Meu diálogo constante com Joaquim Mattoso Câmara Jr.
Rosa Virgínia MATTOS E SILVA
UFBA/CNPq
“Cerradas as portas, / a luta prossegue / nas ruas do sono”.
Carlos Drummond de Andrade, O lutador (1988:85)
1. Explicações iniciais
Um título e uma epígrafe nunca são inocentes. Quanto ao primeiro, a minha
escolha pode gerar mal-entendido. Nunca troquei duas palavras com Joaquim Mattoso
Câmara Jr. O “diálogo” a que o título se refere decorre do uso constante que desde
1958, no meu primeiro semestre de Licenciatura, graças a Nelson Rossi que, nesse
semestre, ministrava uma introdução à Lingüística. Nesse momento eu e minhas colegas
travamos conhecimento com Saussure, Sapir, Bloomfield e com os Princípios de
Lingüística Geral, na edição revista e aumentada de 1954, já que a primeira é de 1941.
Apesar de não ter trocado duas palavras com Mattoso Câmara, convivi com a
sua presença no II Congresso da ALFAL, realizado na PUC de São Paulo, em 1969.
Nesse congresso apresentei a minha primeira Comunicação, O estudo lingüístico de um
texto português do Século XIV, que veio a ser publicado em 1973 no Boletim de
Filologia do Centro de Estudos Filológicos de Lisboa. Para meu pânico, Mattoso
Câmara estava na sala em que apresentaria a Comunicação referida, mas, para minha
tranqüilidade, saiu ele da sala, logo após a Comunicação precedente, a de Miriam
Lemle.
Quanto à epígrafe — “Cerradas as portas, a luta prossegue, nas ruas do sono” —
foi escolhida porque considero Mattoso Câmara Jr. um “lutador”. Um “lutador” pela
implantação da Lingüística Moderna no Brasil, chamado de “Pai da Lingüística no
Brasil” por Francisco Gomes de Matos, no artigo Mattoso Câmara Jr. e o ensino da
Lingüística no Brasil (1973:409), aposto com o qual concordo plenamente. Desde 1934
começou Mattoso Câmara a publicar e, incansavelmente, prossegue até a sua prematura
morte, aos sessenta e seis anos. Sua última publicação, em vida, é de 1969 —
Problemas de Lingüística Descritiva e, em 1970, foi publicação póstuma e inacabada —
Estrutura da língua portuguesa (cf. Bibliografia de Joaquim Mattoso Câmara Jr.
Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 28-43, 2005. [ 28 / 43 ]
[1973:416-421]). Informa-se, em nota, que essa Bibliografia não é exaustiva. Se
começou a escrever e publicar em 1934, iniciou sua carreira como professor de
Lingüística em 1938, na extinta Universidade do Distrito Federal, pela Ditadura Vargas
em 1939. O que é bom sempre durou pouco em nossa terra, pelo menos no que se refere
ao ensino universitário. Sobre a carreira docente de Mattoso Câmara Jr., leia-se Cristina
Altman (1998:101-107). Na sua luta de intelectual obstinado por uma idéia, foi
presidente da Associação de Lingüística e Filologia da América Latina (ALFAL) e
fomentou a criação da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN), fundada, com
a sua presença, no referido II Congresso da ALFAL.
Com essas Explicações iniciais, passo ao meu “diálogo” com Mattoso Câmara
Jr.
2. O que significaram para mim os “Princípios de Lingüística Geral”
Retomando agora o meu exemplar encadernado, adquirido por meu pai à
Livraria Acadêmica do Rio de Janeiro — na edição revista e aumentada de 1954 —,
vejo que o li de ponta a ponta e sublinhei tudo que considerei mais importante. É
verdade que nada sabia de Lingüística.
Nos meus quase dezoito anos, conhecia bem a gramática normativa, apreendida
desde o meu curso primário e ginasial, uma vez que no curso colegial-clássico (hoje
médio), no primeiro ano, adquiri noções de história da língua portuguesa, graças a uma
professora de nacionalidade portuguesa, apaixonada pela história da sua / da nossa
língua. Acho que daí partiu minha fidelidade aos estudos históricos, que permanece.
