação quadrinístico, isso aconteceu em decorrência das lutas políticas culturais estabelecidas em torno da diferença, e, para tanto, foi necessário que ela utilizasse o próprio corpo para textualizar a sua história e a sua memória. Como enfatizou Stuart Hall (2011, p. 324), a comunidade negra “[...] tem usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o único capital cultural [...] que possuíam. Trabalhando em si “[...] mesmos como em telas de representação”( HALL, 2011, p. 324). 90 Enfatizou, dessa forma, aquela comunidade aspectos relacionados à sua pertença cultural étnica-racial, linguística, religiosa, local e nacional, o que se percebe na forma como de estilização do seu corpo, na sua maneira de ocupar os diferentes espaços sociais, em como estilizou os cabelos, na sua postura, gingado, no seu modo de falar e conduzir as suas vivências. Essas representações e símbolos são performáticos e servem de referência para que a comunidade negra expresse a sua história, seus signos, símbolos e mitos, neste contexto irreversível de dispersão diaspórica, tornando-se, assim, modelo positivo a ser posto nas páginas dos quadrinhos. Essas probabilísticas se colocam ao lado de políticas de inclusão, que visam preservar e difundir a história e a cultura negras. Afinal, neste mundo globalizado, mediado pelas novas tecnologias, nas quais as velhas identidades encontram-se em colapso, sendo inovadas a todo instante, não há como parar os fluxos culturais, tampouco as informações (HALL, 2002). Embora possamos pensá-los nas suas condições materiais e imateriais, dando-lhes um caráter menos superficial e uma marca identitária negra, necessários à sua preservação. Quanto maior for número de projetos desenvolvidos com esta funcionalidade, mais nos aproximaremos das metas desejadas. Imersa neste processo encontra-se a narrativa quadrinizada Aú, o Capoeirista (fig.23), lançado em 2008, sob a autoria de Flávio Luiz, membro fundador do Grupo de Risco, composto por artistas que se reúnem para criar cartuns e HQ‟s. FIGURA 23 – Aú, o Capoeirista Fonte: LUIS, Flávio. Aú, o capoeirista. Salvador: Papel A2, 2008 (capa). 91 Embora tenha sido lançado em formato de álbum, apenas em 2008, a personagem nasceu no ano de 1992, quando o artista, em conjunto com o grupo do qual participava e em parceria com a Aliança Francesa, decidiu fazer na cidade de Salvador uma exposição de Bandes Dessinée franco-belgas. Para compor a exposição, o artista criou Aú, um menino negro de oito anos, praticante de Capoeira, inspirado nas crianças que vivem nas ruas de um bairro histórico da cidade de Salvador, chamado Pelourinho. No ano de 2004, o autor decidiu reinvestir na personagem, produzindo-a como um adolescente de 14 anos, mas o projeto não obteve a notoriedade desejada e acabou não sendo publicado. Só em 2008, com o projeto reformulado e Aú já em com 16 anos, a ideia ganhou forma ao ser aprovada pela Lei Federal Rouanet, de incentivo à cultura, contando também com o apoio de alguns patrocinadores. Exímio jogador de capoeira, ao lado de Licuri, seu mico de estimação, da sua namorada, Bezinha, e de outras personagens, Aú rearticula os ingredientes da cultura negra brasileira, tão presentes na cultura baiana, ao transitar pelas ruas do Pelourinho, jogando capoeira, salvando turista estrangeiro, namorando ou em conversas com seu Nagô, que representa a tradição e a sabedoria. Seu próprio nome é movimento, melodia, elasticidade e gingado um dos movimentos da capoeira, expressa na capa do álbum (fig. 23). Segundo Chinen (2013), o padrão adotado por essa linha de produção editorial, assemelha-se aos editados na França e na Bélgica, lembrando os traços de alguns desenhistas franceses, assim como remete ao personagem Tintin, criado pelo quadrinista francês Hergé. Em 2009 surgiu mais uma produção no mercado O Beabá do Berimbau: histórias de tio Alípio e Kauê (fig. 24), do artista-educador Mario Folha. O artista referenda-se em uma temática pouco explorada pela mídia escrita e televisiva, a Capoeira. Através de Tio Alípio, um idoso de 80 anos que se insere nesse contexto como um contador de histórias, a exemplo dos griots africanos, assumindo o papel de arquivo vivo e guardião da memória (SOUZA, 2005), o autor narra e canta as histórias/canções do povo negro, seja em África ou no Brasil, tendo como fiel interlocutor seu sobrinho Kauê. Este é um garoto de 12 anos, apaixonado por Capoeira, que mal pode esperar para possuir seu próprio berimbau, instrumento que o fascina e que figura na narrativa como mediador dos seus diálogos com o tio. 92 Figura 24 - Tio Alípio e Kauê Fonte: FOLHA, Márcio. Histórias do Tio Alípio e Kauê: o beabá do berimbau. São Paulo. Ciclo Contínuo, 2009 (capa). Márcio Folha resgata a trajetória do negro no Brasil, homenageando os grandes Mestres da Capoeira e também fomenta noções de solidariedade étnica, ao designar, assim como em Luana e em Aú, o respeito às lembranças, saberes e longevidade dos mais velhos, tão presentes na cultura africana. O autor também apresenta no seu blog, que recebe o mesmo título do livro, outras histórias quadrinizadas de sua autoria, a exemplo de Quilombo de Ivaporunduva, na qual duas crianças negras, Nina e Kaíque, narram o cotidiano de uma comunidade quilombola. Outros materiais foram publicados; alguns adotaram o formato de cartilhas quadrinizadas, a exemplo da Minas de Quilombos (fig.25), criada em 2008 pela Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH, em parceria com o Ministério de Educação e Cultura – MEC e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE. Conforme palavras do grupo idealizador do projeto, este “[...] pretende se somar às iniciativas de recontar a trajetória dos quilombos, recuperando uma importante parte da história do Brasil escrita pelos/as nativos/as da África e seus descendentes brasileiros/as” (CORRÊA; SCHUMAHER, 2008, p. 4). Anterior a esta publicação, lançaram em 2005, Quilombos, espaço de resistência de crianças, jovens, mulheres e homens. 93 Figura 25 – Revista Minas de Quilombos Fonte: Minas de Quilombos. Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH, Ministério de CulturaMEC, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação -FNDE -Brasília-DC, 2008 (capa). Em uma linha cuja abordagem foca temas religiosos, surgem os álbuns: AfroHQ: história e cultura afro-brasileira e africana em quadrinhos (fig. 26), com roteiro de Amaro Braga e arte de Danielle Jaimes e Roberta Cirne, em 2010, e o álbum Orixás, do Orum ao Ayê, , produzido por Alex Mir, Caio Majado e Omar Viñole em 2011(fig. 27). Figura 26 – Revista Afro HQ Fonte: BRAGA, Amaro; JAIMES, Danielle; CIRNE, Roberta. AfroHQ: história e cultura afro-brasileira e africana em quadrinhos. Recife: N/A, 2010 (capa). 