Departamento de História “Com que Roupa?” O associativismo recreativo e a questão da moralidade entre os trabalhadores do Rio de Janeiro da Primeira República Aluna: Juliana da Conceição Pereira Orientador: Leonardo Affonso de Miranda Pereira Relatório de Atividades – Julho de 2013 á Julho de 2014 1. Apresentação: Noel Rosa se consagrou a partir da década de 1930, como um dos mais destacados sujeitos do processo de configuração do samba como ritmo nacional. Com uma produção que se iniciou nos últimos anos da década de 1920, ele alcançou um sucesso que levou suas músicas a serem gravadas por diferentes cantores em diferentes anos e contextos. Um desses primeiros sucessos, ainda no final de1930, foi a música "Com que Roupa"1: Agora vou mudar minha conduta Eu vou pra luta, Pois eu quero me aprumar. Vou tratar você com a força bruta Pra poder me reabilitar... Pois esta vida não está sopa E eu pergunto: com que roupa? Com que roupa que eu vou Pro samba que você me convidou? Com que roupa que eu vou Pro samba que você me convidou? Alçada rapidamente ao sucesso, ela se tornou, segundo o Diário da Noite, um dos “sambas da época”, a “musica que vai ser cantada em toda a cidade, que já a sabe de cor e pergunta, indecisa, olhando seus vestuários: ´Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou?´"2 A letra da música mostra uma preocupação de seu narrador com a questão da vestimenta própria para o “samba”. Já que havia mudado “sua conduta”, deixando de lado a malandragem e passando a trabalhar, descobriu que o “dinheiro não é fácil de ganhar”. Desse modo, ele não teria mais dinheiro pra comprar roupas boas para ir ao samba, afirmando que ia “acabar ficando nu”. Dentre os muitos aspectos de interesse nesta letra, ressalto aqui a visão, construída na canção, dos bailes em que se tocava o samba como espaços elegantes e morais, 1 Conf. RIBEIRO, Santuza Cambraia Naves. “Modéstia á parte, meus senhores, eu sou a vila!”: A cidade fragmentada de Noel Rosa.” Revista Estudos Históricos, vol. 8, n. 16, 1995, pp. 251-268. 2 “Carnaval a festa do povo”. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 19 jan. 1931. Departamento de História nos quais não ficaria bem ir “coberto de farrapo” e nem com um terno que “já virou estopa”. Se do ponto de vista do senso comum os “sambas” seriam espaços da informalidade e da descontração, a preocupação do narrador da música, captada por Noel Rosa, dava a ver a importância que o tema da vestimenta em tais ambientes tinha para aqueles que o frequentavam. Para compreender tal importância, no entanto, devemos acompanhar um processo iniciado muitos anos antes, quando esses pequenos clubes em cujos salões seriam gestadas as formas musicais associadas ao samba começavam a se afirmar. É o que sugere um caso ocorrido em um baile realizado pelo Club de Madureira na noite do dia 28 de maio de 1904. Nessa noite, como de costume, o tesoureiro do Club, Manoel Gonçalves Branco, obedecendo às determinações de seus Estatutos, colocou-se a porta do edifício social para fiscalizar a entrada de sócios e convidados, de acordo com o que declarou em carta ao presidente Pedro Paes. Eis que então, nas palavras do Secretário, “dirigiu-se ao edifício social o Dr. Accacio de Araujo , 1° suplente de Delegados desta Circunscrição acompanhado de um individuo que não se achava decentemente vestido. Exigindo desse individuo o seu cartão de convite foi isto bastante para que o Dr. Accacio me dissesse que como autoridade podia fazer entrar no salão social quem muito bem lhe parecesse”. Diferentes testemunhas participaram de um abaixo assinado confirmando o ocorrido, principalmente porque, de acordo com o presidente, a autoridade policial faltou com o “devido respeito e cortesias a senhoras e senhoritas que assistiam á recita que o Club efetuava na mesma noite”3. O incidente causador do conflito, no entanto, era mesmo que o indivíduo que acompanhava o Dr. Accacio não estivesse “decentemente vestido”, apresentando-se com roupas de trabalho sem colarinho e gravata. Mesmo o fato de que o Dr. Accacio fosse delegado não foi o suficiente para evitar que os sócios do Club enviassem uma carta reclamando da atitude deste ao Chefe de Polícia da Capital Federal – na qual reclamavam da falta de “respeito e cortesias a senhoras e senhoritas” que estavam presentes naquela noite por parte do delegado e seu acompanhante. O cuidado com a elegância e a decência em tais bailes, expresso na importância que os sócios do Club de Madureira atribuíram