Voltando aos Princípios de Lingüística Geral, na edição de 1954, que têm como
subtítulo — Como introdução aos estudos superiores da língua portuguesa, vejo que os
sublinhados vão desde o Capítulo I — Conteúdo e escopo lingüístico ao XVIII — As
leis fonéticas. Se li os dois últimos capítulos — Empréstimos e sua amplitude e
Aspectos lingüísticos e sociais do empréstimo — não os assinalei, como ocorre nos
outros dezoito capítulos.
Em outra edição que possuo dos Princípios, a 4ª, revista e aumentada, quinta
impressão, de 1972, há um capítulo, inexistente na de 1954 — A classificação das
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línguas, este sim, sublinhei-o todo e fiz anotações à margem. Provavelmente foi esse
capítulo a base de um dos verbetes sobre lingüística que elaborei para a Enciclopédia
Mirador Internacional, intitulado Tipologia Lingüística. Nesse Capítulo, Mattoso
Câmara Jr. trata da classificação genética, das classificações areais, da classificação de
August Schleicher, da classificação sapiriana e da classificação de Greenberg e conclui
afirmando: “De um modo geral, há várias possibilidades de classificação tipológica,
partindo-se de traços fônicos, mórficos, sintáticos ou semânticos” (1972:312).
Não sucumbi, aos dezoito anos, à erudição lingüística de Mattoso Câmara, pelo
contrário, tornei-me uma voraz leitora de livros, artigos, comunicação que tratam de
qualquer tipo de lingüística, apesar de ser, e talvez por isso, professora e pesquisadora
da língua portuguesa, daí nunca não ter me filiado a nenhuma escola lingüística.
Recentemente indiquei a uma jovem mestranda, Mariana Fagundes de Oliveira,
cujo tema de dissertação é a voz passiva no período arcaico do português em confronto
com o contemporâneo, o capítulo IX dos Princípios de Lingüística Geral na edição de
1954, em que ocupam as páginas 129 a 143, As vozes verbais.
A partir da página 132 trata, especificamente, da “categoria da voz”. Inicia
Mattoso Câmara Jr. dizendo que em português “estamos familiarizados com as três
vozes — ativa, passiva e reflexiva, as únicas que se caracterizam por contrastes de
forma.” (pág. 132).
Daí passa a uma viagem pelo passado não só das línguas indo-européias, mas de
outros troncos e/ou famílias. Inicia essa viagem afirmando que “alhures outras vozes
possam constituir categorias nítidas, sistematizadas dentro da conjugação verbal” (pág.
132). Parte do indo-europeu, em que “o sufixo *-eye, forma fraca *-i” é índice da voz
factitiva ou causativa, “para assinalar a ação do sujeito sôbre um ser objeto” e mostra
que no português são o verbo fazer ou o sufixo -ent que expressam essa voz. Na
seqüência afirma que o morfema hipotético do indo-europeu “é de funcionamento claro
e preciso em sânscrito, onde figura sob a forma -aya (…) e em germânico há, de mesma
origem, o elemento -y — (semiconsoante)” (pág. 132).
À página 133, diz ser fácil a confusão dessa voz com a transitiva, em que “há
apenas paciente da ação sem a imprescindibilidade da idéia de uma ação acusativa
exercida sobre a paciente pelo sujeito”. Diz, em seguida, que “o contraste entre a voz
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transitiva e a intransitiva é mais expressivo nas línguas tai da China (bloco sinotibetanto).” Conclui o tópico “multiplicidade da categoria de voz”, referindo-se ao
português em que a “transitividade verbal está imanente na significação do vocábulo
verbal.”
Concentrando-se na voz ativa e passiva (pág. 133-134), utiliza-se de teorias de
vários autores — Leon Kellner, Jerspersen e Meillet. Destaca o ponto de vista do último
que afirma que o chamado agente da passiva só adquiriu esse valor tarde, uma vez que
antes era um adjunto ou complemento circunstancial ou de origem, em latim com a
preposição ab ou a ou de meio e em português com a preposição por, arcaico per.
Conclui, resumindo:
Chama-se entre nós voz passiva (stricto sensu, ressalvemos) a uma forma
especial dos transitivos, em que o paciente é pôsto em especial evidência como
ponto de partida da frase. Figura por isso como Sujeito, enquanto o ser que seria
a rigor o sujeito é relegado para um plano inferior ou é ignorado. (pág. 132).
Mattoso Câmara Jr. não se satisfaz com essa interpretação que “não abarca
sequer os nossos próprios fatos portuguêses.” (pág. 134) e continua:
Conseqüentemente, vários pesquisadores têm chegado à conclusão de que, em
muitas e distintas línguas do globo, só há na realidade a voz passiva, porque é o
paciente, e não o agente, que é sistematicamente arvorado em sujeito da frase.