94 Os autores do álbum AfroHQ: história e cultura afro-brasileira e africana em quadrinhos (fig. 26), utilizam os orixás para narrar a história da presença africana no Brasil, assumindo, nesse sentido, um redimensionamento dos critérios que, até então, negaram à comunidade negra seus direitos plenos e totais, de acordo com a sua herança, impedindo-a do exercício da sua cidadania cultural e, consequentemente, negando-lhe, em funções das distorções de conhecimento, de ter/ser pleno. Assumindo, nessa perspectiva, a regulamentação da Lei 10.639, o autor busca reconhecer, garantir e proteger direitos da comunidade negra, corrigindo alguma dessas distorções e fortalecendo seus valores, ao propor uma narrativa que garante e assegura a ampliação do conhecimento, assim como, ao adotar costumes, ideias e práticas cotidianas, possibilita ao outro ver-se incluído no processo em construção. Além desse trabalho, o roteirista, com as ilustradoras e estudantes da Universidade Federal de Alagoas, Mariana Petróvana e Janaína Araújo, já havia ganhado dois prêmios em concursos que abordavam a temática afro-brasileira envolvendo aspectos relacionados à discriminação racial praticada no Brasil contra os negros. O primeiro, no Concurso Alagoas de Quadrinhos, promovido pela Imprensa Oficial do Estado de Alagoas com a história Preto que nem carvão em 2011, e, em 2013, no Concurso Nacional de Histórias em Quadrinhos Ireno José Guimarães, com a história Bonita, como eu! No álbum Orixás, do Orum ao Ayê (fig. 27), os autores recontam como esse poder central chamado Olodum Maré personificou o axé, que é a força vital em forma de orixá. Figura 27 – Revista Orixás: do Orum ao Ayê Fonte: MIR, Alex; MAJADO, Caio; VINÕLE, Omar. Orixás: do orum ao ayê. São Paulo: Marco Zero, 2011 (capa). 95 Nesses álbuns, as religiões de matriz africana são retratadas de forma positiva, deixando explícito que a tradição ocidental, com seus pressupostos judaico-cristãos e uma convivência imposta, não conseguiram apagar a interação ontológica que nela se configura, ao entrelaçar, de forma indissociável, o orum, que representa o mundo espiritual, interior, ao ayê, que representa o mundo físico (SOUZA, 2005, p. 63). De certo, essas representações retratam um grau de politização e mobilização dos povos de santo por uma visão de mundo inclusivo, no qual não se preconize a intolerância religiosa, mas sim o respeito ao direito de todos os cultos no Brasil. Essas publicações alternativas não foram as únicas que circularam no país buscando representar o negro sob um novo prisma. Existiram outras. No entanto, as tiragens dessas publicações foram mínimas, limitadas, inclusive sua periodicidade deuse de forma muito instável (D‟ADESKY, 2009). Muitas delas não são mais produzidas, embora devessem continuar, principalmente pela atuação política que exercem, ao assumir nos seus inscritos, um posicionamento crítico de reconhecimento da cultura e da história do povo negro brasileiro como um dos pilares em que se assenta a formação desta nação. As narrativas foram construídas num momento e espaço políticos de perspectivas transformacionais; assim, em nenhuma instância, pretendeu-se derrubar as esferas do poder, tampouco impor uma verdade única. Diferentemente disso, assumiu-se uma linha de ação necessária à difusão dos saberes que foram adaptados e rearticulados pela comunidade negra em sua defesa. Não se trata aqui, apenas, de se fazer com que uma ideia circule, mas que esta seja percebida nas suas particularidades, de acordo com a herança cultural dessa comunidade, para que possam ser discutidas. Um outro aspecto é que esses quadrinhos foram produzidos em resposta aos questionamentos que a comunidade negra sempre se fez na sua busca por reconhecimento, logo, constituindo-se em ações afirmativas, ou pela sua persuasiva, ou por deslocar carga da margem para o centro uma discussão de suma importância, qual seja, a produção de quadrinhos com personagens negras, usando um viés de referência positiva para a população negra brasileira. Preenchem, dessa forma, um espaço lacunar sobre a exclusão, vigente na sociedade brasileira - que é racista e preconceituosa –, a qual perdurava e se manifestava há séculos, também, nas histórias em quadrinhos. Essa ação, mesmo com suas falhas, representou e representa um salto qualitativo para a comunidade negra brasileira. 96 Nessa perspectiva, transformar a representação do negro nas Histórias em Quadrinhos é mais uma forma de dinamizar os espaços de poder. Imagens positivas podem favorecer na criação de novas ideias e afetar as estruturas sociais impostas, abrindo espaço para a prática da igualdade em todas as instâncias. Porém, tais medidas, necessitam estar em consonância com melhorias do ensino e redistribuição de renda, pois somente ações conjuntas propiciarão o enfrentamento e a superação das desigualdades vivenciadas por aquela comunidade. 3.2. HQS: PONTES DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E AUTOESTIMA NEGRO-BRASILEIRA Quando as diversas vozes africanas chegaram, forçosamente, ao Brasil, encontraram na voz do colonizador, expressas através do seu legado cultural, formas perversas de tentativa de apagamento do seu arché, do seu ethos. Não foi fácil para os povos africanos, oriundos de diferentes localidades daquele continente, com suas respectivas línguas, verem seus destinos sobredeterminados por princípios tão divergentes dos seus e, a partir desse instante, terem que começar a compor para si um novo repertório. Mas, (re)unidos conseguiram, entre as rotas fragmentadas, estabelecer estratégias de enfrentamento contrárias ao monopólio da fala instituído pelos povos brancos. Crentes no poder da palavra, pois esta desloca-nos através do tempo e do espaço, os povos africanos e seus descendentes entrelaçaram o passado ao presente e passaram a falar e a agir contra o sistema imposto. Seus substratos culturais foram imprescindíveis para que conseguissem suportar todo o peso de uma nova civilização (FANON, 2008). Para tanto, a comunidade negra foi obrigada, para mudar o percurso histórico que se abatia sobre si, a assumir e administrar traços da cultura dominante - língua, escrita, leis, e uma aparente sujeição à sua religiosidade. Tais apropriações, mesmo divergentes, possibilitaram, em inter-relação com a daquela comunidade, a construção de uma cultura e de uma identidade negra no país singular, pois quanto mais a comunidade negra vivia sob o estigma da repressão, que a oprimia e a acossava, mas resistia e assumia o enraizamento do seu legado cultural, expresso através do seu corpo, da sua fala, dos seus gestos e da sua forma de conceber o mundo. 