ao caso, dava a ver assim a força da questão entre esses sujeitos. Sem ser caso isolado no bairro suburbano, o surgimento de agremiações e pequenos clubes destinados à dança, formada por trabalhadores, ocorria por todos os bairros. Foi entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX que todo o Rio de Janeiro foi 3 Arquivo Nacional, GIFI, 6C 127. Departamento de História tomado por um novo fenômeno social que varria o Mundo Atlântico: a “febre dançante”4. Nestes clubes, trabalhadores de origens diversas aproveitavam o tempo livre e constituíam seus laços de identidade e solidariedade, articulando de maneira própria suas identidades a partir de relações de vizinhança e de ofício.5 A expressão desse fenômeno é visível na documentação da Repartição Central de Policia, guardadas no Arquivo Nacional, onde estão arquivados os pedidos de licença e estatutos de dezenas de associações. Todos os anos essas sociedades, precisavam obter do Chefe de Polícia do Distrito Federal uma licença de funcionamento, que era conseguida mediante a apresentação dos Estatutos que regiam a vida social dos clubes. Dentre as características das sociedades forjadas em meio a este processo, ressalta-se, desde seu início, a força da moralidade própria aos sócios desses pequenos clubes. O vestir-se de forma decente para ir ao baile aparece com grau de importância em alguns de seus estatutos, como aquele entregue em 1901 à Polícia pelo Grêmio das Esmeraldas. Em seu artigo 6º, ele afirmava que “não é permitido (...) sócios que não estejam trajados com decência”6. A vestimenta passa a afirmar certo padrão moral, construindo para os sócios a marca da respeitabilidade e da decência, pois todo sócio se vestiria com decência. Desse modo, a presente investigação tem como objetivo a partir do cotejamento das fontes e da leitura da produção historiográfica sobre o universo desses clubes dançantes analisar os códigos morais próprios aos sócios dos pequenos clubes dos subúrbios e bairros de maior presença negra do Rio de Janeiro na Primeira República a partir da vestimenta, de modo a investigar como tais agremiações dialogavam com o ideário ilustrado do período. 2. Balanço bibliográfico Para enfrentar o desafio de tentar compreender a perspectiva moral própria ao universo dos trabalhadores, ligada ao processo mais amplo de articulação de identidades entre eles, recorri de início às consagradas análises de Edward Palmer Thompson. Ao analisar o caso dos trabalhadores ingleses do final do século XVIII7, Thompson mostra que o processo de 4 PEREIRA, PEREIRA, Leonardo. “Os Anjos da Meia-Noite: trabalhadores, lazer e direitos no Rio de Janeiro da Primeira República” , Revista Tempo, Rio de Janeiro, vol. 19, n. 35, 2013, pp. 97-116. 5 PEREIRA, Leonardo A. Miranda. “O Prazer das Morenas: bailes, ritmos e identidades nos clubes dançantes da Primeira República.” In: Vida Divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010. 6 Arquivo Nacional ,GIFI, 6C 63. 7 THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Departamento de História formação de identidades de classe é resultado do compartilhamento de experiências comuns por parte dos trabalhadores. Diferenciando-se dos determinismos que vêm o processo de formação da classe como consequência direta de condições estruturais, busca entender como os indivíduos constroem esta identidade de modo ativo, como articulam as identidades de seus interesses entre si, e contra outros homens que os interesses diferem dos seus. Para isso, foge das determinações estritamente econômicas, para buscar em outras dimensões da experiência dos trabalhadores os fios com os quais puderam tecer seus laços de identidade. A partir desta leitura, foi possível pensar os clubes recreativos que se constituíam aos montes no Rio de Janeiro da Primeira República como espaços nos quais os trabalhadores podiam efetivamente articular seus laços de solidariedade e identidade. Mesmo que eles fossem vistos por muitos militantes operários como espaço de alienação, ali se estabeleceram relações mais estreitas onde posicionamentos, práticas e valores construíram seus laços de solidariedade cotidianos. Para investigar as bases sobre as quais se articulou esta identidade na Inglaterra do início do século XIX, Thompson passa a se dedicar ao estudo das práticas e rituais costumeiros dos trabalhadores ingleses nas décadas anteriores. É o que faz, por exemplo, ao estudar um ritual carnavalesco denominado “Rough Music”8. Trata-se de ritual de