(pág. 135).
Apresenta então a teoria de Hugo Schuchardt sobre a língua vasca, em que há
um nominativo sem sufixo para o sujeito, que exprime o paciente e um caso oblíquo
ergativo, com o sufixo de base /k/. Com os verbos transitivos aparecem os dois casos,
correspondendo ao nosso verbo passivo com sujeito-paciente e complemento agente;
com os verbos intransitivos só aparece o caso nominativo (paciente), correspondendo
também a um verbo passivo.
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À página 136, diz que vale seguir nas pegadas de Meillet para dar à teoria da voz
passiva outro alcance e conteúdo, que modificaria essencialmente a interpretação dos
fatos do vasco. Para Meillet, a oposição básica é entre voz ativa e voz impessoal.
Em outros têrmos, o processo pode — 1) ser referido a um ser preciso, que é a
causa, ou motivo ou ponto de aplicação (sujeito); 2) ser apresentado em si
mesmo, independentemente de um nome ou ser que lhe servia de marco de
referência. (pág. 136).
Para Mattoso Câmara, a frase impessoal assim compreendida pode assumir três
principais variantes mórficas: a da forma ativa pura, sem sujeito explícito ou implícito,
como é o caso do nosso existencial haver; a impessoalidade caracterizada na forma de
nome do ser a que se refere a ação (seria o caso, digo eu, do nome homem no português
arcaico — “Ca se esforça homem pera fazer bem (DSG 1.1.33) e a impessoalidade
expressa por um morfema verbal, como o sufixo -r- do celta, do osco-umbro e do hitita.
Desse último tipo de voz impessoal sai uma voz passiva de sujeito-paciente, quando nos
verbos transitivos se passa a dar a forma nominativa ao ser paciente. E conclui: “É esta
a teoria de Meillet sôbre a voz passiva latina. Para êle tratou-se de início de uma voz
impessoal, que só tinha 3ª pessoa do singular” (pág. 137).
No item “A essência da voz reflexiva” (pág. 139-140), diz Mattoso Câmara que
deve ser apreciada na perspectiva ampla do indo-europeu, em que se prefere o nome da
voz medial. Apoiado em Brugmann, na voz medial indo-européia há três valores: a
medial dinâmica, “que exprime de maneira tôda particular a parte pessoal que toma o
sujeito no fato expresso (…) como no grego νηχσµαι “eu nado” (pág. 137); a medial
reflexiva, quando se frisa o agente fica encerrado em si próprio, durante a atividade e
não passa para o mundo exterior; a medial recíproca, com o valor do português “êles se
batem”.
Sintetiza Mattoso Câmara Jr:
Morficamente há assim para distinguir: a) de um lado a voz medial
caracterizada por desinências verbais próprias como em sânscrito e grego (a ela
se prende a chamada voz depoente latina com o sentido medial já praticamente
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obliterado); b) de outro lado, a voz reflexivo-pronominal, em que o que há de
paciente no seu agente fica mais nitidamente expresso por um pronome oblíquo
da pessoa do sujeito (latim, línguas românicas, germânico, eslavo). (pág. 140).
Finaliza o capítulo IX com o item “De novo a voz passiva”. Diz, à página 141,
“Alhures, no domínio indo-europeu, desenvolveu-se uma voz passiva de forma
reflexivo-pronominal (…) como no português — abre-se a porta (…) quebrou-se o
tinteiro, ouviram-se pessoas, etc.” Conclui a seguir: 1) há uma relação estreita entre
impessoalidade e passividade; 2) cabe pôr em relevo a independência entre função e
forma lingüística.
Em suas palavras:
Cabe agora, em coroamento das nossas observações, uma consideração
importante, que nos levará a apreciar uma terceira forma de voz passiva.
Ao lado daquelas que apresentam morfema verbal típico e das que
decorrem da forma medial, há a voz passiva constituída por um particípio
passado e um verbo de estado (port. ser, al. werden). Para compreender essas
últimas formas, notamos que há uma interdependência última entre as diversas
categorias verbais. (pág. 142).