97 E assim, de sobredeterminados, os negros passaram a sobredeterminar as relações sociais, econômicas, políticas e étnico-raciais no país. Com sua dança, música, literatura, religião, filosofia, ética, entre outros aspectos, abriram fendas no sistema imposto, imputando dúvidas e abalando as certezas até então cristalizadas, o que os levou a alçar vários espaços. Os percursos foram íngremes, e tanto tempo depois, hoje em pleno século XXI, a comunidade negra, apesar dos avanços, continua enfrentando problemas cujas raízes encontram-se na sua vinda forçosa ao Brasil. Ainda não aprendemos a lidar, tampouco a aceitar ontologicamente, “a diferença e a relação com o Outro dissimilar. Aquele Outro que, no imaginário social, representa a soma total de todas as diferenças (MOORE, 2012, p. 267, grifo do autor)”, o que se constitui um perigo, porque ao invés de avançarmos nesses processos de negociação e aceitação do outro, podemos recuar, estagnar e nos negar a essas mudanças. Em face desses supostos é que a comunidade negra mantém-se em luta, buscando não cair nas armadilhas retórico-discursivas da “democracia racial”, pois estaria a retroceder no processo de enfrentamento dos desafios, principalmente, pelas tentativas de implementação de programas e ações transformadores de abrangência e alcance alargados, que a colocam no centro das relações de aceitação, tolerância e respeito, seja consigo mesma e com os diferentes outros. Assim, esse grupo étnico-racial segue criando espaços discursivos capazes de externar as suas diferenças, que são singulares e originais, e adentram o universo quadrinístico, de forma lúdica, encantada, sagrada, para assumir representacionalmente uma concepção negro-brasileira de ser. Não nos moldes um dia decantados pelo poeta maior da negritude Aimée Césaire, que acreditava que a palavra teria o poder de mudar o mundo, removendo o preconceito, o racismo e a discriminação e resgatando a identidade e o orgulho de ser negro. Pensamento expresso no seu poema intitulado Les armes miraculeses22, inscrito na década de 1930. Mas, nos moldes da chamada pós-modernidade, que preceitua que as palavras podem muito pouco em termos de desconstruções dessas hegemonias, porém compreende que é no uso da palavra, que tem um poder polissêmico, que poderemos, de se não mudar o mundo, mas semear pequenas sementes de dúvidas, de alteridade, na consciência dos homens, para que estes se mantenham firmes nas suas tentativas de transpor as fronteiras instauradas ( BERND, 2006). Por considerar, entre tantas rotas disseminadas pela comunidade negra, as obras apresentadas na subseção anterior deste capítulo vias alternativas que podem contribuir para 22 As armas miraculosas 98 que tal comunidade seja vista dentro da sociedade brasileira sob prismas mais éticos, políticos e humanos (BERND, 2006), capazes, de se não transformar as estruturas, desestabilizá-las, ao apresentar-nos uma concepção de mundo gestada sob a ótica da comunicabilidade do povo negro, é que iremos, neste momento, instalar, de forma breve, um diálogo com essas obras para fins de analise. Nelas, encontram-se priorizados aspectos conceituais e práticos da tradição negro-brasileira, postos em discussão com tiras presentes nas narrativas, que evidenciam a posição de favorabilidade dessas histórias em relação à afirmação identitária da comunidade negra. Na obra Suriá, a garota do circo (fig. 19), de autoria de Laerte, nossas reflexões se instauram a partir da capa da narrativa. Nela a protagonista aparece segurando um cartaz informativo contendo sua própria imagem, a nos dizer que um novo espetáculo erigido por ela está para começar: o da narrativa quadrinizada através do mundo circense. De forma singular e diferenciada, Suriá nos leva pelos caminhos labirínticos do imaginário, seja através do seu traje de malabarista, seja do seu pedalar o seu monociclo, ou a jogar bolas com as mãos, traduzindo-se tudo isso em movimento, alegria, fantasia e equilíbrio. A presença dos jogos com a bola na capa remete-nos, de acordo com o pesquisador Marco Aurélio Luz (2002) ao lúdico e ao sagrado. O lúdico, porque as brincadeiras de Suriá nos dizem o quanto ela é uma personagem-criança feliz, consciente da suas potencialidades e “[...] cheia de idéias trepidantes” (LAERTE, 2000, p. 3), com uma euforia de viver que equilibra e ameniza a angústia existencial que cada indivíduo traz consigo. Quanto ao sagrado, este se revela, quando passamos a pensar que essa formaovular, ventral, presente nas bolas, enfatiza representações deslocadas da maternidade, que aludem à gestação e envolvem o mistério da gênese, promovendo reflexões sobre a nossa origem e o nosso devir, o que aqui neste contexto nos reporta à personagem: Quem é Suriá, esta heroína negra, menina-mulher das histórias em Quadrinhos? Por que é importante a sua representação? Aonde poderá ajudar a comunidade negra a ir, ao deslocar-se no tempo e no espaço, buscando satisfazer o desejo de estar-junto, na origem da vida societária? Suriá é essa personagem que se encontra nesta narrativa a nos “dar bola”. Ela poderá ajudar a comunidade negra justamente assumindo esta expressão, “dar bola”, que no Brasil quer dizer, estar disponível para o outro, dar presença e reconhecimento 99 (LUZ, 2002). Um gesto que se ousa cometer em nome de um desejo social de ver o negro representado graficamente nesse espaço, sem os estigmas até então propostos, validados entre o lúdico e o sagrado, para que outros fins sejam alcançados, a título da afirmação e construção identitária da comunidade negra. A tira a seguir (fig. 28) explicita bem essa proposta, visto que se encontra numa “[...] relação de arte/política em toda a sua extensão” (CIRNE, 1982, p. 57). Figura 28 – Suriá: o vidro em torno de cada um FONTE: LAERTE. Suriá: a garota do circo. São Paulo, Devir – Jacaranda, 2000, p. 13. Na narrativa, Suriá e sua família estão visitando um aquário. A protagonista e o filhote-peixe expressam para suas respectivas mães a mesma preocupação: a necessidade de uma vivência para além dos vidros. Podemos identificar nesse questionamento uma preocupação política latente e que podemos transferir para a situação da sociedade brasileira. As personagens enfatizam, com suas respectivas falas, que a sociedade se encontra presa a suas amarras e que, muitas vezes, não se dá conta dessa realidade, sendo necessário o estilhaçamento dos vidros do “aquário”, que a enclausuram, que obstacularizam suas ações e seus esforços, em prol da construção de um mundo melhor. Só rompendo essas amarras que se instauram no mundo, poderá assumir-se como testemunha da sua história e conscientizar-se de que tem uma missão a cumprir. Assim, a narrativa Suriá, a garota do circo (fig. 28), não só nessa tira como nas demais, ressalta os significativos esforços que historicamente vêm sendo envidados para se representar o negro de forma não alienada, debatendo-se contra as amarras do autoritarismo, ao nos apresentar histórias que nos fazem pensar sobre outra lógica de redesenho quanto ao futuro da etnia negra. 100 Essa mesma lógica também nos chega através da obra Luana e sua turma (fig. 22), de autoria de autoria de Aroldo Macedo, que assume nas suas tiras componentes culturais tão próprios da vida do povo negro, a exemplo dos seus modos de perceber, compreender e interpretar o mundo em suas particularidades e semelhanças. A narrativa Luana e sua turma (fig. 21 - 22) encontra-se impregnada “[...], no sentido da linha do tempo (passado, presente e futuro) [...]”e “[...] no interior do espaço (o sentido do próximo e do distante, do grande e do pequeno, do visível e do invisível) [..]” (CHAUÍ, 2008, p. 57), dos valores e saberes da cultura africana; desde a forma como a personagem se apresenta – traços fenótipos- ao local onde ela habita - uma comunidade quilombola- até sua relação de respeito e escuta para com os mais velhos, especialmente a sua avó, que com seus Causos da vovó Josefa (fig. 21) salienta que na África há muitas Áfricas e nelas reside a tradição africana. E é assim, atrelados ao seu passado histórico-social, mas sem se opor às novas demandas transformacionais tecnológicas e informativas, que os discursos transitam nessa narrativa. Dentre eles, deter-nos-emos no discurso latente que Luana estabelece com a Natureza. O discurso do saber cuidar e preservar, que dá à narrativa um sentido agregador de luta e resistência. Afinal, a essência humana reside justamente no cuidado, conforme Boff: O cuidado é na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado se encontra o ethos fundamental humano. Quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir (BOFF, 1999, p. 1). E dessa relação “cuidadosa” com a natureza advêm, simultaneamente, valores de respeito a si mesmo e ao outro, estabelecidos com base numa relação de reciprocidade, acarretando, assim, equilíbrios entre: homem-homem, homem-natureza e homem-cosmos. A desintegração desses elos é o obstáculo para o desenvolvimento integral do indivíduo. Na narrativa intitulada Luana.com, edição de número 2, ano 2000 (fig. 29), podemos observar esse chamado ao cuidado. A comunidade quilombola Cafindé, onde a maioria das histórias circula, é invadida por um vírus, que contamina as crianças que acessam o site criado por Luana para semear propostas de preservação e conservação do meio ambiente, com o objetivo de levá-las a assumir uma atitude contrária à proposta. 101 Assim, as crianças passam a poluir o meio ambiente – poluição sonora, pichações, maus tratos aos animais, lixos no meio das ruas. Ao descobrir o que estava acontecendo, Luana lança-se na resolução do problema, desmascarando os verdadeiros culpados. Figura 29 – Luana, a favor da natureza e contra a poluição FONTE: MACEDO, Aroldo. Luana e sua turma, São Paulo: Toque de Mydas, 2000. Vol. 2, p. 15 Para restaurar o equilíbrio, Luana contou com a solidariedade dos seus familiares, amigos e da comunidade. Solidariedade pautada na reciprocidade, na responsabilidade social; pois, para as sociedades africanas, viver isoladamente constituise uma forma de antevir para si a morte. E, assim, Luana mantém-se conectada ao Sagrado, mantendo afetos e cuidados. É esse o jeito dela de ser descendente de Zumbi: ativa, capaz de atravessar e ultrapassar os momentos e as situações mais adversas. Tais feitos exercidos por uma protagonista negra poderão possibilitar, conforme Nilma Lino Gomes (2003, p.79), “[...] a construção de um „nós‟, de uma história e de uma identidade” positiva negra. Afinal, quem nunca desejou, através do seu imaginário, ser um herói ou uma heroína? Entrar na vida de uma personagem e ser a própria personagem? Ligar-se ao personagem através desse poder imaginativo e lúdico e deflagrar, através do processo de reelaboração, uma dimensão transformadora das suas vivências cotidianas, 102 ressignificando o real? E aí está Luana a deflagrar, mesmo que ingenuamente, um despertar crítico identitário para que o negro assuma a sua identidade negra. Nesse jogo de interações, chega-nos a obra Aú, o capoeirista (fig. 23), de autoria de Flávio Luiz, como portadora de uma cultura que irrompe do chão, através da capoeira, cujo movimento é ação, pensamento, um convite a ver o mundo às avessas, conforme ele se encontra na capa da narrativa, ou seja, de ponta- cabeça. Em Aú, reverbera um som, um chamado, uma voz, que remete a comunidade negra à concretude das suas experiências de mundo. De um lado, ajudando, com seu grupo de amigos, a personagem Dona do Carmo, moradora e proprietária de um dos casarões históricos, que vem sendo assediada pelo personagem Amâncio para colocar à venda o seu imóvel (fig. 30). Também, desmantelando o sequestro da personagem francesa Nathalie Le Coq, que se insere nessa problemática por tornar-se uma testemunha ocular da tentativa de desapropriação e reapropriação ilícita do sobrado. Figura 30- Aú, o capoeirista em: a diferença está na solidariedade Fonte: LUIS, Flávio. Aú, o capoeirista. Salvador: Papel A2, 2008, p.6. Nesse jogo de solidariedade, imagens e palavras se fazem ação para reforçar a viabilidade da narrativa. E a história passa a expressar no contexto, “[...] toda uma trama de interação emocional [...] que envolve significados mais profundos e trata das complexidades da experiência humana” (EISNER, 1989, p 16) nesta imbricada relação de poder. É nesse cenário, onde Aú sabe-se capaz, apto a agir e transformar o meio em que se encontra inserido, que as diferenças são assinaladas e os