ridicularizarão em linhas geral empregado contra indivíduos que desrespeitam certas normas da sociedade. Segundo o autor, essas cerimônias ao regularem ocorrências relativas á autoridade e a conduta moral permitem “desvendar os segredos do código moral de uma comunidade”, isto é, aquilo que é tolerado e o que não é. Os costumes para ele aparecem como um campo de disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes. Desse modo, Thompson demonstra que os trabalhadores articulavam de forma própria seus laços de solidariedade e diferença, estando longe de constituir páginas em branco a espera de uma força exterior que os ordenasse. No caso brasileiro, O tema da moralidade vem sendo apresentado na historiografia a partir de diferentes perspectivas, sendo relevante entre elas a leitura de Sueann Caulfield, no livro Em defesa da Honra9, trabalha com o conceito de honra sexual do final do século XIX até a década de 1930, utilizando processos de defloramento, estupros e pedidos de casamento. A autora observa que a honra sexual está ligada às bases da nação. Sem a força moralizadora da honestidade sexual das mulheres, a modernização causaria a dissolução da 8 9 THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 19181940. Campinas, Ed. da UNICAMP, 2000. Departamento de História família, um aumento brutal da criminalidade e o caos social. Ainda assim, mostra como a questão da moralidade se torna um campo de disputas. Sujeitos envolvidos em conflitos diversos podiam interpretar o conceito de honra de diferentes maneiras. A autora reafirma que havia nesse período uma tentativa de zelar pela moral pública e pelos valores da família, vinculando-os à honra nacional. Sueann trás uma visão de moralidade que não esta presa somente as questões de gênero ou classe, mas observa que quando os juristas impunham normas civilizadas nas relações de gênero e contensão de sexualidade nas famílias higienizadas, fazia parte de um projeto externo de controle social. Esse controle estava em todas as partes, não se localizando somente entre mulheres pobres ou ricas. A partir de tais sugestões bibliográficas, é possível perceber que o compartilhamento de códigos está para além das determinações de classe social e relações de gênero: é como um campo comum de disputa, que ele se apresenta - o que nos permite ver as polêmicas sobre a moralidade nos pequenos clubes dançantes como um meio de compreensão dos processos de articulação de identidade entre os trabalhadores de diferentes gêneros, etnias e profissões. Essas tensões e disputas associadas à moral, que forjam a construção de laços de identidade e solidariedade, se apresentam, por exemplo, quando cruzamos dois tipos de fontes: as crônicas escritas por representantes do mundo letrado e a documentação policial que dá a ver indícios da experiência dos sócios dos próprios clubes. 3. Justificativas: Essas tensões e disputas associadas à moral, que forjam a construção de laços de identidade e solidariedade, se apresentam, por exemplo, quando cruzamos dois tipos de fontes: as crônicas escritas por representantes do mundo letrado e a documentação policial que dá a ver indícios da experiência dos sócios dos próprios clubes. No caso das crônicas, não é difícil buscarmos nelas indícios sobre o modo pelo qual os setores letrados entendiam as diversas normas e condutas morais que circulavam pela cidade do Rio de Janeiro. É o que mostra, por exemplo, uma crônica escrita pelo cronista carioca Orestes Barbosa em 1923 no livro Bambambã, intitulada “Um Baile na S.D.F. Caprichosos da Estopa” 10. A forma pela qual o autor apresenta a sociedade que dá título à crônica, formada por trabalhadores de Botafogo, é significativa da forma e do padrão pelo qual se propõe a analisa-la. “A sede do club, a exemplo dos Tenentes do Diabo, que se denomina a Caverna, chama-se Tear. Eu cheguei ao tear quando o baile estava quente, às duas horas da manhã”, 10 BARBOSA, Orestes. “Um Baile na S.D.F. Caprichosos da Estopa”, Bambambã, Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Secretária Municipal de Cultura, 1993. pp. 75 Departamento de História afirma Barbosa. O autor deixa claro, assim, que na sua visão os pequenos clubes seriam espécies de cópias dos modelos firmados das grandes sociedades. Porém, existe uma distância entre esses dois ambientes que se expressaria, para o autor, no perfil dos frequentadores do clube - que, no caso do clube de Botafogo, seriam segundo ele, negros e mulatos que “mal se equilibravam nos sapatos