Por que razão dei tanto espaço, neste texto, ao Capítulo IX da 2ª edição, de
1954, dos Princípios de lingüística geral? A razão decorre de minha surpresa ao
confrontar essa edição com a outra de que disponho — a 4ª, 5ª impressão, de 1972 —
em que não ocorre o Capítulo As vozes verbais. Pergunto-me, por que terá Mattoso
Câmara Jr retirado esse Capítulo, pelo menos, na sua 4ª edição. Nessa edição, há uma
Nota Prévia à 3ª edição, que suponho ser de Mattoso Câmara Jr., em que explica o que
modificou em relação à 2ª, mas não se refere ao Capítulo aqui focalizado.
Termino este item com as palavras de Cristina Altman, historiógrafa da
Lingüística no Brasil, com as quais concordo:
Mattoso não propôs, nos Princípios, uma teoria própria, ao contrário, uma
prática que traria importantes conseqüências para as gerações que o sucederam,
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que consistia em derivar idéias lingüísticas da Europa e dos Estados Unidos e
aplicá-las na descrição do Português. (1998:102).
Pergunto eu, haverá depois dos Princípios quem tenha escrito outros no Brasil?
Temos, é certo, algumas introduções à Lingüística, em geral, Coletâneas, coordenadas
por um organizador, diga-se que de excelente qualidade e utilidade. Mas, no âmbito do
meu conhecimento, nenhum lingüista brasileiro se dispôs a escrever Princípios, claro
que atualizados, já que se passaram três décadas da morte de Joaquim Mattoso Câmara
Jr. Gostaria que se debatesse essa questão!
3. Dos estudos de lingüística descritiva do português, para a História e
estrutura da língua portuguesa
3.1. Os estudos descritivos
Começo com sua tese de Doutorado em Letras Clássicas, defendida e aprovada
com distinção na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, em
1949, Para o estudo da fonêmica portuguêsa (Cf. UCHÔA, 1975:VIII), que veio a ser
publicada em 1953.
Esse livro, uma versão modificada da tese, “foi deixado de lado o segundo
capítulo (Os estudos fonéticos em português). Em compensação, foi acrescentado, como
terceiro capítulo, um estudo sobre A rima na poesia brasileira” (UCHÔA,
1975:XXXII), apresentou-me a esse livro o Mestre Nelson Rossi. Confesso que, em
alguns pontos fiquei confusa, sobretudo na análise que apresenta Mattoso Câmara das
vogais nasais: “não há oposição entre vogal oral e nasal, porque as vogais consideradas
nasais se resolvem em vogal seguida de arquifonema nasal” (1953:114). O outro ponto
se refere à “líquida vibrante é um fonema único, e o /r/ brando deve interpretar-se como
um alofone de posição implosiva” (1953:115).
Voltava eu de um Mestrado em Letras na primeira Universidade de Brasília, em
que, pela primeira vez, estudei sistematicamente, Lingüística, com os lingüistasmissionários do Summer Institute of Linguistics e que seguiam tanto a Fonêmica como
a Tagmêmica de Kenneth Pike. Para mim era completamente desconhecido o
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arquifonema, ou seja, uma abstração, creio, originária dos fonólogos do primeiro
Círculo Lingüístico de Praga. O outro estranhamento deveu-se ao fato de não entender
por que Mattoso Câmara Jr. considerou a líquida vibrante um único fonema, se se pode
admitir isso em posição implosiva, tudo bem! Mas na posição intervocálica? E a
oposição /kAru/ <caro> : /kAhu/ <carro>? Os tempos mudaram, as interpretações são
outras; o variacionismo chegou ao Brasil pela década de setenta e muito começou a
clarear.
Contudo, convivi entre 1973 a 1979, nos cursos de graduação em Letras da
Universidade do Brasil, com dois livros que eram verdadeiros vademecum do grupo de
professores de língua portuguesa do meu Instituto, tanto que os estudantes nos
chamavam de “viúvas de Mattoso”, já que ele falecera em 1970. Refiro-me aos
Problemas de Lingüística Descritiva, publicado em 1969 e Estrutura da língua
portuguesa, publicado em 1970, dos quais disponho das primeiras edições, lidas,
relidas, discutidas em sala de aula nas disciplinas de Fonologia e Morfologia do
Português. O primeiro reúne dez artigos antes publicados na Revista Vozes, entre 1967 e
1968; o segundo é um livro inacabado, publicação póstuma e que se ressente da
ausência da Bibliografia utilizada por Mattoso Câmara Jr. De fato não sei se nas edições
subseqüentes houve explicações para o caráter inacabado desse livro. Com tantas
leituras e com a prática na sala de aula, internalizei as idéias e interpretações de Mattoso
Câmara Jr. e adaptei a sua análise sincrônica em meu pequeno livro Português arcaico:
fonologia, publicado em 1991 e a sua morfologia sincrônica foi, sem dúvida, a base de
meu livro Português arcaico: morfologia e sintaxe, publicado em 1994. Devo, portanto,
a Mattoso Câmara Jr. a orientação para trabalhos que realizei quase duas décadas depois
de ter lido e estudado os três livros referidos no início do subitem.