saberes, valores, hábitos e crenças compartilhados. Todos necessários à construção gradativa da sua identidade 103 negra, ideal que aqui reiteramos, pela sua centralidade na formação e desenvolvimento do povo negro. Tal identidade negra aqui compreendida, de acordo com Nilma Lino Gomes (2002), [...] como uma construção social, histórica e cultural repleta de densidade, de conflitos e de diálogos. Ela implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/racial, sobre si mesmos, a partir da relação com o outro. Um olhar que, quando confrontado com o do outro, volta-se sobre si mesmo, pois só o outro interpela a nossa própria identidade (GOMES, 2002, p.39). Nessa perspectiva, em solo quadrinizado, pensar em identidade pressupõe pensar em articulações entre o individual e o social, entre as singularidades e as não singularidades, entre interesses comuns e interesses diferenciados. Sabemos que, nesse processo em fluxo, a identidade necessita ser reconhecida, seja de forma autônoma, pelos outros, em decurso das suas ações, ou por sua existência em si mesma. E as páginas dos Quadrinhos podem ser, entre tantas janelas, uma fenda de luz que ajudará a constituir “[...]o individuo livre, consciente de sua individualidade, de sua liberdade, de sua história e, por último, de sua historicidade” (D‟ADESKY, 2009, p. 75). Mas, para tanto, é necessário entrar na roda da vida. E a narrativa que também entrou na roda, a tentativas de equalizações, para favorecer o reconhecimento e admitir a existência de uma identidade negra foi O Beabá do Berimbau: histórias de tio Alípio e Kauê (fig. 24), de autoria de Mario Folha. Estas “[...] traçam uma artimanha iniciativa, sinalizada pelo próprio nome apresentado: O Beabá” (VALE, 2009, apud FOLHA, 2009, p. 123), como a nos dizer que nas páginas dos quadrinhos que seguem, adentraremos o mundo mágico da capoeira através dos acordes sonoros do berimbau. Os caminhos da iniciação serão construídos por tio Alípio pacientemente de boca a ouvido, de mestre a discípulo através dos tempos, pois embora esta seja uma narrativa gráfico-visual, a palavra-mundo, criadora de cultura (FREIRE, 2014), encontra-se no cerne do processo: o mestre conta o que ouviu e o discípulo, tornado mestre, reelabora e reconta essas histórias (fig. 31). 104 Figura 31: Tio Alípio na roda do diálogo com Kauê Fonte: FOLHA, Márcio. Histórias do Tio Alípio e Kauê: o beabá do berimbau. São Paulo. Ciclo Contínuo, 2009, p.55. Tio Alípio apreendeu todo esse conhecimento posicionando-se individual e coletivamente nas rodas de capoeira, conhecimento que se estende à roda “maior”, que é a vida. Pois a capoeira é infinita, e quando os diferentes atores sociais encontram-se na roda com o berimbau a tocar, acabam prendendo e apreendendo coisas novas e começam a ver-se sempre um passo à sua frente. E é nesse contexto, entre as rodas e em interação com o outro, que se aprende a ser sujeito histórico-social, cônscio de que seu discurso e sua prática possuem fins políticos e que todo seu conhecimento necessita ser multiplicado. Assim foi com tio Alípio, e este está ensinando os saberes apreendidos a Kauê. O objetivo é que esses conhecimentos sejam disseminados, cheguem a outros indivíduos, pois temáticas como essas, que deixam entrever, através das personagens negras, a importância dos atores sociais desenvolverem sua autonomia nas dimensões social, política, afetiva, econômica e étnico-racial, são eficazes tentativas de afirmação positiva da comunidade negra. Para tanto, se faz necessário que essas produções circulem entre escolas, bibliotecas, salas de leitura, bancas, meios digitais com a devida valorização e respeitabilidade, para que sejam aceitas e exerçam processos de reflexão, ação e transformação. Pois, bem o sabemos, que imagens e discursos positivos incidem na elevação da autoestima, e se constituem eficazes no combate aos conceitos que incapacitam e inferiorizam a comunidade negra. Trilhando o mesmo caminho, adentramos a narrativa Minas de Quilombos (fig. 25). O primeiro aspecto que nos chamou a atenção diz respeito à cor da pele das 105 personagens. Estas, diferentes das demais narrativas, aparecem coloridas na cor preto. As demais, apresentadas anteriormente, apareceram coloridas na cor marrom. A presença dessas colorações leva-nos a questionar acerca das implicações que podem preponderar: estariam os autores das obras, inconscientemente ou conscientemente, tentando escamotear o grupo étnico das personagens? Definir quem é o negro no Brasil é uma tarefa deveras complexa, e em obras quadrinizadas a escolha dessas cores, a fim de representar as personagens, também se revela problemática. Isso em decorrência do ideal do branqueamento, conceito que fora introjetado nas pessoas negras e que faz com que estas acabem por não se considerar dessa cor (ou etnia), numa dolorosa rejeição do seu fenótipo. Esse ideal do branqueamento é o que estaria incidindo sobre a escolha da cor marrom para colorir a pele das personagens? Por outro lado, bem sabemos, que “os conceitos de negro e de branco têm um fundamento etno-semântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico” (MUNANGA, 2004, p. 52). Assim, politicamente, podemos considerar negro todas as pessoas que têm uma aparência fenotípica desse grupo étnico. Logo, pardos, mulatos ou mestiços ou qualquer descendente de negro pode classificar-se como negro. Decerto, pensando no critério cor da pele como qualificação política, as personagens apresentadas anteriormente são negras, embora nesse processo de construção de ferramentas para reafirmação dessa identidade negra, o uso de cor preta, quanto à escolha da cor da pele, na narrativa Minas de Quilombos é uma escolha estética positiva, pois faz-nos refletir sobre as manobras sociais em torno do efeito branqueamento entre nós e de suas condicionantes. A narrativa Minas de Quilombos, apresenta a realidade de meninas e meninos, jovens e homens e mulheres quilombolas que, espalhados/as pelo país, lutam pela construção da cidadania, preservação de sua cultura e suas terras e, principalmente, pelo direito de contar sua história. (CORRÊA; SCHUMAHER, 2008, In Minas de Quilombos, p. 4). A ação se passa no Quilombo do Ausente de Cima e Ausente de Baixo, localizado no estado de Minas Gerais. Na escola, os alunos tomam conhecimento da existência de uma narrativa quadrinizada, que conta a história de quilombos localizados no Rio de Janeiro. Daí surge a ideia da construção dessa narrativa. Para tanto, eles vão contar com o apoio da professora para ser elo com outras fontes vivas informacionais e 106 também para a organização dos processos de deslocamento. O “gibi” será composto de informações sobre a comunidade, que os alunos trazem consigo, juntamente com essas informações coletadas em campo durante a pesquisa. E, assim, a história ganhou corpo, tornando-se esta HQs, em análise (fig. 32). FIGURA 32: Em quadrinhos a história do Quilombo do Ausente de Cima e Ausente de Baixo Fonte: Minas de Quilombos. Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH, Ministério de CulturaMEC, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação -FNDE -Brasília-DC, 2008, p. 38. A estratégia adotada pela equipe de produção desta narrativa foi bastante criativa, uma vez que reforça a ideia da capacidade iminente que a comunidade negra possui para ser sua própria porta-voz. Esse tipo de produção facilita em muito a veiculação das informações, a apropriação deste material, numa relação assimétrica com as falas das personagens, e propicia convencimento recorrente, pois a postura das personagens nos diz que elas sabem, com propriedade, o que falar. Com base nesses pontos, chegamos à narrativa AfroHQ: história e cultura afro-brasileira e africana em quadrinhos (fig. 26), com roteiro de Amaro Braga e arte de Danielle Jaimes e Roberta Cirne, que apresenta uma capa bastante emblemática, ilustrada por diferentes orixás, dispostos circularmente. Essa imagem também compõe o interior da narrativa (pp. 12 – 13), sendo que nelas os orixás encontram-se identificados por seus respectivos nomes. Com trajes nas cores e indumentárias, que os definem em suas simbologias, eles são respectivamente posicionados em sentido horário: a) Exu, que na língua yorubá significa esfera, é a gênese, a força vital do processo da criação; é movimento; orixá responsável em estabelecer os canais de comunicação entre o orum e ayê, por isso é sempre a primeira divindade a ser invocada durante os cultos religiosos; suas cores são o vermelho, uma cor quente, ligada ao 107 sangue, que gera energia, força, poder, e o preto, que é uma cor que se origina da fusão das outras cores; é o oculto, o indecifrável, o secreto, tão próprios de Exu (SANTOS, 1996); b) Em trajes na cor azul, que simboliza a força do fogo, tão necessária à criação das suas ferramentas, encontra-se Ogum, que é o senhor dos metais; c) Oxossi, com sua cor verde, representa as matas; d) Ossaim, que também veste verde, assume a responsabilidade pelos segredos contidos em cada uma das folhas presentes na natureza; e) Omulu, que é o orixá que representa a morte, não vem representado com uma cor, mas apenas com o seu modo de vestir, coberto de palhas, o que nas palavras de implica dizer que ele cobre-se da cabeça aos pés para que não seja desvendado o mistério da morte. f) Oxumaré, que se apresenta com todas as cores do arco-íris, representando os ciclos intermitentes que se dão entre o céu e a terra. g) No processo, os Ibeji, orixás duplos, ou gêmeos, protetores das crianças, utilizam roupas nas cores verde, amarelo e vermelho; h) Logun-Edé é filho de Oxum e de Oxossi e suas vestes apresentam-se nas cores amarelo-ouro e azul-turquesa, simbolizando a riqueza, a fartura, o controle sobre os navegantes; i) Yansã é a senhora dos ventos e das tempestades, sua cor denota as tonalidades que despontam no entardecer; j) Obá é a orixá das guerreiras, ligada às estrelas e às águas; k) Eujá é senhora da fertilidade, da sensibilidade, das artes, da poesia, apresenta-se em seu traje rosa; l) Oxum apresenta-se de amarelo, representando o ouro, as águas dos rios, a intuição; m) Yemanjá, de azul, representa as águas; n) Nanã, de anil, representa a terra, a água e o barro, elementos oferecidos por ela a Ossaim para a criação do homem; o) Xangõ apresenta-se de branco, representando a justiça. Juntos, os orixás formam “[...] a roda da vida. A roda da natureza. A roda dos acontecimentos que envolvem o próprio homem: a roda do destino” a nos dizer: “sejam todos bem-vindos ao terreiro!” (BRAGA; CIRNE; JAIMES, 2010, pp. 12 e 13). 108 A capa da narrativa capta o que está, substancialmente, por trás da imagem: a necessidade de que sejam assumidas, no Brasil, posições críticas, políticas e culturais, comprometidas em falar desse forte elemento cultural da comunidade negra, que é a sua religião. Assim, os orixás nos são apresentados de forma icônica, de maneira que se assemelhem ao seu referente representacional, projetando-nos uma presença que diz da ligação da comunidade negra com o sagrado; embora, por encontrarem-se na esfera das artes, não possam ser caracterizados como místicos, nem sacralizados. Outro aspecto da capa diz respeito à forma como os orixás encontram-se dispostos, em círculo, o que traz à tona dois elementos constitutivos da cosmovisão africana: o princípio da integração e o princípio da circularidade. O princípio da integração funda-se no dogma de que todos os sujeitos, independentemente de cor, raça, etnia, com suas singularidades, fazem parte do cosmo e por isso estão intimamente relacionados. O princípio da circularidade evidencia que os diferentes sujeitos, mesmo ocupando posições e funções diferenciadas dentro desse cosmo, são chamados a viver em harmonia, numa relação de horizontalidade, em que se privilegie o bem-estar de todos. A roda, o círculo, a circularidade, como imagens representacionais do cosmo, são fundamentos, estando permanentemente em fluxo. E, assim, essa ilustração nos diz que essas narrativas serão cheias de ação, de saberes que irão circular no grupo, de boca em boca, de mãos em mãos, de corpo a corpo, pautadas num processo dinâmico de interação, narrando “[...] os principais fatos que envolvem a história da presença africana no Brasil e suas contribuições para a nossa formação”. (BRAGA, 2010, p. 7) Através dos fios que tecem essas reflexões, chegamos, nesta pesquisa, à última narrativa para análise: Orixás: do orum ao ayê (fig. 27), produzido por Alex Mir, Caio Majado e Omar Viñole. Essa HQs traz no seu interior a presença de histórias que abarcam a enigmática interação deste mundo com o além. Ademais, nos incita a pensar sobre as simbólicas criações de Olorum - Deus-Negro, do povo negro africano e dos seus descendentes, que sabiamente criou os orixás, a mãe-terra e o homem. E é com estes elementos - Olorum, os orixás, a mãe-terra, e o homem-, que emergem do precioso repertório das culturas e tradições