de raro convívio com os pés chatos”11. A descrição do autor dos frequentadores e do espaço do dia do baile é construída a partir de uma ironia também presente no modo pelo qual apresenta os instrumentistas que estavam presentes na noite do baile. Embora com uma orquestra composta pelos mesmos instrumentos que se faziam presentes nos salões elegantes, chamava a atenção do cronista o perfil pouco refinado dos músicos que o executavam: “O do trombone era um negro gordo, de coco raspada, que, de vez em quando, tirava o bocal do instrumento e escorrupichava ali mesmo no chão uma baba abundante”. Ao comparar o clube com o modelo das Grandes Sociedades, o cronista marca para este a precariedade e a inferioridade que se expressam na descrição da sua composição; onde seus sócios são caracterizados de forma negativa, ali moralidade não faz sentido. Como ele, o cronista Luiz Edmundo escreveu no seu livro de memórias O Rio de Janeiro do meu tempo,12 publicado em 1938 sobre a Sociedade Carnavalesca Familiar Dançante Beneficente Recreativa Tira o dedo do Pudim que segundo o autor se localizava no Morro da Conceição. Como que reafirmando a diferença vista por Orestes Barbosa, esses clubes a seu ver aparecem como um “ambiente, onde se junta a ralé do morro, a gentalha que sobe da Saúde ou vem das bandas do saco do Alferes e Morro do Pinto” 13, no qual inexistiria qualquer padrão moral – dado que, em sua pobreza e confusão, seus sócios estariam somente se “empernando” em movimentos distantes do recato e da elegância das danças dos salões refinados. Na visão do cronista, como ele coloca na fala do garantia “isso aqui, seu reporte, é fa mia. Já se casaro nesta casa oito virge. E ainda hom de se casá mais.” Na visão de Luiz Edmundo para sócios desse tipo de clube, a moralidade estava ligada somente ao casamento, uma imagem de respeito tem haver com fazer uso de ações consideradas de família. Mas que 11 BARBOSA, Orestes. “Um Baile na S.D.F. Caprichosos da Estopa”, Bambambã, Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Secretária Municipal de Cultura, 1993. pp. 75 12 EDMUNDO, Luiz. Carnaval de Morro. In: O Rio de Janeiro do meu tempo, Rio de Janeiro: Conquista, 1957, PP.818-820 . o livro foi publicado pela 1ª vez em 1938 13 Conf. Luiz Edmundo. Departamento de História ali novamente não fariam sentido. Por serem locais frequentados por uma maioria negra e mestiça, esses espaços tendem na visão dos letrados a ser o espaço da desordem. Percebe-se assim que os pequenos clubes dançantes eram vistos por esses autores como espaços sem requinte nem moral, sendo cômicas as tentativas de seus sócios de afirmação de um padrão estético e moral elevado. Ambos não conseguem ver nas atividades desses clubes nenhuma marca singular, tratando de toma-las como simples expressão do atraso de seus componentes e de sua incapacidade de se fazerem civilizados e moralizados. Bem diferente dessa no entanto, era a concepção de moralidade e decência que os próprios clubes tentavam afirmar para si. É o que sugere a documentação produzida pela Repartição Central de Polícia do Distrito Federal referente aos clubes recreativos, guardada no Arquivo Nacional. Alguns clubes traziam em seus estatutos, artigos relativos ao comportamento das mulheres em meio aos bailes, ou mesmo definições de padrões de conduta a serem respeitados por todos os sócios. Era o que mostrava em 1908 o caso da Sociedade Carnavalesca Brilho das Moças. Ao explicitar nas “funções da diretoria” de seus estatutos, que os diretores deveriam “portar-se com toda a decência e respeito para com os convidados mesmo nos casos extremos”14. Chama atenção, o fato de que a decência e o respeito aparecem aqui como a tentativa de se afirmar um padrão para o comportamento devendo existir até na resolução de pequenos conflitos que possam acontecer. A decência aparece como um meio de afirmação de distinções sociais onde “posicionamentos, práticas e valores construíram seus laços cotidianos”15 e marcavam uma identidade para os sócios dos clubes. Um meio de afirmar esta decência era, para muitos destes clubes, atentar para a vestimenta adequada à frequência nos bailes - nos quais “todos os sócios em dias de festa da sociedade deverá [sic.] se apresentarem decentemente vestidos como é de praxe em as sociedades congêneres”16 como diz um artigo dos Estatutos da Sociedade Carnavalesca As Meninas Vaidosas. Do mesmo modo, no capitulo 8º dos Estatutos do Grupo Carnavalesco Rei das Mattas, afirmava-se que não seria permitida “a entrada em dias de festa no grupo a todo e qualquer sócio que não se apresentar decentemente vestido”17. Em tais artigos, a vestimenta 14 Arquivo Nacional, GIFI, 6C 250. 