3.2. Dos estudos descritivo-sincrônicos para os estudos diacrônicos e históricos de
Mattoso Câmara Jr.
Começo pela História da lingüística, publicado em português em 1975. Segundo
o professor Francisco Gomes de Matos, na Apresentação ao livro referido, foi ela,
“originalmente escrita em inglês (…) como fruto de sua experiência docente na
University of Washington, Seattle em 1962” (pág. 7). A tradução é de Maria do Amparo
Barbosa de Azevedo.
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Esta História da lingüística é única, por ser a única em português, escrita por um
brasileiro. Considero assim que Mattoso Câmara Jr., além de “pai da lingüística”, como
diz Gomes de Matos, é também “pai” da historiografia lingüística no Brasil, espero estar
certa quando faço essa afirmação.
Confesso que foi essa a primeira história da lingüística que li, logo na 1ª edição.
Essa História me serviu não só para verbetes que fiz para a Enciclopédia Mirador
Internacional, como para um artigo publicado em 1982 no Boletim de Filologia de
Lisboa. Hoje tenho usado, em disciplinas da pós-graduação, autores estrangeiros
traduzidos ou não, como Pieter Seuren (1998); Pierre Swiggers (1997); Barbara
Weedwood (2002) e o excelente livro de Cristina Altman, A pesquisa lingüística no
Brasil (1968-1988), publicado em 1998.
Voltando à História da lingüística de Mattoso Câmara Jr., ninguém melhor que
o professor Gomes de Matos para avaliá-lo:
Aos que esperam encontrar um tratamento de fatos mais contemporâneos,
mormente o desenrolar de movimentos ou correntes oriundas da teoria gerativotransformacional, lembraríamos a necessidade de, como ponto de partida,
conhecer-se o que cumulativamente a Lingüística ofereceu até os primórdios da
era chomskyana, para então prosseguir no estudo dessa história sempre aberta,
sempre imprevista — por isso mesmo — das idéias e das realizações concretas
da Lingüística. (1972 [1990]:8)
Concordo plenamente com o Professor citado. Sem dúvida o desenvolvimento
sobre a reflexão sobre a linguagem e as línguas é cumulativo — como aliás ocorre nas
ciências históricas; também cíclico, como bem mostra Pieter Seuren no livro, Western
Linguistics: an historical introduction (1998). O livro de Pierre Swiggers, Histoire de la
pensée linguistique: analyse du langage et reflexion linguistique dans la culture
occidental dès l’Antiguité au XIXe siècle (1997), destaca na introdução que o trajeto do
pensamento lingüístico é feito de continuidade e de descontinuidades, não há, por
exemplo, paradigmas teóricos radicais, ou seja, um elimina o anterior, nem rupturas
abruptas. Se se admitir que o chomskyano rompe com o que o precedeu, ou seja, os
estruturalismos, creio que não se pode esquecer que Chomsky foi um discípulo de Zellig
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Harris, e que, pelo menos, o modelo chamado padrão ou standard, excetuando o fato de
trabalhar a estrutura em dois níveis — a profunda e a superficial — na segmentação da
sentença (SN, SV, SA, por exemplo) procede do estruturalismo americano. A ruptura
que ocorreu, a meu ver, no caso da teoria gerativa foi com o behaviorismo mecanicista
bloomfieldiano. Sem dúvida, esse é um tópico para discussão.