africanas, que os artistas dessa obra a compuseram. Agregando o estético às forças cósmicas que regem o universo, essa narrativa foi dando sentido ao ato criador de Olorum, que “[...] diferenciou a idéia de caos da idéia de existir” (LUZ, 2002, p.74). Afinal, “[...] o existir se caracteriza pela diferença entre forças em constante movimento formando um ciclo vital,” (LUZ, 2002, 109 p. 74) onde todos e tudo, imagens, símbolos e mitos, se relacionam de forma interdependente. Nesse sentido, podemos pensar que essa narrativa mística, com todo o seu simbolismo, nos chega como mapas para nos ajudar a ultrapassar os obstáculos políticoideológicos instaurados na sociedade. Sem determinar normas, nem regras, essa obra, que fala do imperceptível de forma perceptível, aponta-nos novas possibilidades de convivência, através das palavras-imagens que nos oferece. Representa os orixás sem os estigmas, tampouco associados ao mito de demonização, contrapondo-se, assim, aos padrões religiosos ocidentais cultivados pelas religiões cristãs, que associavam essas divindades a práticas veiculadas ao mal, acabando por atuar como mais uma fonte de “ [...] afirmação dos valores civilizatórios negros e núcleos de resistência às variadas formas de aspirações neocolonialistas” (LUZ, 2011, p.68). Um desses núcleos de resistência encontra-se presente no capítulo 5 (pp. 5765): A separação do céu e da terra. Podemos ver nessa narrativa as marcas da presença africana aqui recriadas, revelando a interlocução existente entre o mundo espiritual, invisível (orum) e a vida cotidiana, ou seja, ao mundo visível (ayê). Essa história especificamente nos conta que houve um tempo em que não existia separação, nem fronteiras entre o céu (orum) e a terra (ayê) (fig. 33). Os homens podiam transitar livremente entre esses dois mundos, desde que as regras e normas estabelecidas por Olorum, o deus supremo, fossem devidamente cumpridas, conforme explicitadas por Oxalá na narrativa. Não tanto por desobediência, diríamos, mas por curiosidade ou necessidade, o acordado fora descumprido e, desde então, o homem só pode voltar ao orum após a sua morte (fig. 34). No entanto, por generosidade, Olorum permitiu que o homem utilize-se de cultos e oferendas para manter-se religado ao orum, e assim tem sido até os dias atuais. Observando essa narrativa, podemos ver transitando as marcas africanas nas reminiscências do povo negro brasileiro. Esta comporta vivos conhecimentos, princípios e valores humanitários que favorecem a convivência e consubstanciam a forma organizacional da comunidade, dando-lhe um sentido prático. Neste sentido, é imprescindível que histórias como essa sejam narradas, pois é olhando e reverenciando o seu passado, que a comunidade negra reafirma os seus valores de convivência, que só podem ser preservados e reinventados quando colocados em comum-união. 110 FIGURA 33: O orum e o ayê sem fronteiras Fonte: MIR, Alex; MAJADO, Caio; VINÕLE, Omar. Orixás: do orum ao ayê. São Paulo: Marco Zero, 2011, p. 57. FIGURA 34: A separação do céu e da terra Fonte: MIR, Alex; MAJADO, Caio; VINÕLE, Omar. Orixás: do orum ao ayê. São Paulo: Marco Zero, 2011, p. 64. 111 Desse modo, essa obra, assim como as demais supracitadas, ao assumir nas suas páginas uma representação discursiva que recria a realidade do povo negro brasileiro, abordando temáticas que não são muito recorrentes e elegendo como protagonistas dessas narrativas heróis e heroínas negros, deve ser percebida como mais um elemento agregador de luta frente às desigualdades enfrentadas. Nesta nossa análise, conforme salientamos anteriormente, sob nenhuma hipótese sugerimos que essas narrativas tenham o poder de transformar as estruturas sociais do país, mas sabemos que elas podem nortear discussões que explicitam quem é o povo negro brasileiro, sinalizando todo o aporte de conhecimentos que ele traz consigo, todos indispensáveis à construção e consolidação deste país. Tampouco, queremos manter a ideia de que elas sejam entrecortadas apenas por elementos gráficos visuais que incorporam a estética negra; muito pelo contrário, elas são a resultante dessas várias associações, e por vezes, a exemplo da última, “[...] a anatomia anabolizada dos heróis aproxima-os mais das formas dos super-heróis americanos do que do biótipo mais esguio dos africanos” (CHINEN, 2013, p. 254), porém, esta realidade não descaracteriza a obra nem invalida o seu caráter. Assim sendo, essas narrativas constituem-se referências de ação porque rompem com os modelos de narrativas pautados apenas na cultura dos povos brancos. E, nesse processo de interlocução, podem contribuir para que seja mantido vivo todo um repertório cultural de base africana, evidenciado representacionalmente nas formas como as personagens e as narrativas foram compostas, tão próprias de um jeito de ser, pertencer e de participar da cultura negra brasileira. E, quem sabe, apresentando-se de forma persistente, essas produções possam tornar-se também tradição dentro do universo quadrinístico e dentro da sociedade brasileira, face às mobilizações que são desenvolvidas pelo povo negro em busca de equidade de direitos e oportunidades. Até lá, entretanto, há muito que se lutar e re-existir. 112 CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO De acordo com os dados apresentados e analisados nesta pesquisa, foi possível inferir que a história do negro ainda é marcada pela segregação, exclusão, sofrimento, por conta do desrespeito aos seus direitos e tradições. Entretanto, foi igualmente perceptível que, a partir de 1930, houve muitos avanços advindos das suas conquistas, nos diferentes âmbitos, em função das lutas do povo negro contra a opressão dos grupos dominantes. Tais mudanças, algumas décadas posteriores, se instalaram, inclusive, nos conteúdos das Histórias em Quadrinhos, que, até mais da metade do século XX, ainda continuavam a representar esse grupo étnico-racial com imagens que denotavam alienação, submissão, inferioridade. Na década de 1960, já se faziam presentes personagens negros em papeis centrais, manifestando críticas à sociedade. Vale ressaltar que, desde o final do século XX, essas publicações cresceram significativamente e, conforme os resultados das narrativas analisadas nos sugeriram, em suas páginas vêm expressos seus ideais de liberdade e seus anseios de autoafirmação identitária. No entanto, o nosso olhar sobre o outro continua a ser estabelecido com base em pares binários de oposição: bom ou ruim, branco ou preto, grande ou pequeno, feio ou bonito, alto ou baixo, resistência ou cooptação, autêntico ou inautêntico, oposição ou homogeneização (HALL, 2011). E, assim, nos posicionamos optando por um único lado, uma única vertente, um único caminho, como se na vida prática essas relações estáveis e estáticas fossem possíveis e não transpassadas pelos aspectos políticos, históricos, sociais, econômicos e étnico-raciais e afetivos. Os diferentes sujeitos, com suas posturas autocratas, acabam “esquecendo” que existem posições dentro da sociedade a serem conquistadas, respeitadas e aceitas, em um verdadeiro exercício de alteridade e que, por trás de cada experiência humana advêm outras que tornam possível imaginar e representar outras realidades. Contradizer esse desafio seria mais uma forma de reafirmar que, no Brasil, não existe preconceito, racismo e discriminação. Principalmente quando os vemos de forma tão explícita no baixo quantitativo de publicações quadrinísticas, em que as personagens negras exercem o papel de heróis e heroínas nas produções. Os espaços das escrituras, da mídia, da televisão, do cinema, da política, das Histórias em Quadrinhos ainda se constituem excludentes. Recorrendo às palavras de Walter Benjamin (1985), o que esses espaços, de fato, necessitam é perpassar um processo de 113 dessacralização. Ou seja, necessitam da “[...] presença do outro [...]”, da “[...] exigência da democratização do fazer literário” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 195), o que aqui transpomos à democratização do fazer quadrinístico, que envolve também a participação oficial do Estado. Essa foi uma das faces encontradas nesse estudo, mas existem outras que merecem ser assinaladas e que concorrem positivamente para as mudanças que ocorreram na representação social do negro nas páginas das Histórias em Quadrinhos. Em primeira instância reforçamos que a participação dos Movimentos Sociais Negros na reescrita dessa história foi imprescindível, pois as frentes de luta organizadas pela comunidade negra, paulatinamente, se não foram conseguindo, na sua totalidade, desconstruir os discursos de subalternidade e inferioridade implementados ao longo do tempo, ao menos os abalaram, reposicionando, legalmente, o lugar de ocupação do povo negro brasileiro, como sujeitos ativos que são, na sociedade brasileira. O que tornou possível fazer emergir novas formas de pensar e produzir conhecimento, agora fincadas na história e cultura negro-brasileira. Em segunda instância, face a essa nova realidade conjuntural, as Histórias em Quadrinhos passaram a assumir uma abordagem visual que captura os detalhes e a sutileza da comunidade negra. E as personagens passaram a ser representadas de forma humanizada, em relação intergrupal de igualdade e em pleno exercício da sua cidadania. O que extrapola os lugares até então destinados aos personagens negros nessas narrativas. Esse tipo de abordagem modelada na valorização do povo negro brasileiro, garante a manutenção de um ritmo e vitalidade, postulados com base em condições histórico-culturais concretas, o que pode ajudar as pessoas a aproximarem-se de si mesmas, da sua identidade negra e do outro. E, assim, essa ressonância emocional, de acordo com a verossimilhança com as personagens negras, poderá instigar laços de solidariedade, sentidos de existência e pertença. Parece-nos óbvio, por outro lado, que o mercado editorial necessita ser fomentado e as produções incentivadas, pois existe, sim, um público consumidor para essa arte, basta que ela circule. Diante do exposto e em conformidade com as revistas analisadas, reitera-se que a inserção da comunidade negra nas páginas das HQ representa uma condição possível de desenvolvimento de gosto pela sua beleza, sua cor, sua história, sua cultura, seu legado de matriz africana. E outros grupos étnicos/raciais poderão também começar a prática de desenvolver olhares de fora, mas sem estigmas inferiorizantes, 114 reconhecendo que podemos todos viver, sim, as diferenças, sem necessitarmos estabelecer processos hierarquizantes (SILVA, 2011). Em síntese, consideramos que produções que representam nas suas capas e no seu interior essas transformações, com personagens cuja trajetórias de vida denotam sucesso, que vivem em contato com o sagrado, que expressam suas manifestações culturais, como a capoeira, entre outros, são essenciais para divulgar, reconhecer e valorizar os processos históricos, sociais e étnico-raciais da comunidade negra assim como colaboram na construção de uma autoimagem e de uma autoestima positiva do povo negro, ao romper com a ideologia do branqueamento, que, com seus hiatos, manteve, por um longo período, um discurso avesso a essa nova realidade de avanços que vem se configurando. Dessa forma, podemos inferir que, por meio das narrativas quadrinizadas com personagens negras na posição central, ativa, antes que de subalternidade ou alienação, como antes eram apresentadas, é possível discutir a realidade, (des)organizar as convivências ditas como fixas e imutáveis e expressar diversos modos de encarar a vida. Levantando as contradições sociais e emocionais que constituem o entorno das HQs, poderemos criar possibilidades de apreender o real e torná-lo mais fluído. Mas, para tanto, será também preciso que a sociedade rompa com os discursos antidiálogicos implementados e que um maior número de ações políticas seja levado a efeito no país. Nessa perspectiva, entre sonhos e utopias, contribuímos com as reflexões deste trabalho, que de nenhum modo, podem ser consideradas como fixas ou finalizadas, mas em processo de aprofundamento, pois bem sabemos que o segredo de qualquer ação, em oposição ao silêncio da omissão, é ser inclusive respaldada em dados (principalmente científicos) que podem interferir para desestabilizar as contexturas tidas como sólidas. 115 REFERÊNCIAS ABRAMOWICZ, Anete; OLIVEIRA, Fabiana. A escola e a construção da identidade na diversidade. In: ______ et al. (Orgs.). Educação como prática da diferença. Campinas: Armazém do Ipê, 2006. ANGELI FILHO, Arnaldo. Feijão. Folha de S. Paulo. Caderno Folhinha. São Paulo, 14 de abril de 1974. ARRUDA, Angela; SÁ, Celso Pereira de. O estudo das representações sociais no Brasil. Revista de Ciências Humanas. Edição Especial Temática, Florianópolis, 2000, pp.11-31. BASÍLIO, Claudio Roberto. Os negros nas histórias em quadrinhos. 2005. 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