15 CRUZ, Alline. “Solidariedades e diferenças em Madureira”, Suburbanização e racismo no Rio de Janeiro: uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pós-emancipação (1901-1920), Dissertação de Mestrado, IPPUR/UFRJ, 2007, pp. 64-119. 16 Arquivo Nacional, GIFI, 6C 251. 17 Arquivo Nacional, GIFI, 6C 250. Departamento de História aparece como um meio de afirmação de certo padrão moral capaz de afirmar para seus sócios a marca da respeitabilidade e da decência, que muito afastava esses clubes da imagem afirmada por alguns cronistas do período. O controle da vestimenta, assim como a afirmação de padrões morais elevados, permitiam que os pequenos clubes de certa forma alcançassem um espaço na imprensa, onde antes trabalhadores como os que os compunham costumavam aparecer apenas nas páginas policiais. Do mesmo modo, podiam ajudar os sócios desses clubes a conseguir a referida licença, já que estavam submetidos à investigação policial. Nem por isso, no entanto, podemos ver nesse esforço de afirmação de padrões morais rígidos nos pequenos clubes simples cópia de um modelo que lhes era exterior – antes pelo contrário. Mais do que a simples afirmação de um padrão moral similar ao dos cronistas que os criticavam, esses clubes davam a ver a existência, entre seus sócios, de códigos morais de difícil compreensão para eles. O Club Flor do Bonsucesso, por exemplo, em um dos artigos de seus estatutos determinava que era “expressamente proibido os cavalheiros dançar consecutivamente com a mesma dama afim de evitar qualquer desgosto ou desavença”18 - o que, do ponto de vista letrado, poderia sugerir um indício de imoralidade. Artigos como esses mostram, porém, o sentido moral específico de seus sócios, se o objetivo principal era somente a dança, dançar com diferentes pares evita maiores contatos e formação de casais. De fato, “Por mais que se tratasse de um clube de maioria trabalhadora de fábrica, eles deixavam clara a tentativa de adoção de um perfil que se pretendia elevado”19 como afirma Leonardo Pereira referindo-se ao clube Prazer das Morenas, localizado em Bangu. Ao marcarem esse perfil elevado, o faziam assim por critérios próprios, nem sempre próximos daqueles do mundo letrado. Sem tomar a moralidade como um padrão universal, como queriam Orestes Barbosa e Luiz Edmundo, cabe assim buscar, na experiência dos sócios desses pequenos clubes dançantes e carnavalescos, indícios que nos permitam entender a lógica desse padrão moral próprio aos trabalhadores cariocas do período. 4. Conclusão A leitura das fontes nos demonstram que a preocupação com a vestimenta no samba, 18 19 Arquivo Nacional, GIFI , 6C 102. PEREIRA, Leonardo A. Miranda. “O Prazer das Morenas: bailes, ritmos e identidades nos clubes dançantes da Primeira República.” In: Vida Divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010. Departamento de História era algo frequente e que não surgiu somente em 1930, mas que é algo consolidado desde o inicio do século XX nos bailes dos clubes de trabalhadores. Em 1930 a apreensão do narrador era com a necessidade de, depois de “ regenerado”, se portar com a elevação necessária para aquele ambiente – o que tinha na roupa um dos seus critérios fundamentais; Departamento de História 5. Referências Bibliográficas: CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940. Campinas, Ed. da UNICAMP, 2000. CRUZ, Alline. “Solidariedades e diferenças em Madureira”, Suburbanização e racismo no Rio de Janeiro: uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pós-emancipação (1901-1920), Dissertação de Mestrado, IPPUR/UFRJ, 2007, pp. 64-119. PEREIRA, Leonardo A. Miranda. “O Prazer das Morenas: bailes, ritmos e identidades nos clubes dançantes da Primeira República.” In: Vida Divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930). Rio de Janeiro: Apicuri, 2010. PEREIRA, Leonardo. “Os Anjos da Meia-Noite: trabalhadores, lazer e direitos no Rio de Janeiro da Primeira República” , Revista Tempo, Rio de Janeiro, vol. 19, n. 35, 2013, pp. 97116. RIBEIRO, Santuza Cambraia Naves. “Modéstia á parte, meus senhores, eu sou a vila!”: A cidade fragmentada de Noel Rosa.” Revista Estudos Históricos, vol. 8, n. 16, 1995, pp. 251268. THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras 1998. THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.