Volto a Mattoso Câmara Jr. e o seu livro intitulado em português História e
estrutura da língua portuguesa, na edição de 1975. Tomei contacto com ele na sua
versão em inglês, The portuguese language (1972), traduzida por Anthony Naro e
publicada pela Chicago University Press, do original de Mattoso Câmara, através de
uma cópia xerox, a mim emprestada pela colega Nadja Andrade. Essa obra tem uma
história textual curiosa: escrita, originalmente, em português, foi traduzida para o inglês
e daí vertida para o português, não sei por quem, uma vez que nem na orelha da edição
de 1975, diz Sílvio Elia quem o traduziu e, nessa edição, diz-se apenas que foi revista a
tradução por Maria Aparecida Ribeiro e Antônio Basílio Rodrigues. Teria sido Anthony
Naro o tradutor para o português? Esse livro é póstumo e, segundo Sílvio Elia, na
referida orelha, o livro foi elaborado entre 1963 e 1965 e uma série de revisões de
Mattoso Câmara foi recebida em 1967. Isso, suponho, que se refere à edição em inglês,
publicada, como referido, em 1972.
Comprei a versão em português no mesmo ano de sua publicação e, desde então,
não deixei de utilizá-la, tanto na pesquisa que venho fazendo sobre a história da língua
portuguesa, como nas disciplinas de natureza histórico-diacrônica que tenho ministrado,
tanto na graduação como na pós-graduação. O meu exemplar está sublinhado e anotado.
De tanto uso já teve de ser reencadernado. Sílvio Elia diz, na referida orelha, e com ele
concordo, que “pela primeira vez é aqui a língua portuguesa tratada com a visão de
lingüista”.
Constituída de onze capítulos, a H.E.L.P. (o trocadilho é intencional), tem sido
de inestimável ajuda ao meu trabalho, e, creio, que de muitos que trabalham no campo
dos estudos histórico-diacrônicos da língua portuguesa. A História e estrutura, como
não poderia deixar de ser, é trabalho de um estruturalista descritivista, de rara erudição e
que aplica, de maneira contrastiva, o método de análise estrutural ao latim em confronto
com o português, não especifica sincronias intermediárias nem define um corpus.
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Utiliza-se do latim que sabia e do profundo conhecimento que possuía da língua
portuguesa, não só por ser falante nativo, mas constante observador, como se pode ver
na sua vastíssima obra. Remeto ao interessado à Bibliografia (págs. 80-85) do nº 5, de
1973, da Revista Vozes, em homenagem ao nosso autor e à Bibliografia organizada por
Carlos Eduardo Uchôa, às páginas XXIII-XLIV, que precedem os Dispersos de Mattoso
Câmara (1975).
Apenas no Capítulo I, a Introdução (págs. 9-33), é que Mattoso Câmara trata do
que se costuma chamar de história externa. Na Parte I, trata do conceito estruturalista da
língua — “a invariante abstrata e virtual, sobreposta a um mosaico de variantes
concretas e atuais” (pág. 9). Em seguida trata da “distribuição da língua portuguesa” e
das “motivações para a dialetação” (págs. 10-13). Na Parte II, O quadro histórico (págs.
14-21), trata das línguas românicas; da expansão do latim; do latim ibérico; da
Península Ibérica na Idade Média e do advento do português comum. Na Parte III, O
latim e sua evolução, caracteriza a língua de Roma; a fragmentação lingüística da
românia e da estrutura do latim e sua evolução. Na parte IV, O português do Brasil
(págs. 28-33), considera a implantação do português no Brasil; da situação lingüística
anterior; a contribuição africana; o português do Brasil e as duas subnormas do
português, ou seja, o português do Brasil e o português de Portugal. É um painel
sintético de muitos séculos de história lingüística, ou de história de línguas.
Nos capítulos II e III, como estruturalista e latinista, apresenta o que designei de
análise contrastiva do latim em relação ao português, tanto na fonologia (capítulo I),
como na morfologia nominal (capítulo III). Considero extremamente rico o Capítulo IV
(págs. 91-115), Morfologia pronominal. Na Parte I, Significação pronominal, enquadra
os pronomes pessoais e demonstrativos na teoria da dêixis; na Parte II, As formas
pronominais em seu sistema e evolução, partindo sempre do latim, chega ao português e
por vezes estaciona no período arcaico do português, como, por exemplo, à página 104,
ao tratar dos demonstrativos.
O Capítulo V, O advérbio (págs. 117-125), subdivide em Natureza do advérbio,
partindo das línguas indo-européias, segue para o advérbio no latim e daí para o
advérbio na estrutura do português; em que primeiro trata do sistema tripartido dos
locativos, depois dos advérbios modais e conclui esse capítulo com o que designa de
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“modalidade semântica e funcional dos advérbios”. Imagino não ser fácil, para um
estruturalista, tratar, diacronicamente, dos advérbios. Daí, talvez ser esse um dos
capítulos mais sintéticos, mas não o único, desse livro, sem dúvida um manual
indispensável para quem se interessa pela história da língua portuguesa.
Os capítulos VI e VII são dedicados ao verbo (págs. 127-176). No Capítulo VI,
subdividido em quatro partes — O sistema verbal em português (págs. 127-142),
Estrutura da flexão (págs. 142-150), verbos de radical variável (págs. 150-161) e
Estruturas especiais de particípio perfeito (págs. 161-163), apresenta, sistematicamente,
em cada subitem de cada parte, o confronto ou comparação entre o latim e o português.
Considero nesse capítulo o mais interessante a Parte III em que sistematiza os
tradicionalmente designados de verbos irregulares.
O Capítulo VII, As conjugações perifrásticas, subdivide em duas partes. Na
primeira, Perífrases de formas verbais (págs. 165-173), embora sintética, é do meu
ponto de vista exemplar e muito clareou a minha cabeça; o mesmo digo para a Parte II,
Perífrase verbo-pronominal (págs. 173-176), que, em três páginas, deixa claro, a meu
ver, as tradicionais “funções do se: pronominal”, ou do “famigerado se”, para usar a
metáfora de Jairo Nunes, utilizada como título de sua dissertação de Mestrado.
No Capítulo VIII, Os conectivos (págs. 177-190), trata na Parte I das
preposições (págs. 177-184) e na Parte II, das conjunções (págs. 184-190). Embora
sintético, destaco na Parte I, o que Mattoso Câmara designa de “Quadro lato das
preposições”, em que classifica semanticamente as preposições e mostra como se
multiplicaram pela via das chamadas locuções prepositivas. Na Parte II, destaco o breve
e esclarecedor estudo diacrônico apresentado do que, designado de “partícula
multifuncional” (pág. 186) e das locuções conjuntivas e sua formação do latim para o
português.
A meu ver, o capítulo mais rico é o IX, O léxico do português (págs. 191-212) e
o seu complemento, o X, Ampliação e renovação lexical (págs. 213-234). Nessas trinta
e três páginas, Mattoso Câmara me causou espanto. Não é comum, no estruturalismo,
pelo menos o americano, o estudo do léxico. Não só apresenta a história externa dos
empréstimos, depois de tratar dos itens lexicais provenientes do latim, mas ainda na
Parte II, do capítulo nono, trata da constituição de cinco campos semânticos do
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português — o mundo físico; as partes do corpo humano; o parentesco; o tempo
(transcurso) e o tempo (atmosférico) — numa perspectiva diacrônica. Conclui o
Capítulo IX com os nomes próprios de pessoa e de lugar, dando ênfase, nesse último
caso, a topônimos brasileiros.
No capítulo décimo, trata da composição, da derivação por sufixação, que
subdivide em nominal e também na formação de substantivos abstratos por sufixo. Em
seguida trata da derivação verbal e aí investe na prefixação, mostrando a relação entre
prefixos e preposições na história do latim para o português. Finaliza esse capítulo,
tratando, brevemente, dos helenismos (págs. 233-234). Do meu ponto de vista, é o
capítulo XI, A frase portuguesa (págs. 235-258), menos rico, embora informativo, por
causa da abordagem diacrônica do livro. Talvez considere esse o capítulo menos rico,
porque, posteriormente a Mattoso Câmara Jr., a sintaxe da sentença venha sendo o
centro da pesquisa, tanto no gerativismo como no funcionalismo. Esse meu ponto de
vista, seria outro ponto para debate. Diria para concluir que nos Princípios de
Lingüística Geral, pelo menos, na edição de 1954, o estudo da sintaxe se apresenta mais
completo e complexo que na História e estrutura da língua portuguesa, como busquei
mostrar, quando expus o que diz o nosso autor sobre as vozes do verbo.
Para concluir este item, diria que o Dicionário de Fatos Gramaticais (1956),
depois intitulado de Dicionário de Filologia e Gramática (1972), hoje Dicionário de
Filologia e Lingüística é, não só o melhor dicionário, em língua portuguesa, sobre
filologia e lingüística (precisaria ser atualizado com os conceitos das lingüísticas póssessenta), mas é complementar à História e estrutura da língua portuguesa.
4. Algumas reflexões finais
Neste “diálogo” com a obra de Joaquim Mattoso Câmara Jr. destaquei os livros
que, principalmente, marcaram e marcam o meu percurso de ensino e pesquisa —
Princípios de lingüística geral, Problemas de lingüística descritiva, Estrutura da língua
portuguesa, História e estrutura da língua portuguesa e o Dicionário de filologia e
gramática.
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Contudo, no meu percurso, outros livros de Mattoso Câmara foram muito
importantes para mim como o Manual de expressão oral e escrita (1961), que foi muito
utilizado pelos que, na Universidade de Brasília, entre 1963 e 1965, ministravam, eu
inclusive, a disciplina denominada Recuperação do português, disciplina também
ministrada na Universidade Federal da Bahia entre 1973 e 1975. Foi também pelo livro
de Mattoso Câmara, Introdução às línguas indígenas brasileiras (1965) que me iniciei
no conhecimento das nossas línguas autóctones. Para Carlos Eduardo Uchôa, esse livro
“condensa tudo que de mais relevante o autor pesquisou sobre o assunto”
(1975[1972]:XX).
Além de lingüista, Mattoso Câmara Jr. teorizou sobre a língua literária e
analisou, principalmente, parece-me, Machado de Assis. Fruto disso são seus livros:
Contribuição à estilística portuguesa (1977), originalmente sua Tese de Livre Docência
e Os ensaios machadianos: língua e estilo (1962).
Nesses inícios do século XXI, a Lingüística não tem mais o “objeto teórico”
homogêneo, que foi a incessante busca de Ferdinand de Saussure e a
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade são “objetivos” de muitos lingüistas.
Quanto ao “objeto teórico”, depois da “era” estruturalista, a Lingüística se tornou plural,
multiplicam-se campos ou áreas e neles ou nelas tendências com suas singularidades.
Quanto ao “objeto observacional” (cf. Dascal e Borges Neto, 1991), às vezes se reduz a
um fato lingüístico, que pode ocupar o lingüista por toda a sua vida.
Termino com as palavras de Francisco Gomes de Matos, no seu estudo, Mattoso
Câmara Jr. e o ensino de lingüística no Brasil (1973:73-77): “Os grandes homens
desaparecem mas suas idéias ficam, explicitadas ou subjacentemente presentes, nas
criações por eles deixadas” (pág. 77).
Concordo com Gomes de Matos e volto a repetir que Joaquim Mattoso Câmara
Jr. foi um lutador, mas a sua luta venceu. Sem dúvida a Lingüística se expande e
floresce no Brasil.
Referências
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Histoire, Epistemologie, Langage. 13(1). págs. 13-50.
GOMES DE MATOS, Francisco (1973). Mattoso Câmara Jr. e o ensino da Lingüística
no Brasil. Revista de Cultura Vozes (Estudos lingüísticos em homenagem a J.
Mattoso Câmara Jr.), nº 5, págs. 73-79.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (1964-1973). O estudo lingüístico de um texto
português do século XIV. Boletim de Filologia. Lisboa. T. XXII, fasc. 3 e 4.
_____ (1991). O português arcaico: fonologia. São Paulo/Salvador: Contexto/Edufba.
_____ (1994). O português arcaico: morfologia e sintaxe. São Paulo/Salvador:
Contexto/Edufba.
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_____ (1956). Dicionário de fatos gramaticais. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa /
Ministério de Educação e Cultura.
_____ (1961). Manual de expressão oral e escrita. Rio de Janeiro: 1 Ozon Editora.
_____ (1962). Ensaios Machadianos: língua e estilo. Rio de Janeiro: Livraria
Acadêmica.
_____ (1965). Introdução às línguas indígenas brasileiras. 2. ed. revista. Rio de
Janeiro: Livraria Acadêmica.
_____ (1969). Problemas de lingüística descritiva. Petrópolis: Vozes.
_____ (1970). Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes.
_____ (1972). Dicionário de filologia e gramática: referente à língua portuguesa. 4. ed.
revista e aumentada. Rio de Janeiro: 1 Ozon Editora.
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Livraria e Editora Ltda.
_____ (1977). Contribuição à estilística portuguesa. 3. ed. revista. Rio de Janeiro: Ao
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_____ (1990[1975]). História da lingüística. 5. ed. Tradução de Maria do Amparo
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Meu diálogo constante com Joaquim Mattoso Câmara Jr.